Problema na interpretação das cores
D Genética
Uma questão peluda V Nos últimos meses, vimos como um número relativamente reduzido de genes permite obter a tremenda diversidade de pelos e de cores que os cães apresentam. Cada gene, por si, tem um efeito visível simples e, na maioria dos casos, fácil de individualizar. A dificuldade vem quando eles começam a interagir entre si para originarem um arco-íris de pelagens. Na maioria das situações é preciso olhar com atenção para conseguir perceber qual a cor real e a sua base molecular! Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Autor e Shutterstock
E
ste artigo vai precisamente abordar algumas das dificuldades que surgem quando os genes interagem entre si, e deixar alguns elementos de reflexão quanto à terminologia frequentemente usada para descrever cores e à relação de “amor-ódio” entre alguns estalões e a genética das cores. Mas antes, algumas revisões...
Genética do tipo de pelo
Como vimos no artigo da edição de em setembro, três genes regulam as principais variações no tipo de pelagem dos cães. O gene L (fibroblast growth factor-5FGF5) determina se o pelo irá ser curto (dominante) ou comprido (recessivo). O gene W (R-spondin-2 - RSPO2) é responsável pela presença (dominante) ou não (recessivo) de barbas – é a pelagem “barbada” nos cães de pelo comprido e cerdosa nos de pelo curto. Já o gene R (keratin-71- KRT71) influencia o nível se a pelagem será lisa ou encaracolada (alelos co-dominantes). É a interação entre estes 3 genes que nos irá dar a multiplicidade de tipos de pelagem nos cães.
interação entre os genes do pelo Tipo de pelo
Exemplo de raça
Genótipo
Pelo curto
Basset Hound
L- ww R-
Pelo cerdoso
Australian Terrier
L- W- R-
Pelo cerdoso e encaracolado
Airedale Terrier
L- W- rr
Pelo comprido
Golden Retriever
ll ww R-
Pelo comprido com barbas
Bearded Collie
ll W- R-
Pelo encaracolado
Irish Water Spaniel
ll ww rr
Pelo encaracolado com barbas
Bichon Frisé
ll W- rr
Cores e padrões básicos da pelagem
No artigo da edição de outubro começámos a explorar as bases genéticas da cor da pelagem. Apesar de existirem numerosos genes a afetar a cor, intensidade e padrão da pelagem dos cães, na sua forma mais simples a cor de base pode ser reduzida a 4 genes. O gene A (Agouti, correspondendo a Agouti Signaling Protein - ASIP) afeta o padrão de distribuição de eumelanina e feomelanina no corpo do cão, originando os feótipos fulvo, lobeiro, afogueado e preto recessivo. O gene B (Brown ou Castanho, correspondendo a Tyrosinase related protein - TYRP1) determina se a eumelanina produzida será preta ou castanha. O gene E (Extension ou Extensão, correspondendo a Melanocortin Receptor 1 - MC1R) determina se o animal pode expressar a sua cor e padrões normalmente com uma máscara eumelâmica adicionada ou sem ela ou se, pelo contrário, apenas poderá expressar feomelanina (amarelo recessivo). O gene K (BlacK, correspondendo a CBD103) determina se à cor e padrão de base será ou não adicionada uma “camada” integral ou parcial (raiada) de eumelanina ou se o cão poderá expressar as cores codificadas pelos outros genes. A interação entre estes 4 genes dá-nos as cores e padrão básicos da pelagem dos cães. O gene K sobrepõe-se aos outros genes (epistasia), mas o amarelo recessivo ee sobrepõe-se mesmo ao K.
Diluições de cor
Já no artigo da edição de novembro, analisámos os genes que influenciam a intensidade da cor. Os genes A, B, E e K interagem entre si para as pelagens mais diversas, mas outros genes influenciam a sua expressão, permitindo tonalidades mais ou menos intensas. O gene D (Dilution ou Diluição, devido
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Áreas brancas
Finalmente, no artigo do mês passado, vimos os genes que afetam a presença e extensão de áreas brancas na pelagem. Alguns genes – como o gene S (Spotting ou Malhado de Branco) – impedem a expressão da cor em algumas áreas do corpo, originando malhas brancas de extensão gradualmente maior quanto mais recessivo for o alelo. Outros – como o gene T (Ticking ou Mosqueado) e o gene R (Ruão) permitem que pequenas porções de cor “penetrem” através das áreas brancas. O gene M (Merle, correspondendo a SILV) não afeta diretamente as áreas brancas, apesar de, quando presentes, tender a tornar as malhas brancas maiores que o normal; em contrapartida, vai diluir aleatoriamente as áreas
Os cães afogueados tipicamente nascem pretos, e o afogueado aparece ao longo das primeiras semanas de vida. 42 Cães&Companhia
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O Pastor Holandês ilustra bem a dificuldade em distinguir as cores consoante a pelagem. Nos exemplares de pelo curto nota-se visivelmente o raiado que é a cor única da raça. Já no pelo comprido é preciso olhar com atenção para o aperceber. No pelo cerdoso, em muitos casos praticamente só sabendo previamente a cor é que se consegue distinguir as raias da cor de base.
