R EPEN SAND O
O SIN CRE TIS MO
S ÉR GIO F E RRE T T I
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor Vice-reitor
João Grandino Rodas Hélio Nogueira da Cruz
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Diretor-presidente
Plinio Martins Filho
Presidente Vice-presidente
Comissão Editorial Rubens Ricupero Carlos Alberto Barbosa Dantas Antonio Penteado Mendonça Chester Luiz Galvão Cesar Ivan Gilberto Sandoval Falleiros Mary Macedo de Camargo Neves Lafer Sedi Hirano
Editora-assistente Chefe Téc. Div. Editorial
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Carla Fernanda Fontana Cristiane Silvestrin
ARCHÉ EDITORA Alexandra Abdala
REPEN SAND O
O SIN CRE TIS MO
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Copyright © Ferretti, Sérgio F.
Título Autor Editora presidente Editor de texto Capa, projeto gráfico e diagramação Revisão Digitação de originais Fotografia
1ª Edição, 1995 (Edusp) 2ª Edição, 2013 (Arché) Repensando o Sincretismo Sérgio F. Ferretti Alexandra Abdala Rodrigo Garcia Manoel Alexandra Abdala Maria Alice Quaresma Garcia Rosângela Paiva Verderame Antonio Luz A imagem da capa foi cedida por Maria A. P. M. da Silva (Mãe Mara), do terreiro do Caboclo Sete Matas. Obra em conformidade com o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 F447r Ferretti, Sérgio Figueiredo Repensando o sincretismo / Sérgio Ferretti. -- 2. ed. – – São Paulo : Edusp; Arché Editora, 2013. 280 p. Bibliografia ISBN: 978-85-65742-06-1 (Arché) ISBN: 978-85-314-1448-0 (Edusp) 1. Religiões afro-brasileiras 2. Cristianismo e outras religiões 3. Sincretismo I. Título 13-0913 CDD 299.60981
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Arché Editora www.archeeditora.com.br Edusp – Editora da Universidade de São Paulo Rua da Praça do Relógio, 109A, Cidade Universitária 05508-050 – Butantã – São Paulo – SP – Brasil Divisão Comercial: Tel. (11) 3091-4008 / 3091-4150 SAC (11) 3091-2911 – Fax (11) 3091-4151 www.edusp.com.br – e-mail: edusp@usp.br
Dedicada à memória da querida Dona Maria Celeste Santos, que durante mais de sessenta anos foi vodúnsi-he de Toi Averequete na Casa das Minas.
A Arché
A Arché Editora nasceu da vontade e disposição para editar livros de excelente qualidade, em primeira instância vinculados à tradição oral. A escolha por esse campo de atuação deveu-se à necessidade de valorizarmos pessoas, culturas e produções provenientes da tradição oral brasileira, seja religiosa, cultural ou artística. Fundada em 2011, a Arché Editora tem buscado seu espaço a partir de temáticas que envolvam a identidade brasileira, levando em conta a necessidade de se reproduzir e divulgar obras literárias e acadêmicas que privilegiem a cultura e a tradição brasileiras. Assim, foi com o foco na brasilidade e na tradição herdada de outras matrizes formadoras do povo brasileiro que a Arché Editora realizou uma parceria com o bacharelado em Teologia da Faculdade de Teologia Umbandista (FTU) com ênfase na tradição oral afro-brasileira, autorizado e credenciado pelo Ministério da Educação (MEC) em 2003 e reconhecido em 2013. Em 17 de abril de 2013, foi lançado no Diário Oficial da União o reconhecimento dessa instituição de ensino superior. Reconhecimento do curso de teologia afro-brasileira! O primeiro do país e do mundo. O primeiro que colocou as Religiões Afro-brasileiras em relação isonômica com as demais. Um fato tão simples, profundo e verdadeiro. O reconhecimento da FTU pelo Ministério da Educação é fato histórico e deverá ser, por muito tempo, comemorado não apenas pelos praticantes dessas religiões, mas, principalmente, por todos que acreditam e desejam ver aceitos, na prática, os vários discursos sociais e religiosos do Brasil. A disseminação do reconhecimento da FTU não é, portanto, um fato isolado. Pelo contrário, vem testemunhar a luta pela valorização das culturas religiosas das matrizes africanas, ameríndias e – por que não? – da matriz indo-europeia, que se afinizou às anteriores auxiliando a construir este amplo quadro religioso afro-brasileiro. Em um país que esbanja diversidade, nada mais justo do que termos no campo educacional a contemplação da matriz afro-brasileira. Hoje, já com oito anos de atuação, a FTU é reconhecida pelo meio acadêmico, pela sociedade civil e pela comunidade religiosa. Lidera vários
eventos presenciais e virtuais, como a Jornada Teológica, o Congresso Internacional das Religiões Afro-brasileiras, o Fórum Internacional Permanente de Sacerdotes e Sacerdotisas on-line, (http://religiaoediversidade.blogspot. com.br) rituais de convivência pacífica com todos os setores afro-brasileiros, além de suas várias tarefas acadêmicas, como cursos de extensão universitária, pós-graduação em Teologia de Tradição Oral, entre outros. A FTU representou um avanço para as Religiões Afro-brasileiras, uma vez que vem permitindo, desde 2003, a realização de projetos que receberam a marca do mote estabelecido por seu fundador: aproximar o saber acadêmico (senso crítico) e o saber popular tradicional (senso comum), passando pelo saber teológico (senso religioso). Ante essa necessidade de criar pontes entre os diversos saberes e fazeres, a FTU fez uma parceria com a Arché Editora em 2011, com a proposta de viabilizar, ambas, mais um canal de comunicação com a sociedade civil, divulgando sua vasta produção, fruto dos projetos de pesquisas conduzidas pela faculdade, que procuram aproveitar ao máximo a relação entre teoria e práxis. Assim, esta reedição de Repensando o sincretismo, de Sérgio Ferretti, se faz fundamental não apenas no cenário acadêmico, isto é, para os pesquisadores, como para todas as pessoas que dia a dia se deparam nas encruzilhadas da vida com a questão da religião, seus símbolos, seus sacerdotes, enfim, suas doutrinas. Nesta obra, o autor investiga o sincretismo a partir da Casa das Minas, em São Luís, no Maranhão, de modo a legar a todos a possibilidade ímpar de conhecer e compreender mais sobre a tradição do tambor de mina. Desejamos a todos boa leitura! Arché Editora
