Cortes de caudas nos cães

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D Criação

Corte de Caudas nos Cães

Por: Carla Cruz, criadora com o afixo “Aradik” • Fotos: Shutterstock

Falar de corte de caudas e orelhas nos cães é sempre um tema muito complicado, pois leva invariavelmente a reações altamente emotivas quer por parte de quem concorda quer por quem discorda. Afinal, quem tem razão? Existem argumentos válidos para justificar estas amputações? Será que só trazem desvantagens? Leia e decida por si...

Resumidamente, a cauda é a parte terminal da coliuna vertebral, tipicamente composta por seis a vinte e três vértebras muito móveis.

O

costume de cortar as caudas aos cães tem uma origem remota e envolve tanto questões de ordem mitológica (pelo menos assim o entendemos atualmente, na altura seriam consideradas uma realidade) como prática. Por exemplo, os romanos acreditavam que os cães de cauda cortada eram menos suscetíveis a contrair raiva. Até ao século XIX, era também um método para tentar obter cães anuros, numa época em que se pensava que os filhos podiam herdar as características adquiridas (não genéticas) dos progenitores. Sob um ponto de vista mais prático, por exemplo no Reino Unido cortava-se a cauda a cães de trabalho para evitar que pagassem imposto, pois estes estavam isentos. Era também comum cortá-la aos cães de luta (com outros cães ou com ursos), para dificultar que fossem mordidos num ponto de fácil preensão. Todos estes argumentos não passam presentemente de razões históricas, sem aplicabilidade aos dias de hoje (bem… talvez a dos cães de luta persista, mas isso é outra questão…). Vivemos numa época em que temos mais conhecimento e acesso facilitado à informação, énos mais fácil avaliar os prós, os contras e o impacto das decisões que tomamos.Analisemos então os argumentos mais comumente utilizados a favor e contra o corte de caudas nos cães

A cauda dos cães

Vejamos primeiro o que é a cauda, sob um ponto de vista anatómico, 44 Cães&Companhia

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pois isso é importante para compreender alguma da argumentação relacionada com as alegadas vantagens ou desvantagens do corte da cauda. Resumidamente, a cauda é a parte terminal da coluna vertebral, tipicamente composta por 6 a 23 vértebras muito móveis. Estas estão envolvidas por musculatura muito versátil, que torna a cau-

uma tesoura ou um bisturi. Consoante o sangramento, se necessário poderão ser aplicadas uma ou mais suturas.

Argumentos a favor do corte de caudas

Os proponentes da amputação das caudas recorrem tipicamente a motivos relacionados com questões culturais,

o corte de cauda tem sido justificado por razões históricas, culturais e funcionais. quais resistem ao escrutínio? da capaz de movimentos muito precisos. Parte da musculatura tem origem em músculos associados ao reto, ao ânus e ao diafragma pélvico e parte é continuação direta da musculatura epiaxial do tronco. Estes músculos possuem vários tendões. Existem ainda 4 a 7 pares de nervos caudais.

O corte da cauda

O corte da cauda é normalmente feito por um de dois métodos. O primeiro consiste no procedimento normalmente utilizado em espécies pecuárias – a aplicação de um anel de borracha apertado na cauda. Isto serve para fazer a oclusão dos vasos sanguíneos que irrigam os tecidos para lá do anel, o que resulta em isquemia, necrose e, eventualmente, na queda da cauda. O método mais comum nos cães é a amputação por via cirúrgica, normalmente até 5 dias após o nascimento. Após o corte do pelo em redor do sítio da amputação, a cauda é cortada usando

tradições e de saúde. São também alegadas razões que se prendem com a própria higiene dos animais. Vejamos cada uma em maior detalhe.

