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M ú l t ipl i p los os olha res s ob re a s Af -br b asil eir as R elili gii ões Afro
Organizador: Luiz Assunção
1a Edição São Paulo Arché Editora 2012
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Copyright © Assunção, Luiz (org) 1ª Edição, 2012. Capa, projeto gráfico e diagramação – Alexandra Abdala Fotografia: Antonio Luz Revisão: Maria Alice Quaresma Garcia e Rodrigo Garcia Obra em conformidade com o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida total ou parcialmente sem permissão por escrito do autor. Independentemente dos meios empregados para a reprodução não autorizada, estará o infrator sujeito às penalidades previstas na legislação civil e penal vigentes.
Catalogação na Publicação (CIP) Ficha Catalográfica - Maria Ediméia Ferrer - CRB8 3740 D124 Da minha folha : múltiplos olhares sobre as religiões afro-brasileiras / Luiz Assunção, organizador ; autores Mundicarmo Maria Rocha Ferretti ... [et al.] -- São Paulo: Arché Editora, 2012. 328p. ISBN 978-85-65742-01-6 1. Umbanda. 2. Religiões Afro-brasileiras. 3. Teologia Afro-brasileira. 4. Antropologia da Religião. 5. Jurema (Culto afro-brasileiro). I. Assunção, Luiz. II. Ferretti, Mundicarmo Rocha. CDD 299.670981
Apresentação da Editora Origem. Princípio. Dois significados que estão na raiz da palavra Arché, conferindo sua etimologia. A editora nasceu com essa promessa: desvelar, por meio de suas publicações, temas sobre as origens da cultura e identidade brasileiras, entendendo ser esta uma forma de resgate e, ao mesmo tempo, de valorização das nossas “origens”... A Arché Editora nasceu da vontade e disposição para editar livros de excelente qualidade, em primeira instância vinculados à tradição oral. A escolha por esse campo de atuação deveu-se à necessidade de valorizarmos as pessoas, culturas e produções provenientes da tradição oral brasileira, seja religiosa, cultural ou artítstica, buscando seu espaço ao mostrar temáticas imiscuídas à identidade brasileira, privilegiando os elementos de sua cultura. Criada e fundada em 2011 oriunda de um viés interdisciplinar, a missão da Arché é publicar livros de qualidade, principalmente da grande área das ciências humanas e sociais, como teologia, antropologia, sociologia, literatura e educação, todas elas, de alguma forma convergindo para o foco residente na cultura brasileira. As primeiras publicações da Arché priorizam um segmento religioso que, na verdade, é formado por várias contribuições socioculturais abarcando, por esta razão, uma pluralidade de práticas rituais: as Religiões Afro-brasileiras.
Do pontual ao diverso. Do branco ao colorido. Do cântico ao êxtase. As Religiões Afro-brasileiras assumem para si o que de mais brasileiro possuímos, a resistência contra todas as formas de opressão. Marginalizadas desde sempre, finalmente novos rumos aparecem para a(s) história(s) dessas religiões, marcadas pela diversidade de sua composição. Rumos traçados pela seriedade das milhares de lideranças religiosas e seus adeptos que diuturnamente batalham pela melhora de suas coletividades. Mas rumos traçados também por meio da educação, da leitura, da ação. Uma característica basilar desse amplo universo religioso é a oralidade, um método de transmissão de conhecimento que valoriza o aspecto vivencial de aprendizado. A Arché possibilita, por meio de suas publicações, que os leitores entrem em contato e aproximem-se desse método, não para fixar na escrita o modos ritualísticos dos afro-brasileiros, ao contrário, trata-se de apresentá-los como um caminho para a alteridade. Ao conhecer outros métodos e modos de vida, acabamos por compreender melhor os nossos próprios ou até mesmo revê-los. Apresentar, portanto, os aspectos da tradição oral, abordar religiosidades ameríndias, africanas e indo-europeias faz parte de um projeto educacional, mas sobretudo político, já que um dos compromissos da leitura é fomentar a cidadania. Assim, foi com o foco na brasilidade e na tradição herdada de outras matrizes formadoras do povo brasileiro que a
Arché Editora realizou uma parceria com o bacharelado em Teologia da Faculdade de Teologia Umbandista (FTU), com ênfase na tradição oral afro-brasileira, autorizado e credenciado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) em 2003.