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a Melanophilin - MLPH) é o responsável pelo aclarar da eumelanina de preto e castanho para azul/cinzento e castanho claro/pardo, respetivamente. A ação do gene C (Albino) nos cães é ainda assunto de controvérsia, mas deverá estar aqui, pelo menos, a base para os raros (em comparação com outras espécies) albinos. Quanto a genes ainda no estado de hipótese, o gene P irá diluir tanto a eumelanina como a feomelanina, enquanto o gene I apenas irá afetar a feomelanina. Quanto ao gene G (Greying ou Progressive Greying, Cinzento ou Cinzento Progressivo), é responsável pelo aclarar gradual tanto da eumelanina como da feomelanina, mas apenas depois do nascimento, e só nos cães com barbas. Quanto a outras cores diluídas, como o Seal ou Preto Mal Tinto, será preciso aguardar para se saber qual a sua base genética.
Com a interação entre certos genes de cor e de pelo, por vezes o que se “vê” no animal adulto não correspponde necessriamente à realidade. Neste exemplo, aos 2 meses esta cachorra é nitidamente fulva raiada com máscara negra. Em adulta, com a interação do pelo com barbas e a ação do gene G, é virtualmente impossível aperceber as raias, o fulvo empalideceu e a máscara passa desapercebida. Sem mais informações, ao vê-la em adulto, facilmente se pensaria que era apenas fulva.
de eumelanina, dando ao animal um aspeto de malhas coloridas. Já o gene H (harlequim, correspondendo a PSMB7) vai aclarar as áreas diluídas do merle, tornando-as brancas.
Parece simples?
Pois, quando se sabe que genes causam que cor, conhecer tudo sobre a cor de um cão e a sua base genética parece simples, não? Tomara! Na realidade, há muitos fatores que complicam a simples observação do
animal, e por vezes não é possível determinar corretamente a cor olhando para um cão, sobretudo em certas fases da sua vida. Por exemplo, a intensidade da pigmentação pode variar algo ao longo da vida do animal, consoante a estação do ano, ou mesmo conforme a alimentação – uma alimentação de melhor qualidade irá originar uma pelagem mais forte e pigmentada, enquanto carências nutritivas vão ter reflexo a nível do comprimento, textura, densidade da pelagem, que será mais baça e algo descolorida face ao potencial do animal.
“a intensidade da pigmentação pode variar algo ao longo da vida do animal, consoante a estação do ano, ou mesmo conforme a alimentação”
Mas mais concretamente, algumas cores podem variar substancialmente ao longo da vida do animal. Por exemplo, cães de cor fulva podem nascer fulvos claros e ir escurecendo ao longo do crescimento, ou nascer pretos (ou quase) e ir aclarando ao longo dos primeiros meses de vida. Os cães afogueados tipicamente nascem pretos, e o afogueado aparece ao longo das primeiras semanas de vida. No caso dos cães com o padrão em sela (como no caso dos Pastores Alemães), que se sabe agora ser uma variação do afogueado, este continua a aumentar ao longo dos primeiros meses; um cachorro que aos 2 meses de idade pode parecer ser claramente preto (ou castanho) afogueado, poderá vir a revelar-se como tendo um padrão em sela alguns meses mais tarde. Animais raiados frequentemente nascem pretos, e as raias apenas começam a ser distinguíveis do fundo nas primeiras semanas de vida, sobretudo no caso de cães com um raiado bastante denso. Nos animais mosqueados e/ou ruão, as pintas de cor nas manchas brancas só aparecem ao fim de poucas semanas de vida. No caso dos animais lobeiros a evolução pode ser dramática ao longo dos primeiros meses. Desde nascerem pretos, ao irem aclarando ao longo dos primeiros tempos de vida, passando pelo afogueado e a poderem mesmo parecer fulvos ao fim de algumas semanas até voltarem novamente a escurecer mais ou menos até a pelagem se fixar no padrão lobeiro com alguns meses de idade, poderá ser um verdadeiro quebra-cabeças olhar para um cachorro de tenra idade e saber qual será a sua cor definitiva. No caso de se tratar de uma raça em que o lobeiro e o fulvo carbonado (fulvo
com um manto mais ou menos escuro, mais ou menos amplo) são admitidos, pode também ser difícil, sobretudo no caso de observadores inexperientes, distinguir os 2 tipos de padrão, devidos a alelos diferentes, sem o conhecimento prévio da evolução da cor desde cachorro. Nos cães com barbas em que há a ação do gene G, os animais nascem substancialmente mais escuros do que a sua cor adulta, e vão aclarando substancialmente ao longo do seu crescimento, e por vezes mesmo depois de serem adultos. Um cachorro que nasça preto poderá ficar cinzento claro, e um animal fulvo escuro poderá ficar muito claro, quase branco, não sendo possível determinar seguramente, com poucas semanas ou meses de vida, qual a sua tonalidade final.