Evitar danos

Este motivo é normalmente referido para justificar o corte em cães de trabalho (principalmente de caça, mas também de pastoreio) e em cães de pelo raso, nomeadamente os que têm temperamentos muito exuberantes. Nos cães de trabalho, o objetivo será evitar que a cauda, principalmente a porção terminal, mais frágil e móvel, sofra ferimentos quando o animal atravessa vegetação densa e espinhosa. Nos cães de temperamento efusivo, o argumento é que serve para evitar que a cauda sofra danos quando o cão a abana intempestivamente contra móveis, paredes, etc. No entanto, as evidências não parecem suportar este argumento.A principal fonte usada para apoiar a maior incidência

de danos em cães de cauda inteira tem sido um inquérito feito pelo Clube Sueco do Braco Alemão de Pelo Curto após a implementação da proibição do corte de caudas no país em 1988. Os dados iniciais apontaram efetivamente para um aumento do número de danos nas caudas. No entanto, o número de contribuições recebidas no segundo ano do estudo foi consideravelmente inferior ao do primeiro ano, parecendo haver uma autosseleção dos respondentes. Em 1996, o Ministério da Agricultura Sueco fez uma revisão do estudo, a pedido do Clube da Raça, e rejeitou-o como não científico. Não parecem haver mais estudos evidenciando o aumento de danos às caudas devido à sua nãoamputação. Aliás, os estudos apontam para o contrário. Uma investigação de 7 anos em Edimburgo, publicada em 1985 e incidindo em mais de 12.000 cães tratados num hospital universitário, detetou uma reduzida incidência de problemas em caudas (apenas 47 casos); não ocorreram diferenças significativas entre a taxa de danos nas caudas (fraturas, lacerações, dermatoses, trauma autoinduzido e neoplasias) e o fato de as raças terem ou não a cauda cortada. Noutro trabalho, em 2.350 consultas num Hospital Veterinário dedicado a emergências, em Sidney, e num período de 9 meses entre 1991 e 1992, apenas 3 envolveram danos em caudas; foram todas resultado de problemas ocorridos logo após a sua amputação em cachorros. Certo, estes estudos foram efetuados em meios urbanos, quando em meios rurais há potencialmente maior probabilidade de ocorrerem danos, e seria interessante Cães&Companhia 45

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Tradição

Exemplar Rottweiler de cauda inteira e cortada.

que houvesse estudos similares nestes ambientes. Mas mesmo que não se considere a questão que a maioria dos cães hoje em dia se destina essencialmente a animais de companhia (logo, a probabilidade de virem a sofrer esse tipo de danos é reduzida), é interessante constatar que para todos os tipos/funcionalidades de raças em que tradicionalmente se amputa a cauda, existem outras raças similares, atuando no mesmo tipo de ambiente, em que a cauda é mantida inteira.

número de comportamentos atípicos destinados a afastar as moscas. Será que estes resultados sugerem que, mesmo que nos cães de pelo curto o corte de cauda por esta razão seja desnecessário, nos cães com pelo comprido poderá ser útil? Nem por isso. Por um lado, a musculatura da cauda, pelo menos a que está ligada às primeiras 4 a 7 vértebras, não só auxilia à contenção do conteúdo da cavidade pélvica como efetivamente contribui para os movimentos levando à eva-

cuação adequada do material fecal. Aliás, enquanto nos herbívoros um desses músculos (músculo levantador do ânus) apenas está na zona pélvica, nos carnívoros ele prolonga-se para as vértebras da cauda, pelo que o seu impacto é superior nestes últimos. Logo, poderá assumir-se que a ausência de cauda poderá potencialmente levar a mais anomalias na defecação. Por outro lado, a numerosas raças com pelagem abundante (por exemplo, Bearded Collie, Epagneul Pequinês, Galgo

Afegão, etc.) não lhes são cortadas as caudas – mesmo quando se trata de animais de trabalho, tipicamente sujeitos a menos cuidados de higiene que os animais de companhia, regularmente escovados, lavados, com a pelagem aparada. Aliás, em qualquer cão, a acumulação de material fecal junto do ânus é normalmente indicador de problemas de saúde requerendo acompanhamento veterinário, não uma justificação para uma amputação “preventiva”.

