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Informativo jurídico especializado
SUMÁRIO
ENTREVISTAS
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Ricardo Lewandowski Alexandre de Moraes Márcio Fernando Elias Rosa Ives Gandra Martins
ARTIGOS DIRETORIA Presidente: Francisco Raymundo Vice-Presidente: Flauzilino Araújo dos Santos Diretor Financeiro: Rosvaldo Cassaro Diretor da Coordenadoria Geral: George Takeda Diretor de Tecnologia da Informação: Armando Clapis Secretário: Jersé Rodrigues da Silva CONSELHO FISCAL Carlos André Ordonio Ribeiro Adriana Aparecida Perondi Lopes Marangoni Frederico Jorge Vaz de Figueiredo Assad SEDE Av. Paulista, 1776 - 15° andar - São Paulo - SP CEP: 01310-200 Homepage: www.arisp.com.br | www.registradores.org.br www.iregistradores.org.br | www.uniregistral.com.br e-mail: imprensa@arisp.com.br EQUIPE Gestão: Francisco Raymundo Coordenação: Alberto Gentil de Almeida Pedroso Jornalistas Responsáveis: Dêni Carvalho - MTB 46178/SP Jéssica Molina Galter - MTB 0081859/SP Diagramação: Alessandra Giugliano Russo Editor-chefe: Vaner Caram Fotografia: Vaner Caram, Felipe Nunes e Nelson Oliveira
Da doação - Pontos polêmicos Ulysses da Silva
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Casas geminadas camufladas de condomínio edilício, desmembramento superveniente e os limites da qualificação registrária Luiz Gustavo Montemór
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Observações sobre as inscrições relativas às estradas de ferro depois da Lei Nº 13.465/2017 Josué Modesto Passos
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Alguns apontamentos sobre o bloqueio da matrícula Paulo Cesar Batista dos Santos
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A Mata Atlântica, a propriedade e o Registro de Imóveis Marcelo Augusto Santana de Melo
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A atividade empresarial e o Registro de Imóveis Paulo Furtado de Oliveira Filho
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O inesperado nos aguarda José Renato Nalini
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ENTREVISTA:
RICARDO LEWANDOWSKI MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O Ministro Lewandowski foi presidente do Supremo Tribunal Federal, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, presidente da República e, interinamente, presidiu o processo do Impeachment e foi presidente do CNJ. Destas suas funções, qual delas tem marcas mais decisivas? É histórico que uma pessoa ocupe os cinco cargos previstos na Constituição. Três seriam normais, a partir de 10 anos de carreira: presidente do TSE, presidente do Supremo, presidente do CNJ. Mas, evidentemente, os outros dois cargos são ocupados em caráter excepcional. Precisa ter uma conjunção políticoinstitucional raríssima, e isso aconteceu quando eu ocupei a presidência da República interinamente. Era um momento eleitoral em que a presidente da República tinha saído do Brasil em uma missão oficial, e o vice-presidente Michel Temer estava no Uruguai em uma missão oficial. Além disso, o presidente do Senado, que era o Renan Calheiros, não podia concorrer porque tinha um filho que era candidato a governador de Alagoas. Já Henrique Alves, que era presidente da Câmara, também era candidato ao governo do Rio Grande do Norte, então, todos da cadeia sucessória estavam impedidos. Fui chamado a ocupar este 4
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posto, que é algo extremamente difícil. Tanto é que a presidente da República me ligou dizendo que eu iria assumir e, eu, com toda certeza, achei que era um trote porque muita gente imitava-a. Trinta minutos depois me tiraram do cargo e me botaram em um carro oficial, com seguranças muito rígidos. Agora, no processo de impeachment seguimos todo o rito, e foi um rito extremamente complicado. Primeiro, a Constituição não traz nenhum detalhe sobre o caso concreto. Segundo, a lei que rege o impeachment é de 1950, e está totalmente ultrapassada. Não havia nenhum precedente porque o impeachment do Collor não chegou ao fim. Na hora de presidir, eu tive de concatenar todas as regras: as posições constitucionais legais e regimentais, o julgado do Superior Tribunal Federal, o Código de Processo Penal no que diz respeito ao júri, sem falar de toda a principiologia da ampla defesa. Para ser favorável, a presidente tinha que ter ampla defesa. Foi um processo não só do ponto de vista político, mas em um ambiente emocionalmente conturbado, exigiu-se muita negociação com os senadores e as suas respectivas lideranças. Foi extremamente complexo, porque quando a presidente se colocou à disposição dos senadores, ainda que na qualidade de presidente, embora afastada do cargo, ela tem de ser tratada com toda a deferência. Houve uma negociação muito intensa para que ela tivesse o espaço, para que pudesse falar tranquilamente. O momento do impeachment foi o mais complexo para mim. Vossa Excelência também integrou o Tribunal de Alçada Criminal, o Tribunal de Justiça, e nunca deixou de exercer uma militância associativa. O que isso facilitou em sua carreira? Eu sempre entendi que precisamos participar da vida em sociedade. Hoje, estamos em um momento conturbado da história do Brasil. Muitos reclamam, querem reformar o país, mas eu digo: você já foi síndico do seu prédio? Comece sendo síndico, faça parte da sociedade dos amigos do bairro, associação de pais e mestres. Eu mesmo fundei a associação dos amigos do meu bairro, fui conselheiro da seccional da ordem de São Paulo, fui diretor da Associação dos Magistrados
e possuo quase 30 anos de magistratura. Sinto que precisamos participar desta vida em sociedade; diálogo é convivência. Tenho uma visão muito particular do Poder Judiciário – digo isso sempre que posso aos meus alunos na pós-graduação –, que o juiz é um agente pacificador, é um homem que deve procurar fazer com que a paz social possa prosperar. O juiz, antes de mais nada, é um pacificador. E em segundo lugar, é um juiz de garantias, aquele que faz com que os direitos fundamentais da constituição tenham concreção. O Supremo brasileiro tem uma conformação atípica, porque ele é a segunda instância dos juizados especiais. Algo que o Tribunal local não decide, o STJ também não decide e isso vai parar na Corte Suprema. Isso não mereceria uma revisão? Eu penso que muita gente deve estar imaginando que, em 2019, quando tivermos um novo parlamento, o sistema judiciário deverá ser repensado. Alguns propõem que a Suprema Corte se transforme em uma corte exclusivamente constitucional para discutir teses abstratas e, portanto, um órgão fora da estrutura do Poder Judiciário. Eu estive na Suprema Corte da Inglaterra. Lá eles julgam 70 processos ao ano. Atualmente, no STF, julgamos mais de 100 mil processos. É necessário que tenhamos dois órgãos judicantes para que façam uma uniformização jurisprudencial. Temos o STJ, que é o Superior Tribunal de Justiça e que faz a uniformização da legislação federal, e o Supremo, que faz a interpretação constitucional. Agora, eu penso que o Supremo poderia, talvez, pinçar aquelas questões que lhe parecem relevantes, como é no sistema americano. O setor extrajudicial é um setor que vem ganhando algumas atribuições, mas talvez pudesse ainda receber acréscimos para aliviar o judiciário. O que o senhor pensa sobre isso Na Inglaterra, e em outros países, eu diria que 90% dos litígios não passam pelo Poder Judiciário. Assim como nós temos a cultura do encarceramento, nós também temos a cultura da litigiosidade, a ponto de verificarmos que no Brasil tramitam 100 milhões de processos para apenas 17 mil Juízes Federais, Estaduais,
do Trabalho e Eleitorais. Esse número cresce em progressões geométricas. É claro que vai chegar um momento em que os juízes não darão mais conta, então, precisaremos partir para os métodos alternativos: conciliação, mediação, arbitragem e, neste aspecto, o setor extrajudicial pode prestar um serviço de extrema importância. As faculdades de Direito do Brasil estão preparadas para as transformações e para os desafios de alunos que vão estudar Direito e nem sempre são tão bem alfabetizados, não se dedicam à leitura ou também não querem nada além do mínimo necessário para obterem a aprovação? Essa questão da leitura é muito interessante. Eu sou professor universitário, talvez, há quatro décadas. O lapso de atenção que os alunos dedicam hoje é muitíssimo menor. Eu lembro que aulas de uma hora eram comuns, especialmente na pós-graduação. Hoje na graduação nenhum professor consegue falar e manter a atenção dos alunos por mais de 5 ou 10 minutos. Eles já vão lá para o WhatsApp, para o Facebook. Esta visão bacharelesca, onde tudo tem que ser requisitado, requerido e o Estado tem que decidir tudo, nós temos que modificar também. Para ser juiz, em um número muito grande de países, não necessita ser bacharel em Direito, a pessoa pode ser um cidadão comum, mas com muito bom senso, até porque, das nossas decisões, 99% são de bom senso, o senso comum. As questões mais técnicas que vem para o Judiciário, nós temos os peritos que nos auxiliam. Em sua opinião, o que o Brasil precisa no âmbito da educação, da lei, da politização? Nem tudo se resolve através de mudanças legislativas. É preciso que haja realmente uma conscientização nacional em torno de certos objetivos. Com isso, eu ousaria dizer que o que falta aqui no Brasil é uma politização qualificada no sentido amplo da palavra e não partidária. Seria uma politização no sentido de opinião aos grandes temas nacionais.
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ENTREVISTA:
ALEXANDRE DE MORAES
MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Como Vossa Excelência se descreveria? Eu sou paulistano, nasci na Aclimação e, de alguma maneira, me descreveria como alguém extremamente otimista, até porque eu nasci em uma sexta-feira 13, em um ano bissexto, exatamente no dia do AI-5, 13 de dezembro de 1968. Como foi se exonerar do Ministério Público? Logo que me formei pela Universidade de São Paulo em 1990, passei no concurso do Ministério Público em 1991. Quando nomeado, eu tinha apenas 22 anos. Fiquei pouco mais de 10 anos, atuei na Promotoria da Cidadania, no Grupo de Saúde e Defesa do Consumidor, tive contato com as Secretarias de Estado, a Política Institucional, a Política Administrativa, Políticas Públicas. Em janeiro de 2002, quando o Governador Geraldo Alckmin me convidou para assumir a Secretaria da Justiça e fiquei surpreso! À época, em alguns locais do Brasil, vários promotores, mesmo tendo entrado depois de 1988, saiam com autorização ou um mandado de segurança, exerciam os cargos no executivo e depois voltavam. Eu não quis transitar por esse caminho, até porque já tinha escrito 6
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e interpretado a constituição, que não permitia que os membros do Ministério Público, após 5 de outubro de 1988, saíssem da carreira. Aquele que quisesse assumir um outro cargo no executivo, deveria se exonerar, então, entendi que a minha fase de Ministério Público havia passado. Eu tenho ótimas lembranças, continuei muito próximo ao Ministério Público, mas pretendia, no executivo, auxiliar a realização de políticas públicas. Hoje, no Supremo Tribunal Federal, é possível fazer uma atuação mais macro em relação às questões mais importantes do país. Vossa Excelência exerceu inúmeras funções na vida pública. Qual função lhe trouxe maiores desafios? Hoje, a função mais difícil é a que exerço no STF. As que passaram, passaram, com erros e acertos. Como Secretário da Justiça, um momento marcante foi quando, pessoalmente, fui até uma das rebeliões e prendi em flagrante 34 monitores que praticavam tortura. Outro momento importante foi quando o Governador autorizou que eu, junto com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, arrumasse terrenos para a implementação de uma nova gestão aos internos da FEBEM, atualmente, Fundação Casa. O projeto foi implementar novas estruturas através de aulas em modelo vertical (prédios com três andares, quadras poliesportivas etc.). Afinal, eu e os meus filhos tivemos esse modelo de educação, por que eles não poderiam? Graças às mudanças de paradigma, conseguimos alocar alguns terrenos. Resultado? Mais de 150 unidades da Fundação Casa deixaram de ter rebeliões. Lembro-me também de quando consegui regulamentar toda a entrega de cargas na cidade. Aliás, São Paulo era a única megalópole que não tinha esse tipo de regulamentação específica. Da mesma forma, eu guardo grandes memórias na Secretaria da Segurança. Um feito histórico e lembrado: fui o único secretário que baixou todos os índices de criminalidade de um ano para outro. Para se ter uma ideia, no presente temos, no Estado de São Paulo, 8,3 homicídios por 100 mil habitantes e, no país, 27 homicídios por 100 mil habitantes. Em algumas capitais, 65 homicídios por 100 mil habitantes. Concluo, então, que na Secretaria de
Segurança foi possível fazer um bom trabalho. Vossa Excelência está colaborando para um novo projeto de segurança. Pode falar algo a respeito? Recentemente, entreguei um projeto que parte da premissa de que devemos aproveitar o que nós temos, priorizando juízes, promotores, policiais, defensores para combater a criminalidade organizada. Para isso, necessitamos aliviar o excesso de trabalho em outras áreas da justiça penal. O primeiro ponto que destaco é a permissão de acordos de não persecução penal. Toda a infração penal, sem violência ou grave ameaça, com pena mínima de até quatro anos, será possível, seja durante o inquérito ou na audiência de custódia, realizar uma transação penal que se aplique pena restritiva de direitos ou pena de prestação de serviços à comunidade e, por fim, o encerramento imediato do caso. Se o criminoso pego em flagrante quiser confessar e já fazer um acordo, porque não se encerrar de imediato? Não vai precisar inquérito, denúncia, audiência de instrução, interrogatório, sentença etc. Em cálculos aproximados vamos diminuir 75% do trabalho da justiça penal. E não é diminuir por diminuir, é reduzir com uma aplicação de sanção proporcional, são crimes sem violência ou grave ameaça. Atualmente, mais de 130 mil inquéritos de estelionato correm na justiça. Há casos em São Paulo, que no mesmo mês, a pessoa faz audiência de custódia seis ou sete vezes, por seis ou sete crimes. Se já aplica a lei de pena restritiva ou de prestação de serviços à comunidade, isso dá a sensação de justiça e de punição. Através da celeridade de sentença, você libera juízes, membros do Ministério Público e defensores para combate à criminalidade organizada. Outra parte importante é destinada às varas que cuidam do crime organizado no país, principalmente narcotráfico, tráfico de armas e milícias. Dentro da proposta, inserimos que julgados assim devem ser colegiados por cinco juízes. Evita-se o temor dos juízes em dar uma decisão (pena) mais efetiva. Um caso para ilustrar a colocação é que, em São Paulo, ocorreu uma denúncia envolvendo 150 membros do PCC para um único juiz julgar. Se colocado em uma vara colegiada, permite-se maior segurança à autoridade pública. Também elaboramos, dentro da
proposta, textos que modificam de 30 para 40 anos o tempo de cumprimento de uma pena, isso tem respaldo na taxa de mortalidade que, hoje, é 78 anos, ou seja, não se justifica mais. Crime com grave ameaça e violência, tem que cumprir, no mínimo, um terço para poder ter progressão de regime. Todos os dias são registrados roubos com fuzil, nisso a pessoa fica apenas 11 meses em cárcere. Por fim, o projeto também prevê uma forma de aproximação maior à justiça, o Ministério Público e Poder Judiciário, com a polícia brasileira. Só assim, ao meu ver, conseguiremos lutar contra o crime. Temos um excesso de judicialização no Brasil. Em contraponto, pertencemos a uma República Federativa com mais Faculdades de Direito do que a soma de todas as outras graduações. Como podemos mudar o cenário atual? O estudo, o ensino do Direito precisa ser alterado. Como? Reformando a grade curricular. Hoje, os jovens estudam o que eu estudei quando entrei na universidade. Ou seja, não se levou em conta as alterações da vida, da tecnologia e revoluções de pensamentos. Precisa aprofundar a discussão, o raciocínio; como tornar o Direito algo mais eficiente no Brasil? Nós temos que ser mais anglo-saxônicos. Eu quero o direto romano lá de trás, o direito prático e simples de resolver as questões mais burocráticas. Qual é a experiência que se tem nos concursos? O que exigimos, por exemplo, é que se decore toda a enciclopédia da doutrina, da legislação e da jurisprudência. Como enxerga a situação? Eu já fui de banca de concurso e também professor de cursinho. O que me intriga é a interpretação doutrinária acima da aplicação prática. No dia a dia, os profissionais não conseguem resolver os problemas. Precisamos mesclar o ensino, um exemplo: existem exames orais que a banca pergunta nota de rodapé para o candidato, ou seja, isso não vai fazer a mínima diferença para o profissional. Pelo contrário, isso acaba muitas vezes eliminando alguém que tem uma experiência vasta na profissão. Necessitamos balancear experiência profissional com questões práticas. E ARISP JUS 7
voltando ao assunto do método de ensino aplicado, hoje em dia, desde a infância, as aulas são prelecionais, com as mesmas fileiras de séculos atrás; tudo totalmente incompatível com a realidade digital que vivemos e estamos imergidos sem voltas. A circuitaria neuronal
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das crianças é digital. Pensando nisso, como podemos prestigiar as universidades corporativas, o ensino a distância, a pluralidade dos métodos de ensino? Fica uma pergunta para todos!
