Sentidos
Carla Cruz
Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal (www.aradik.net) Fotos: Shutterstock
Fifi procura Bobi para relação séria Abrindo um qualquer site ou fórum dedicado a animais de companhia, os anúncios mais frequentes são os de pessoas que procuram um “namorado” para a sua cadela, para fazerem uma ninhada. Porquê?
É
uma ideia que está ainda muito entranhada na nossa cultura, o fazer-se uma ninhada porque sim, ou porque as cadelas devem fazer pelo menos uma ninhada na vida, mesmo que se queira esterilizar a cadela. Frequentemente, quando contactam um criador à procura de um macho para a sua cadela, às perguntas “então, mas porque quer fazer uma ninhada? Quais os seus objetivos?”, a resposta do outro lado da linha é… um longo silêncio. A maioria das pessoas não se apercebe, o que envolve criar uma ninhada conscienciosamente. Este artigo irá explorar algumas das razões normalmente invocadas para fazer uma criação “porque sim”, e aquilo em que deve pensar e planear muito seriamente antes de tomar uma decisão.
“Todas as cadelas devem ter pelo menos uma ninhada na vida, senão ficam deprimidas”
Este mito ainda está demasiado enraizado, mas não existem razões biológicas para tal, e deriva da nossa própria perspetiva enquanto pessoas. Por um lado, culturalmente há a ideia transmitida de geração em geração que o papel das mulheres é terem filhos e que uma mulher só se sente realizada quando é mãe. Há muito quem ache (e em alguns casos realmente acontece) que as mulheres passam o tempo a desejar ser mães em alguma altura futura, e que começam mesmo a ficar frustradas quando começam a sentir o relógio biológico a tocar e ainda não o foram. Por outro lado, enquanto pessoas, os nossos processos mentais permitem-nos a capacidade de pensar em acontecimentos passados e antecipar eventos futuros (daí a perspetiva do “gostaria de vir a ser mãe daqui a algum tempo”) – é a chamada memória episódica. Quando tentamos perceber a forma como os cães entendem o tempo, é praticamente inevitável transpor para eles a nossa própria conceção de tempo. Mas a investigação feita até à data, mostra que os cães (tal como a maioria dos animais) não têm esta capacidade de pensar e de relacionar tempos passados e futuros como nós a temos. Aliás, a maioria dos cientistas acredita que esta sim é uma das características que torna os humanos únicos. Naturalmente, os cães têm uma certa capacidade de aprender com base em experiências passadas e de, com base nisso, antecipar certos eventos num futuro imediato. Mas
Criar uma ninhada desde o nascimento até à saída para a sua nova família requer muito planeamento, tempo, trabalho e dinheiro. Tem a certeza que tem disponibilidade e conhecimentos para isso?
Ter um cão não é um direito, é uma responsabilidade. E criar ainda o é mais, está em jogo a vida da sua cadela, dos cachorros e das suas famílias humanas tanto quanto se sabe falta-lhes a capacidade de abstração de conseguir meditar em situações que aconteceram no passado ou de pensar “um dia gostaria que isto acontecesse”. Eles vivem, essencialmente, no presente. “Então – está com certeza agora a pensar – mas é claro que os animais conseguem antecipar necessidades e desejos futuros a longo prazo. Senão, porque é que os esquilos, por exemplo, guardam comida para o inverno? É porque sabem que vão precisar dela!” Bem, foram feitos estudos
em que se manipulou os stocks de comida armazenada, e verificou-se que isso não influenciava o comportamento de acumulação por parte dos esquilos – ou seja, é um comportamento instintivo, “mecânico”, e não dependente de uma qualquer capacidade de planeamento para o futuro. Tudo isto para dizer que, com base no conhecimento atual, não há qualquer base para pensar que os cães conseguem planear eventos num futuro alargado e sentir-se alterados quando a vida não lhes corre como “previsto”.
“Na natureza as cadelas iriam criar”
“Ah, pronto, está bem, elas até podem não se sentir deprimidas por não terem uma ninhada, mas na natureza elas iriam criar no 34 Cães&Companhia
seio das suas matilhas, não é? Por isso em casa também devem criar.” Antes de mais, é importante ter a noção que os cães domésticos não existem “na natureza”, não existem enquanto espécie selvagem. Sim, existem cães assilvestrados, e cães párias que vivem e morrem sem qualquer associação com pessoas, mas todos eles vivem nas margens de ambientes humanos, e dependem deles para a sua sobrevivência. Ao contrário do que acontece com os lobos, em que as alcateias são formadas pelo casal reprodutor estável e pelos seus filhos, as matilhas de cães assilvestrados são unidades fluídas, transientes, de cães de várias idades – agora podem ter esta composição, daqui a um mês ou dois podem ter uma composição totalmente diferente. Não há assim a entreajuda na criação dos cachorros que ocorre numa alcateia, e há uma mortalidade extremamente elevada dos cachorros – um estudo em Itália reporta que de 40 crias observadas, apenas duas sobreviveram até à idade adulta. Se se partisse do pressuposto que os cães conseguem, tal como nós, reviver episódios passados e ter desejos para o futuro, esta taxa de mortalidade deixaria uma cadela bem mais deprimida que o pensar em ser mãe, não? Isto significa também que, na “natureza”, a sua querida cadelinha, deitada no sofá ao seu lado, provavelmente nem teria sobrevivido. Pense nisso…
Porquê criar?
Ok, mesmo sabendo que não é necessário para a cadela viver feliz, está a pensar em ter uma ninhada da sua cadela. A primeira, e mais importante, questão que deve colocar e refletir muito bem sobre ela é “porque é que eu quero fazer uma ninhada?”. Cães&Companhia 35