Independentemente dos argumentos mais práticos atrás referidos, atualmente, o principal argumento usado para justificar o corte de caudas parece ser a questão cultura e tradição, o “sempre se fez assim”, o “se não for assim o cão não parece ser da raça X”. Ora, como vimos no início, a maioria dos argumentos históricos que justificariam o “já os meus avós faziam desta forma” não parecem ser válidos à luz dos conhecimentos e realidades atuais. Não há evidências que sugiram que as sociedades mais primitivas pratiquem a amputação das caudas rotineiramente. Certo, em algumas regiões centro-asiáticas onde ainda se pratica um regime de pastoralismo monádico semelhante ao de há séculos atrás, o corte de cauda em alguns cães de gado parece estar enraizado, mas fica por esclarecer até que ponto tal era feito por necessidades de trabalho ou devido às tradicionais lutas promovidas entre estes animais e outros cães, lobos e ursos. O corte de caudas nos cães como regra aparece mais recentemente, com as sociedades ditas desenvolvidas. Mas, nesse caso, poder-se-á invocar o argumento de que a aparência distinta que se criou artificialmente é tradicional? Os

Higiene

Existe quem justifique a remoção da cauda com o evitar a acumulação de material fecal na região anal de cães com pelagens exuberantes. Além do óbvio incómodo para dono do cão, esta situação poderia ser um chamariz para moscas e assim dar origem a infestações por larvas. Possivelmente este argumento deriva das práticas nas espécies pecuárias. Porém, não só as pelagens são diferentes, como esses animais são mantidos em sistemas de maneio totalmente diferentes, com uma grande densidade populacional em espaços reduzidos e consequentemente uma menor higiene externa em comparação com os animais de companhia. Um estudo envolvendo 3.000 borregos de diferentes quintas, a metade dos quais foi cortada a cauda na primeira semana de vida, constatou que efetivamente nos animais de cauda inteira havia uma maior acumulação de material fecal e problemas de infestações por moscas. Já estudos em vacas leiteiras têm não só constatado não haver associação entre a amputação da cauda e a acumulação de material fecal, como na realidade os bovinos de cauda cortada eram mais afetados pelas moscas, por não serem capazes de as afastar com a cauda, e exibiam como tal uma maior 46 Cães&Companhia

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cães historicamente possuem caudas e orelhas inteiras, muito antes de se ter começado a cortá-las, logo esse será o real aspeto tradicional, o resto deriva da nossa história cultural, geográfica e temporalmente limitada.

Qualidade racial

É comum ouvir a argumentação que o animal tem de ter a cauda (e/ou orelhas) cortada para provar/parecer pertencer à sua raça X, ou porque o estalão assim o exige. Mas se é necessário remover

Aliás, um reflexo desta evolução é que, atualmente, a Fédération Cynologique Internationale (FCI) nem sequer permite nos seus estalões a ocorrência de terminologia que incentive intervenções cirúrgicas nos cães. No entanto, o fim do corte de caudas é tipicamente um assunto que preocupa vários criadores das raças envolvidas. Por um lado, porque há raças em que naturalmente tanto ocorrem anuros como cães com cauda – daí o cortar-se a cauda, para uniformizar a aparência.

ÀS RAZÕES CULTURAIS E FUNCIONAIS PARA O CORTE, CONTRAPÕEM-SE ARGUMENTOS DE COMPORTAMENTO E DE BEM-ESTAR partes de um animal para definir uma população como raça distinta das restantes, fará sentido que exista enquanto entidade separada? Os protótipos raciais (estalões), tal como qualquer outra lei ou norma, são fluídos, e mudam ao longo do tempo, à medida que as populações evoluem, as culturas se modificam e o conhecimento aumenta. Qualquer pessoa que acompanhe a sua raça de eleição durante algum tempo verá que regular ou ocasionalmente são publicadas alterações aos estalões.