ENTREVISTA:
MÁRCIO ELIAS ROSA
SECRETÁRIO DA JUSTIÇA E DA DEFESA DA CIDADANIA DO ESTADO DE SÃO PAULO
O Ministério Público é a instituição mais respeitada da República, depois da Constituinte de 1988. Conte para nós, desde o seu ingresso, quais são os pontos que marcaram sua carreira? Tem um detalhe interessante sobre a minha trajetória. O meu avô foi cartorário em Ibiúna, e fazia tudo: notas, tabelionato, registro civil. Depois, o meu pai foi escrevente de cartório em Lençóis Paulistas. Com isso, aprendi que a atividade cartorial é uma escola onde se tem, de fato, fé-pública. Ela garante segurança jurídica à sociedade e estabilidade à titularidade e exercício dos direitos fundamentais. Com o meu ingresso na profissão como auxiliar contratado, resolvi cursar Direito em Bauru e, em 1986, entrei no Ministério Público. A partir disso, o ponto que eu destaco é a transformação com que o Brasil passou neste período. O fim dos anos 80 reflete no sistema de justiça brasileiro como um todo. Em 1988, a Constituição muda radicalmente o perfil do Ministério Público e nos atribui a defesa dos interesses difusos e coletivos pelo plano Constitucional. Nós já tínhamos, desde 1981 a 1982, depois em 1985, a lei de ação civil pública, mas, em 1988, veio o patrimônio
público. Eu mesmo fui trabalhar, primeiro, com urbanismo. Fiquei cuidando de parcelamento de solo. E depois, em 1992, com improbidade administrativa e quebra de sigilo bancário. Hoje, o Ministério Público Estadual e Federal trabalha com o Sistema de Movimentação Bancária (SIMBA), que em 30 dias, não só retrata os documentos, como também indica por onde tramitou o dinheiro, de que conta ele saiu e para que conta foi. E quando me perguntam porque naquela época não se fazia investigação, eu digo que é porque não havia tecnologia da informação. Hoje você acumula a Fundação Casa. Conte-nos um pouco desta experiência. Isso é um prazer enorme, viu? Eu, a convite do exgovernador Geraldo Alckmin, venho acumulando a presidência da Fundação Casa. Atualmente são quase 9 mil adolescentes atendidos. Em São Paulo, temos 144 unidades da Fundação Casa em funcionamento. Dos internos, 96% são homens e 4% são mulheres. Sabe o que mais chama a atenção? 46% dos casos é de tráfico de entorpecentes de pequena quantidade. Não há associação com o crime organizado. Hoje, menos de 5% é latrocínio e homicídio. Com isso, traçamos um perfil de adolescente facilmente identificável. Quase sempre, filho de gravidez indesejada, de mãe adolescente. Quase sempre o pai biológico é uma referência apenas no documento ou na lembrança da mãe. E na maioria, o pai biológico, a mãe ou o tio estão no sistema prisional, cumprindo pena. O Brasil de 2006 a 2016 sepultou 325 mil rapazes entre 15 e 29 anos. Nós estamos sepultando o nosso futuro, o amanhã! O Estado, todos nós sem exceção, precisamos oferecer para a juventude alternativas de vida saudável. Educação, cultura, lazer, o lado lúdico da juventude. Porque se não formos hábeis na captura do adolescente, outra força captura. Como o senhor enxerga a política hoje? Eu acho que o Brasil atravessa um momento muito delicado de criminalização da atividade política. E eu costumo dizer que não há alternativas senão pela via política. Enquanto os exércitos declaram guerra, a política celebra a paz. Política é agregar, convergir, ARISP JUS 9
buscar convergências, superar entendimentos pessoais. Em um plano puramente filosófico, dar de si para o próximo. É óbvio que eu estou me referindo à boa política e não à política rasteira. Não vamos fazer da atividade política um modo de aproveitamento pessoal. Os grandes escândalos não fazem política, esses frequentam os jornais ao cometerem crimes. Não podemos confundir e ficar imaginando que pela via da restrição de direitos coletivos, sobretudo, nós vamos melhorar o país. Ao contrário, isso não melhora! Eu não acredito em nenhuma campanha política cujo lema seja a declaração de guerra. Além disso, afirmo que hoje não há a menor chance de um golpe por desejo dos militares. O que ocorreu lá atrás, é porque nós estávamos no período da Guerra Fria.
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Qual a pauta da Secretaria da Justiça atualmente? A Secretaria da Justiça tem como pauta o combate a qualquer discurso de ódio. Porque o discurso de ódio é o que permeia qualquer intolerância: discriminação racial, orientação sexual, etnia, raça, religião. E, de fato, eu sou otimista. Todos devemos ser esperançosos. Acreditar que dará tudo certo em algum momento desde que façamos a coisa certa. Agora que estamos em um momento político eleitoral, faz-se a opção do melhor candidato, mas para isso precisamos pesquisar sobre ele antes. A pior enfermidade que um ser humano pode ter é o Alzheimer. E qual é a característica do Alzheimer? Perder a memória. Uma nação sem memória padece de Alzheimer e não conhece o seu destino. Não devemos ir por este caminho. Temos muita história para contar.
ENTREVISTA:
IVES GANDRA MARTINS JURISTA
Eu gosto muito quando você fala que o Brasil não cabe no PIB. Você acha que a situação melhorou? Eu tenho a impressão que não. Hoje se concentrou um corporativismo em Brasília que você não acerta, porque lá você decide tudo. Decide no judiciário, no executivo e no legislativo. Há uma promiscuidade. Eles são donos. Vivem como se fossem versais do Luis XVI, que estava há 20 km de Paris, os nobres todos viviam por lá, desconhecendo a realidade da França. No caso deles em Brasília, em nível de reformas, todos os anticorpos contra a reforma saem de lá. Veja a reforma tributária, por exemplo: o número de audiências públicas que eu fiz por reforma tributária, não adianta, você não consegue superar as Secretarias de Fazenda e a Secretaria da Receita Federal. (...) O mundo está mudando de tal maneira, tão rapidamente, e nós estamos discutindo teses do século XIX, e que não passam em Brasília. Nós temos um sistema tributário que se não for simplificado, vai representar uma simplificação em todo o mundo.
Um país com quase 40 partidos políticos pode funcionar neste governo de coalizão que você tem que entregar feudos, setores para inimigos? Não. Na Itália, por exemplo, são 35 partidos. O Brasil tem 35 partidos registrados e, destes 35 partidos, 26 têm assento no Congresso Nacional. A Itália tem 8 partidos com assentos. Nos Estados Unidos tem candidato que se lança em partidos pequenos, mais distritais, mas no fundo são apenas dois partidos. Hoje há um estelionato eleitoral monumental e isso prejudica, pois, em cada eleição, cada um faz a conta. Se o partido precisar de mais votos para colocar alguém no congresso, começa a trazer figuras que tenham representatividade e possam colocá-los no congresso. (...) Se nós analisarmos, é um fracasso aqui na América Latina. Agora, você falou partido político, quando diz que o Brasil não pode ter parlamentarismo porque não tem partido político, eu diria que o Brasil não tem partido político, porque não tem o parlamentarismo. Eu fico muito preocupado com o crescimento exagerado do Estado. Aqui em São Paulo nós temos 641 municípios e eu diria que uma grande parcela deles não tem receita. Mas, entretanto, tem câmara municipal, tem todas as secretarias, que replicam o modelo federal e aqui acena-se com mais criação de município, o país vai aguentar? Não vai aguentar. Na verdade, é tudo ambição de político. Porque você vê o seguinte. Nós somos 3900 municípios, em 1988. Quando eu fui daquela comissão do senado para repensar o pacto federativo, com o Luís Roberto Barroso, Nelson Jobim, Fernando Rezende, Bernardo Api, Paulo Carvalho, Everardo Maciel, uma comissãozinha razoável, quando nós fizemos a dúzia de projetos de Emenda Constitucional e entregamos, nenhum deles foi sequer apresentado, e era uma comissão de 13 cidadãos que tinham nome. Pois bem, naquela época, em 2012, tínhamos 5568 municípios, que não tem a menor condição de resistir.
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Você acha que estamos numa judicialização anômala, até para coisas que não são necessárias? Eu acho e vou dizer o porquê: no momento em que o judiciário resolveu intervir em nível de política, toda pessoa que não está contente com o que acontece, recorre ao judiciário. Você pega, por exemplo, em política, no momento que houve a primeira ação que o Supremo Tribunal Federal precisou intervir no Poder Legislativo, dando à oposição o direito de tomar uma medida, a partir daí, quem perde imediatamente recorre ao Poder Judiciário. (...) Quando o Poder Judiciário começou a tirar dinheiro da Secretaria de Saúde para atender procedimento daqueles que recorriam ao Poder Judiciário, a partir deste momento nós passamos a ter uma crise bastante grande no setor da saúde. (...) O judiciário pode decidir? Eu vou intervir, eu vou recorrer, eu vou pressionar. Quantas ações diretas existem no Japão? Sabe quantas? Nenhuma! Lá não se discute, o Judiciário só entra para discutir grandes temas. O Supremo do Japão, a Suprema Corte, se reúne a portas fechadas e não há voto vencido, todas as decisões são unanimes. Nós criamos uma dependência, a população fica assim como que tutelada, então as pessoas desistem de conversar, de dialogar, de dizer porque não vão cumprir seus compromissos, porque elas preferem recorrer ao juízo, sabem que alguma coisa sempre virá, o Juiz se sente assim, um Dom Quixote para fazer reequilibrar uma parte vilã, a outra parte hipossuficiente, então você tenta fazer uma redistribuição de riqueza através da justiça. Acho muito ruim porque a sociedade não fica adulta, ela não vai implementar nunca uma democracia participativa, não é verdade? Há aqueles otimistas que dizem, “isso é termômetro democrático, a Constituição cidadã permitiu que todos tivessem acesso à Justiça”. Ora, as pessoas têm acesso à Justiça, mas e a saída? Quatro instâncias, 50 oportunidades de reapreciar o mesmo tema, por causa do sistema recursal caótico, eu não vejo perspectiva de alterar, até porque as nossas carreiras não querem mudança. 12 ARISP JUS
Esse é o problema que eu chamo de corporativismo (...), estão acostumados assim. Estando acostumados, eles estão tranquilos, mas isso evidentemente é um atraso e pior, não permite que o Brasil entre na modernidade. (...) O Brasil está entre as 10 maiores economias do mundo, em nível de PIB, temos 2% do comércio internacional e nós não entramos em competitividade internacional, menos de 2% do comercio internacional é feito no Brasil! Pega a Coreia do Sul, com a eminência de uma Coreia do Norte, que sofreu uma guerra. Em 1961, quando o Brasil enfim se preparava, a Coreia era um país semelhante aos países africanos. Hoje na Coreia se fabrica um automóvel em 57 segundos, tudo automatizado. Na fábrica Hyundai enquanto você automatiza o setor de produção, tem 10 mil engenheiros de tecnologia e nós continuamos a discutir coisas do século 19.
DA DOAÇÃO PONTOS POLÊMICOS Por Ulysses da Silva EX-OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS
Saraiva, publicado sob coordenação de Ricardo Fiúza. Outro ponto a comentar, vamos encontrar no artigo 551. Diz ele que, salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual. Acrescenta, entretanto, o parágrafo, algo relevante para o registrador em face de futuras implicações: Se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo. O teor desse dispositivo tem gerado, ao longo do tempo, interpretações contraditórias e não custa ver por que razão:
Depois de 15 anos de vigência do atual Código Civil, algumas de suas disposições relativas à doação ainda constituem assunto de discussão entre notários, registradores e profissionais do direito. A primeira delas é a contida no artigo 547. Diz ele: “O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário”.
É a chamada cláusula de reversão que envolve uma condição resolutiva e que deverá constar obrigatoriamente do registro, uma vez expressa no título. Esclarece o Parágrafo Único do artigo citado, que o direito decorrente dessa cláusula não prevalece em favor de terceiro, o que significa dizer que o doador não pode transferi-lo a outrem. Por outro lado, o efeito retroativo da condição imposta alcança eventual alienação feita pelo donatário, tendo-se a venda por anulada, como esclarecem alguns juristas, inclusive Jones Figueiredo Alves, na obra “Novo Código Civil Comentado, Editora
Se marido e mulher figurarem na escritura, como donatários, e a aceitarem, nenhuma dúvida haverá na aplicação da citada norma, seja qual for o regime de bens adotado. Mesmo, aliás, que apenas um deles figure como donatário, assistido pelo outro, existem decisões, no sentido de que prevalece o direito de acréscimo, quando, evidentemente, o casamento tiver sido realizado sob o regime da comunhão universal. Não é, todavia, pacífico tal entendimento, como podemos ver em outras decisões. Se, portanto, a intenção do doador for, efetivamente, a de beneficiar apenas um dos cônjuges, a sugestão é que imponha a cláusula de incomunicabilidade. Também complexa é a situação que resulta do confronto da cláusula de reversão com o direito de acrescer, assunto esse praticamente ignorado pelos doutrinadores. Suponhamos que, em uma escritura de doação feita a marido e mulher, os doadores impuseram a reversão e vem a falecer um dos donatários. O que prevalece: a reversão ou o direito de acrescer? ARISP JUS 13
A resposta não é fácil, porque, como vimos, o direito de acrescer vem de disposição expressa de lei e a reversão é manifestação de vontade do doador em ato de liberalidade. De acordo com o entendimento de Washington de Barros Monteiro, reiterado por Maria Helena Diniz, em sua obra “Curso de Direito Civil Brasileiro - Direito de Família, 22ª. edição, Editora Saraiva”, prevalece a condição imposta pelos doadores. Aliás, o direito civil tem respeitado sempre a vontade do doador ou testador, em atos de liberalidade, com raríssimas ressalvas, como a que veremos adiante. Ponto que, igualmente, pode suscitar dúvida diz respeito à necessidade ou não da realização de inventário tanto no caso do direito de acrescer, como no caso da reversão. O inventário é desnecessário no caso do direito de acrescer porque ele decorre de disposição expressa de lei, bastando efetuar averbação na matrícula do imóvel, à vista de requerimento do interessado e certidão de óbito do cônjuge falecido. Esse entendimento é, por sinal, confirmado por Jones Figueiredo Alves, na obra já citada, “O Novo Código Civil”, sob coordenação de Ricardo Fiúza, segundo o qual: O cônjuge sobrevivo assume, em substituição, o direito do que faleceu, não passando o bem aos herdeiros necessários.
Maria Helena Diniz, na sua obra “Código Civil Anotado, Editora Saraiva”, defende essa mesma tese ao dizer que, se os donatários forem marido e mulher, a regra é a do direito de acrescer, não passando, portanto, a parte do falecido, no bem doado, ao acervo hereditário, nem aos herdeiros necessários. Também no caso da reversão, o inventário é dispensável porque ela é o resultado do implemento de condição resolutiva expressa e que, por isso mesmo, opera de pleno direito, nos termos do art. 474 do 14 ARISP JUS
CC, como confirma Paulo Luiz Neto Lobo, na obra “Comentários ao Código Civil, editada pela Saraiva”, sob coordenação de Antonio Junqueira de Azevedo. Esse entendimento é reiterado por Jones Figueiredo Alves, na mesma obra “Novo Código Civil Comentado”, sob coordenação de Ricardo Fiúza, ao dizer que o bem doado regressa ao patrimônio do doador, pouco importando que o donatário tenha ou não deixado herdeiros. Prosseguindo, o atual Código Civil, tendo abolido a constituição do dote, manteve, no art. 546, a doação feita em contemplação de casamento futuro, já prevista no art. 1.173 do anterior, reiterando que ela não poderá ser impugnada por falta de aceitação, e que só ficará sem efeito se o casamento não se realizar. Envolve, tal espécie de doação, condição suspensiva, dependendo a sua validade, como depende, da realização de evento futuro, no caso o enlace matrimonial, daí o legislador haver dispensado a aceitação. Embora o ideal seja a realização do registro mediante a apresentação da certidão que comprove o enlace, o registrador não pode negar a prática do ato, em face da dispensa de aceitação expressamente declarada. Deve, no entanto, em tal caso, esclarecer, no próprio ato, ou por meio de averbação, que a validade da doação depende do implemento da condição imposta ou, em outras palavras, da apresentação de certidão comprobatória do casamento. Outra questão, que tem motivado algumas dúvidas entre notários e registradores, vamos encontrar no art. 1.848, sem precedente, segundo o qual: Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e de incomunicabilidade sobre os bens da legítima.
As dúvidas levantadas dizem respeito à possibilidade, ou não, de se estender a disposição em apreço às doações.
Se considerarmos que a intenção do legislador, no caso, foi a de preservar a legítima dos herdeiros necessários, entenderemos que a declaração de justa causa também se faz necessária nas doações, quando feitas em avanço de legítima. Assim, pensamos porque a experiência tem demonstrado que disposições legais endereçadas ao testador acabam aplicáveis, também, ao doador, como no caso do art. 1.911, que faz parte do capítulo referente às disposições testamentárias, mas que afeta as liberalidades de forma geral. O artigo 542, também envolve interessante para notários e registradores.
nascer com vida ele será nomeado e qualificado, por meio de averbação, mediante a apresentação de petição assinada por seu representante legal e certidão do respectivo assento no Registro Civil. Se não vier vivo ao mundo, o registro será cancelado mediante a exibição da respectiva certidão de óbito.
disposição
Diz ele que a doação feita a nascituro valerá, sendo aceita por seu representante legal, mas, sob condição suspensiva, de acordo com a doutrina, como informa Jones Figueiredo Alves, integrante da equipe que organizou a obra “Novo Código Civil Comentado”, já mencionada. Isso significa que a validade da liberalidade está condicionada ao nascimento com vida do donatário. Se nascer morto, caducará. Diferentemente da doação em contemplação de casamento futuro, neste caso existe aceitação da liberalidade pelo representante legal, como dispõe o citado art. 542, mas ele apresenta outros fatores que podem ser, a rigor, causa de adiamento do registro até que se comprove o nascimento com vida do donatário. A dúvida exposta é séria porque envolve a existência de condição suspensiva, a falta de personalidade civil e, consequentemente, ausência de qualificação do donatário, merecendo, por tais razões, a atenção. Com o devido respeito a entendimentos contrários, entretanto, penso que o registro prévio pode ser realizado mediante a identificação e qualificação dos pais do nascituro. Isso porque somente assim os seus direitos serão efetivamente assegurados, como prevê o aludido art. 1º do Código Civil. Posteriormente, se ARISP JUS 15
CASAS GEMINADAS CAMUFLADAS DE CONDOMÍNIO EDILÍCIO, DESMEMBRAMENTO SUPERVENIENTE E OS LIMITES DA QUALIFICAÇÃO REGISTRÁRIA Por Luiz Gustavo Montemór
OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE MONGAGUÁ-SP
Para pequenos empreendedores o mais comum é a construção de casas térreas ou assobradadas em regime de condomínio edilício, sem prévia incorporação imobiliária. Junto ao registro imobiliário, após a conclusão do empreendimento e desde que na fase da obra não tenha sido negociada qualquer unidade, sob pena de caracterizar atividade de incorporação imobiliária sem prévio registro, será efetuada a averbação da construção seguida do registro da instituição e especificação de condomínio (Livro nº 02), registro da convenção condominial (Livro nº 03) e abertura de matrícula para cada unidade autônoma. Mas a criatividade humana aliada a uma expectativa de maior retorno financeiro (e porque não certa ganância) tem levado a uma deturpação dos institutos vigentes em nosso ordenamento, pois empreendedores viram no condomínio de casas térreas ou assobradadas uma maneira de burlar a regra imposta pelo artigo 4º, II, da Lei nº 6.766/79, que veda o parcelamento de solo em áreas inferiores a 125m². É disso que trataremos neste estudo.