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Apresentação As folhas estão presentes nas Religiões Afro-brasileiras e fazem parte das suas tradições. É tal a importância delas nesse sistema de crenças e práticas que sem elas, certamente, o universo religioso seria diferente. Portadoras de valor simbólico, desempenham o duplo papel sacral e terapêutico; seu uso se faz presente em cerimônias religiosas e em diferentes atividades, como nas preparações de amaci, no ariaxé, no bori; em banhos de defesa, de limpeza, de purificação; na preparação de comidas; ingeridas na forma de bebidas e remédios; inaladas por meio da fumaça desprendida de cremações – em cigarros, cachimbos, defumações. Nos rituais de iniciação, o neófito não apenas aprende como se faz a colheita e preparo das ervas sagradas, mas toma conhecimento de como estas folhas contribuem, como tantos outros elementos, na definição do seu fundamento, tornado segredo para os outros; aquilo que não se revela. A presença das folhas nas tradições das Religiões Afro-brasileiras é tão marcante que, em seus discursos, os religiosos utilizam a metáfora da folha para estabelecer uma representação de procedência, situando simbolicamente o religioso numa determinada origem, linhagem ou tradição. Assim, ao ser associada a um fundamento, a folha identifica a forma de culto e, principalmente, como este é cultuado, diferenciando-o de tantas outras práticas existentes no universo religioso. É possível, portanto, a partir das folhas, pensar em pertencimento e afirmação de processos identitários. Da minha folha procura destacar a diversidade religiosa afro-brasileira e, sobretudo, as diferentes concepções de leitura desse campo. É importante ressaltar que a pluralidade não
se refere apenas a uma variedade de cultos, mas ela também se faz presente numa mesma vertente religiosa, por exemplo, as diferentes tradições existentes na Jurema, como a do Acais e a do Codó; como os Cultos Jeje-nagô ganham forma no rastro de tradições diferentes. Ou as muitas Umbandas espalhadas pelo Brasil. Igualmente importante é perceber como leituras acadêmicas e religiosas foram construídas, valorizando determinada vertente em detrimento de tantas outras e, principalmente, contribuindo para a elaboração de um modelo geral para a manutenção de uma espécie de ortodoxia religiosa. Este livro começou a ser tecido no âmbito das diversas atividades acadêmicas promovidas pela Faculdade de Teologia Umbandista de São Paulo, ganhando forma por meio dos diálogos estabelecidos, sobretudo, entre religiosos e intelectuais, abarcando temas das Religiões Afro-brasileiras, em especial aqueles relacionados às questões experimentais em suas práticas cotidianas. Entre estas, as múltiplas concepções e práticas – as muitas folhas – contempladas pelo universo religioso de matriz africana no Brasil. Se, por um lado, este livro explicita uma discussão levada adiante no âmbito escolar – a de refletir sobre a pluralidade religiosa numa direção que procura religar os conhecimentos da ciência e da religião, por outro lado, mostra o quanto parte desse universo plural é pouco conhecido e que as questões que o perpassam vão além das discussões clássicas, como puro versus impuro; africanização, dessincretização; tradição, modernidade. Os ensaios ora reunidos neste livro formam um conjunto de reflexões que buscam analisar e discutir temas relacionados à prática do Tambor de Mina maranhense e da Mina Jeje em São Paulo; a movência de elementos referenciais da cultura,