Por outro lado, como nunca houve seleção relativa ao tipo/comprimento/porte da cauda, temem que se perca homogeneidade racial se começarem a deixar as caudas inteiras, pois não sabem o que esperar obter e receiam ter de reiniciar o seu programa de seleção ou, no mínimo, ter de adicionar uma nova variável desconhecida. Sem dúvida que esta é uma questão real a ser considerada, e que irá demorar tempo a ser resolvida, à medida que se vai deixando cada vez mais cães com

a cauda inteira e se começam a criar bases para saber o que é ou não normal e o que selecionar como desejável.

Argumentos contra o corte de caudas

Existem várias razões invocadas por quem se opõe ao corte de caudas nos cães. Desde as mais simples – os cães nascem com cauda, por isso é lógico que a mantenham – às que dizem respeito a questões de comportamento e bem-estar. Vejamos as principais.

Dor causada

Falar de dor é sempre um assunto complicado, pois a sua sensação, interpretação e avaliação, mesmo na espécie humana em que podemos comunicar o que sentimos, é sempre subjetiva; nas restantes espécies torna-se ainda mais difícil. Adicionalmente, os animais tendem a ser muito estoicos e a não demonstrar muito quando estão com dor; trata-se um mecanismo de sobrevivência, pois na natureza é prejudicial evidenciar que se está inferiorizado. Talvez por causa disto, antigamente pensava-se que os animais não sentiam dor da mesma forma que as pessoas. No entanto, tem sido demonstrado que os mamíferos (e possivelmente todos os vertebrados) possuem os mesmos mecanismos anatómicos e fisiológicos de sensação e transmissão de dor que os humanos, sentindo dor da mesma forma.

Imaturidade do sistema nervoso

O corte de caudas e orelhas tem sido muitas vezes justificado para a manutenção do tipo racial...

...mas será que o tipo é (ou deve ser) definido pela remoção de partes da anatomia de um animal?

A razão mais frequentemente utilizada para justificar o corte de caudas à nascença é que quando nascem, os cachorros ainda não têm o sistema nervoso bem desenvolvido, pelo que não são ainda capazes de sentir dor. Pelo menos é isso que “aprendemos” à conversa com outros criadores. Mas será que é mesmo assim? De uma forma simplificada, os impulsos sensoriais (incluindo a sensação de dor) de qualquer parte do corpo são transmitidos através das células nervosas, os neurónios. Os neurónios ligam-se uns aos outros através do seu axónio, uma extensão filiforme que conduz os impulsos do corpo da célula para outra. Os axónios estão envolvidos por uma bainha de mielina, um material isolante que ajuda a aumentar a velocidade de propagação dos impulsos. À nascença, as células nervosas, responsáveis pela condução dos impulsos associados à dor, não estão ainda completamente envolvidas por esta bainha. Por esta razão, pensava-se que os cachorros (e as crianças) não eram capazes de sentir dor. Cães&Companhia 47

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No entanto, os estudos têm evidenciado exatamente o contrário. Os cachorros são efetivamente capazes de sentir dor, apenas de forma mais lenta – mas o atraso de 0,25 segundos na transmissão do impulso é “compensado” pela menor extensão que o impulso tem de percorrer comparativamente a um animal adulto. Adicionalmente, como os mecanismos de inibição sensorial estão ainda pouco desenvolvidos, os cachorros são provavelmente ainda mais sensíveis à dor que os animais adultos.

Mecanismos de compensação

Ah, mas dirão alguns criadores, certamente que a dor que sentem não deve ser grave. Afinal, pouco depois de lhes ser cortada a cauda, os cachorros adormecem ou põem-se a mamar. A única investigação que há sobre o comportamento dos cachorros quando lhes é cortada a cauda, incidindo em 50 animais, demonstrou que todos os cachorros vocalizam significativamente mais alto no momento da amputação, evidenciando uma dor intensa. Após o corte, demoraram em média 2 minutos a cessar as vocalizações e 3 minutos em média (de 35 segundos a 14 minutos) até adormecerem (no estudo os cachorros não foram colocados de imediato com a mãe), pelo que se presume que a dor é de pouca duração.