2) O condomínio edilício 1) Introdução
O empreendedor ao pretender se aventurar no ramo imobiliário tem a sua disposição um vasto portfólio. Dependendo do capital disponível para investimento, pode lançar uma incorporação imobiliária de um prédio de apartamentos ou de casas (artigo 28 da Lei nº 4.591/64). Pode ainda parcelar uma gleba em lotes com ou sem a criação de sistema viário e equipamentos públicos e de lazer, valendo-se assim, das regras da lei do parcelamento do solo urbano (Lei nº 6.766/79). Hodiernamente, pode até mesmo lançar uma incorporação imobiliária de terrenos sem qualquer edificação, como é o caso do condomínio de lotes (artigo 1.358-A do Código Civil). 16 ARISP JUS
De acordo com o artigo 1.331 do Código Civil, no condomínio edilício ou condomínio em plano horizontal, pode haver áreas privativas de uso exclusivo, tais como apartamentos, escritórios, lojas e salas, conjugadas com áreas de uso de comum, de livre acesso e uso de toda a massa condominial, a exemplo do hall de entrada, áreas de circulação, playgrounds, elevadores, áreas de lazer, ruas internas, vagas de garagem (quando não definidas como unidades autônomas de uso exclusivo). PEREIRA tece severas críticas ao termo pode haver, pois denota uma ideia de facultatividade, e contrario sensu leva a crer que pode não haver áreas comuns. Para este civilista, isto seria a negação do edifício coletivo, pois de acordo com seu entendimento, o condomínio horizontal caracteriza-se pela presença de partes
comuns conjugadas com a propriedade exclusiva incidente na unidade autônoma.
Para este autor, a instituição de condomínio é a única modalidade de criação de unidades autônomas, quando o terreno não comporta divisão física por imposição legal (MEZZARI, Mário Pazutti. Condomínio e incorporação no registro de imóveis – 4. ed. rev., atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015).
Arremata o professor que a única interpretação possível ante o dispositivo legal (caput do artigo 1.331, CC), como forma de conciliá-lo com a noção de condomínio edilício, é a de que havendo partes comuns e partes (...), pois exclusivas, estaremos diante da figura do condomínio horizontal empreendedores (seja de um edifício ou um conjunto viram no de casas); por outro lado, existindo apenas partes exclusivas, não haverá condomínio de condomínio algum (PEREIRA, casas térreas ou Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações: 11. ed. rev., atual. e assobradadas uma ampl. segundo a legislação vigente – maneira de burlar Rio de Janeiro: Forense, 2014).
Bem a propósito, este é o momento oportuno para tratarmos do condomínio de casas térreas ou assobradadas previsto no artigo 8º, “a”, da Lei nº 4.591/64. Há quem enxergue neste dispositivo legal, a viabilidade da constituição de um condomínio horizontal sem áreas de uso comum, como é o caso do registrador Mezzari.
Contudo, basta ver que o a regra imposta SANTOS perfilha do mesmo dispositivo legal, ao dizer que em pelo artigo 4º, pensamento, defendendo a tese de relação às unidades autônomas será II, da Lei nº que no condomínio edilício devem discriminada a parte do terreno existir unidades de uso exclusivo ocupada pela edificação e também 6.766/79, que veda conjugadas com partes comuns, aquela eventualmente reservada o parcelamento não importando se há apenas uma como de utilização exclusiva dessas ou mais unidades em cada plano ou casas, a exemplo do jardim e quintal, de solo em áreas andar; se uma unidade ocupa dois exige ainda que se discrimine a inferiores a 125m². ou mais pavimentos (v.g. duplex), fração ideal do todo do terreno e de ou mesmo se as unidades de uso partes comuns, que corresponderá exclusivo estão ou não fisicamente a essas unidades, espancando interligadas, como é o caso do quaisquer dúvidas. condomínio de casas térreas ou assobradadas (SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Condomínios e Incorporações no O saudoso Gilberto Valente da Silva, com muita registro de imóveis: teoria e prática – São Paulo: Editora propriedade, se debruçou sobre o tema. Vejamos o Mirante, 2012). que disse o expert junto ao Boletim do IRIB em revista (agosto de 2002): Não podemos deixar de registrar as lições de MEZZARI, que ao tratar de casas geminadas, que em “A construção de duas ou mais casas num terreno geral são desprovidas de hall de entrada, corredores, ou não significa que possa o empreendimento ser qualquer outra parte edificada que seja destinada ao uso submetido ao regime condominial pela Lei nº comum, sustenta que a inexistência de áreas construídas 4.591/64. É regra que os proprietários em tais ditas de uso comum, não constitui óbice para que se condições, impedidos de alienar isoladamente cada tornem unidades autônomas num condomínio edilício. uma das casas, com sua base física, impedimento ARISP JUS 17
gerado pela lei municipal, pretendam que o Registro de Imóveis solucione o problema. Entretanto, não havendo área de uso comum das unidades autônomas, conforme expressamente obriga o art. 8º da Lei 4.591/64, não se pode cogitar do registro de instituição de condomínio. A existência de área de uso comum, efetivamente prevista no projeto, é o requisito básico para que se possa registrar o instrumento de instituição de condomínio, conforme expressamente consta do art. 8º da Lei nº 4.591/64”. É por essa razão que ousamos divergir do ilustre registrador imobiliário Mário Pazutti Mezzari, pois como veremos a seguir, sob o pretexto de instituir um pseudo condomínio de casas geminadas, diversos empreendedores buscam, na realidade, tangenciar a regra da fração mínima de parcelamento.
condomínio edilício: áreas de uso privativo conjugadas com áreas de uso comum, sob pena de desvirtuamento do instituto. Destarte, casas isoladas entre si, com numerações individuais e vagas privativas de garagem em número suficiente para cada unidade, são indícios bastantes que revelam um desmembramento de área abaixo de 125m² disfarçado de condomínio edilício. Em geral, terrenos de pequena dimensão comportariam desdobre em dois ou três lotes apenas, o que permitiria ao empreendedor erigir no máximo duas ou três casas, todavia, ao camuflar o desmembramento em suposto condomínio de casas, o empreendedor consegue edificar no terreno de cinco a seis casas, todas abaixo da fração mínima de parcelamento. Com isso, obtém maior lucro na venda das unidades, mas notoriamente frauda a lei do parcelamento.
3) Desmembramento disfarçado de condomínio A prática não é nova e vem sendo coibida pelo E. de casas geminadas. Tangenciamento à regra da Conselho Superior da Magistratura paulista. Confira-se fração mínima de parcelamento a ementa de três Acórdãos do E. CSM/SP:
A farsa ocorre da seguinte forma: é submetido a registro pedido de registro de instituição de condomínio de casas térreas ou assobradadas (em torno de 03 a 05 casas) em terrenos pequenos, com área superficial que não ultrapassa 400m², onde cada unidade autônoma possui área total que varia de 60m² a 90m². Estes pseudos condomínios apresentam as seguintes peculiaridades: i) numeração individualizada para cada unidade autônoma; ii) acesso direto de cada unidade para a via pública por meios de portões individuais; iii) as vagas de garagem (classificadas como de uso comum, mas em número compatível com o número de unidades, ou seja, uma vaga para cada casa) situam-se defronte de cada unidade, denotando uso exclusivo; iv) as casas são isoladas entre si por muros divisórios; v) hidrômetro e relógio de energia elétrica são individuais. Diante dos conceitos que se viu acima, não é difícil concluir em sede de qualificação registrária de que não estão presentes os elementos caracterizadores do 18 ARISP JUS
Condomínio Edilício – Dúvida julgada procedente – Registro de Instituição de Condomínio negado – Ausência de partes efetivamente comuns – Imóvel que edificadas duas casas geminadas, tendo cada qual acesso direto ao logradouro público e numeração própria – Condomínio não caracterizado – Recurso não provido – Apelação Cível nº 788-6/7 (2008), nº 1.266-6/2 (2010) e nº 990.10.169.412-3 (2010)
Diante da nota de recusa (no caso, nem se trata de nota de exigência, pois tecnicamente não há exigência alguma a ser cumprida), o empreendedor promove adaptações no local na tentativa de enquadrar tais casas geminadas como condomínio edilício. Em termos gerais, estas adaptações giram em torno da unificação da numeração junto à Prefeitura, demolição parcial dos muros divisórios entre as unidades e construção de um portão de acesso comum. Somos críticos a essas adaptações. A uma, porque
a própria realização de obras após a nota de recusa, demonstra que o interessado reconhece que no local não havia um condomínio de casas; a duas, porque a demolição dos muros divisórios com vistas a criar um corredor de circulação entre as unidades é apenas um disfarce, pois não configura esse corredor uma área de uso efetivamente comum e tampouco traz algum benefício ou utilidade às casas e, a três, porque ao analisar o projeto submetido a registro é fácil constatar que a intenção do empreendedor jamais foi de constituir um condomínio edilício, mas sim, de edificar casas geminadas individualizadas, com testada inferior a 5,00m e abaixo de 125m² de área superficial. Noutro Acórdão, o E. CSM/SP assentou o entendimento de que adaptações promovidas na obra não são suficientes para a caracterização do condomínio horizontal, se ausentes os seus requisitos. Destacamos um excerto da Apelação Cível nº 1066651-03.2014.8.26.0100 (2015): “Mesmo após as modificações levadas a efeito pelo interessado na tentativa de atender aos requisitos legais, continuam ausentes do projeto os elementos caracterizadores do condomínio edilício. A despeito da unificação da numeração do imóvel (n.° 799 da Rua Piatá - casas 01, 02 e 03), da demolição dos muros divisores e da construção de um portão de acesso comum, as casas continuam não possuindo verdadeira área de uso comum – sendo importante ressaltar, conforme bem observaram o i. Registrador e a douta Promotora de Justiça (fls. 160/161), que a churrasqueira localizada nos fundos do terreno já existia no projeto anterior – evidenciando a intenção de simulação de suposto condomínio, com o intuito de burlar a vedação de desdobro em lotes independentes ressalvada pela Prefeitura às fls. 77.”
Neste aresto, o relator, o então Des. e Corregedor Geral da Justiça, Elliot Akel, faz importante observação das consequências futuras caso admitido o registro de condomínio na forma pretendida pelo empreendedor: “Assim, na forma como pretendida, o registro possibilitaria eventual alienação de frações ideais
perfeitamente identificáveis do imóvel, o que é vedado pelo item 151, capítulo XX, tomo II, das Normas da Corregedoria Geral de Justiça” (a referência correta é o item 171).
Com efeito, determina o item 171, do Capítulo XX das Normas de Serviço: 171. É vedado o registro de alienação voluntária de
frações ideais com localização, numeração e metragem certas, ou a formação de condomínio voluntário, que implique fraude ou qualquer outra hipótese de descumprimento da legislação de parcelamento do solo urbano, de condomínios edilícios e do Estatuto da Terra. A vedação não se aplica a hipótese de sucessão causa mortis.
4) Desmembramento superveniente. Simples aprovação municipal que é insuficiente sem prévia lei autorizativa Diante da negativa de acesso à tábua predial, empreendedores buscam uma alternativa de maneira a viabilizar o registro do empreendimento e não deixálo na ilegalidade, posto que isto acarreta enormes prejuízos de ordem financeira. Uma delas é buscar o desdobro ou desmembramento do imóvel junto à municipalidade. Nem sempre isso é viável, pois se não houver lei específica preexistente admitindo o desdobre de áreas inferiores ao mínimo legal, a aprovação é inócua e não produz efeitos. É em razão de não haver lei específica preexistente que acabam por se utilizar do subterfúgio do desmembramento camuflado de condomínio edilício. Acerca do desdobre de áreas abaixo da fração mínima de parcelamento, a jurisprudência da E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo é tranquila em admiti-lo, desde que existente lei prévia à aprovação. Neste sentido, o decidido nos Processos CG nº 599/2006, nº 933/2006, nº 276/2007 e nº 97.225/2011. No mesmo norte, o Processo CG nº 2011/59352 ARISP JUS 19
(263/2011-E), onde se realçou que a mera aprovação municipal é inviável se não calcada em lei específica:
de matéria de Direito Urbanístico, de peculiar interesse municipal.
A falta da apresentação do título original e impugnação parcial das exigências do oficial resultam no não provimento do recurso – Lote – Desmembramento – Área inferior ao previsto no art. 4º, inc. II, da Lei nº 6.766/79 – Possibilidade desde que haja lei municipal específica – Ausência de legislação – Insuficiência da mera aprovação pela municipalidade – Recurso não provido.
Bem a propósito, a Constituição Federal, no seu artigo 30, inciso VIII, afirma textualmente que compete aos Municípios “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”.
Vejamos um trecho do decisum:
Logo, conclui-se que não basta a simples aprovação do desmembramento. É preciso lei que o autorize. Decerto, aludida lei deve ser vigente no momento desse ato administrativo.
“Ainda que assim não fosse, permaneceria a impossibilidade da averbação do desmembramento, pois, a disposição normativa relativamente à área e testada mínima de lotes (art. 4º, inc. II, da Lei n. 6.766/79), conforme nota constante do item 150, alínea “e”, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da justiça, somente pode ser mitigada na hipótese da existência de norma municipal específica. Nos autos não há notícia da existência de Lei Municipal estabelecendo área e testada mínima de lotes em montante inferior ao previsto na referida lei federal, não bastando a simples aprovação do desmembramento pela Prefeitura do Município de São Pedro (cf. fls. 15). Assim, igualmente, não seria possível a realização da averbação” (destaque nosso).
Logo, conclui-se que não basta a simples aprovação do desmembramento. É preciso lei que o autorize. Decerto, aludida lei deve ser vigente no momento desse ato administrativo. Cediço que o Município, como pessoa jurídica de direito público interno, tem autonomia para disciplinar o uso e ordenamento do solo do território, pois trata-se
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Neste contexto, convém lembrar que o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) atribui aos Municípios a prerrogativa de estabelecer política urbana com vistas a garantir a função social da cidade: Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: (...) VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: (...) c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura urbana.
Superada esta questão, surge outra relevante: no caso trazido a lume, admite-se o desmembramento lastreado em aprovação municipal fundada em lei posterior promulgada especialmente para tanto? De outra forma: admite-se parcelamento superveniente em decorrência de um projeto aprovado anteriormente como condomínio de casas camuflado? Melhor explicitando: o parcelamento superveniente tem lastro em lei específica editada e promulgada após a nota de devolução do Registro de Imóveis, com o intuito de permitir o desmembramento naquele caso concreto. Referida lei não altera, não flexibiliza, tampouco restringe a FMP (fração mínima de parcelamento) no Município, de modo a autorizar futuros parcelamentos,
mas apenas cria uma exceção, uma espécie de lei anistiadora, com vistas a chancelar/referendar uma aprovação anterior feita sem amparo legal, contornando assim a recusa do registro imobiliário. Entendemos de que a solução oferecida é inadequada e configura desvio de finalidade, como veremos a seguir.
4.1) O desvio de finalidade O ato administrativo praticado por agente público que traz vantagens para si ou para terceiros constitui desvio de finalidade. Sobre este vício decorrente do princípio da supremacia do interesse público, averba DI PIETRO: Se a lei dá à Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual. Em consequência, se, ao usar de tais poderes, a autoridade administrativa objetiva prejudicar um inimigo político, beneficiar um amigo, conseguir vantagens pessoais para si ou para terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre o interesse público e, em consequência, estará se desviando da finalidade pública prevista na lei. Daí o vício do desvio de poder ou desvio de finalidade, que torna o ato ilegal. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 28.ed – São Paulo: Atlas, 2015, p. 100).