Prefácio à primeira edição
Em janeiro de 1994, nas comemorações de São Sebastião, assisti na Casa das Minas, em São Luís do Maranhão, às festas da família Dambirá, cujo vodum Acóssi, como lá se diz, é devoto do santo celebrado e com ele sincretizado. Naqueles dias vi os voduns Alogue, Jotin, Lepon, Averequete, Abê e Ajogoroboçu, incorporados em suas velhas vodúnsis, cantando na língua deles, o jeje arcaico e intraduzível, ladainhas junto ao presépio e depois diante do altar dos santos católicos. Os voduns da Casa das Minas expressam-se como os humanos (num transe discreto, muito difícil de ser percebido por um não iniciado), o que me autoriza dizer que eles se mostravam compenetrados e comovidos como um católico fervoroso em comunhão com seus santos1. Na primeira noite, rezou-se ladainha católica, cantada em latim por velhas rezadeiras especialmente convidadas, acompanhadas por uma pequena orquestra de saxofone, pistom, banjo e tuba. Os voduns, já incorporados em suas vodúnsis, acompanhavam, em respeitoso silêncio, de pé diante do presépio. Terminada esta oração, foi a vez de os próprios voduns cantarem para a Sagrada Família, agora na língua deles. Depois, queimou-se a murta seca com que o presépio fora enfeitado em dezembro, recolhendo os voduns as imagens para dentro e encerrando o ciclo da Natividade com cantiga de despedida para o Menino Jesus. Todos foram levados à mesa de doces, banquete ritual obrigatório, ainda que modesto. Depois os tambores, o ferro e as cabaças começaram a soar, e os voduns cantaram e dançaram até o início da madrugada. No dia seguinte, novas ladainhas, cantos e danças, mas tudo precedido de missa rezada na Igreja de Santo Antônio, à qual os voduns compareceram através de suas vodúnsis, e pela distribuição entre os presentes das comidas da obrigação, a qual se deu no final da tarde. No terceiro dia, novas rezas e danças, e o cortejo a pé dos voduns da Casa das Minas até
1. Para uma descrição do panteão cultuado na Casa das Minas, bem como para o calendário do culto, ver Sérgio Figueiredo Ferretti, Querebentan de Zomadonu: Etnografia da Casa das Minas. São Luís, Editora da Universidade Federal do Maranhão, 1985.
I
a Casa de Nagô, para a visita ritual aos voduns e orixás do terreiro-irmão. Lá foram recebidos, primeiro, na capela dos santos católicos2. E assim por diante, pode-se dizer, não se observam no tambor de mina longas sequências cerimoniais de origem africana sem a presença, às vezes paralela, às vezes intercalada, de alguma prática litúrgica católica, quer do catolicismo oficial de paróquia, quer do catolicismo popular. Eu diria, junto com Ferretti, que os voduns do Maranhão são católicos. E que não se pode, ao se deparar com o tambor de mina, deixar de lado os aspectos rituais e devocionais católicos que mesclam esta religião constituída no Brasil no período final da escravidão3. Mas diria sobretudo que as vodúnsis são católicas, como todo o povo da Mina do Maranhão e de Estados vizinhos. Já não diria o mesmo de seguidores do tambor de mina de terreiros derivados das casas maranhenses, mas localizados em São Paulo ou em outras regiões onde um intenso processo de mudança cultural reorganiza os cultos afro-brasileiros, liberando-os de amarras que vêm de outras épocas e dotando-os de outras identidades, que retrabalham tradições e lhes emprestam novos sentidos. Quando nos damos conta da necessária presença do catolicismo no tambor de mina, como na maioria das modalidades religiosas afro-brasileiras, para não dizer afro-americanas, fica muito patente o fato de que estamos tratando de uma religião tributária – quer ritualmente, quer do ponto de vista devocional, ou mesmo para uma legitimação social – de uma outra religião de alcance sociológico mais geral. Religião esta, o catolicismo, que não é capaz, contudo, de se mostrar suficiente, embora neste caso necessária, como fonte de transcendência e de explicação do mundo para todos os segmentos e grupos da sociedade. A pesquisa de Ferretti nos revela – e aqui situo talvez o maior mérito da obra – a capacidade do sincretismo religioso de remontagem de aspectos institucionais e rituais para respostas específicas a situações sociais
2. O leitor encontrará uma descrição pormenorizada desses ritos no livro de Ferretti citado na nota anterior. 3. A mescla católica está presente não só nos terreiros mais antigos e que mantiveram uma ortodoxia local, como também em outros de história mais recente e mais abertos a mudanças e inovações. Ver Mundicarmo Ferretti, Desceu na Guma: o caboclo do tambor de mina no processo de mudança de um terreiro de São Luís – a Casa Fanti-Ashanti. São Luís, Sioge, 1993.