Porém, o fato de os cachorros pararem rapidamente de manifestar dor e adormecerem ou porem-se a mamar indica provavelmente mecanismos de compensação. Por um lado, vocalizar durante muito tempo devido a dor é uma estratégia muito arriscada, pois numa situação natural isso iria atrair potenciais predadores. É por isso que a maioria dos animais raramente manifesta sinais óbvios de dor – para não se tornarem alvos preferenciais. Por outro lado, há estudos que concluem que a atividade alimentar aumentada ou os “episódios de sono” após uma situação dolorosa ou estressante são ou uma atividade deslocada (uma atividade efetuada fora do seu contexto normal) ou um mecanismo adaptativo para assegurar que a cria tem alimento e repouso suficientes sob condições adversas. Adicionalmente, sabe-se que o ato de mamar estimula a libertação de opióides endógenos (endorfinas), que podem funcionar como analgésicos.

Analgesia

Mesmo aceitando que os cachorros sentem dor intensa aquando do corte da cauda, certamente esse problema poderia ser resolvido através da sedação dos animais para o procedimento, não? O problema é que não só a anestesia não evita a dor subsequente ao corte como é um procedimento deveras arriscado em animais muito jovens, quer se

Um dos argumentos justificando o corte de caudas tem sido a prevenção de danos em cães de trabalho...

Problemas de comunicação

trate de anestesia geral ou local. É difícil dosear adequadamente para estes animais e corre-se o risco de toxicose generalizada. Adicionalmente, o aumento da probabilidade de convulsões, falhas respiratórias e de ocorrência de problemas cardiovasculares ou do sistema nervoso central é considerado inaceitavelmente elevado.

Dor crónica

Se quantificar a dor sentida no momento do corte é difícil, avaliar a sua persistência ao longo da vida do animal ainda o é mais. Nas pessoas, é comum a ocorrência de dor do membro

fantasma após uma amputação, com cerca de 60% dos pacientes indicando sentirem dor associada ao membro ausente mesmo alguns anos após a amputação. Estudos indicam que ocorre mesmo em cerca de 20% das pessoas que nasceram sem algum membro ou que o perderam nos primeiros anos de vida. É difícil extrapolar estas situações para os cachorros, mas deixam azo a pensar que é possível que pelo menos alguns animais experienciem o mesmo tipo de dor. Em espécies pecuárias a quem são rotineiramente efetuadas amputações (ovinos, suínos, galinhas) tem sido relatada

corte de orelhas O corte de orelhas parece ter também raízes na época romana, em que se cortavam as orelhas aos cães para evitar danos em lutas. As orelhas são um ponto fácil de agarrar e sangram profusamente, pelo que numa época em que os cuidados veterinários eram rudimentares a inexistentes esses tipos de ferimentos poderiam significar a morte do animal. Ao longo do tempo, a tradição de cortar as orelhas a algumas raças de cães de guarda manteve-se. Frequentemente, o argumento utilizado é o de que os animais assim parecem mais dissuasivos do que os exemplares mantidos com as orelhas inteiras. No entanto, várias outras raças utilizadas para funções similares de guarda (por exemplo, Rottweiler, Mastim e Bullmastiff) são mantidas com as orelhas inteiras, sendo que certamente poucos poderão argumentar que por causa disso parecem pouco dissuasivos no desempenho da sua atividade. A outra razão tipicamente invocada para justificar o corte de orelhas prende-se com o procurar-se 48 Cães&Companhia

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Infelizmente não existem estudos que comparem o movimento de cães com e sem cauda, particularmente dentro da mesma raça (pois a movimentação típica poderá variar de raça para raça), que permitam esclarecer esta questão.