como o mito e a linguagem; a sistematização do aprendizado e a elaboração do conhecimento religioso; a dinâmica, os saberes e a tradição da Umbanda e da Jurema; a importância das plantas e ervas para no tratamento da saúde e da doença. Outro ponto que merece destaque é a reflexão constituinte de um pensamento teológico com ênfase nas Religiões Afro-brasileiras, cujo objetivo é tecer diálogos entre as várias escolas, compreendidas como linhas de pensamento e prática sustentadas pela cosmovisão de seu respectivo grupo religioso. As representações construídas sobre a tradição na Religião Afro-brasileira e o dilema de sua permanência são os temas desenvolvidos pela pesquisadora Mundicarmo Maria Rocha Ferretti ao analisar o caso do terreiro de Mina nagô mais antigo de São Luís: a Casa de Nagô, que se acredita ter sido fundada por africanas cerca de 40 anos antes da abolição da escravidão no Brasil, que já passou por várias mudanças e que enfrenta atualmente grande dificuldade para se manter fiel à tradição recebida das antigas mães-de-santo, ou seja, continuar cultuando as mesmas entidades espirituais, realizando os mesmos rituais, reproduzindo cantos em língua já não mais falada na Casa etc. A autora parte do argumento de que a valorização do tradicional nas denominadas Religiões Afro-brasileiras é muito recorrente no discurso de pesquisadores e de “nativos” (lideranças religiosas e produtores de cultura popular). Nos discursos sobre terreiros tradicionalmente conhecidos como fiéis às suas origens africanas e ao sistema implantado por suas fundadoras e fundadores, as mudanças ocorridas ao longo dos anos têm sido consideradas pelos “de fora” de modo bastante negativo (como deturpação, perda de autenticidade etc.), levando-os às vezes a serem considerados misturados ou impuros. A visão dos responsáveis por aqueles terreiros ou dos
que são responsabilizados por tais mudanças costuma ser bastante diferente. Para os “de dentro”, essas mudanças são frequentemente apresentadas como atualizações ou adaptações necessárias, exigidas por alterações externas ou pela falta de condições internas, que não comprometem a especificidade do terreiro nem abalam a identidade do grupo. O tema da tradição continua no ensaio de Érica Ferreira da Cunha Jorge ao enfatizar os elementos da tradição Jeje para as Religiões Afro-brasileiras praticadas na cidade de São Paulo. A proposta é analisar como a tradição da nação jeje se configura na capital paulista, recuperando a cosmovisão desta tradição, a hierarquia de divindades e a organização social dos terreiros. A pesquisa teve como campo a Casa das Minas de Tóia Jarina, localizada em Diadema-SP, e sua análise enfatiza algumas questões decorrentes dos atuais processos de hibridação e pluralismo vivenciados nesse campo empírico. Para melhor compreender a elaboração desse processo, ela procura fazer uma leitura de algumas referências bibliográficas, como a proposta de Reginaldo Prandi sobre a migração cultural e religiosa do Candomblé baiano e do Tambor de Mina maranhense para São Paulo, como a tese da Umbanda vista como uma religião brasileira adaptada ao processo de urbanização e industrialização nos anos 1930 do século passado, enfatizada por Renato Ortiz. A percepção da existência de um trânsito, um fluxo de elementos rituais entre as Religiões Afro-brasileiras leva-nos à ideia da movência do texto, conforme enfocada por Roncalli Dantas Pinheiro. Em seu ensaio, o autor propõe discutir o deslocamento dos signos simbólicos entre os gêneros textuais canção e contos populares, apresentando uma discussão sobre o desenvolvimento desse imaginário fixado anteriormente em textos do Romanceiro Tradicional Português e atualmente hibridizado nos pontos cantados de Umbanda, coletados em
dois terreiros de João Pessoa, Paraíba, com o objetivo de fornecer dados sobre o percurso desta simbologia, fornecendo elementos para a compreensão identitária brasileira. O autor argumenta que as narrativas míticas, embora tenham raízes no universo da oralidade, não se estabelecem apenas como comunicação, pois além de transmitir significados verbais, o mito vincula elementos da materialidade da voz (como tom, ritmo, timbre) a uma ação corporal de memória, uma performance, um rito, em que a expressão possui uma proposição clara de criatividade subjetiva, que extrapola a condição de signo e se transforma em objeto modificador da realidade referencial do território e da comunidade. Ao enfocar o encontro de São Jorge e Ogum, observa que os arquétipos, que fornecem os elos míticos de força, conquista, poder de decisão e proteção entre São Jorge e Ogum, do catolicismo