E prossegue a ilustre professora Maria Sylvia:
A grande dificuldade com relação ao desvio de poder é a sua comprovação, pois o agente não declara a sua verdadeira intenção; ele procura ocultá-la para produzir a enganosa impressão de que o ato é legal. Por isso mesmo, o desvio de poder comprova-se por meio de indícios; são os “sintomas” a que se refere Cretella Junior (1977: 209-210). a) a motivação insuficiente, b) a motivação contraditória, c) a irracionalidade do procedimento, acompanhada da edição do ato, d) a contradição do ato com as resultantes dos atos, e) a camuflagem dos fatos,
f) a inadequação entre os motivos e os efeitos, g) o excesso de motivação. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 28.ed – São Paulo: Atlas, 2015, p. 289)
Extrai-se dos ensinamentos acima, de que a aprovação de desmembramento camuflado de condomínio de casas, seguida de lei permitindo a conversão em desmembramento, configura verdadeiro desvio de finalidade, diante da irracionalidade do procedimento, da contradição do ato e da camuflagem dos fatos.
4.2) Controle de legalidade na via administrativa. Inviabilidade Cediço que não compete ao registrador imobiliário exercer o controle de legalidade de leis ou atos administrativos, diante da presunção de legitimidade que emana dos atos do Poder Público. No Processo CG nº 933/2006 restou decidido: (...) o controle de legalidade a ser realizado nesta esfera administrativa, como referido, é de natureza meramente formal, com base nas aprovações emitidas pelos órgãos competentes, reservado, diversamente, o controle de legalidade material, ainda aqui, à esfera jurisdicional. Sobre a presunção de legitimidade dos atos administrativos, ensina DI PIETRO que esta “diz respeito à conformidade do ato com a lei; em decorrência desse atributo, presumem-se, até prova em contrário, que os atos administrativos foram emitidos com observância da lei” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 28.ed – São Paulo: Atlas, 2015, p. 240/241).
Destarte, o caso objeto deste estudo constitui matéria sui generis e não foi objeto de apreciação pela E. CGJ/ SP até o momento. Acreditamos que o entendimento sedimentado junto ao Processo CG 933/2006 (e tantos outros), que inadmite o controle de legalidade dos atos ARISP JUS 21
administrativos é inaplicável para o caso em análise, pois ali tratou-se de parcelamento de imóvel abaixo da FMP escorado em lei vigente no momento da aprovação. Aqui a situação é diversa. Trata-se de parcelamento de imóvel específico, aprovado previamente como condomínio de casas, mas que por não se tratar propriamente de condomínio edilício, o Poder Público admite o retalhamento, escorado em lei editada especialmente para tanto, privilegiando um seleto grupo (empreendedores que visam apenas o lucro) em detrimento da coletividade (os munícipes). Exsurge um agravante, se o Poder Público, erroneamente, edita e promulga lei codificada como condomínio forçado, espécie condominial irregistrável nos termos da Lei nº 6.015/73.
4.3) A figura do condomínio de paredes. Inviabilidade de sua inscrição no registro imobiliário O Poder Público age de forma irracional, contraditória e inadequada, ao editar e promulgar lei posterior, que traz vantagens e benefícios tão somente ao empreendedor infrator, codificada como condomínio de paredes. Destarte, condomínio de paredes (condomínio necessário) é regulado pelo Código Civil nos artigos 1.327 a 1.330 e decorre do direito de vizinhança. Esta modalidade de condomínio não conta com previsão de ingresso no fólio real por força do princípio da taxatividade (o condomínio de paredes não se encontra no rol dos atos ou títulos inscritíveis do artigo 167, incisos I e II, da LRP). Prescreve o artigo 167, inciso I, nº 17., da Lei nº 6.015/73: Art.167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: I – o registro: (...) 22 ARISP JUS
17) das incorporações, instituições e convenções de condomínio;
Como se nota, o dispositivo supramencionado versa sobre o condomínio edilício da Lei nº 4.591/64 e artigos 1.331 a 1.358 do Código Civil e não do condomínio necessário, decorrente do direito de vizinhança. Ademais, o rol do artigo 167, I, da Lei nº 6.015/73 é numerus clausus, admitindo-se apenas a inscrição de atos ou títulos expressamente previstos em lei, que não é o caso do condomínio de paredes. Neste sentido, a remansosa jurisprudência do E. Conselho Superior da Magistratura paulista. Citamos aqui, dentre muitos, o seguinte Acórdão: Registro de imóveis – Dúvida – Promessa de permuta – Impossibilidade de registro, à míngua de previsão no rol do art. 167, I, da lei 6015/73, que é taxativo – Direito de superfície veiculado em contrato particular – Impossibilidade de registro, pela necessidade da forma pública, nos moldes dos artigos 1369 do Código Civil e 21 da Lei 10.257/01 – Dúvida procedente – Recurso improvido. Apelação nº 1099413-38.2015.8.26.0100 (DJe de 07/11/2016).
Ainda sobre o condomínio de paredes, o escólio de LOUREIRO: Disciplina o condomínio necessário, ou forçado, que decorre diretamente da lei, independentemente da vontade das partes. Não se aplicam aqui as regras acima estudadas, relativas ao condomínio voluntário, uma vez que não se cogita de divisão ou extinção da coisa comum. (LOUREIRO, Francisco Eduardo. In: Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Cezar Peluso (coord.): 2.ed. rev. e atual. – Barueri, SP: Manole, 2008, p.1294).
Acerca da inviabilidade da inscrição predial do condomínio forçado, averba o i. Desembargador: Como acima dito, há direito do proprietário confinante à alienação compulsória do muro ou parede divisória
construídos por seu vizinho. A aquisição da metade ideal do muro, porém, é derivada, embora tenha origem na lei, de modo que o título para a transmissão da propriedade é o pagamento do respectivo preço. Não se inaugura matrícula para a aquisição da área onde se assenta o muro divisório, podendo, apenas, ser averbada a acessão. (LOUREIRO, Francisco Eduardo. In: Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Cezar Peluso (coord.): 2.ed. rev. e atual. – Barueri, SP: Manole, 2008, p.1296)
De mais a mais, no Acórdão nº 788-6/7 da Comarca de Cubatão, o ilustre relator e então Corregedor Geral da Justiça, Des. Ruy Camilo faz distinção entre condomínio edilício e condomínio necessário, afastando a pretensão do recorrente ao registro. Destacamos importante trecho do aresto: (...) Trata-se, desse modo, de desdobro de lote com formação do condomínio necessário a que se referem os artigos 1.327 a 1.330 do Código Civil de 2002, hipótese que não caracteriza o condomínio edilício conforme previsto no artigo 5º da Lei nº 4.591/64, que tem o seguinte teor: o condomínio por meação de parede, soalhos, e tetos de unidades isoladas, regular-se-á pelo disposto no Código Civil, no que lhe for aplicável. Para evitar novas indagações, é bom lembrar que a Lei nº 4.591/64 foi editada na vigência do Código Civil de 1916 que, por sua vez, nada dispunha sobre o condomínio edilício, razão pela qual as espécies de condomínio a que se refere em seu artigo 5º são o voluntário e o necessário, que não se confundem com o edilício. Apelação Cível nº 788-6/7 – Localidade: Cubatão (27/05/2008) Nessa toada, o E. CSM/SP não admite o registro do condomínio de paredes (condomínio necessário). E como esta espécie condominial não se confunde com o condomínio edilício, inviável o seu acesso à tábua predial.
4.4) Convalidação do ato administrativo decorrente do desvio de finalidade.Impossibilidade
Convém questionar se o ato administrativo de aprovação do projeto originário de condomínio de casas, que mascara um desmembramento abaixo da FMP, poderia ser convalidado pelo ato administrativo a posteriori que o autorizasse, diante da nota de recusa do registro imobiliário. De acordo com DI PIETRO, “a convalidação ou saneamento é o ato administrativo pelo qual é suprido o vício existente em um ato ilegal, com efeitos retroativos à data em que este foi praticado”. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 28.ed – São Paulo: Atlas, 2015, p. 292). Contudo, a prevalecer a tese aqui sustentada, no sentido de que a aprovação do desmembramento superveniente constitui desvio de finalidade por parte do agente público, o ato em si não produz efeito algum, pois é inviável a sua convalidação. Mais uma vez nos ensina a eminente professora: “Quanto ao motivo e à finalidade, nunca é possível a convalidação. (...) Em relação à finalidade, se o ato foi praticado contra o interesse público ou com finalidade diversa da que decorre da lei, também não é possível a sua correção; não se pode corrigir um resultado que estava na intenção do agente que praticou o ato”. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 28.ed – São Paulo: Atlas, 2015, p. 294).
É nesse contexto de manifesta ilegalidade que passamos a abordar os limites da qualificação exercida pelo registrador imobiliário.
5) Limites da qualificação registrária O Oficial de Registro de Imóveis é profissional do direito dotado de fé pública. Em seu mister o registrador tem como missão precípua a garantia da publicidade, ARISP JUS 23
autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos (art. 1º da Lei nº 6.015/73 e arts. 1º e 3º da Lei nº 8.935/94). A qualificação dos títulos e documentos submetidos a registro exige largo conhecimento jurídico e deve ser exercida de forma imparcial. Segundo o escólio do eminente Des. Ricardo Dip, “a qualificação registral consiste num juízo de controle jurídico acerca da inscrição de um título singular. É uma atividade dirigida, diretamente, à consecução de interesse do bem comum” (DIP, Ricardo. Registro de Imóveis (princípios). Descalvado, SP: Editora PrimVs, 2017, p. 52). A importância da qualificação registrária não passou despercebida pelos órgãos superiores. Destacamos aqui importante trecho do Acórdão nº 72.365-0/7 do E. CSM/SP: “A qualificação registrária não é um simples processo mecânico, chancelador dos atos já praticados, mas parte, isso sim, de uma análise lógica, voltada para a perquirição da compatibilidade entre os assentamentos registrários e os títulos causais (judiciais e extrajudiciais), sempre à luz das normas cogentes em vigor”.
O registrador imobiliário SANTOS realça a importância desta prerrogativa como mecanismo voltado a coibir fraudes, em estrita observância ao princípio da legalidade: “Reafirmo que é aptidão do Registro Imobiliário ser um instrumento de segurança e não deve macular o seu prestígio tornando-se um outdoor de fantasias e fraudes, mediante o abrigo em seus livros ou arquivos de títulos ou documentos que instrumentem ilegalidades ou arbitrariedades; assim como não deve permitir que se defraude a confiança haurida, metas que são atingidas através da depuração jurídica dos atos com vocação registral via minuciosa qualificação, a fim de que somente acessem o sistema aqueles que se mostrarem idôneos”. (SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Princípio da Legalidade e Registro de Imóveis. Palestra proferida 24 ARISP JUS
em 13.05.2006, no I Seminário de Direito Notarial e Registral, em prol das unidades notariais e registrais do Vale do Ribeira, sob a organização do IRIB e do CNB-SP. Projeto educartório).
SANTOS aponta ainda quais são os principais aspectos da qualificação: i) ela tem uma função criativa; ii) é unipessoal; iii) é uma atuação com responsabilidade pessoal; iv) é uma função inescusável; v) é uma função independente; vi) é indelegável; vii) deve ostentar o signo da integralidade. Ao defender a atuação independente do registrador de imóveis em sede de qualificação, DIP destaca a importância desta atividade técnico-jurídica: “Demasiado seria pensar fosse a qualificação registral um juízo arbitrário, despótico, que se dirigisse à segurança jurídica por meio de uma ilimitada insegurança quanto aos juízos hipotecários. Excessivo seria cogitar que a independência qualificadora do registrador pusesse em risco sua missão de vigilância da legalidade e de custódia dos bens imobiliários que lhe são confiados”. (DIP, Ricardo. Registro de Imóveis (princípios). Descalvado, SP: Editora PrimVs, 2017, p. 53).
Ademais, desde o Provimento CG nº 37/2013, as Normas de Serviço da E. CGJ/SP reconhecem textualmente a independência jurídica do registrador imobiliário e a possibilidade de interpretação de leis ou atos normativos, de acordo a sua prudência (item 9. do Cap. XX das NSCGJ, Tomo II): 9. Os oficiais de Registro de Imóveis gozam de independência jurídica no exercício de suas funções e exercem essa prerrogativa quando interpretam disposição legal ou normativa. A responsabilização pelos danos causados a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, independe da responsabilização administrativa. Somente será considerada falta disciplinar, a ser punida na forma da lei, a conduta dolosa, ou praticada com imprudência, negligência ou imperícia.
Dito isto, chegamos ao ponto nuclear deste estudo. Estaria o registrador imobiliário exercendo controle de legalidade ou alegação de inconstitucionalidade ao impedir o acesso ao sistema registral de desmembramento escorado em lei municipal que trata apenas da figura do condomínio de paredes? Para responder a esse importante questionamento, é preciso que se responda a outro: caso o proprietário de imóvel contíguo de mesma metragem superficial (em torno de 400m²), resolva parcelar seu imóvel em cinco partes, com 80m² cada, ele obteria a simples aprovação junto à municipalidade? Parece-nos que a resposta é negativa, diante da FMP de 125m², prevista na Lei nº 6.766/79, salvo se o Município tiver lei específica que cuide da matéria. Ora, conclui-se assim que haveria um tratamento distinto por parte do Poder Público para uma mesma pretensão, qual seja, o parcelamento de áreas abaixo da FMP. Para aquele empreendedor, que não observou a lei de parcelamento, que deliberadamente mascarou um desmembramento como se fosse um condomínio de casas geminadas e teve sua pretensão rechaçada pelo Oficial de Registro de Imóveis, o Município lhe facultou o desdobre em cinco partes porque editou lei específica em seu benefício. De outro bordo, o titular do imóvel contíguo, que objetivasse a aprovação de um parcelamento em cinco novas unidades, como seu vizinho, teria o seu pedido desacolhido, pois a ele se aplicaria a lei geral. Logo, patente o desvio de finalidade, que recomenda a desqualificação registral, pois aqui o Oficial de Registro de Imóveis não age como dono da verdade, um ditador, impondo sua vontade e autoridade acima das leis e da justiça, mas atua como um agente de pacificação social, guardião dos princípios da legalidade e segurança jurídica, evitando que aceda ao sistema registral, títulos
ou documentos que ostentem a marca da fraude. É dever do registrador imobiliário, como delegatário de uma função pública, coibir fraudes. Neste sentido, trazemos aqui interessante julgado da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital paulista (Processo nº 1118586-14.2016.8.26.0100 – DJe de 06.07.2017): “É certo que não cabe ao registrador analisar aspectos intrínsecos relacionados ao título apresentado, contudo, em consonância com os princípios da veracidade, legalidade e segurança jurídica, que norteiam os autos registrários, não poderá o Oficial permitir o ingresso no fólio real de ato que padece de nulidade”.
Do mesmo entendimento, o E. CSM/SP junto ao Acórdão nº 1005161-72.2017.8.26.0100 – DJe de 13.12.2017: Registro de Imóveis – Recusa de ingresso de título – Resignação parcial – Dúvida prejudicada – Recurso não conhecido – Análise das exigências a fim de orientar futura prenotação – Matrícula – Indícios de fraude em inscrição anterior – Exigências formuladas que visam a dar segurança aos novos dados a serem inscritos no fólio real – Dever do registrador de agir de modo a evitar fraudes. Embora a recusa de acesso ao fólio real seja uma medida dura, pois traz transtornos e prejuízos financeiros ao empreendedor, ela é bastante eficaz, pois, nesse caso específico, caso fosse acolhida a pretensão do interessado no parcelamento do solo abaixo da FMP, novos e reiterados desmembramentos camuflados de condomínio de casas geminadas continuariam a ser aprovados. Isto porque bastaria uma nota de devolução do registro imobiliário, para que o empreendedor obtivesse uma lei que o favorecesse, burlando a lei de regência, num ciclo vicioso que deve ser combatido.
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Bem a verdade, o desdobre superveniente como visto aqui ao longo deste estudo, configura apenas uma variação do condomínio disfarçado, pois ambos visam burlar a regra da FMP contida na Lei nº 6.766/79.
5.1) Diligências no curso da qualificação.Viabilidade É preciso registrar ainda que não há nada de irregular na conduta do Oficial que no curso da qualificação realiza diligências e vistorias no local do imóvel, para se subsidiar de elementos a fim de formar sua convicção, sob o argumento de que tal comportamento desborda de sua função. Ao revés. Hodiernamente a qualificação registrária não se resume apenas a análise formal de papéis e documentos que lhe são submetidos rotineiramente. A atuação do Oficial é mais abrangente, pois a complexidade das relações jurídicas impõe que o registrador atue de forma dinâmica, sem que isso se traduza num ativismo registral. Desta feita, basta ver que nas retificações de área o Oficial pode se dirigir ao local, a fim de se certificar da situação do imóvel retificando e dos confrontantes. Neste sentido, destacamos trecho do item 138.15. do Cap. XX das NSCGJ/SP, que regulamenta o disposto no §12 do artigo 213 da Lei nº 6.015/73: 138.15. Sendo necessário para a retificação, o Oficial de Registro de Imóveis realizará diligências e vistorias externas...