... mas as evidências não parecem apoiar esta razão.

reduzir a ocorrência de otites, devido ao reduzido arejamento do canal auditivo. Existem poucos estudos comparando a incidência de otites entre cães de orelhas pendentes e eretas, mas tem efetivamente sido detetada uma diferença na sua ocorrência – por exemplo, um estudo incidindo em 1.370 exemplares constatou que 12,6% dos cães de orelhas caídas apresentava otites externas, contra apenas 5% nos cães de orelhas em pé; em ambos os grupos, detetou-se maiores frequências de ocorrência em certas raças, devido a uma preferência do organismo causador por ceras ricas em ácidos gordos. Mas com estas incidências, será este um argumento válido para justificar, por si, o corte de orelhas? Pondere-se o facto que nenhuma das raças de Cães de Água e de Retrievers, que devido à sua funcionalidade a priori estão mais sujeitas a desenvolver otites, tem as orelhas cortadas. Poder-se-á também argumentar que um cão de orelhas cortadas

terá maior facilidade de comunicação relativamente a um de orelhas pendentes, já que a posição e movimentos das orelhas são um elemento importante na comunicação canina. Esta é uma questão interessante, e seria importante haver estudos que abordagem esta questão. Apesar de as orelhas em pé serem mais conspícuas, o fato de no corte se remover grande parte da sua cartilagem levanta a questão de quão móveis (e logo expressivas) as orelhas serão nesta situação. O corte nas orelhas é tipicamente efetuado a partir dos 2/3 meses de idade. Nesta fase os cachorros já conseguem suportar a anestesia sem efeitos secundários, e a cartilagem das orelhas já está desenvolvida, pelo que as orelhas já se conseguirão manter em pé com um mínimo de auxílio. Ao ser efetuado nesta idade, o corte ou não de orelhas acaba por ser (ao contrário do que ocorre com o corte de caudas) uma escolha do dono do cão, que pode optar por deixar o seu cão inteiro ou não.

a presença de neuromas nos cotos das caudas e bicos, respetivamente. Os neuromas são feixes de fibras nervosas que se desenvolvem quase invariavelmente quando se cortam axónios em mamíferos ou aves. Consistem em massas de nervos inchadas e emaranhadas, ocorrendo como uma única massa ou como várias massas disseminadas. Normalmente resolvem-se ao fim de algumas semanas, à medida que os axónios degeneram, mas por vezes podem persistir indefinidamente, causando atividade nervosa espontânea que pode ser entendida como dor crónica. Em canídeos não há estudos controlados que demonstrem a presença ou ausência de neuromas após a amputação das caudas, mas isto poderá simplesmente ser porque, ao contrário dos animais de quinta, os cães não são abatidos em grande quantidade pouco tempo depois da amputação, pelo que não há muitos animais disponíveis para estudar. Existem numerosos relatos de donos que manifestam que os seus cães nunca evidenciaram nenhum sinal de desconforto devido à cauda durante a sua vida, tal como há vários que indicam o contrário. Um estudo envolvendo 3 cães de cauda amputada que foram eutanasiados devido a problemas comportamentais revelou que todos apresentavam neuromas, apesar de o corte da cauda ter ocorrido anos antes. O estudo vale o que vale, devido ao reduzido tamanho da amostra, mas leva a ponderar se de facto não haverá problemas derivados de dores que o cão sente mas não evidencia de forma clara. Vários estudos efetuados em crianças humanas têm relacionado dor intensa ou prolongada sentida nos primeiros tempos de vida com um aumento, quando são mais velhas, na sensibilidade à dor, maior número de queixas de dores físicas sem causa aparente,

problemas de atenção e aprendizagem e problemas de comportamento. Considerando que os mecanismos sensoriais são os mesmos, são razão para ponderar se o mesmo se poderá passar no caso dos cães.