popular cristão de Portugal à Umbanda brasileira, se desenvolvem no empreendedorismo de comunidades, que contemplam e almejam proteção e condições melhores de vida. Ao analisar o ritual da camarinha, Maria Elise Rivas aborda questões sobre o processo de transmissão e aprendizagem do conhecimento religioso em um universo marcado pela oralidade. Procura demonstrar como nesse processo alguns elementos vão além da fala ou oralidade, introduzindo, como destaca a autora, “outros meios sensíveis, concretos, como forma de atuar no inconsciente” do filho de santo ou adepto. A linguagem inarticulada, que se abstém do som humano, assume outras dimensões da comunicação mítica, ritual e do próprio ethos, que se traduz nos arquétipos dos Orixás no êxtase do ritual – a saída de santo. Kelson Gérison Oliveira Chaves fala da realização de trabalhos, dos ritos mágico-religiosos, como uma das tradições da Umbanda. Observa que as práticas dos trabalhos em ter-
reiros de Umbanda sempre foram vistas e citadas pelos pesquisadores em diferentes contextos, no tempo e no espaço. Em certa passagem chega a afirmar: “Conforme pretendemos ter destacado, os ritos mágico-religiosos umbandistas, mais conhecidos como trabalhos, podem e devem ser considerados como uma das práticas mais importantes para a história dos terreiros de Umbanda”. Além de destacar os trabalhos como um dos componentes primordiais da tradição religiosa umbandista, o texto fala sobre os saberes que fundamentam a prática dos mesmos. Saberes que também são parte de uma tradição que é vivida, aprendida e repassada, principalmente, pela memória e pela oralidade. Ao final, para juntar a tese dos trabalhos como parte da tradição, e a importância e especificidades dos saberes para a realização desses trabalhos, cito duas passagens do último parágrafo de seu ensaio: “E é precisamente esta capacidade de transmitir, executar e recriar saberes mágico-religiosos, um dos principais elementos de sua tradição. A complexidade desses saberes é resultante, entre outras coisas, justamente de seu dinamismo movente [...]” e, “Enfim, de diversas formas, seja lá como se dê a aquisição desses saberes, o que nunca termina é a recriação deles e a prática de realizar trabalhos”. Marcos Alexandre de Souza Queiroz nos apresenta as bruxas – um grupo de entidades pertencentes à Jurema, com o objetivo de elaborar uma leitura sobre as representações do feminino associadas a essa categoria espiritual e aquelas relacionadas à esquerda. Inicialmente o autor mostra os vieses que trataram do feminino nos cultos afro-brasileiros, seja aquele que buscou entender como essas concepções se dão na vida dos sujeitos, em sua relação com a religião, ou, noutra perspectiva, aquele que procura fazer uma interpretação do imaginário religioso que expressa as diferenciações de gêne-
ro. Procura demonstrar como a comparação entre pombagira, mestra da Jurema e bruxa é inevitável, enquanto entidades que trabalham na esquerda. Mais que isso, em sua leitura evidencia a forte relação entre esquerda e uma concepção socialmente dada de marginalidade e transgressão, por isso o escopo mitológico dessas entidades apresenta histórias de violência e atravessamento de convenções morais. Nas reflexões empreendidas, seu ensaio mostra como o meio juremeiro abre espaço, mesmo que de forma escondida, para a prática da bruxaria, mas absorvendo-a como parte do conhecimento da “Ciência da Jurema”. O tema da Jurema continua no texto de Sandro Guimarães de Salles, ao enfocar uma narrativa que rememora aspectos historiográficos e a construção da tradição juremeira do Acais na Região Nordeste, em especial na área que vai de Pernambuco ao Rio Grande do Norte. Ao situar a geografia do culto, Salles destaca a importância histórica dos aldeamentos indígenas, em especial os da Zona da Mata Norte de Pernambuco como lócus gerador de uma tradição religiosa, que posteriormente ganhará prestígio com a mestra Maria do Acais, filha do último regente dos índios de Alhandra, Paraíba. Ao narrar fragmentos da história de vida da famosa catimbozeira, destaca a fase áurea – o reconhecimento e relacionamentos para além das terras do Acais – e o declínio, que ganha forma inicialmente pelas disputas econômicas internas, na própria família, esfacelando não apenas os bens materiais, mas a herança simbólica da tradição juremeira, e, posteriormente, com a venda da propriedade, a destruição do patrimônio edificado e do patrimônio simbólico das cidades sagradas da Jurema. O tema da saúde, clássico nos estudos afro-brasileiros, é apresentado na perspectiva analítica de F. Rivas Neto, que propõe um olhar que aproxima as compreensões entre a medicina