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problemáticas historicamente definidas. O sincretismo, deste modo, não é simplesmente um dado observável, mas um processo sociocultural. Se os negros no Brasil perderam muito de suas referências religiosas, como o culto sistemático dos antepassados e, mais especificamente na Casa das Minas, o culto explícito e obrigatório a Legbá, ambos fundamentais na África para a existência de uma cosmovisão e de mecanismos de orientação e controle da conduta, eles repuseram essas perdas buscando outra fonte, talvez mais adequada no enfrentamento da adversidade contida no mundo novo para o qual foram levados a viver. Ora, numa situação sincrética como a descrita, essa reposição não apaga, contudo, a identidade primária da religião tributária, que pode, numa situação de mudança, refazer suas combinações originais, ou chegar a outras. No limite antropológico, trata-se, contudo, de estudar o sincretismo em seus elementos constitutivos e mostrar que não há nada de errado com ele, pois sem sincretismo não há tambor de mina, não no Maranhão de hoje, ou pelo menos não ainda. Os voduns são “católicos” e assim serão enquanto católicas forem suas vodúnsis. Neste contexto, não é nada estranho o fato de o Papa João Paulo II, em sua visita a São Luís, há poucos anos4, ter recebido um dos presentes do povo maranhense, uma pomba de prata do Divino, das mãos de Dona Celeste, vodúnsi da Casa das Minas... ou quem sabe das mãos de Averequete, o “senhor” dela. Diante da sutileza do estado de transe deste grupo religioso, eu não teria nenhuma certeza a respeito de quem ritualmente “estava lá”. Mas não creio que Averequete perderia tal oportunidade. Afinal Dona Celeste é apenas o seu cavalo, e o Papa é um objeto de sua devoção. Assim, não faz sentido nem descrever e nem analisar um terreiro maranhense, sobretudo a Casa das Minas, sem as constantes referências ao catolicismo ali instalado. No ofício do antropólogo cuidadoso e competente, partindo de um universo empírico privilegiado, devidamente reconstituído pelo trabalho metódico e cuidadoso, Sérgio Ferretti oferece neste livro, que a meu ver é o complemento indispensável, ainda que obra independente, de seu livro Querebentan de Zomadonu, uma interpretação do sentido do sincretismo que nos permite entender melhor a religião e a sociedade que são o objeto de sua investigação. Pois, se em Querebentan de Zomadonu Ferretti