Problemas de saúde

Têm sido relatados alguns problemas de saúde associados a cães com caudas cortadas, como a atrofia e degeneração dos músculos pélvicos e da cauda, causando um risco aumentado de incontinência fecal, e o diafragma pélvico com integridade afetada, levando a aumento de hérnias perianais. Há estudos que sugerem que problemas de incontinência urinária adquirida estão sobre-representados em algumas raças de cauda cortada, e um estudo de grandes dimensões encontrou uma associação estatisticamente significativa entre a amputação da cauda e incompetência urinária adquirida, que era independente de outros fatores como o tamanho do cão. Infelizmente não parece haver estudos que comparem a incidência de problemas em cães com e sem cauda na mesma raça. Considerando que este tipo de estudos necessariamente terá de ser efetuado ao nível da população em vez de ao nível do indivíduo, talvez seja fosse assim possível encontrar (ou não) tendências, que passam desapercebidas quando se consideram apenas poucos cães de cada raça.

A posição da cauda e a forma como é movimentada pode indicar alegria, medo, simpatia, dominância, brincadeira, guarda, curiosidade, agressividade, submissão, etc., quer a outros cães quer às pessoas. Assim, é fácil depreender que o corte da cauda poderá afetar a comunicação de intenções. Apesar de o estudo deste tema ser complicado, devido à miríade de outros sinais corporais que afetam a comunicação entre cães, um estudo procurou ultrapassar esta questão de uma forma simples, mas elegante – os autores construíram um modelo de cão em que apenas varia o tamanho e movimento da cauda (comprida e estática, comprida e a abanar, curta e estática e curta e a abanar), e analisaram o comportamento dos cães que se aproximavam. Resumidamente, constaram que os cães reagiam de forma diferente consoante a cauda fosse curta ou comprida. Havia maior probabilidade de se aproximarem do modelo quando a cauda era comprida e a abanar em comparação com a cauda comprida e estática, mas essa diferença não ocorria entre a cauda curta e a abanar e a curta e estática. Ou seja, os resultados evidenciaram que o sinal comunicado pelo movimento da cauda era transmitido de forma mais eficaz quando a cauda era comprida. Aliás, existem vários estudos que sugerem que cães com cauda cortada estão

mais frequentemente envolvidos em encontros agressivos, provavelmente devido à maior probabilidade de incompreensão da sua comunicação.

Escolhas individuais

Este artigo procura fazer uma revisão dos principais argumentos a favor e contra o corte de caudas nos cães, debatendo-os à luz do conhecimento atual. Existem ainda muitas lacunas a explorar para esclarecer definitivamente algumas hipóteses, sem ter de recorrer a comparações com outras espécies, mas a maioria dos estudos necessários seriam atualmente considerados antiéticos. Há quem goste do aspeto do cão com a cauda cortada e escolha mantê-lo, independentemente de saber que está ou não a causar dor ao animal. Há quem o faça procurando precaver possíveis problemas futuros que, a ocorrer, talvez possam causar desconforto ao animal afetado. Há também quem considere que os benefícios não compensam os riscos de saúde e de comunicação e que a possibilidade de danos a alguns exemplares não justifica a dor efetiva e potencial a todos os animais da raça. Independentemente da existência ou não de legislação sobre o assunto, o corte da cauda tem sido uma escolha individual e um reflexo das preferências e opções do criador do cão. Mas é também um reflexo das escolhas dos consumidores, de quem adquire exemplares de raças tradicionalmente amputadas, que têm o poder de escolher a que tipo de criador se dirigir, e assim influenciar o aspeto final da raça!D

A posição da cauda e a forma como é movimentada pode indicar alegria, medo, simpatia, dominância, brincadeira, guarda, curiosidade, agressividade, submissão...

Problemas de locomoção

Sem dúvida que cães de cauda cortada têm desempenhado com sucesso as suas funções, quer seja pastoreio, caça ou atividades desportivas como o Agility. No entanto, sabe-se que a cauda desempenha um papel importante no equilíbrio e funciona como “contra- peso” em situações que requeiram agilidade (saltos, curvas a elevada velocidades, etc.). Cães&Companhia 49

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