Num cão de pelo comprido, a forma como os pelos se misturam entre si leva a que por vezes seja difícil distinguir claramente as raias. E caso se trate de um animal de pelo comprido com barbas, em que o pelo fica normalmente bastante mais misturado entre si, em alguns casos o raiado passa praticamente desapercebido ao olho menos treinado, parecendo o animal ser mais ou menos cinzento.
E se no cão com barbas e pelagem raiada ocorrer ainda a ação do gene G, levando ao aclarar da pigmentação, principalmente a eumelânica, poderá mesmo ocorrer que em adulto não seja praticamente possível aperceber que o animal tem raias (ou uma máscara negra, por exemplo, o princípio é o mesmo), quando em cachorro são claramente visíveis. No entanto, este conhecimento pode ser importante na
“É importante usar-se o mesmo termo para a mesma cor, independentemente da raça, para que todos entendam bem do que se está a falar”
Interação entre pelo e pelagem
Se a determinação da cor de um indivíduo pode ser por vezes complicada por si só, quando se adiciona o tipo de pelagem, a equação poderá ficar ainda mais complicada. Por exemplo, imaginemos um animal com uma pelagem raiada. As raias podem ser mais ou menos densas na pelagem. Há situações quando as raias tão muito densas que o animal parece preto, e há quem diga que o animal é preto com raias amarelas, mas tal não corresponde à realidade. O raiado consiste sempre em riscas eumelânicas (pretas ou castanhas) em um fundo feomelânico (com pigmento amarelo), quer este seja mais ou menos visível. Num cão de pelo curto, normalmente é sempre relativamente simples perceber que a pelagem é raiada. No entanto, quando o comprimento do pelo aumenta, a dificuldade acresce, sobretudo no caso de um raiado mais denso.
hora de planear cruzamentos e prever o que se poderá obter. Este conhecimento é ainda mais relevante no caso de o animal em vez de ser raiado ser merle, pois sabe-se que o cruzamento de dois animais merle pode originar problemas de audição e de visão; se não se conseguir perceber em adulto que o animal é merle (por aclaramento do pigmento devido ao gene G) e se não se tiver o conhecimento da real cor (com base no indivíduo em cachorro), corre-se o risco de inadvertidamente se acasalarem dois animais com este padrão.
Terminologia
Outro dos fatores que dificulta a discussão sobre cores é o problema de falta de padronização na terminologia utilizada. Diferentes pessoas usam diferentes termos para descrever a mesma cor, e muitas vezes é preciso saber qual a raça em discussão para se ter uma ideia de qual a cor (sob um ponto de vista genético) que está a ser tratada. Por exemplo, tanto o amarelo recessivo ee como o fulvo podem ser denominados como amarelo, laranja, limão, etc., em diferentes raças. A cor
Em todas as raças o merle designa um padrão aleatório de manchas pretas e acinzentadas, e o harlequi mo padrão típico dos dogues alemães, com manchas escuras irregulares num fundo branco. Mas no Teckel, usa-se o termo arlequim para designar... o merle!” Cães&Companhia 43
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gem arlequim sem ter animais merle, em que “limbo” ficam esses animais de cor não autorizada mas fundamental? Em Portugal já se deu um passo em frente neste caso, permitindo-se o seu registo condicionado à não participação em exposições, mas além de se tratar de um problema global e não nacional, no fundo nada separa estes cães dos restantes para além da sua cor.