4. Trata-se de visita realizada a 14 de outubro de 1991. (N.E.)
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faz muitas referências ao rito católico, agora, em Repensando o Sincretismo, ele o situa como o problema central a ser tratado. O livro tem, pois, dois alvos: levar-nos a uma compreensão do terreiro e seu sentido cultural; e oferecer uma contribuição teórica de espectro mais amplo sobre o sincretismo como tema da antropologia. O livro, de agradável leitura, é um passeio entre a etnografia e a teoria. Evidentemente, por se tratar de obra que procura romper com os limites antropológicos do objeto empírico observado, que tem geografia, história e, sobretudo, muita lenda, Repensando o Sincretismo interessa também ao pesquisador que trata de religiões e instituições outras fora do âmbito das tradições afro-brasileiras, como também aos estudantes e a todos os interessados pela cultura popular brasileira. Sem contar aqueles que se deixam fascinar pelos mistérios. Especialmente quando se trata de voduns, esses deuses africanos tão pouco conhecidos no Brasil abaixo do Maranhão, e hoje tão brasileiros. Reginaldo Prandi Professor Sênior do Departamento de Sociologia da USP
IV
Sumário
I
Prefácio à primeira edição Reginaldo Prandi
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Introdução
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Parte I – Repensando o sincretismo
29
I. Considerações sobre a metodologia da pesquisa
43
II. Revisão da literatura sobre sincretismo religioso afro-brasileiro
81
III. Estudos sobre sincretismo na região Norte
95
IV. Usos e sentidos do conceito de sincretismo religioso
103
V. Identidade étnica e sincretismo religioso
125
Parte II – Sincretismo religioso na Casa das Minas
127
VI. Elementos da história e da estrutura da Casa das Minas
147
VII. Uma cerimônia comum de tambor de mina: a festa de Averequete
161
VIII. Banquete dos Cachorros
169
IX. O Arrambam e a Quaresma no tambor de mina
187
X. A Festa do Divino no tambor de mina
213
XI. Festa Grande e tambor do pagamento
227
XII. Concepções sobre a morte e o ritual fúnebre do tambor de choro
243
Conclusões
253
Posfácio à segunda edição
265
Referências bibliográficas
Introdução
Este trabalho se propõe a repensar o fenômeno do sincretismo religioso afro-brasileiro, tema sobre o qual muito tem sido escrito, mas em que existe pouco acordo. Vamos realizar inicialmente um balanço crítico da literatura com a intenção de identificar os principais tipos de fenômeno. Relacionaremos o assunto com o problema da identidade étnica. Aplicaremos o estudo a um caso específico, a Casa das Minas, que conhecemos de trabalhos anteriores. Pesquisadores que passaram pelo Maranhão consideram a Casa das Minas uma casa de origem africana das mais ortodoxas ou “puras”, comparando-a com poucos candomblés quetos de Salvador. Tambor de mina é o nome usado no Maranhão para a religião popular de origem africana da qual participam principalmente negros. Em outras regiões esta religião possui características diferentes e recebe denominações diversas. O tambor de mina tem muitos vínculos com o catolicismo, o espiritismo kardecista, religiões ameríndias e com práticas de outras procedências. O tema que nos interessa investigar é, justamente, este encontro de religiões diversas. Temos interesse em conhecer melhor o tambor de mina, verificando se representa uma estratégia de resistência cultural e social do negro. Analisaremos a dinâmica decorrente da aceitação de práticas católicas, espíritas, ou outras, junto com a preservação de tradições africanas. Qual o interesse e a importância de estudar o sincretismo no tambor de mina? O Estado do Maranhão atravessa hoje uma fase de crescimento urbano rápido e enfrenta um processo de explosão populacional, em consequência da exploração de minérios e da ocupação acelerada da região Amazônica. Na década de 1980, a população da capital mais do que duplicou devido às migrações do interior e de outros Estados. São Luís está se transformando num porto de exportação de minérios, controlado por multinacionais. Essas transformações provocam grandes modificações nas tradições culturais da região. Até 1960, a estagnação econômica fez com que o Maranhão vivesse num certo marasmo durante várias décadas, o que contribuiu tanto para a preservação quanto para a perda de tradições culturais.
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Por circunstâncias históricas e geográficas específicas, a região permaneceu muito tempo num relativo isolamento, preservando tradições que lhe são peculiares. É conveniente lembrar que o Maranhão e a Amazônia, até quase à época da Independência, estavam sujeitos a administração colonial diferente do resto do país, e este isolamento perdurou por muito tempo. A região possui semelhanças culturais com o Caribe, que lhe é próximo. A população negra é numerosa, sobretudo na capital e em áreas como o litoral Norte e os vales dos grandes rios. Muitas tradições locais foram assumidas pelo negro, como o tambor de crioula, o tambor de mina, o Bumba Meu Boi, a Festa do Divino e outras, com características que as diferenciam do resto do país. A Casa das Minas Jeje de São Luís do Maranhão foi estudada diversas vezes. Alguns acham mesmo que já foi estudada demais, que é necessário estudar outros grupos de tambor de mina e diferentes formas de religiosidade popular, como a pajelança. Concordamos apenas em parte com estas opiniões, pois todo tema pode ser reestudado pela antropologia com novos enfoques. Além disso, a Casa das Minas possui relevância tal, que alguns estudos não esgotam seu interesse. Embora tenhamos redigido sobre o assunto em dissertação de mestrado já publicada (Ferretti, 1985), propomo-nos realizar novo trabalho sobre este tema e precisamos justificar o porquê apresentando inicialmente o resumo de nossa dissertação anterior. Elaboramos monografia sobre a Casa das Minas com a intenção de conhecer a estrutura mitológica, ritual e de organização de um grupo religioso afro-maranhense tradicional. A Casa das Minas foi organizada na primeira metade do século XIX por negros de origem daomeana, constituindo o principal grupo de culto, fora da África, de ancestrais divinizados da família real do Abomé. Realizamos revisão da bibliografia, verificando o estado atual dos estudos sobre o negro e suas manifestações religiosas no Maranhão. Procuramos reconstituir a história da Casa e apresentar elementos a respeito da mitologia das divindades cultuadas. Constatamos que a Casa das Minas organizou-se em torno da liderança feminina, a partir de modelos de irmandades religiosas e de sociedades secretas. O parentesco entre as divindades, agrupadas em famílias, com características específicas, ao lado do parentesco biológico entre os membros, constitui o elemento básico da estrutura organizacional e da continuidade do grupo.