Também na usucapião extrajudicial encontramos a possibilidade do Oficial proceder a diligências ao local do imóvel usucapiendo, para dirimir eventuais dúvidas e formar um juízo de valor. Confira-se o § 5º do artigo 216-A da LRP: § 5º. Para a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis. 26 ARISP JUS
Nesse diapasão, não vislumbramos motivos que impeçam o Oficial de realizar diligências ao local do imóvel onde se encontram edificadas as casas geminadas, com o objetivo de averiguar in loco a perpetração da fraude. Por derradeiro, embora não seja objeto deste estudo, calha dizer ainda que não cabe a regularização do parcelamento irregular por meio da instituição do condomínio urbano simples, prevista nos artigos 61 a 63 da Lei nº 13.465/17. Isto porque esta nova modalidade de condomínio edilício, voltadas às situações de menor complexidade, não pode ser utilizada como ferramenta para acobertar fraudes. O condomínio urbano simples tem por objetivo promover um acerto no uso do espaço onde se assenta mais de uma edificação, ainda que haja acesso autônomo para a via pública. Ensina Carlos Eduardo Elias de Oliveira, advogado e consultor jurídico do Senado Federal: “A figura do condomínio urbano simples merece aplausos, porque é sensível a uma realidade bastante comum de terrenos em que, por exemplo, os pais constroem duas casas “nos fundos” para recepcionar seus filhos. Nesses casos, os pais poderiam transformar a propriedade unitária em um condomínio urbano simples, abrindo matrícula para cada uma das unidades correspondentes às construções”. (OLIVEIRA, Carlos Eduardo de. Textos para Discussão nº 239: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal)
6) Conclusões O desmembramento de imóvel abaixo da FMP disfarçado de condomínio de casas geminadas configura fraude à lei do parcelamento do solo urbano. Essa prática vem sendo reiteradamente rechaçada pelo E. CSM/SP.
Por outro lado, diante da recusa no registro de falso condomínio de casas, o Município edita e promulga lei específica (codificada como condomínio de paredes) e consequentemente, aprova o desmembramento. Essa aprovação não surte efeito algum perante o registro imobiliário, dado que não se mostra adequada a aprovação de desdobre fundado em lei que trata apenas do condomínio forçado. O agente público que atua desta forma comete desvio de finalidade. A simples aprovação municipal sem lei específica que autorize o desmembramento de áreas abaixo da FMP é insuficiente, conforme precedentes da E. CGJ/ SP. Já o condomínio de paredes, não conta com previsão de ingresso no fólio real.
A recusa na inscrição do título não significa que o registrador esteja exercendo um controle de legalidade na esfera administrativa. Ao contrário. A qualificação registrária exerce importante papel no combate a este tipo de fraude, pois numa concepção moderna, a atuação do registrador imobiliário desborda da simples análise formal de títulos e documentos, sendo-lhe facultado, inclusive, realizar diligências ao local do imóvel. Por fim, na nobre tarefa de guardião do direito de propriedade, o registrador não está acima da lei. Atua nos exatos limites dela, como um vigilante da função social da cidade e da propriedade, fazendo jus à confiança que lhe fora depositada pelo Estado, por meio da delegação do serviço registral.
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OBSERVAÇÕES SOBRE AS INSCRIÇÕES RELATIVAS ÀS ESTRADAS DE FERRO DEPOIS DA LEI Nº 13.465/2017 Por Josué Modesto Passos JUIZ DE DIREITO
A atual redação do art. 171 – isto é, aquela dada pelo art. 56 da Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017 – resolveuse pela segunda alternativa: por conseguinte, em via de regra (saliente-se, porque há exceções importantes!) as inscrições lato sensu concernentes a vias férreas têm de ser feitas segundo o disposto na LRP/1973, art. 169, caput, 2ª parte, ou seja, pelo ofício de registro de imóveis em cuja circunscrição se encontre o imóvel.
2) Evolução histórica do problema O Código Civil de 1916 (CC/1916), arts. 831 e 861, determinara que as inscrições lato sensu fossem feitas “no registro do lugar do imóvel”, salvo o caso da hipoteca das estradas de ferro (CC/1916, arts. 810, V, e 852-855), hipótese em que a atribuição ratione loci era do ofício de registro do “município [rectius: na circunscrição] da estação inicial da respectiva linha” (CC/1916, art. 852). O alcance do CC/1916, art. 852, foi expandido pela LRP/1939, art. 180, a qual determinou, genericamente, que todos “os atos relativos a vias férreas” fossem feitos “no cartório correspondente à estação inicial da respectiva linha”.
1) Generalidades Ao disciplinar as atribuições ratione loci dos ofícios de registro de imóveis, a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (LRP/1973) teve também de ocupar-se do problema das inscrições lato sensu concernentes a vias férreas. Esse problema existe porque, comumente, as linhas férreas passam por diversas circunscrições imobiliárias, e então fica por saber se a fixação da atribuição ratione loci tem de atender mais ao todo da ferrovia (caso em que se pode conceber a concentração das inscrições num único ofício de registro) ou à multiplicidade de imóveis atingidos (hipótese na qual convém adotar o critério geral que concede a atribuição ao ofício da situação de cada um desses bens). 28 ARISP JUS
Essa expansão do campo de incidência do CC/1916, art. 852, foi depois confirmada pelo Dec.-lei nº 3.109/1941, art. 1º, caput, que esclareceu que a regra do CC/1916, art. 852 era aplicável não só à hipoteca, mas também à transmissão da propriedade sobre a estrada de ferro. A LRP/1973 manteve a solução dada pelo CC/1916 e pela LRP/1939, ao estabelecer, na redação original do art. 171, que “os atos relativos a vias férreas” fossem “registrados no cartório correspondente à estação inicial da respectiva linha”. Entretanto, ao menos no Estado de São Paulo a redação do art. 171 nunca foi aplicada a ferro e a fogo,1 porque a jurisprudência administrativa veio 1 FIORANELLI, Matrícula, p. 310; SANTOS, Registro para a construção de linhas férreas, p. 42.
entendendo que “a transmissão e a hipoteca do todo [da via férrea] hão de ser registradas no cartório da estação inicial, como determinam o art. 1º do Decreto-lei nº 3.109/41, o art. 852 do Código Civil e o art. 171 da Lei nº 6.015/73. Se, no entanto, os atos tiverem por objeto partes que já compõem, ou irão compor o complexo, atender-se-á à regra geral. Assim, se tratar de bens imóveis por natureza, sua transmissão será registrada na comarca da situação e não alhures” (CSMSP, Apel. Cív. 2.657-0, j. 22.5.1984, DJ 18.6.1984).2 O CC/2002, art. 1.502, tornou a afirmar que “as hipotecas sobre as estradas de ferro serão registradas no município da estação inicial da respectiva linha”.3 Logo, a “confusão que a Lei Nº 6.016/73 lançou nos registros relativos às vias férreas (art. 171) foi desfeita no Código Civil de 2002. Voltaram as regras do Código Civil de 1916, que não poderiam ter sido modificadas. Somente as hipotecas que gravam linhas férreas são registradas na estação inicial da linha. Era absurda a interpretação que levava para a estação inicial todo e qualquer ato, como a matrícula do espaço de terreno destinado à passagem da linha, ou do imóvel em que construída a estação.”4 Ou seja: desde a vigência do CC/2002, a interpretação sistemática já indicava, como regra geral para as inscrições lato sensu concernentes a imóveis de vias férreas, que a atribuição ratione loci era do ofício de registro em cuja circunscrição se encontrava o relativo imóvel (LRP/1973, art. 169, caput, 2ª parte, c. c. CC/2002, art. 1.502, a contrario sensu), ressalvados os casos da transmissão da propriedade de linha, ou linhas (CC/2002, art. 1.502, c. c. Dec.-lei nº 3.109/1941, art. 2 No mesmo sentido: CSMSP, Apel. Cív. 5.047-0, j. 28.2.1986, DJ 11.6.1986, e Apel. Cív. 8.202-0/0, j. 4.4.1988, DJ 3.5.1988. 3 A redação do CC/2002, art. 1.502 está equivocada quando faz referência a “município”, que não é sinônimo de circunscrição imobiliária. O art. 1.502, em boa técnica, tem de ser lido como se dissesse: “A hipoteca sobre linha ou linhas de estrada de ferro será registrada (stricto sensu) no ofício de registro de imóveis em cuja circunscrição estiver a estação inicial da linha dessa estrada de ferro”. 4 ORLANDI, O Registro e o novo Código, p. 132
1º, caput), da hipoteca de linha, ou linhas (CC/2002, art. 1.502), e da alienação fiduciária em garantia de linha, ou de linhas (CC/2002, art. 1.502, c. c. Dec.-lei nº 3.109/1941, art. 1º, caput, e Lei 9.514/1997, art. 23, caput).5 Confirmando a interpretação que a doutrina e a jurisprudência administrativas já davam ao direito vigente, a Lei Nº 13.465/2017, art. 56, alterou a redação da LRP/1973, art. 171, para deixar explícito que, por via de regra, as inscrições lato sensu concernentes a imóveis de vias férreas realmente têm de ser feitas nos ofícios de registro onde estiverem situados os bens a que digam respeito (LRP/1973, art. 169, caput, 2ª parte). A nova redação, entretanto, a nosso ver, permite manter as exceções que já havia para transmissão da propriedade, para a hipoteca e para a alienação fiduciária de linha ou de linhas, casos para os quais a atribuição ratione loci é do ofício de registro cuja circunscrição estiver a estação inicial.
3) Campo de aplicação da atual redação do art. 171 Portanto, a atual redação da LRP/1973, art. 171, é aplicável, em geral, a todas as inscrições lato sensu (= matrículas, registros stricto sensu e averbações) concernentes aos imóveis que componham ou se destinem à composição das vias férreas. Quando se trata, porém, de inscrição lato sensu relativa (a) à transmissão da propriedade, (b) à hipoteca ou (c) à alienação fiduciária em garantia de uma linha, ou de algumas linhas, ou de todas as linhas de ferrovia, não incide a LRP/1973, art. 171, mas sim o CC/2002, art. 1.502 c. c. o Dec.-lei nº 3.109/1941, art. 1º, caput (para 5 Em sentido contrário, entendendo que o CC/2002, art. 1.502, não revogou a LRP/1973, art. 171, na sua redação original: CENEVIVA, Lei dos Registros, p. 450, n. 428. O próprio CENEVIVA, contudo, assinala que convém restringir o alcance dado ao art. 171, na dicção original, ao afirmar que “são apenas os imóveis que compõem a linha que se sujeitam à regra do artigo, e não os demais, de propriedade da empresa ferroviária” (Lei dos Registros, p. 450). ARISP JUS 29
a transmissão da propriedade), o CC/2002, art. 1.502 (para a hipoteca) e o Dec.-lei nº 3.109/1941, art. 1º, caput, c. c. o CC/2002, art. 1.502 e a Lei Nº 9.514/1997, art. 23, caput (para a alienação fiduciária em garantia). Todas essas regras, quando incidem, são cogentes.6
4) Via férrea A via férrea (ferrovia, estrada de ferro, ou caminho de ferro) é uma pluralidade de bens singulares (grosso modo, o leito, as dependências e o material, ou, por outras palavras, os imóveis, as construções e os equipamentos), pertinentes a uma mesma pessoa (usualmente, uma pessoa jurídica, pública ou privada), com destinação unitária (o transporte sobre trilhos de coisas e pessoas). Em sentido jurídico, portanto, a via férrea é uma universalidade (CC/2002, art. 90, caput), e, como tal, pode ser objeto de relação jurídica (CC/2002, art. 90, par. único). Isso permite que, no plano do registro, essa universalidade – seja na totalidade das linhas de tráfego, seja levando em conta uma só linha, ou apenas algumas delas – seja equiparada a um imóvel, solução que a lei realmente adota quando se trata da transmissão da propriedade, da hipoteca e da alienação fiduciária em garantia de linha, ou linhas. As vias férreas podem ser “construídas para o serviço e o interesse de uma indústria particular” ou destinar-se “ao interesse público”.7 No conceito de via férrea empregado pelo art. 171 também “se incluem as ferrovias urbanas ou metrôs”. 8 Do ponto de vista do direito registral imobiliário, o que mais interessa é saber se as vias férreas são um bem independente, “destinação” que “resulta da sua
6 PONTES, Registro, p. 57. 7 SERPA LOPES, Tratado II, p. 239. 8 SERPA LOPES, Tratado II, p. 241; FIORANELLI, Matrícula, p. 309. 30 ARISP JUS
função econômica e da relação entre elas e o solo”.9 Se a estrada de ferro é um bem independente, distinto (ou seja, se não é simples parte integrante), são permitidos, sobre ela, a propriedade e a hipoteca, destacadamente (CC/2002, arts. 90, par. único, 1.473, IV, e 1.502-1.505). Contudo, se a estrada de ferro é parte integrante ou pertença, somente em conjunto com o solo ela pode ser alienada, hipotecada (CC/2002, art. 1.473, I)10 ou dada em alienação fiduciária em garantia (Lei Nº 9.514/1997, art. 22, § 1º, verbis “propriedade plena”). A estação inicial da linha é fixada pelo ponto de partida da linha tronco e dos ramais, ou mesmo por lei (e. g., anexo I da Lei 11.772/2009),11 e não se confunde com a circunscrição em que esteja a sede ou a administração da companhia ferroviária.12 “[T]endo a companhia ferroviária mais de uma linha, o registro do ato, que se referir a todas elas ou a alguma delas, deverá ser promovido no cartório da estação inicial de cada uma”.13 A “competência do cartório da estação inicial da linha” não exclui a possibilidade de “averbação na margem dos registros anteriores, onde existirem, tão-só para encerrar a disponibilidade dos antigos proprietários, sem que isso opere a transferência do domínio” (CSMSP, Apel Cív. 255.415, j. 18.10.1976).14 Para efetuar os registros stricto sensu e as averbações no ofício da estação inicial da linha, será imprescindível abrir, aí, uma matrícula para o todo da linha, ou das linhas. Nessa matrícula, a especialidade objetiva (LRP/1973, art. 176, § 1º, II, 3) será atendida mencionando-se “a extensão da linha, a estação inicial, 9 PONTES DE MIRANDA, Tratado XX, p. 77, § 2.442. 10 PONTES DE MIRANDA, Tratado XX, p. 77, § 2.442, e p. 209, § 2.494. 11 SANTOS, Registro para a construção de linhas férreas, p. 43. 12 AFRÂNIO, Registro, p. 106. Caso clássico é o da saudosa Companhia Paulista de Estradas de Ferro, cuja estação inicial estava em Jundiaí (SP), mas tinha administração em São Paulo 13 PONTES, Registro, p. 57. 14 PONTES, Registro, p. 57
os ramais existentes”, com remissão “a uma relação, que ficará arquivada, dos demais bens que compõem o acervo, contendo referência aos respectivos registros e matrículas”.15
solução que já se adotava ao tempo da redação original da LRP/1973, art. 171 (CSMSP, Apel. Cív. 5.047-0, j. 28.2.1986, DJ 11.6.1986), e que agora também se impõe, e por maior força de razão.
5) Imóvel de via férrea
6) Atos relativos a vias férreas
Os “atos relativos a vias férreas” são as inscrições lato O imóvel que se destine à construção do leito sensu (= a matrícula, o registro stricto da estrada ou dos demais edifícios sensu e a averbação) relativas aos destinados (direta ou indiretamente) imóveis que componham ou venham aos serviços ferroviários é apenas uma parte dos bens singulares que Os ‘atos relativos a compor a ferrovia. compõem a universalidade via férrea. a vias férreas’ Não se incluem nos “atos relativos O imóvel está para a via férrea, a vias férreas” do art. 171 as inscrições portanto, como a parte está para o são as inscrições lato sensu ligadas à transmissão da todo. lato sensu (= propriedade, ou à hipoteca, ou à alienação fiduciária em garantia sobre a matrícula, Para os imóveis da via férrea, uma linha, ou linhas, consideradas considerados em sua singularidade, o registro em seu conjunto, como um todo: para vale a regra da LRP/1973, art. 171 (ou stricto sensu e tais inscrições lato sensu incidem, no seja, a do art. 169, caput, 2ª parte): que diz respeito à atribuição ratione cada um terá sua matrícula, a qual será a averbação) loci, o CC/2002, art. 1.502, o Dec.-lei aberta no ofício de registro em cuja relativas aos nº 3.109/1941, art. 1º, caput, e a Lei Nº circunscrição estiver situado. 9.514/1997, art. 23, caput. imóveis que
componham ou Não é necessário repetir nos É “providência recomendável [...], ofícios agora competentes (LRP/1973, no caso de registros de aquisições venham a compor art. 171, com a redação da Lei Nº ou transmissões parciais, [...] a a ferrovia. 13.465/2017) as inscrições lato sensu comunicação da prática dos referidos que, segundo a dicção original do atos, ao Oficial responsável pela art. 171, já tinham sido lavradas no matrícula do todo, para que averbe o 16 ofício de registro da estação inicial fato em sua matriz” - obviamente, no caso em que já exista a matrícula ou ainda exista a da linha: conquanto não se trate de desmembramento, transcrição para o todo, na conformidade das antigas a LRP/1973, arts. 27, caput, e 170 são aplicáveis pela redações da LRP/1939, art. 180, e da LRP/1973, art. 171. mesma identidade de razão. Desativada uma linha, as inscrições lato sensu têm lugar no ofício de registro da situação do imóvel, e não no ofício da circunscrição da estação inicial, 15 FIORANELLI, Matrícula, p. 310
16 FIORANELLI, Matrícula, p. 310.
7) Abertura de matrícula Para a abertura de matrícula de um imóvel de via férrea, singularmente considerado, exigem-se (a) a descrição do imóvel (mediante planta e memorial descritivo) e (b) a certidão atualizada da matrícula ou ARISP JUS 31
da transcrição anterior (i. e., na circunscrição de que se trata, e não a certidão da matrícula ou da transcrição no ofício da estação inicial da linha), mas (no afã de facilitar o procedimento) dispensa-se a apuração do remanescente (LRP/1973, art. 171, caput, com a redação dada pela Lei Nº 13.465/2017, art. 56). A abertura de matrícula tem de ser requerida pelo interessado, que terá de trazer a planta, o memorial descritivo e a certidão da matrícula ou da transcrição anterior. Dificilmente se dá a hipótese de abertura ex officio, pois não é de esperar que o imóvel já esteja descrito destacada e precisamente em transcrição, a ponto de permitir o ato por mera conveniência do serviço. Bibliografia CARVALHO, Afrânio. Registro de Imóveis. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982. CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. FIORANELLI, Ademar. Matrícula no Registro de Imóveis – Questões Práticas, in YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato et alii. Direito Notarial e Registral Avançado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 293-314. ORLANDI NETO, Narciso. O Registro de Imóveis e o novo Código Civil. In: SILVA, Ulysses da (coord.). O novo Código Civil e o Registro de Imóveis. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2004, p. 123-139. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial – direito das coisas – direitos reais de garantia – hipoteca – penhor – anticrese. 3. ed. reimp. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. t. XX. PONTES, Valmir. Registro de Imóveis. São Paulo: Saraiva, 1982. SANTOS, Francisco José Rezende dos. Registro de imóveis desapropriados para construção de linhas férreas. Boletim do IRIB em Revista, São Paulo, n. 354, p. 36-43, mar. 2016.