Pensamento final...
Na maioria das situações, é possível olhar para um cão, qualquer que seja a sua idade desde que tenha mais que algumas de semanas de vida, e saber qual a sua cor. No entanto, consoante a maior ou menor diversidade de cores admitidas em certas raças, consoante se trate ou não de raças com barbas em que ocorra ação do gene G, consoante haja ou não diferentes variedades
branca pode corresponder, consoante a raça, a um cão de qualquer cor com malhado extremo ou a um amarelo recessivo ee muito claro, com ou sem a influência do aclarar devido ao gene G. O merle é chamado merle em praticamente todas as raças, no Teckel é denominado “arlequim”, sendo que o arlequim consiste na realidade no padrão irregular branco e preto típico de uma das variedades do Dogue Alemão. Outro exemplo é o caso da cor designada por “cinzento”. Consoante a raça, pode tratar-se de um animal fulvo com uma tonalidade clara, sem que tal afete o pigmento preto (como p. ex. no caso do Cão de Pastor Belga Tervueren ou no Cão da Serra da Estrela), de um animal preto diluído por ação do gene D, de um animal castanho diluído por ação do gene D (ex. Weimaraner), de um animal com barbas com o gene G a atuar sobre o preto (ex. Bobtail)... Sem um processo de uniformização de linguagem, dificilmente será possível ter uma discussão produtiva, objetiva e sem problemas de confusão e de interpretação, entre grupos de interesse envolvidos em diferentes raças!
Estalões desfasados da realidade
Quando se fala de cães de raça, cujas características devem obedecer a um determinado estalão racial (descrição do animal ideal), a cor é frequentemente um aspeto de relevo, dada a sua importância na identificação de um animal. No entanto, esta seção do estalão é frequentemente subjetiva ou mesmo, em 44 Cães&Companhia
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alguns casos, desfasada da realidade. Apesar de efetivamente o conhecimento factual (e não teórico) dos genes envolvidos na cor da pelagem ser relativamente recente (a maioria dos genes identificados foi-no nos últimos 15 anos), também é verdade que nos últimos anos numerosos estalões têm sofrido revisões sem que espelhem essa realidade – ou mesmo, em alguns casos, tornando-a ainda mais incorreta. Por exemplo, o estalão do Cão da Serra da Estrela diz que os cães podem ser amarelos, mas exige a presença de uma máscara escura, o que é uma impossibilidade, pois o verdadeiro amarelo ee não permite a expressão da eumelanina. Na realidade, o que o estalão requer é que os animais sejam fulvos – pelagem com mistura de pelos feo- e eumelânicos, na qual a ocorrência de máscara já é possível. Depois há também raças de animais fulvos em que a cor “cinzenta” é penalizada (ou pelo contrário, encorajada). No entanto, nessas raças o “cinzento” é apenas uma tonalidade do fulvo. Ou seja, está-se simultaneamente e encorajar e a penalizar o mesmo gene! E sendo ambas as cores causadas pelo mesmo gene, como determinar objetivamente onde acaba o fulvo e começa o cinzento? Mais grave ainda é por exemplo o que ocorre com o Dogue Alemão. A variedade arlequim está contemplada no estalão, mas a pelagem merle não é permitida. Ora, se, como vimos no mês passado, não é possível ter uma pela-
Um problema de falta de standardização na terminologia é o caso do cinzento... consoante a raça que se esteja a tratar, este termo pode ter diferentes bases genéticas, espelhando inclusive cores de aspeto visual diferentes.
de tipo de pelo, poderá haver alguma dificuldade em olhar para um animal adulto e saber a base genética da sua cor. Em muitos destes casos, mais difícil ainda será olhar para um cachorro com poucas semanas e fazer uma previsão correta quanto à cor e intensidade final que irá apresentar em adulto. O período de registo no livro de origens, no qual é feito o resenho do cachorro e se dá uma declaração “final” da sua cor e intensidade, é feito quando o animal tem apenas algumas semanas de idade, e nesses não é possível determinar realisticamente qual a “variação” da coloração em adulto. Pelo menos em algumas raças, seria importante haver a possibilidade de, por norma, se fazer uma reavaliação após uma dada idade, para que os dados constantes nos livros de origem reflitam corretamente a realidade.D
“Por vezes é difícil olhar para um cachorro com poucas semanas e fazer uma previsão correta quanto à cor e intensidade final que irá apresentar em adulto”
Onde acaba o fulvo e começa o cinzento?
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