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Na Casa preservam-se nomes e características de umas sessenta divindades, a maioria não conhecida em outros terreiros1, evitando-se inclusive pronunciar estes nomes e comentar seus mitos. Os rituais consistem principalmente no preparo e na realização de festas de vários tipos em homenagem às divindades, com comidas, vestes, cânticos, danças, transe e obrigações próprios. Apesar de certo declínio atual, a Casa possui grande prestígio no meio religioso de origem africana. Embora não possua “filiadas”2, foi um dos modelos de organização de outros grupos de tambor de mina no Maranhão e na Amazônia. A pesquisa utilizou o método da observação participante, procurando uma visão de dentro, mediante convivência prolongada junto ao grupo e realizando entrevistas com seus membros. A dissertação foi apresentada em 1983 e nosso contato com o grupo iniciou-se em 1973.
1. Não estamos com isso sugerindo que em outros terreiros não sejam conhecidas tantas divindades. No Maranhão há outras casas de tambor de mina que possuem muitas entidades não conhecidas nem cultuadas na Casa das Minas, como Légua Buji Buá e os membros de sua família, Boçu von Dereji ou as entidades gentis, como Dom Luís, Dom Sebastião ou a família do Rei da Turquia, para citar apenas algumas. Por outro lado, em São Paulo, constatamos que terreiros de candomblé, que se dizem de nação jeje-nagô, conhecem e cultuam apenas os orixás mais conhecidos no candomblé nagô, dizendo que os voduns jejes já subiram, como referimos em outro trabalho (Ferretti, 1989, p. 197). Acentuamos o número de entidades da Casa das Minas para caracterizar sua diferença em relação a estas casas que se dizem jeje-nagô. 2. Nas Religiões afro-brasileiras não são comuns casos de um terreiro possuir outro que lhe seja subordinado como filiado, ou de terreiros que tenham duas sedes, como é o caso do Opô Afonjá de Salvador e do Rio (Augras; Santos, 1985, pp. 43-62). Uma característica geral das religiões afro-brasileiras é a autonomia de cada casa. No Maranhão utilizam-se as expressões casa matriz, casa-mãe ou casa de raiz para as casas mais antigas que são modelos de outras da região. As demais são consideradas ramificações ou originadas de outras, cujos fundadores saíram de uma casa e abriram a sua própria (Carvalho Santos; Santos Neto, 1989, pp. 3339), muitas vezes por disputas de liderança. No Maranhão utiliza-se também comumente a expressão casas filiadas ou casas filiais (id. 1989, p. 78; Pai Euclides, 1989). Ao afirmar que a Casa das Minas não possui filiadas, estamos dizendo que suas vodúnsis não são autorizadas a abrir casa e que não recebem o decá, que no candomblé dá uma certa autonomia às novas mães de santo para abrirem seu próprio terreiro. Caso venham a fazê-lo (Nunes Pereira, 1979, pp. 225-226; Fichte, 1989, pp. 120-123), não são reconhecidas como tal e não há vínculos entre as casas, como muitas vezes acontece em outras tradições. Na Casa das Minas não existe o rito do decá. No Maranhão, por outro lado, o pai de santo Jorge de Itaci possui várias casas que são consideradas filiadas à sua, em Belém, no Rio, em São Paulo, no interior do Maranhão e na própria cidade de São Luís. Raul Lody (1987, p. 45) utiliza também a expressão casas matrizes para mencionar as que deram origem a outros candomblés.
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O presente trabalho pretende dar continuidade ao estudo anterior, centralizado, porém, na problemática do sincretismo religioso. Queremos estudar a Casa das Minas, considerando não só o sincretismo interafricano de origem, constatado pelos primeiros estudiosos, como Nunes Pereira, Arthur Ramos e Costa Eduardo, mas, sem negar o que dissemos antes, vamos justamente analisá-la como um caso privilegiado para um estudo específico sobre sincretismo. É uma casa que pode ser analisada como muito tradicional e ao mesmo tempo como exemplo de certos tipos interessantes de sincretismos religiosos. Interessa-nos compreender a estratégia e a importância do sincretismo no tambor de mina, rejeitando ou preservando práticas da sociedade branca dominante e incorporando-as a costumes das camadas marginalizadas. Estamos procurando conhecer melhor esse fenômeno de contatos de culturas, que ocorre em muitas regiões, verificando suas funções estratégicas, de acomodação, resistência, acordo, adaptação, entre outras, bem como suas características específicas no tambor de mina do Maranhão. Analisando atitudes dos participantes do tambor de mina com relação ao sincretismo, apreendemos diversos ângulos deste fenômeno instigante. Verificamos que o contato entre religiões, no Brasil e em outras áreas, como o Caribe, necessita ainda ser mais bem estudado e conhecido. Estamos, assim, interessados no sincretismo, não onde ele é mais evidente e tem sido constatado, como na umbanda, mas num grupo mais tradicional, como a Casa das Minas. Não estamos com isso preocupados em identificar uma pretensa “mistura” no tambor de mina, que se oporia à “pureza” do candomblé. Constatamos, como é pacífico, que todas as religiões são sincréticas, inclusive o catolicismo, desde o catolicismo primitivo (Brown, 1984; Bultmann, 1974). Para uns “não houve sincretismo nenhum” (Josildeth Consorte, apud Valente, A. L., 1989, p. 69). Para outros “esse tema já foi tão estudado que às vezes temos a impressão de que não há mais nada a dizer sobre ele” (Anaísa Henry, 1987, p. 56). O interessante de nosso trabalho será estudar o sincretismo num grupo religioso tradicional, tema que não tem sido pesquisado até agora. Desde seus inícios, os estudos afro-brasileiros concentraram-se sobretudo nos cultos de tradição nagô-queto, em detrimento dos de outras procedências. Essa tendência hoje se reflete entre os líderes religiosos, que