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SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado dos registros públicos. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960. vol. II.
ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O BLOQUEIO DA MATRÍCULA Por Paulo Cesar Batista dos Santos JUIZ DE DIREITO
Assim, entregue o título junto à serventia imobiliária, ele deverá ser imediatamente prenotado (protocolado) no Livro 1, e esse protocolo terá validade por 30 dias, conforme art. 188 da Lei de Registros Públicos. Caso haja bloqueio da matrícula, então, o prazo de prenotação fica prorrogado até decisão final, ou seja, até que seja decidido pela autoridade competente, seja judicial, seja administrativa, pela cessação dos vícios que levaram ao bloqueio, ou então até que haja o cancelamento da matrícula. A ordem de bloqueio será protocolada e seguirá a ordem de prioridade, ou seja, caso haja outro título já protocolado, aguardando qualificação, ele será qualificado e, se for o caso, registrado antes que ocorra o trancamento da matrícula, salvo se a ordem fizer expressa menção a ele.1 Neste sentido é a orientação contida no item 110.3 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça:
1) Introdução Com origem na jurisprudência, o bloqueio da matrícula foi levado à Lei de Registros Públicos pela Lei nº 10.931/94, que acrescentou os §§ 3º e 4º ao art. 214 da Lei nº 6.015/73. Nos termos literais da redação legal, o bloqueio da matrícula deverá ocorrer sempre que o juiz entender que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação, devendo ser determinado, a qualquer momento, ainda que sem oitiva das partes, o bloqueio da matrícula do imóvel. O § 4° do art. 214 acima referido determina que, uma vez bloqueada a matrícula, o Oficial não poderá mais nela praticar qualquer ato, salvo com autorização judicial, permitindo-se, todavia, aos interessados, a prenotação de seus títulos, que ficarão com o prazo prorrogado até a solução do bloqueio.
110.3. Quando se tratar de ordem genérica de indisponibilidade de determinado bem imóvel, sem indicação do título que a ordem pretende atingir, não serão sustados os registros dos títulos que já estejam tramitando, porque estes devem ter assegurado o seu direito de prioridade. Contudo, os títulos que forem posteriormente protocolados terão suas prenotações suspensas como previsto no item 110.2.9.
E também o art. 182 da Lei nº 6.015/73, que tem o seguinte teor: Art. 182 Todos os títulos tomarão, no Protocolo, o número de ordem que lhes competir em razão da seqüência rigorosa de sua apresentação.
1 Segundo NARCISO ORLANDI NETO: “(...) determina que, no confronto de direitos contraditórios submetidos simultaneamente à qualificação, os registros seguem a ordem de prenotação dos respectivos títulos” (Retificação do Registro de Imóveis, Ed. Oliveira Mendes-Livraria Del Rey Editora, 1997, pág. 62). ARISP JUS 33
O bloqueio traduz, assim, determinação judicial para que, a partir daquela ordem, nenhum outro ato seja realizado naquela matrícula. A ordem de bloqueio pode partir de uma autoridade em processo judicial contencioso, ou pode ser advinda do Juiz Corregedor Permanente em procedimento administrativo, mas nunca por decisão do próprio Oficial, muito embora ele possa perfeitamente se originar de um pedido seu, ou dos interessados. Aliás, recomenda-se que tal requerimento seja efetuado pelo Oficial toda vez que observados seus pressupostos, exercendo sua função de guardião dos registros sob sua responsabilidade. A ordem de bloqueio, ao contrário dos títulos judiciais, não sofre qualificação registral e deve ser cumprida, salvo no caso de absoluta impossibilidade, conforme já se decidido nos autos do procedimento CG n° n° 2013/174855 (79/2014-E): Registro de Imóveis – Decisão judicial de antecipação dos efeitos da tutela que determinou o bloqueio da matrícula – Comprovação do trânsito em julgado – Desnecessidade – Recurso Provido. O registrador recusou a averbação do bloqueio aos argumentos de que o título judicial também se submete à qualificação judicial e que inexiste prova do trânsito em julgado.É certo que, conforme antiga e pacífica jurisprudência desta Corregedoria Geral e do C. Conselho Superior da Magistratura, o título judicial é passível de qualificação. É preciso, no entanto, distinguir título judicial de ordem judicial, uma vez que o caminho registral a ser seguido é completamente diferente. As ordens judiciais diferenciam-se dos títulos judiciais. Todo título judicial resguarda, como antecedente necessário, uma declaração emitida por um órgão do EstadoJuiz e referente à presença de um título legitimário, de direito material, capaz de dar respaldo causal à mutação jurídico-patrimonial a ser operada pelo ato de registro. Em se tratando de uma ordem judicial, não há, semelhante correspondência. Cuida-se de um comando dirigido ao registrador e derivado da atividade jurisdicional, como resposta, 34 ARISP JUS
especialmente, a situações de urgência e que, dotadas de provisoriedade, demandam certa elasticidade na conformação da decisão judicial. Tais ordens ostentam uma aparência externa idêntica à de um título judicial, mas não ostentam conteúdo semelhante. Mais adiante, pontua que o exame qualificador do registrador é mais limitado, de sorte que só poderá recusar o cumprimento ao comando recepcionado quando restar caracterizada hipótese de absoluta impossibilidade. Cita, como exemplos, o caso em que se determina indisponibilidade de bens que não é titular ou no que há contradição intrínseca entre e o documento instrumentalizador da ordem não corresponde ao seu teor.
O bloqueio da matrícula, dessa forma, não é um fim em si mesmo. É uma providência cautelar, que serve para evitar atos de escrituração que possam gerar ainda mais prejuízos e, consequentemente, mais danos de difícil ou improvável reparação. A medida menos drástica (bloqueio) sempre deve ser adotada com preferência à medida mais drástica (cancelamento), desde que o bloqueio se apresente como necessária e suficiente para evitar um mal maior. O bloqueio pode ser levado a efeito como medida liminar, inclusive, ou seja, sem a oitiva das partes envolvidas, mas apenas quando a gravidade e o risco sejam tamanhos que imponham que os envolvidos sejam ouvidos somente após a medida. É possível se perguntar quanto tempo deve durar o bloqueio da matrícula, mas não existe termo certo para que a medida perdure. Aliás, não há prazo algum previsto em lei; contudo, o bloqueio deve ser medida temporária, ainda que no cotidiano dos registros imobiliários se tenha notícia de bloqueios que perdurem por anos. Mas isso não é o ideal, sendo de todo recomendado que se decida sobre os óbices e, consequentemente, pela
manutenção ou não do registro. O bloqueio é administrativo; ele não serve de arresto ou indisponibilidade de bens. Sua função é garantir a regularidade do registro, nada impedindo que seja parcial, ou seja, limitado a determinados atos.
2) Vícios que justificam o bloqueio da matrícula A necessidade do bloqueio pode envolver vícios relativos à existência, validade ou à eficácia do negócio jurídico estampado no título que ingressou no registro de imóveis, ou seja, que foi qualificado positivamente. Como é consabido, nos registros públicos, o Princípio da Fé Pública e da Veracidade do registro público exigem que as inscrições devam corresponder ao plano da existência, validade e eficácia do negócio jurídico estampado no título. E a Lei de Registros Públicos se preocupou com as nulidades do registro, e trata delas nos seus art. 214, 216, 252 e 254. O art. 214 cuida das chamadas nulidades de pleno direito. Elas, uma vez comprovadas, invalidam o registro independentemente de ação direta. Tais vícios são aqueles que envolvam exclusivamente o registro em si, perceptíveis tão só pela leitura da matrícula, sem a necessidade de exame do título que lhe deu origem. Para essas hipóteses, muito embora seja possível o bloqueio, a nulidade e o cancelamento do registro pode não ocorrer, caso atinja interesse de terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel, nos termos do §5° do art. 214 acima citado.2 Já o art. 216 da Lei n° 6.015/73 diz que o registro 2 Interessante julgado na apelação n° 591.779-4/5, no qual o Eg.
poderá também ser retificado ou anulado por sentença em processo contencioso, ou por efeito do julgado em ação de anulação ou de declaração de nulidade de ato jurídico, ou de julgado sobre fraude à execução. A diferença entre os art. 214 e 216 é clara, portanto. O art. 214 diz respeito a um vício do registro em si, extrínseco ao título apresentado, de modo que, novamente apresentado o título, na forma correta, ele pode ser registrado. É o exemplo da abertura de matrícula em circunscrição territorial incompetente. Já o art. 216 diz respeito a vícios do negócio jurídico, somente podendo ser reconhecido e desfeito em processo judicial com o devido processo legal, não podendo nunca ser feito pelo Registrador, ou mesmo pelo Juiz Corregedor Permanente. Nesse caso, ainda que determinada pessoa compareça à serventia, por exemplo, munido de certidão de óbito, alagando que o outorgante da procuração que possibilitou a lavratura da escritura de compra e venda, ao tempo do ato, estava morto, o Oficial nada poderá fazer quanto ao cancelamento do registro. Poderá, contudo, solicitar ao Juiz Corregedor Permanente, com base nesses argumentos e munido de prova documental, solicitar o bloqueio imediato da matrícula. Ainda que seja o caso de nulidades de pleno direito, quando o exame pode ser feito na própria serventia, perceptível pela simples leitura da matrícula, o registrador não poderá cancelar, por seu ato, a matrícula. E enquanto não cancelado, o registro produz todos os seus efeitos legais, ainda que, como dito, por outra maneira, haja prova de que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido, nos exatos termos do TJSP reconheceu os vícios existentes na abertura da matrícula, mas manteve sua validade em razão das consequências gravosas de seu cancelamento. ARISP JUS 35
art. 252 da Lei de Registros Públicos3. Já o art. 254, ainda tratando das nulidades do registro, afirma que, se cancelado o registro, mas subsistirem o título e os direitos dele decorrentes, poderá o credor promover novo registro, o qual só produzirá efeitos a partir da nova data. Naturalmente, a prioridade gerada pela primeira apresentação não prevalecerá.
3) Hipóteses de aplicação do bloqueio da matrícula. Pelo Princípio da Inscrição, o registro é constitutivo de direito real sobre coisa imóvel. Há exceções, naturalmente, como no caso da aquisição originária, quando o registro possui efeitos para a disponibilidade da coisa adquirida. Também na sucessão hereditária, face ao Princípio da Saisine, quando a propriedade se transmite com a abertura da sucessão. A inscrição também leva à presunção relativa de propriedade. Outro princípio nitidamente ligado às medidas de bloqueio de matrícula é o da concentração dos atos na matrícula imobiliária, que ganhou ainda mais relevo após a edição da Lei nº 13.907/2015, de 19 de janeiro de 2015, resultada da conversão da MP 656/14. 3 Quanto aos efeitos do registro inválido, vide o Resp Nº 1.543.567 - ES (2015/0172938-9): agravo interno em recurso especial. compra e venda de imóveis. ação declaratória de nulidade. improcedência. negativa de prestação jurisdicional. art. 535 do cpc/1973. não ocorrência. terceiros adquirentes. boa-fé. teoria da aparência. aplicabilidade. deficiência na fundamentação do recurso. súmula Nº 284/STF. 1. (...). 2. O acórdão recorrido está em harmonia com a jurisprudência desta Corte no sentido de que é possível a aplicação da teoria da aparência para afastar suposto vício em negociação realizada por pessoa que se apresenta como habilitada para tanto, desde que o terceiro tenha firmado o ato de boa-fé. 3. Se o artigo apontado como violado não apresenta conteúdo normativo suficiente para fundamentar a tese desenvolvida no recurso especial, incide, por analogia, a Súmula nº 284/STF. 4. Agravo interno não provido. 36 ARISP JUS
O art. 54 da referida lei estabelece que atos translativos ou modificativos de direitos reais serão considerados eficazes em relação a atos anteriores que não tenham sido averbados ou registrados na matrícula imobiliária. Dentre as hipóteses de bloqueio, ele poderá ocorrer em razão de problemas envolvendo a circunscrição territorial do imóvel, como mudança de circunscrição e atos praticados na circunscrição errada. Aliás, quanto a questões envolvendo a territorialidade do imóvel, as Normas da Corregedoria estabelecem que, se for o caso de ato de registro, abre-se uma matrícula na nova circunscrição; para atos de averbação, o ato será praticado na origem, enquanto não aberta outra matrícula4: 138.27. Se o imóvel passar a pertencer a outra circunscrição na qual ainda não haja matrícula aberta, a retificação prevista no art. 213, II, da Lei nº 6.015/73, tramitará no Registro de Imóveis de origem.
Contudo, em matéria de conflito de atribuições entre juízos, o juízo competente para examinar a retificação, tanto a apresentada diretamente por meio de procedimento judicial quanto a remetida pelo Oficial na forma do art. 213, II, § 6º, da Lei n° 6.015/73, é o da situação do imóvel. Assim, a retificação de imóvel deslocado de uma circunscrição imobiliária para outra tramita no Registro de Imóveis da origem onde estão seus registros. No caso de impugnação ou de algum requerimento, como, por exemplo, o bloqueio de novas averbações, o Oficial remeterá os autos ao Juiz Corregedor Permanente da situação do imóvel. Voltando às hipóteses de bloqueio da matrícula, é perfeitamente possível sua utilização na hipótese de 4 Vide CGJ Processo CG n° 2015/166783 (17/2016-E): Registro de Imóveis – Retificação de registro – Ato passível de averbação que, portanto, deve ser inscrito no Registro de Imóveis de origem, ainda que o imóvel tenha passado a pertencer a outra circunscrição – Arts. 169, I c.c. 213, § 1º, da Lei n° 6.015/73 – Item 138.27, do Capítulo XX, das NSCGJ – Recurso desprovido, com recomendação.
fraude à execução, que leva à ineficácia da averbação em face do credor prejudicado. O art. 216 da Lei Regente assim dispõe: Art. 216 - O registro poderá também ser retificado ou anulado por sentença em processo contencioso, ou por efeito do julgado em ação de anulação ou de declaração de nulidade de ato jurídico, ou de julgado sobre fraude à execução.
Também se recomenda o bloqueio da matrícula quando há indícios de prática de ilícito penal, quando a apuração dos fatos de ocorrência de crime será imprescindível, sendo recomendada a vedação a novas inscrições até que solucionada a questão5. A duplicidade antinômica também é causa comum de bloqueio da matrícula. Aliás, tal situação, apesar de ser um grave problema no âmbito do registro imobiliário, é comum. O Registrador Imobiliário tem o papel de zelar pelo princípio da continuidade e também pela disponibilidade dos imóveis. Entretanto, por uma diversidade de razões, são inúmeros os relatos de matrículas ou registros do mesmo imóvel, tais como matrículas com correntes filiatórias oriundas de um mesmo tronco, com origem primitiva idêntica; matrículas com correntes filiatórias distintas ou conflitantes de origem diversa; matrículas de uma mesma corrente ou origem, dentre outros. Compete ao Registrador, ao se deparar com duplicidade de matrículas contraditórias, oficiar ao Juiz Corregedor Permanente ao qual está subordinado, noticiando a contrariedade que, como medida cautelar, poderá determinar o bloqueio para que, na esfera 5 Ver processo n° 1040707-28.2016.8.26.0100, 1ª Vara de Registros Públicos, 02/05/2016, Juíza Tânia Mara Ahualli: “A dilação probatória é incompatível com o procedimento administrativo que tem curso na Vara de Registros Públicos. A fim de preservar o princípio da segurança jurídica, já que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação aos interessados e a terceiros de boa fé, determina-se o bloqueio da matrícula”.
própria, seja discutida a validade de um ou de outro registro, apurando-se quem detém o melhor título. Na maioria das vezes, o acionamento da via jurisdicional será é indispensável para o deslinde da matéria, ante à necessidade de dilação probatória, já que não poderá ser examinada nos estreitos limites de um feito de natureza administrativa. A duplicidade de registros não leva necessariamente à conclusão de que um deles é nulo de pleno direito, como já decidido pelo Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, nos autos da Apelação n° 4.094, julgada em 24/6/1985, RT 599/99: A regra do art. 859 do Código Civil, autorizadora do princípio da presunção, não pode ser chamada por nenhum daqueles titulares dos registros duplos. A presunção de que o direito pertence àquele em cujo nome está registrado não pode conviver com o duplo registro (…). Em outras palavras, a presunção de veracidade do registro desaparece quando há duplicidade. (...) a consequência é a impossibilidade de prática de qualquer ato em qualquer das correntes filiatórias, até que, na via adequada, se decida pela prevalência de uma ou de outra.