acadêmica e a medicina das Religiões Afro-brasileiras, busca contribuir no aprofundamento das discussões sobre doença, tratamento e cura, na medida em que apresenta “algumas das várias formas de tratamento propugnadas pelos sacerdotes, sacerdotisas, pais e mães de santo, curandeiros, erveiros, mateiros, feiticeiros, enfim, entre os vários agentes da medicina afro-brasileira espalhados pelo país”, como afirma no decorrer do seu texto. As plantas, folhas e ervas como conhecimento biogeográfico e, fundamentalmente, sob uma perspectiva que ressalta sua dimensão simbólica são o enfoque do artigo apresentado pelos pesquisadores Yuri Tavares Rocha e José Luis Rojas Vuscovich. Reafirmando a presença e importância das plantas no universo religioso afro-brasileiro, os autores selecionam algumas das ervas ou plantas do “mundo das folhas”, procurando destacar os aspectos botânicos, a distribuição geográfica e religiosa, a forma de cultivo, o significado, o uso medicinal e ritualístico de cada uma para compor um conhecimento que religa ciência e religião. João Luiz Carneiro parte da afirmação de que a cosmovisão das Religiões Afro-brasileiras relaciona espírito e matéria de tal maneira que a segunda manifesta o primeiro. Segundo o autor, esse fato estimula uma visão interdependente entre ciência e religião. Ressalta, ainda, que a teologia com ênfase nas Religiões Afro-brasileiras, com o seu senso crítico aplicado ao senso religioso, pode ocupar um papel importante. Explicita, porém, o desafio de dialogar com cosmovisões endogenamente tão plurais. Propõe que o conceito de “escolas”, trazido por F. Rivas Neto, contribui para tanto, quando apresenta um design teórico de convergência: uma ideia que se expressa em várias linguagens; cada linguagem é uma escola. É precisamente sobre uma destas linguagens, a denominada “escola de
síntese”, mostrada por meio de sua doutrina intitulada “tríplice caminho”, que o autor vai encaminhar sua reflexão. Ainda no rastro das “escolas espirituais” e procurando pensar as Religiões Afro-brasileiras como unidade de convivência de diversidades, Antonio Luz propõe refletir sobre a mestiçagem na cultura brasileira tendo como recorte as Religiões Afro-brasileiras. Afirma a contribuição da matriz africana na cultura e religiosidade brasileiras, porém defende que esta não foi exclusiva, devendo ser consideradas a participação e a influência dos diferentes povos indígenas e indo-europeus. Em seu estudo, ao discutir o conceito de mestiçagem espiritual, retoma as clássicas discussões sobre sincretismo, pureza, diversidade, reafricanização e aponta encaminhamentos na direção da constituição de novas interlocuções no campo religioso afro-brasileiro que absorvam um diálogo intra e inter-religioso e intra e interdisciplinar. É importante ressaltar que as contribuições dos ensaios aqui apresentados resultam do empenho de grupos de pesquisas situados em diferentes localidades do país que, ao se articularem (como a rede acadêmica que envolve pesquisadores de Universidades Federais e a Faculdade de Teologia Umbandista), trocam experiências e fomentam a construção de novos conhecimentos e reflexões acerca de questões relacionadas às Religiões Afro-brasileiras na sociedade contemporânea. Os encontros acadêmicos (congressos, cursos, seminários), mantidos ao longo desses últimos cinco anos pela FTU, e a edição deste livro são a materialização mais visível desse projeto de reflexão e articulação acadêmico-religiosa.