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passaram a supervalorizar a tradição mais estudada. Após os trabalhos de Bastide, desenvolveu-se o interesse pelo estudo de grupos de cultos de outras procedências. Os aspectos mais sincréticos e os cultos considerados como “misturados” foram tradicionalmente menos valorizados, tanto pela bibliografia clássica quanto pelos líderes religiosos mais conhecidos, com exceção dos da umbanda. Na prática, entretanto, o sincretismo está presente de forma intensa nos cultos, embora continue sendo desvalorizado por religiosos e por muitos pesquisadores. Como entender este fenômeno? Herskovits propôs sua análise pela teoria da aculturação, hoje considerada insuficiente por não levar em conta a relação de dominação, inevitável naquele contexto. Bastide falou em analogias, em correspondências e propôs o princípio de cisão, considerando que para o negro o candomblé e o catolicismo funcionam como compartimentos estanques, que não se misturam, havendo um corte ou separação entre ambos. Outros interpretam o sincretismo como estratégia de sobrevivência do negro dominado ante a sociedade branca e católica dominante. Parece-nos que o fenômeno precisa ser mais bem analisado para se compreender uma realidade tão complexa como é procurar a coerência do sincretismo. A realidade, entretanto, é contraditória e incoerente. A coerência pode não se encontrar no fenômeno em si, mas em suas relações com outros, o que explicaria as aparentes incoerências. Devemos, como antropólogos, procurar a lógica e a coerência de um fenômeno ambíguo e contraditório como o sincretismo. Estudando nossa sociedade, Roberto da Matta (1987) constata que relacionar é uma característica brasileira, expressa, por exemplo, na arte barroca, em que convivem estilos diversificados caracterizando-se “pela capacidade de relacionar: o alto com o baixo; o céu com a terra; o santo com o pecador; o interior com o exterior; o fraco com o poderoso; o humano com o divino e o passado com o presente” (Da Matta, 1987, p. 14). A ideia básica de Da Matta é destacar em nossa sociedade a facilidade de inventar relações, de criar pontes entre espaços, de unir tendências separadas por tradições distintas, de sintetizar, de ficar no meio. Este lhe parece o aspecto central da ideologia dominante brasileira (1987, p. 117). Ser de todos e não ser de ninguém, como Gabriela, ou não optar e ficar com os dois maridos, como Dona Flor, nos romances de Jorge Amado.
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Da Matta constata, portanto, o caráter relacional de nossa sociedade, não percebido por Roger Bastide (1955; 1971), ao acentuar o princípio de cisão. O sincretismo, a nosso ver, também se enquadra nas características desta capacidade brasileira de relacionar coisas que parecem opostas. O fenômeno do sincretismo não foi especialmente analisado pelos estudiosos das Religiões afro-brasileiras. O tema também não interessou aos maiores expoentes no estudo da religião nas ciências sociais. Segundo Berger e Luckman (1985, p. 148): “o desfecho histórico de todo choque entre deuses foi determinado por aqueles que impunham as melhores armas e não por aqueles que possuíam os melhores argumentos”. Assim, nas situações de culturas em contato, as concepções divergentes tendem a ser incorporadas, liquidadas ou segregadas (Berger e Luckman, 1985, p. 164). A história apresenta numerosos casos de destruição de concepções divergentes, de intolerância religiosa e de conflitos entre a cultura das classes dominantes e das classes subalternas. Um bom exemplo são os trabalhos de Carlo Ginzburg (1987, 1988), relatando confissões do moleiro Menocchio ao Tribunal da Santa Inquisição e perseguições aos “benedanti” no Norte da Itália no início da Idade Moderna. Discutindo esses contatos entre culturas distintas e a ambiguidade do conceito de cultura popular, Ginzburg (1987, p. 24) considera “frutífera a hipótese formulada por Bakhtin de uma influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante”. Análises do imaginário, principalmente na história das mentalidades, têm realizado avanços importantes no estudo da religiosidade popular e da cultura das classes subalternas. Laura de Mello e Souza, estudando no Brasil do período colonial casos de acusações de feitiçaria e manifestações de cultos afros, chamados no século XVIII de “calundu”, afirma que “uma colônia escravista estava fadada ao sincretismo religioso” (Souza, 1987, p. 93). Tanto Weber quanto Durkheim constatam que, para o devoto, a religião tem a ver, sobretudo, com a resolução de problemas práticos da vida cotidiana, mais do que com raciocínios e ideias abstratas. Segundo Durkheim (1978, p. 166), para os crentes “a verdadeira função da religião não é a de nos fazer pensar [...], mas de nos fazer agir, de nos ajudar a viver”. Weber (1969, p. 328) afirma que: “As ações cuja motivação é religiosa ou mágica aparecem em sua existência primitiva, orientadas para este mundo. As ações religiosas ou mágicas devem realizar-se para que ‘vás bem
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e que vivas longos anos sobre a terra’”. Segundo Durkheim (1937, p. 595), os crentes sentem que a verdadeira função da religião não é a de nos fazer pensar, de enriquecer nosso conhecimento, de acrescentar às representações que devemos à ciência, representações de outra origem e de outro caráter, mas de nos fazer agir, de nos ajudar a viver. O fiel em comunhão com seu deus não é apenas um homem que vê verdades novas que o incréu ignora; é um homem que pode mais. Ele sente mais força, seja para suportar as dificuldades da existência ou para vencê-las.