Por vezes, é recomendado, inclusive, o duplo bloqueio, vedando-se inscrições nas duas matrículas sobrepostas, já que não há nada a indicar que a medida automática seria o bloqueio da matrícula mais recente. A presunção de veracidade de ambas está fulminada momentaneamente, e, por isso, nenhuma delas poderá sofrer novas inscrições, até que solucionada a questão6. 6 Ver processo 1112495-73.2014.8.26.0100 1a. Vara de Registros Públicos, Juíza Tania Mara Ahualli: “Com razão o Oficial Registrador e o Douto Promotor de Justiça. De acordo com a decisão que determinou o bloqueio da matrícula nº 3.092, objeto deste procedimento, proferida pelo MMº Juiz Drº Asdrubal Nascimberi (fls.120/121), o motivo para realização do ato foi a “duplicidade de linha filiatórias, com o mesmo berço tabular”, sendo imperativo em caráter acautelatório o bloqueio dos registros, diante da impossibilidade do cancelamento com fulcro no artigo 214 da Lei 6.015/73, por não se tratar de nulidade de pleno direito. Neste contexto, apesar da argumentação e documentos trazidos pela requerente, não foram carreados aos autos fatos e documentos novos que permitam a autorização de desbloqueio da matrícula, ARISP JUS 37
Também deve ser levado a efeito o bloqueio quando houver claros indícios de alienação sucessiva de fração ideal, com indícios de fraude à lei de parcelamento de solo urbano, o que, também, está a desautorizar qualquer inscrição pretendida.
4) Conclusão Por esses breves apontamentos, constata-se que o bloqueio da matrícula pode se dar por diversas razões. Muitas vezes, as nulidades gravitam entre matérias intrínsecas e extrínsecas ao registro, envolvendo também outros títulos contraditórios que ingressaram na serventia, razão pela qual, nesses casos, o cancelamento da matrícula deverá ocorrer apenas por decisão de natureza jurisdicional, envolvendo diretamente as partes interessadas. Após o bloqueio, a medida seguinte poderá ser o cancelamento da matrícula. Como dito, contudo, o cancelamento talvez não seja a medida jurídica a ser imposta caso a caso, face à possibilidade de eventual direito à usucapião (§ 5° do art. 214 da Lei n° 6.015/73), o que somente poderá ser aferido em ação própria, envolvendo cada um dos litigantes, para que se decida quem detém o melhor título. Somente assim será possível a suspensão do bloqueio, seja para restaurar a registrabilidade junto junto à matrícula, seja para cancelá-la, extirpando do mundo jurídico, consequentemente, todas as inscrições nela realizadas.
em preservação a segurança jurídica que os atos registrários devam assegurar a terceiros”. 38 ARISP JUS
A MATA ATLÂNTICA, A PROPRIEDADE E O REGISTRO DE IMÓVEIS Por Marcelo Augusto Santana de Melo OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE ARAÇATUBA - SP
1) Introdução à Mata Atlântica A Mata Atlântica é um dos biomas1 mais importantes encontrados no Brasil, que está presente tanto na região litorânea, como nos planaltos e serras do interior, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul. Ao longo de toda a costa brasileira a sua largura varia entre pequenas faixas a grandes extensões, atingindo em média 200 km de largura. Não é novidade para ninguém que as florestas da mata atlântica estão ameaçadas. O resultado atual é a perda quase total das florestas originais intactas e a contínua devastação e fragmentação dos remanescentes florestais existentes, o que coloca a Mata Atlântica em péssima posição de destaque, como um dos conjuntos de ecossistemas mais ameaçados de extinção do mundo. De uma área original superior a 1,3 milhão de km² distribuída ao longo de dezessete estados brasileiros, restam hoje apenas 8,5 % de remanescentes florestais acima de 100 hectares do que existia originalmente e somados todos os fragmentos de floresta nativa acima de 3 hectares, restaria atualmente 12,5%.
2) Proteção jurídica da Mata Atlântica “No que resta - ainda esplendor - da mata Atlântica Apesar do declínio histórico, do massacre De formas latejantes de viço e beleza. Mostra o que ficou e amanhã - quem sabe? acabará Na infinita desolação da terra assassinada. E pergunta: “Podemos deixar Que uma faixa imensa do Brasil se esterilize, Vire deserto, ossuário, tumba da natureza?” Carlos Drummond de Andrade (A Câmara Viajante)
A Constituição Federal, no artigo 225, § 4º, declara que a Mata Atlântica é patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. O revogado Decreto Federal nº 750, de 10 de fevereiro de 1993, proibiu o corte, a exploração e a supressão de vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração da Mata Atlântica (art. 1º), sendo que a supressão e a exploração de vegetação secundária, em estágio inicial de regeneração, seria regulamentada pelo IBAMA. 1 Bioma é uma unidade biológica ou espaço geográfico cujas características específicas são definidas pelo macroclima, solo, a altitude, dentre outros critérios, possuindo características biológicas próprias. ARISP JUS 39
A Lei Federal nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006, dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica e cria como princípio basilar o tratamento diferenciado da floresta atlântica com relação ao corte, supressão e exploração da vegetação primária ou secundária (art. 8º).
vegetação primária (art. 2º, II).
De um modo geral, a supressão de vegetação de Mata Atlântica é autorizada excepcionalmente e em apenas alguns casos. O primeiro deles é em casos de utilidade pública relativo à atividades de segurança nacional e proteção sanitária, obras essenciais de A Mata Atlântica, assim, em duas hipóteses merece infraestrutura de interesse nacional destinada aos tratamento diferenciado, quando é primária ou serviços públicos de transporte, saneamento e energia; secundária, neste caso em estágios e em casos de interesse social em avançado e médio de regeneração atividades imprescindíveis à proteção (art. 11 da LMA). A definição dessas da integridade da vegetação nativa, A Mata espécies de vegetação deve ser de manejo agroflorestal sustentável Atlântica, assim, conferida pelo Conselho Nacional e demais obras, planos atividades ou de Meio Ambiente – Conama (art. projetos definidos em resoluções do em duas hipóteses 4º), sendo que referida classificação Conselho Nacional de Meio Ambiente merece tratamento não sofrerá qualquer alteração em – Conama. diferenciado, razão de incêndio, desmatamento ou qualquer outro tipo de intervenção 3) Mata Atlântica (regramento quando é primária não autorizada ou licenciada (art. geral) ou secundária, 5º). A limitação à supressão em áreas neste caso em A Resolução Conama nº 388, de rurais está explicitada de forma clara estágios avançado 23 de fevereiro de 2007, convalidou nos artigos 20 a 25 da LMA, dividindo as resoluções anteriores que e médio de as restrições de acordo com a natureza definem as vegetações primária jurídica da floresta atlântica. Assim, regeneração (art. e secundária nos estágios inicial, sendo a área confirmada como médio e avançado de regeneração. 11 da LMA(...) vegetação primária ou secundária em A resolução Conama nº 10, de 1º de estágio avançado de regeneração, o corte outubro de 1993, traz as definições e a supressão da vegetação “somente básicas: serão autorizados em caráter excepcional, quando necessários à realização de obras, projetos ou atividades Vegetação Primária: vegetação de máxima de utilidade pública, pesquisas científicas e práticas expressão local, com grande diversidade biológica, preservacionistas” (arts. 20 e 21). sendo os efeitos das ações antrópicas mínimos, a ponto de não afetar significativamente suas características Sendo a vegetação de mata atlântica secundária em originais de estrutura e de espécies (art. 2º, I). estágio médio de regeneração, a proteção será a mesma que as hipóteses anteriores, incluindo a exceção, Vegetação Secundária ou em Regeneração: permitindo-se a supressão “quando necessários ao vegetação resultante dos processos naturais de sucessão, pequeno produtor rural e populações tradicionais para após supressão total ou parcial da vegetação primária o exercício de atividades ou usos agrícolas, pecuários ou por ações antrópicas (atuação humana) ou causas silviculturais imprescindíveis à sua subsistência e de sua naturais, podendo ocorrer árvores remanescentes da família, ressalvadas as áreas de preservação permanente 40 ARISP JUS
e, quando for o caso, após averbação da reserva legal”. A LMA ainda existe, além da respectiva autorização do órgão ambiental competente (Estadual ou Federal, se for o caso) ainda existe o Estudo Prévio de Impacto Ambiental– EIA para todas as hipóteses e Relatório de Impacto Ambiental- RIMA para vegetação em estágio primário (art. 225, § 1º, IV, CF). Existe também a proteção para a vegetação secundária em estágio inicial de regeneração do Bioma Mata Atlântica, devendo o corte, a supressão e a exploração ser autorizado pelo órgão estadual competente (art. 25), com a observação de que se “a vegetação primária e secundária remanescente do Bioma Mata Atlântica for inferior a 5% (cinco por cento) da área original, submeter-se-ão ao regime jurídico aplicável à vegetação secundária em estágio médio de regeneração, ressalvadas as áreas urbanas e regiões metropolitanas” (parágrafo único, art. 25), permitindo-se ainda a prática agrícola do pousio nos Estados da Federação onde tal procedimento é utilizado tradicionalmente (art. 26).
4) Natureza jurídica da Mata Atlântica A vegetação atlântica é considerada bem imóvel por expressa disposição constante do art. 79 do Código Civil2, de forma que integra o direito de propriedade. No entanto, como vimos, referida propriedade está afetada fortemente à preservação ambiental quando existir vegetação atlântica primária ou secundária em estágios médio ou avançado. Não podendo o proprietário usufruir regularmente do uso do imóvel, malgrado permaneça como dono. Os administrativistas foram os primeiros a estudar as limitações do direito de propriedade, utilizamos como referência os critérios e nomenclaturas de Hely Lopes Meirelles, para o saudoso professor, intervenção 2 Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.
na propriedade privada é “todo ato do Poder Público que compulsoriamente retira ou restringe direitos dominiais privados ou sujeita o uso de bens particulares a uma destinação de interesse públicos”3. Seguindo intervenção na propriedade privada como gênero, teríamos como espécies as desapropriações, as servidões administrativas, as requisições, as ocupações temporárias e as limitações administrativas. Configura limitação administrativa a afetação de floresta de mata atlântica primária ou secundária em regeneração, não retirando, assim, a perda da propriedade. Existe uma restrição à utilização da propriedade imobiliária em seus atributos plenos. Leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “se a restrição que incide sobre imóvel for em benefício de interesse público genérico e abstrato, como a estética, a proteção do meio ambiente, a tutela do patrimônio histórico e artístico, existe limitação à propriedade, mas não servidão”4. E como não existe perda do direito de propriedade, mas sim uma restrição, não podemos falar em desapropriação indireta. Desta forma, os efeitos da Lei nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006, caracterizam limitação administrativa, não subtraindo do proprietário os poderes inerentes ao domínio, motivo pelo qual não há que se falar em indenização5. Interessante que o art. 35 da LMA expressamente declara que “a conservação, em imóvel rural ou urbano, da vegetação primária ou da vegetação secundária em qualquer estágio de regeneração do Bioma Mata Atlântica cumpre função social e é de interesse público, podendo, a critério do 3 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São
Paulo: Malheiros, 1992. P. 505. 4 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 144. 5 Administrativo e processual civil. Embargos de divergência em recurso especial. Decreto n. 750⁄93. Preservação da mata atlântica. Limitação administrativa. Inexistência de esvaziamento do conteúdo econômico da propriedade. Precedentes de ambas as turmas e da própria seção de direito público do STJ. 1. A desapropriação indireta pressupõe três situações, quais sejam: (i) apossamento do bem pelo Estado sem prévia observância do ARISP JUS 41
proprietário, as áreas sujeitas à restrição de que trata esta Lei ser computadas para efeito da Reserva Legal e seu excedente utilizado para fins de compensação ambiental ou instituição de Cota de Reserva Ambiental – CRA”.
5) Mata Atlântica, direito de propriedade e Registro de Imóveis O artigo 1.228 do Código Civil de 2002 declara que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Porém, seguindo a Constituição Federal (artigos art. 5º, XXIII, 170, 182, 186 e 225), em seu Parágrafo Primeiro, introduziu na legislação civil infraconstitucional regra inovadora e moderna: § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
Não podemos restringir a função socioambiental da propriedade a aspectos jungidos a mera restrição do devido processo legal; (ii) afetação do bem, ou seja, destina-lo à utilização pública; e (iii) irreversibilidade da situação fática a tornar ineficaz a tutela judicial específica. 2. A edição do Decreto Federal n. 750⁄93, que os embargantes reputam ter encerrado desapropriação indireta em sua propriedade, deveras, tão somente vedou o corte, a exploração e a supressão de vegetação primária ou em estados avançado e médio de regeneração da Mata Atlântica, sendo certo que eles mantiveram a posse do imóvel. Logo, o que se tem é mera limitação administrativa. Precedentes: REsp 922.786⁄SC, Relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ de 18 de agosto de 2008; REsp 191.656⁄SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJ de 27 de fevereiro de 2009; e EREsp 901.319⁄SC, Relatora Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, DJ de 3 de agosto de 2009. 3. As vedações contidas no Decreto Federal n. 750⁄93 não são capazes de esvaziar o conteúdo econômico da área ao ponto de ser decretada a sua perda econômica. 4. Recurso de embargos de divergência conhecido e não provido (EREsp 922.786⁄SC, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe 15⁄09⁄2009). 42 ARISP JUS
direito de propriedade. A propriedade de hoje não é a mesma de outrora tão-somente por aspectos restritivos, justificados meramente pelo direito administrativo. É o que defende Edésio Fernandes ensinando que “não se pode mais reduzir a noção de função socioambiental da propriedade meramente à ideia de limitação administrativas externas ao exercício do direito, o que é muito do gosto dos administrativistas” 6. O direito de propriedade está, assim, sofrendo influências outrora jamais observadas em nosso direito, refletindo movimentos do mundo fenomênico. E referidos reflexos não se restringem tão somente ao aspecto social, mas também ao econômico, estando nesse aspecto, no nosso entendimento, ou conceito ou caráter pós-moderno da propriedade imobiliária7. A propriedade não mais ostenta aquela concepção individualista do direito romano, reproduzida no Código Civil (CC) de 1916; cada vez mais forte está o seu sentido social, transformando-se em fator de progresso, de desenvolvimento e de bem-estar de todos. Em conformidade com isso, a nova lei civil brasileira acabou por contemplar a função ambiental como elemento marcante do direito de propriedade, ao prescrever que tal direito ‘deve ser exercitado em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas’ (CC, art. 1.228, § 1º).8 A CF ao instituir em cláusula pétrea a função social da propriedade (art. 5º, XXIII), ao estabelecer a função social das cidades (art. 182) e declarando que 6 FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística do Brasil. Minas Gerais: Del Rey, 2006, p. 15 7 MELO, Marcelo Augusto Santana. Meio ambiente e o Registro de Imóveis. Coordenadores. Marcelo Augusto Santana de Melo, Francisco de Asis Palácios Criado e Sérgio Jacomino. São Paulo. Ed. Saraiva: 2010. 8 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. 3. ed. São Paulo: RT, 2004. p. 146-147.
todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente publicidade para casos não expressamente autorizados equilibrado (art. 225), atribuiu ao Registro de Imóveis pela lei, mas é pacífico que podemos interpretar características que outrora não possuía. Dentre elas, está que qualquer ato que, mesmo reflexamente, possam a necessidade de incorporação do conceito de função limitar o direito de propriedade ou ainda de grande social da propriedade e do meio ambiente, percepção relevância para o direito inscrito, justifica o ingresso claramente observada pelo legislador no Estatuto da por meio de averbação de institutos decorrentes do Cidade e na legislação ambiental. Nesse aspecto, o direito ambiental, estabelecendo-se uma fusão entre Registro de Imóveis tem sido utilizado estrategicamente as publicidades ambiental e registral. É o que alguns para potencializar a função social registradores denominam “princípio da propriedade. Na regularização da concentração”, mas que nada fundiária (Lei n. 11.977/2009) tem mais é um efeito ou consequência exercido papel importantíssimo para a da própria transformação do direito Os atos materialização dos direitos de moradia, de propriedade que pelo art 1.228 registráveis (lato inclusive controlando a aquisição pela do CC, explicita integrar ao conceito sensu) não são usucapião administrativa ou tabular. de propriedade também aspectos Com relação à publicidade inerente ambientais.9 taxativos, ou seja, ao Registro de Imóveis, é inegável o as averbações avanço nos últimos anos. Nesse sentido, já se pronunciou a CG do Estado de São Paulo consagrando previstas no a não taxatividade do rol do art. 167, 6) Publicidade da afetação art. 167, II, da II, da Lei 6.015/73, quando analisou a da área como mata atlântica averbação da reserva legal (Processo Lei nº 6.015/73 primária ou secundária em CG 53873 – decisão proferida em 30 de recuperação não somente janeiro de 1980) e áreas contaminadas as definidas (Processo CG 167/2005). Não resta dúvida que a vegetação de mata atlântica nas hipóteses previstas expressamente. 8) Comprovação documental por lei possui a natureza jurídica de limitação administrativa/ambiental, A comprovação de que determinada passível de averbação, assim, na matrícula dos imóveis rurais a exemplo do que já ocorre propriedade imobiliária possui vegetação protegida com inúmeros espaços ambientais protegidos como as especialmente do Bioma da Mata Atlântica como áreas de proteção e recuperação de mananciais, reserva mata primária ou secundária em estágio secundário florestais legais, limitações administrativas provisórias, de regeneração em níveis médio e avançado pode ser obtida através de certidão do respectivo órgão tombamentos etc. ambiental, estadual, federal ou municipal, neste último 7) Fundamentos para a publicidade no Registro caso, nos municípios que possuam o plano municipal de conservação e recuperação da mata atlântica previsto de Imóveis no art. 38 da Lei nº 11.428/2006. Os atos registráveis (lato sensu) não são taxativos, ou seja, as averbações previstas no art. 167, II, da Lei nº 6.015/73 não somente as definidas expressamente. O artigo 246 da referida lei, permite a averbação de qualquer ato que altere o registro, outorgando
Outra hipótese de comprovação é aquela apresentada por meio de “laudo técnico com a respectiva ART, de 9 PAIVA, João Pedro Lamana. Revista de Direito Imobiliário, v. 49, jul.-dez. 2000.