Sumário
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I. Estratégias e representações de mudança em um terreiro de Tambor de Mina tradicional Mundicarmo Maria Rocha Ferretti
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II. Cosmovisão e Tradição da Mina Jeje em São Paulo: o trânsito entre as Religiões Afro-brasileiras Érica Ferreira da Cunha Jorge
71
III. O mito e a linguagem verbal entre São Jorge e Ogum: uma poética vocal religiosa entre Portugal e Brasil Roncalli Dantas Pinheiro
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IV. Tradição oral: o silêncio da camarinha, a fala do inconsciente Maria Elise Rivas
109
V. Umbanda: saberes e tradição mágico-religiosa Kelson Gérison Oliveira Chaves
150
VI. Dos saberes da bruxa: relações entre feminino e esquerda na Jurema Marcos Alexandre de Souza Queiroz
190
VII. O Clã do Acais Sandro Guimarães de Salles
215
VIII. Abordagem de saúde, doença e cura nas Religiões Afro-brasileiras F. Rivas Neto
241
IX. As folhas do Mundo e o mundo das folhas nas Religiões Afro-brasileiras José Luis Rojas Vuscovich e Yuri Tavares Rocha
279
X. Teologia das Religiões Afro-brasileiras e Cosmologia: possibilidades de diálogo em F. Rivas Neto João Luiz Carneiro
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XI. O mestiço espiritual nas Religiões Afro-brasileiras: aproximações e horizontes Antonio Luz
325
XI. Os Autores
I Estratégias e representações de mudança em um terreiro de Tambor de Mina tradicional1 Mundi c armo Mar ia R och a Fer retti A preservação das culturas de matrizes africanas no Brasil deve muito às casas de culto de diversas denominações. O Tambor de Mina, denominação típica do Maranhão, foi profundamente influenciado por dois terreiros fundados em São Luís por africanas na primeira metade do século XIX: a Casa das Minas (jeje) e a Casa de Nagô. Apesar de influenciados pela primeira, os terreiros de Mina da capital maranhense reproduzem principalmente o modelo da Casa de Nagô. Mas, 1. Trabalho apresentado originalmente na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 2 e 5 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil.
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embora a Casa de Nagô conserve muitas tradições africanas, apresenta numerosas diferenças dos terreiros nagôs de outras denominações afro-brasileiras. Apesar da importância da Casa de Nagô para o Tambor de Mina, não existe ainda uma bibliografia aprofundada sobre ela e as informações disponíveis são muitas vezes contraditórias. Por essa razão, embora levando em conta todas as versões, procuramos nos apoiar nos depoimentos de suas duas últimas chefes (Mãe Dudu e Mãe Lúcia, ambas falecidas com mais de 100 anos), entrevistadas por nós ou por outros pesquisadores, e em observações assistemáticas por nós realizadas na Casa desde 1984. A seguir, após uma visão geral sobre a Casa e sua trajetória, pretendemos analisar as características da identidade nagô, o impacto de medidas governamentais em sua trajetória e examinar as ameaças de continuidade enfrentadas atualmente pela Casa, com o falecimento de dona Lúcia, sua chefe, em 2008, com quase 104 anos. No item sobre as estratégias de mudança na Casa de Nagô, direcionamos a nossa atenção para os depoimentos de outras pessoas da Casa, recolhidos por Paulo Sousa2, no tocante às mudanças ocorridas ali em diferentes épocas.
Identidade e resistência cultural em um terreiro de São Luís – MA: a Casa de Nagô e sua importância no Tambor de Mina3. Tambor de Mina é uma religião de matriz africana organizada no Maranhão na primeira metade do século XIX. 2. Souza, P. M. No Rastro da Memória Oral do Tambor de Mina da Casa de Nagô. São Luís: 2009. 3. Retoma texto publicado em Vasconcelos, M. Nagon Abioton: um estudo fotográfico e histórico sobre a Casa de Nagô. São Luís: 2009; e em Quadros. E. G. e Silva, M. C. da (orgs.) Sociabilidades Religiosas: mitos, ritos e identidade. São Paulo: Paulinas, 2011.
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Da Minha Folha - Múltiplos Olhares Sobre as Religiões Afro-brasileiras
Equipara-se ao Candomblé de Salvador (BA), ao Xangô de Recife (PE), ao Batuque de Porto Alegre (RS) e a outras denominações religiosas afro-brasileiras tradicionais. Como aquelas, apresenta variações de acordo com a nação de suas fundadoras ou fundadores africanos (jeje, nagô e outras), ou adotada por fundadores de terreiros abertos posteriormente. As “nações” da Mina maranhense mais referidas atualmente em São Luís são: Jeje, Nagô, Tapa, Cambinda, Caxias (Caxeu?) ou Mata (geralmente associada à Cambinda e considerada hegemônica no interior do Estado) e Fanti-ashati. Embora o Maranhão seja mais conhecido nos meios afro-brasileiros como terra de Mina-jeje, a Casa de Nagô é tão antiga quanto a Casa das Minas e dela saiu a maioria dos terreiros de Mina “de segunda geração” 4, quase todos já desaparecidos 5.