Neste sentido, e em consequência da influência recíproca entre culturas, o sincretismo afro-brasileiro foi também um meio de adaptação do negro à sociedade colonial e católica dominante. Foi um meio de ajudá-lo a viver e de lhe dar forças para suportar e vencer as dificuldades da existência, de enfrentar problemas práticos, sem se preocupar com a coerência lógica do sincretismo. Mais do que conhecer o passado e as origens do sincretismo, estamos preocupados em entender o presente, estudando o sincretismo na Casa das Minas, principalmente através da análise de alguns rituais. Segundo Cazeneuve (s.d., p. 8): “os ritos constituem um terreno de investigação privilegiado, mais ainda talvez do que os mitos. [...] O rito é uma ação seguida de consequências reais; é talvez uma espécie de linguagem”. Numa perspectiva estruturalista, Cazeneuve considera mito e rito como sistemas simbólicos, como linguagens que remetem às estruturas da sociedade. Os rituais são quase sempre momentos de festa, que rompem a rotina da vida diária, embora haja ritos que não sejam propriamente festivos. Segundo Durkheim (1937, p. 547): A própria ideia de uma cerimônia religiosa de alguma importância desperta naturalmente a ideia de festa. Inversamente, toda festa, mesmo que seja puramente leiga em suas origens, possui certas características de cerimônia religiosa, pois tem por efeito aproximar os indivíduos, colocar massas em movimentos e suscitar assim um estado de efervescência, algumas vezes mesmo de delírio, que não é sem parentesco com o estado religioso.
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Na Casa das Minas, grande número de rituais são ocasiões de festas em que os voduns vêm cantar e dançar, cumprindo sua missão. São momentos que suscitam este “estado de efervescência” que Durkheim destaca. Diversos autores analisam também rituais como reencenação (Geertz, 1978, p. 187) ou como “rememoramento” (Berger, 1985, p. 53), como ocasiões em que a memória é atualizada com coisas importantes que necessitam ser lembradas. Estudando ritos na Casa das Minas, precisamos discutir algumas ideias sobre mito, rito e festas, que são fenômenos essenciais para a antropologia. Malinowski (1976; 1968) salienta a importância social do mito nas comunidades primitivas, não dando ênfase teórica maior ao estudo dos ritos, que ele descreve em inúmeras oportunidades. Segundo Malinowski (1968, p. 103), o estudo dos mitos é mais fecundo quando examinado em seu contexto do que na exclusiva análise dos textos. O mito “não é somente uma história que se conta, mas uma realidade vivida” (1968, p. 102). As pessoas da Casa falam pouco sobre ritos e festas em geral, como veremos neste trabalho. Falam sobre cada vodum que é festejado e sobre os motivos das festas ou dos ritos. Os ritos são minuciosos, mas não se explicam exatamente os seus motivos, pois muitos deles são privados ou secretos e não devem ser divulgados publicamente. O pessoal da Casa das Minas, diferentemente dos Ndembos que Turner (1974, p. 35) estuda, tem notavelmente muitos ritos, mas não é propenso à riqueza de uma exegese detalhada. Embora rito seja um conceito importante, grande número de antropólogos (Leach, 1971, p. 241, e muitos outros) constata que não existe acordo sobre seu significado. Leach considera como ritual os comportamentos mágico-religiosos e os de comunicação, como etiquetas e cerimônias. Apenas os comportamentos técnico-racionais não seriam ritos (1971, p. 241). Segundo Leach (1972, p. 36), mito e rito implicam um o outro e constituem uma só coisa. O mito é um enunciado verbal que conta a mesma coisa do rito, um enunciado em ação. Para Leach, ritual é um arranjo de símbolos, uma representação da estrutura social e uma teatralização do mito. O rito seria o elemento mais rígido e conservador da organização social (1972, p. 304). Mauss (1981, pp. 266-268) define ritos religiosos como “atos tradicionais eficazes que versam sobre coisas ditas sagradas”. Segundo Mauss, o rito cria e faz, e, “por uma virtude que lhe é intrínseca, coage diretamente as coisas”. Para Mauss, a influência coercitiva dos ritos religiosos se exerce
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através de “solicitações por vias de oferendas e pedidos”. Estas afirmações de Mauss sobre ritos religiosos aplicam-se, como veremos, aos que vamos estudar na Casa das Minas. A análise dos ritos na antropologia recebeu considerável avanço com trabalhos de Victor Turner, para quem seu estudo deve começar com os símbolos, que considera como moléculas do ritual (1974, p. 29). Segundo Turner (1974, p. 70), num ritual “um único símbolo representa muitas coisas ao mesmo tempo, é multívoco e não unívoco”. Baseado no estudo de Van Gennep sobre ritos de passagem, Turner (1974, pp. 130-132) considera que muitos elementos das religiões em geral estão entre características do estado de liminaridade, como: camaradagem, igualitarismo, homogeneidade, obediência. Para ele a vida religiosa tem características da communitas, tem “qualidades de passagem”. Os conventos como instituições totais institucionalizam a liminaridade. Muitos destes itens apontados por Turner se aplicam à religião da Casa das Minas, que possui certos aspectos de instituição total e de convento, como nos reclamou uma ex-vodúnsi. Para Turner (1972, pp. 12-16), o ritual é um agregado ou um sistema de símbolos que “armazena o saber tradicional”. Turner salienta o “caráter rígido e repetitivo do ritual [...] destinado a penetrar o espírito do participante”. Estudando rituais e processos sociais, Turner (1972, pp. 300-306) considera que um ritual é uma representação dramática que leva o grupo a superar divisões e a reafirmar sua unidade, pois “incita o indivíduo a cooperar com seus semelhantes em várias formas de relações sociais”. Embora não adotando o esquema que tal autor propõe para análise dos símbolos nos rituais, verificando seu aspecto exegético ou interpretativo, operacional e posicional (Turner, 1972, p. 28; 1971, pp. 76-88), utilizamos muitas de suas ideias e sugestões, que sem dúvida representam um avanço no entendimento deste tipo especial de ação humana. Os rituais religiosos são também momentos de festas, como afirma Durkheim no texto citado anteriormente. Estudando festas e lamentando a falta da capacidade de fantasia e de festividade do homem moderno, Harvey Cox considera que, como “fantasia social” e como fonte de criatividade e de humanização, o ritual religioso “propicia a forma e a ocasião para a expressão da fantasia” (Cox, 1974, p. 75). François-André Isambert, discutindo processos de interpretação do significado das festas nas religiões populares, analisa (1982, p.51) a reali-
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zação de cerimônias como modo de afirmação da identidade coletiva de um grupo em relação a outro. Destaca a importância dos elementos de exaltação coletiva, de alteração ou transgressão dos tabus, a referência à recriação do tempo mítico (1982, pp. 127-129). Afirma que as festas não têm um significado único e concorda com Jean Duvignaud que o sentido da festa não surge de sua história, considerando que: “Não é um processo indutivo que se permite retirar por generalização, mas uma ‘leitura’. É evidente que esta é subjetiva e uma projeção, nos dados e na observação, de um sentido a insuflar na festa, sendo normativo, objeto de um desejo, da festa tal como ela deveria ser, tal como gostaríamos que ela fosse” (Isambert, 1982, p. 135). Neste sentido, vamos procurar também interpretar rituais e festas da Casa das Minas como modo de afirmação da identidade do grupo. Como lembra Munanga (1988), o conceito de identidade atualmente (como, na década de 1960, os conceitos de estrutura, de grupo, de classe, de poder, ou de ideologia) possui tantas definições quanto empregos. Segundo Munanga (1988, p. 143): “A identidade se torna pouco a pouco essa realidade de que todo mundo fala tanto sem saber, no fundo, o que ela é”. Oportunamente discutiremos também algumas definições e empregos deste conceito. Procuraremos identificar a estrutura dos fenômenos que estamos analisando pela adoção da perspectiva de Leach (1972, p. 18) ao afirmar que: “No curso dos dez últimos anos, cheguei a compreender muito mais claramente a distinção, frequentemente confusa neste livro, entre a estrutura que pode existir no seio de um conjunto de categorias verbais e a ausência de estrutura que caracteriza normalmente todo conjunto de dados empiricamente observáveis”. Adiante continua: (id, p. 26): “Podemos falar de estrutura social em termos de princípios de organização que unificam as partes componentes do sistema”. E ainda: (ib., p. 27): “As estruturas que o antropólogo descreve são modelos que só têm existência enquanto construção lógica de seu espírito”. Diante das colocações anteriores, nosso trabalho irá analisar ritos da Casa das Minas de acordo com perspectivas inspiradas em diversos autores e especialmente em Leach (1972). Procuramos identificar nos rituais da Casa das Minas a existência de um equilíbrio instável entre continuidade e mu-
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