Visão geral sobre a Casa de Nagô De acordo com a tradição oral, a Casa de Nagô foi aberta por duas africanas: Josefa de Nagô (ou Zefa de Nagô) e Maria Joana 6, com a colaboração de outros africanos, e ajudadas pelo chefe da Casa das Minas que, segundo Mãe Dudu, teria sido aberta cerca de cinco a seis anos antes dela.7 De acordo com 4. Eduardo, O. C. The Negro in Northern Brazil: a study in acculturation. New York: J.J. Augustin Publisher, 1948 e Ferretti, S. Andresa e Dudu – os Jeje e os Nagô: apogeu e declínio de duas casas fundadoras do tambor de mina maranhense. In: Silva, V. G. da (org.) Caminhos da Alma: memória afro-brasileira. São Paulo: Summus, 2002, p.15. 5. Santos, M. R. C. e Santos Neto, M. dos. Boboromina: terreiros de São Luís, uma interpretação sociocultural. São Luís: SECMA/SIOGE, 1989, p. 37. 6. Almeida, R. Na Casa de Nagô. São Luís: SECMA, 1982, p.250 e Santos, M. R. C. Os Caminhos das Matriarcas Jeje-nagô: uma contribuição para a história da religião afro no Maranhão. São Luís: FUNC, 2001, p. 26. 7. Enquanto a Casa das Minas registra no timbre de documentos oficiais o ano de
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a mesma fonte, a primeira recebia Xangô, o dono da Casa, e a segunda, Rei Badé.8 É possível que alguma das fundadoras ou “vodúnsis” mais antigas da Casa fosse de Abeokutá (Nigéria), pois o pesquisador Nina Rodrigues encontrou em 1896, em São Luís, residindo nas proximidades de São Pantaleão, onde está localizada a Casa de Nagô, uma africana nagô de Abeokutá 9. Mas a relação da Casa com Angola foi sugerida por Rosário Santos, citando Mãe Dudu, ao informar que Josefa (uma das fundadoras da Casa), era proveniente de Angola10 e foi sugerida indiretamente também pelo pesquisador Nunes Pereira 11 e depois por Pai Jorge12, ao afirmarem que uma das línguas da Casa de Nagô é o “agrôno” (ou aglono) – “termo banto ‘fongbeizado’ usado no Brasil colonial pelos escravos jeje com o significado de gente de Angola”13. 1847 como ano de sua fundação, a data de fundação da Casa de Nagô desapareceu da lembrança de suas filhas (Barreto, M. A. P. Os Voduns do Maranhão. São Luís: FUNC, 1977, p. 113). A indicação dessa data, quando localizada em algumas fontes bibliográficas (Oliveira. J. I. Orixás e Voduns nos Terreiros de Mina. São Luís: VCR Produções e Publicidade, 1989, p. 32), se apoia em interpretação de Bastide (As Religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpretações de civilizações. São Paulo: Ed. Civilizações, p. 70), de hipótese levantada por Verger, bastante aceita atualmente, de que a Casa das Minas teria sido fundada pela esposa do rei Agonglô (NãAgotimé), vendida como escrava após a morte daquele soberano, ocorrida em 1797 (Verger, P. Uma Africana Mãe de Santo no Maranhão. São Paulo: Revista da USP, n.6, p. 151-158, jun/ago1990 e Ferretti, S. Querebentã de Zomadônu: etnografia da Casa das Minas do Maranhão. São Luís: Edufma, 1996, p. 22). 8. Existe divergência em Boboromina (Santos, M. R. C. e Santos Neto, M. dos, Op. cit., p. 50 e 52) e em Caminho das Matriarcas (Santos, M. R. C., Op. cit., p. 26 e 87) tanto em relação às entidades recebidas pelas fundadoras da Casa de Nagô quanto a respeito do sobrenome de Maria Joana, que ora aparece como Travassos, ora como de Bem Fica, sobrenomes às vezes atribuídos a Joaninha, outra Joana que chefiou a casa mais tarde. 9. Rodrigues. N. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1977, p. 107. 10. Santos, M. R. C. Op. cit., p. 26. 11. Pereira, M. N. A Casa das Minas: contribuição ao estudo das sobrevivências do culto dos voduns, do panteão Daomeano, no Estado do Maranhão – Brasil. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 34. 12. Oliveira, J. I. Op. cit., p. 32. 13. Castro, Y. P. de. A Língua Mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do
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completa era rara e, como na Casa das Minas, deixou de ser realizada há muitos anos (por volta de 1914)17. Na Casa de Nagô, as obrigações para com as entidades espirituais são cercadas de tabus e de segredos e poucas filhas da Casa têm acesso ao vandecó (peji). Fala-se que na Mina-nagô quase não há matança de animais e, quando há comidas de obrigação, sua distribuição ocorre geralmente longe dos olhos da assistência 18. A Casa de Nagô realiza anualmente vários toques de Mina em homenagem a santos e encantados a eles associados, como São Sebastião e Xapanã, e como São Luís e Dom Luís, Rei de França 19. Realiza também, uma vez por ano, alguns rituais especiais, como o Mocambo, quando as entidades presenteiam os tocadores e auxiliares do culto e distribuem moedas a todos os presentes; e a Bancada, na Quarta-Feira de Cinzas, quando oferecem aos presentes alguns alimentos torrados, frutas, doces, refrigerantes e licores. Tal como na Casa das Minas, na Casa de Nagô são realizados rituais do Catolicismo popular, há muito integrados ao Tambor de Mina, como a Festa do Divino; a Queimação de Palhinhas do presépio; e as Ladainhas em louvor aos santos do altar. A Casa também realiza, ou realizava até bem pouco tempo, brincadeiras folclóricas vinculadas direta ou indiretamente ao culto aos santos e encantados, como Carimbo de Velha, após o encerramento da Festa do Espírito Santo; Bumba meu boi, para o encantado Preto Velho, desaparecido com o falecimento da “vodúnsi” que o recebia 20; e sem batizado com 17. Ferretti, S. Querebentã de Zomadônu: etnografia da Casa das Minas do Maranhão São Luís: Edufma, 1996. 18. Barbosa, S. H. B. A Casa de Nagô. Estudo sobre um terreiro de São Luís. São Luís: Curso de Ciências Sociais/UFMA, 1997, p. 84. 19. Verger, P. 50 Anos de Fotografia. Salvador: Corrupio, 1982, p. 240. 20. Reis, J. R. S. dos. Realidade Maranhense: comentários socioeconômicos, n.3. Bela União – Preto Velho – Casa de Nagô – Bumba meu boi. São Luís: 1982.
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Da Minha Folha - Múltiplos Olhares Sobre as Religiões Afro-brasileiras
amansi (banho de ervas) do bloco afro Akomabu (do Centro de Cultura Negra), mais ou menos a cada dois anos, na abertura do Carnaval. O toque de Mina na Casa de Nagô é iniciado com o canto do Ibarabô, para Exu, mas não se faz oferenda para Ele, pelo menos publicamente, e é possível que algumas pessoas ligadas à Casa não saibam que aquele primeiro canto é para ele. As “doutrinas” são cantadas em língua africana, mas um pequeno número das entoadas ao final do toque é em português, para caboclos da mata, embora o transe com essas entidades possa ocorrer enquanto se canta para as entidades de outras categorias (Orixás, Voduns e Gentis). O transe na Mina-nagô é discreto e poucos observadores conseguem identificar na roda quem recebeu Orixá ou Vodum, gentil ou caboclo. Algumas entidades espirituais são solenes e outras, bastante informais, mas todas costumam cumprimentar pessoas da assistência e, algumas vezes, dirigir-lhes a palavra. Depois do ritual, alguma entidade pode ser vista benzendo uma pessoa que tem relação com ela, o que ocorre raramente. Na Casa de Nagô não se costuma dançar com a cabeça coberta, usar anágua engomada, nem usar paramento ao receber O. A cor da vestimenta usada nos toques pelas “vodúnsis” costuma ser igual, variando em cada noite nas festas maiores, e tem mais relação com o santo festejado ou com alguma entidade espiritual a ele relacionada do que com a entidade de cada dançante, mas algumas vezes pode ser estampada e variar de dançante para dançante. A Casa de Nagô é muito ligada à Casa das Minas. Essa ligação aparece claramente no “tambor de choro” do terreiro jeje (rito fúnebre também denominado sirrum ou zelin), quando se reserva um lugar especial às nagoenses e essas permanecem na Casa até o encerramento do ritual e quando, no sétimo dia, a Casa das Minas manda para a sua coirmã um tabuleiro com as comidas de obrigação. Fica também clara na Festa de
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