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profissional habilitado (art. 7º, inciso VIII, do Decreto nº 6.660, de 21 de novembro de 2008), devendo conter, extraindo de requisitos constantes do próprio regulamento, “inventário fitossociológico10 da área a ser cortada ou suprimida, com vistas a determinar o estágio de regeneração da vegetação e a indicação da fitofisionomia original (flora típica de determinada região), elaborado com metodologia e suficiência amostral adequadas (art. 20, V). Os profissionais habilitados para a confecção do laudo que comprova tratar-se de mata atlântica primária ou secundária e estágios médio e avançado de recuperação, são, pela própria natureza da profissão, os biólogos (art. 2º, inciso I, da Lei nº 6.684, de 31 de setembro de 1979) e engenheiros florestais (Lei nº 4.643, de 31 de maio de 1965, resolução nº 186, de 14 de novembro de 1969) podem elaborar referidos laudos e inventários, não excluindo, ainda, outros profissionais cujos laudos são comprovadamente aceitos pelas autoridades ambientais
9) Natureza jurídica da averbação O Registro de Imóveis brasileiro, como é cediço, confere a seus atos publicidades distintas, quer para a averbação, quer para o registro em sentido estrito. Para não adentrarmos em espécies de publicidade que não utilizaremos no presente trabalho, restringiremos o estudo apenas à publicidade-notícia. A publicidade utilizada no direito ambiental é a publicidade-notícia que apresenta pouca eficácia perante terceiros, não apresentando qualquer efeito sobre a eficácia do fato registrado. A averbação da Mata Atlântica tem particularidades próprias, obviamente tem a natureza de reforçar ou 10 Fitossociologia é o estudo das características, classificação, relações e distribuição de comunidades vegetais naturais. Os sistemas utilizados para classificar estas comunidades denominamse sistemas fitossociológicos. A fitossociologia visa obter variáveis quantitativas sobre as vegetações do planeta (Moro & Martins, Marcelo Freire & Fernando Roberto (2011). Métodos de levantamento do componente arbóreo-arbustivo (Viçosa: Editora da Universidade Federal de Viçosa). p. 174-212) 44 ARISP JUS
publicar uma informação na matrícula do imóvel para conhecimento de terceiros, às vezes do próprio proprietário. Além disso, ela permite, no âmbito da qualificação do Oficial de Registro de Imóveis, permitir que os licenciamentos especiais criados com a LMA sejam efetivamente fiscalizados e exigidos quando da apresentação de títulos submetidos à análise do cartório. A função da averbação também é de prevenção de conflitos já que a publicidade constante da matrícula do respectivo imóvel de que existe vegetação protegida por lei facilitará o acesso da informação por eventuais empreendedores e compradores que não poderão alegar desconhecimento face à publicidade registral.
10) Quem poderia requerer a averbação? Considerando que o meio ambiente é bem de uso comum do povo e o fato do § 1º do art. 246 da Lei nº 6.015/76 permitir que qualquer11 averbação seja realizada por qualquer interessado, não vislumbramos qualquer problema de legitimidade para se requerer a averbação de constatação de mata atlântica na respectiva matrícula do imóvel, obviamente munido de documentação comprobatória que referimos. A Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo vem entendendo o mesmo, permitindo que qualquer pessoa possa, por exemplo, averbar áreas contaminadas nas matrículas dos imóveis, conforme item 12.6, Capítulo XX, das Normas de Serviço. Obviamente o Ministério Público, em razão de sua vocação natural e constitucional (art. 129, inciso III), possui muitas ferramentas para tornar pública a averbação da constatação da Mata Atlântica nos respectivos imóveis, dentre eles podemos relacionar o inquérito e ação a civil pública (Lei nº 7.347/1985), ressaltando-se, ainda, a existência de precedente administrativo permitindo a 11 “Independentemente de ser ou não proprietário da propriedade rural, qualquer pessoa e, portanto, o Ministério Público e as associações poderão promover o registro e a averbação, incumbindolhes as despesas respectivas, e desde que ofereçam elementos fáticos e documentais” (LEMES MACHADO, Paulo Affonso. Direito Ambiental Brasileiro. 22ª edição, 2014, p. 723).
publicidade registral desses instrumentos12.
11) Considerações finais A vegetação decorrente do Bioma da Mata Atlântica em estados primário e secundário (estágios médio e final) de regeneração exercem juridicamente uma influência sensível no direito de propriedade, merecendo em decorrência da importância ambiental e por meio de tratados internacionais e legislação pátria, de uma ampla publicidade que atinjam a todos (erga omnes), o que somente poderá ocorrer com a utilização dos livros do Registro de Imóveis que refletem a situação jurídica do direito de propriedade através de princípios jurídicos sólidos. A jurisprudência administrativa e os estudos acadêmicos são unânimes em admitir publicidade de eventos ambientais no Registro de Imóveis, desde que criados e estruturados legalmente, o que é o caso do Bioma Mata Atlântica que possui legislação e regramento consolidados. O principal problema para a preservação da Mata Atlântica é o conflito fundiário, já que os remanescentes sofrem grande pressão dos grandes centros urbanos, sendo que a utilização da publicidade registral servirá de importante ferramenta de prevenção de conflitos, utilizando ainda a qualificação registral (análise do Oficial do Registro de Imóveis) para fiscalizar as restrições e licenciamentos exigidos pela legislação em decorrência do regime especial de proteção que o Bioma da Mata Atlântica possui.
12 DOE 28.07.2000 – Protocolado CG-8.505/2000 – Piracicaba – Juízo de Direito da 1ª Vara Cível. Ementa: Registro de Imóveis. Recepção e arquivamento, pelo Oficial de Registro de Imóveis, de ofício expedido pelo Ministério Público com notícia da instauração de procedimento ou ação que versa sobre irregularidade no parcelamento do solo. Inclusão dessa informação nas certidões imobiliárias referentes aos registros correspondentes. Possibilidade. Medida que não se confunde com ato de averbação, nem impede a prática de atos de registro ou averbação nos registros atingidos.
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A ATIVIDADE EMPRESARIAL E O REGISTRO DE IMÓVEIS Por Paulo Furtado de Oliveira Filho JUIZ DE DIREITO
A legislação brasileira oferece três opções para o exercício de atividade empresarial. Aquele que se dispuser a produzir ou comercializar bens e serviços, de forma habitual e com fim lucrativo, poderá fazê-lo de três modos: a) como empresário individual; b) instituindo uma EIRELI (empresa individual de responsabilidade limitada); c) constituindo uma sociedade empresária. Em qualquer dessas modalidades, há normas que regem a atividade empresarial e o registro imóveis. O empresário individual, por exemplo, pode ser casado e exercer sua atividade empresarial em um imóvel próprio, localizado em um município do interior do Brasil. Imagine que seja um empresário individual de sucesso, com perspectiva de ampliar seus negócios para um município vizinho. Ao pretender levantar recursos em um banco, para sua nova empreitada, vê-se diante de uma condição: alienar fiduciariamente em garantia o imóvel onde exerce sua atividade. Tradicionalmente, 46 ARISP JUS
o direito brasileiro exigiria a outorga do cônjuge para a alienação ou oneração do imóvel. Porém, o art. 978 do Código Civil introduziu uma nova disciplina: o empresário individual casado, sem a necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, tem prerrogativa de alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real. Portanto, o empresário individual poderá alienar fiduciariamente o imóvel ao banco, sem necessidade de consentimento do cônjuge. Para que não haja dúvida de que o imóvel seja parte integrante do estabelecimento do empresário individual, o cônjuge poderá apresentar declaração à Junta Comercial, confirmando a destinação. A Junta Comercial fará o assentamento no registro do empresário individual e, a pedido, expedirá certidão a respeito deste fato. A certidão emitida pela Junta Comercial será averbada na matrícula do imóvel e a instituição financeira, ao solicitar uma certidão da matrícula, terá segurança para realizar o empréstimo garantido pelo imóvel. Outra modalidade de exercício de atividade empresarial que a legislação brasileira passou a oferecer desde 2011 é a Eireli (empresa individual de responsabilidade limitada), disciplinada no art. 980-A do Código Civil. Há estudos demonstrando que países com legislação que limitam o risco de ruína pessoal, oferecendo a limitação de responsabilidade, têm maior nível de empreendedorismo. O objetivo da introdução da Eireli foi exatamente esse: proporcionar maior proteção aos empreendedores individuais, assegurando-lhes limitação de responsabilidade. Por meio da separação do patrimônio do empreendedor (instituidor pessoa física) e da Eireli (pessoa jurídica), apenas o patrimônio da Eireli passa a responder pelas dívidas decorrentes da atividade empresarial. E esse patrimônio da Eireli, que deve ser inicialmente de cem salários mínimos, pode ser constituído pela transferência de bens imóveis do patrimônio do instituidor. No ato de instituição da Eireli, que será inscrito na Junta Comercial, o instituidor identificará o imóvel. A certidão expedida pelo órgão do registro de empresa será o documento hábil para registro na matrícula do imóvel, operando-se assim a
transferência da titularidade do imóvel, do instituidor (pessoa física) para a Eireli (pessoa jurídica). Finalmente, a atividade empresarial pode ser exercida por meio de sociedades constituídas para esse fim. Tratase da modalidade mais adotada, especialmente pela sua capacidade de limitar responsabilidade e reunir recursos de várias pessoas. Os sócios de uma sociedade limitada, por exemplo, podem integralizar suas quotas por meio da transferência de bens imóveis para a sociedade. O ato constitutivo, celebrado por instrumento particular contendo a indicação da matrícula do imóvel, será arquivado na Junta Comercial. A certidão expedida
pela Junta Comercial, por sua vez, será o documento hábil para a transferência da propriedade imobiliária, do sócio para a sociedade (arts. 35, VII e 64 da Lei nº 8934/94). Já as sociedades anônimas, em busca de melhor eficiência, podem realizar atos de incorporação, fusão e cisão, envolvendo outras sociedades. A certidão expedida pela Junta Comercial, da incorporação, fusão ou cisão, também será o documento hábil para registro na matrícula, de modo a operar-se a transferência dos bens imóveis das sociedades (Lei nº 6404/76, art. 234). Em síntese, são esses alguns atos relacionados à atividade empresarial e ao registro de imóveis.
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O INESPERADO NOS AGUARDA Por José Renato Nalini REITOR DA UNIREGISTRAL
Inúmeros fatores laboram no sentido de alterar rotas, repensar os rumos e reinventar a rotina. Isso ocorre com as ciências exatas ou “duras” e com a tecnologia. Mas não se limita a esse universo. A ciência jurídica não está a salvo nessa profunda mutação imposta pela 4ª Revolução Industrial. É a primeira vez em que a inteligência humana encontra um paralelo desafiador: a inteligência artificial. Há 702 profissões sob ameaça de descarte. Dentre elas, a advocacia. A volúpia da eficiência implica em adesão incondicional às tecnologias. Elas se convertem na panaceia milagrosa suficiente para acelerar todos os serviços. Proliferam as soluções oferecidas como fórmula capaz de realizar de maneira mais rápida e menos dispendiosa aquilo que é fruto de séculos de elaboração.
A única certeza contemporânea é a incerteza. Nada pode ser garantido para os próximos anos. Sequer para os próximos meses. A futurologia falhou em quase tudo. O planejamento se defronta com tantas variáveis que se tornou uma arte vulnerável às mais incríveis surpresas. Quem acertou sobre o que ocorreria nos últimos cinco anos? As megatendências então anunciadas se mostraram corretas? Isso tudo impõe ao menos uma reflexão. A velocidade com que as coisas mudam, sob a vertente do dever de subsistir, nos obriga a imprimir ritmo alucinante à nossa atuação. Mas será que nossas ações não devam merecer uma pausa para meditar? Meditar é verbete que provoca urticária em inúmeras mentes ocupadas com a automação permanente. Mas ela é essencial. Movimentos como o slow thinking permitem aquele hiato próprio para escolher o melhor caminho. É preciso reconhecer que já não existe segurança naquilo que acreditávamos estivesse a salvo. 48 ARISP JUS
Não se subestime a força do mercado. Ele é suficientemente robusto para sepultar teorias e para sacrificar tradições. Insuficiente argumentar com princípios, se estes incorporam valores em declínio, atropelados pelo fervor tecnológico, ímã de entusiasmos irrefletidos. A hora é de coesão. Separados, ampliamos os flancos e as vulnerabilidades exploráveis pelos setores que pretendem nos substituir. Pródigos em acenos de irrecusáveis vantagens, com as quais o sistema tradicional não consegue competir. Urge reagir. Unirse com vontade de encontrar soluções. Elaborar argumentos que convençam os múltiplos públicos – usuários, clientes, fornecedores, parceiros, governo, sociedade em geral – de que a relevância dos préstimos merece permanência, intensificação e ampliação das atribuições. Unidos encontraremos a tática evidenciadora de que a senda até o momento trilhada reveste condições de perdurar, sem menosprezo do desejável avanço tecnológico. Mas a tecnologia que se subalterne ao núcleo informador do sistema e não o considere
descartável.
acelerar o passo, para a recuperação do lapso ignorado.
A missão é imensa e não está liberada de consistentes dificuldades. Por isso mesmo, impõe-se o heroísmo de munir-se de vontade, empenho e firmeza.
À falta de outra denominação, mas valendose daquela que se consagrou em vários espaços, a Universidade Corporativa é a alternativa adequada para o enfrentamento de tempos de turbulência, mas de forte impulso criativo.
Para a elaboração de um projeto de solidez capaz de resistir à escalada concorrencial, é urgente a institucionalização de um núcleo elaborador de Investir no domínio das tecnologias já disponíveis e novos produtos teóricos. Reconhece-se a consolidada preparar-se em relação às adventícias, convencer-se de sofisticação dos temas estritamente que a obsolescência feroz e programada jurídicos, num trajeto ascensional que implica em capacidade de alteração de precisa prosseguir. Nada obstante, ritmo e rumo nas atividades, treinar A educação, negligenciou-se aquilo de que a as novas gerações para o cultivo de educação convencional também não atributos até o momento relegados como direito de cuidou com o necessário interesse: para o autodidatismo é missão dos todos, obteve as chamadas habilidades sócioeducadores que nossos dias esperam emocionais, que ultrapassam em e exigem. algo aproximado muito as competências cognitivas. à universalização Talento para uma comunicação neste Brasil de tantas O que hoje é perceptível, será empática e paciente, sensibilidade, preponderante no amanhã. A diferenças, mas está compaixão, tolerância, vontade de Inteligência Artificial, a Internet das conviver com a diferença, respeito longe da qualidade coisas, a Robótica, a Impressão 3-D, em relação à diversidade, superar a superação da ficção científica na dificuldades, adaptar-se ao inesperado, sem a qual não bioengenharia, na biotecnologia e na tudo isso requer envolvimento efetivo atenderá às suas biogenética. Tudo requer criaturas e real interesse. É uma questão de competentes para atuar com o possível sobrevivência, não de surfar na onda finalidades. equilíbrio na constante oscilação das novidadeira das mídias sociais. tendências e na busca do consenso viável. A implementação de um projeto que perdure e corresponda ao êxito de tudo aquilo que A educação, como direito de todos, obteve algo os serviços extrajudiciais já produziram a esta Nação, aproximado à universalização neste Brasil de tantas desde as suas origens há mais de cinco séculos, reclama diferenças, mas está longe da qualidade sem a qual não desarmamento daquelas fissuras naturais surgidas atenderá às suas finalidades. Impõe-se a todos os setores entre pessoas normais. O ser humano é heterogêneo providos de condições para a urgente e imprescindível e irrepetível. Cada criatura é provida de identidade imersão nessa tarefa, adotarem estratégias de singularíssima, distinta até mesmo em gêmeos preparo, qualificação e capacitação de seus quadros. univitelinos. Aquilo que empresas bem sucedidas perceberam no início do século XX, ainda não exauriu suas potencialidades no século XXI. Daí a urgência de se
Também compreensível que as especialidades contemplem com olhos mais favoráveis o seu próprio território e pretendam privilegiá-lo no cotejo com o das ARISP JUS 49
demais. O diálogo é a ferramenta ideal. Compreender o outro é o exercício concreto do contraditório, princípio a que todos devotamos nosso culto.
com a iniciativa privada, sem falar na sempre presente presunção de inidoneidade no trato do dinheiro do povo.
O essencial é o convencimento de que se aproximam os adversários – e são muitos – com argumentos irrespondíveis se nos restringirmos aos fundamentos jurídicos de domínio dos especialistas, universo considerado hermético e superado pelos adeptos da eficiência como resposta a todas as demandas. Não se deve subestimar a ameaça. Os tempos são pródigos em sobressaltos. O que valeu até ontem, amanhã pode não valer mais.
Se a falência da Democracia Representativa é incontornável, cumpre demonstrar que a delegação de atividades estatais para exercício pelo particular, recrutado pelo Judiciário em árduo concurso de provas e títulos, é uma solução de reconhecida excelência. O Estado se desincumbe da missão, atribui ao Judiciário o cutelo da fiscalização, do controle, da orientação e da disciplina e aufere percentagem ponderável daquilo que o trabalho privado realizou.
A união de esforços na construção de uma usina de elaboração de novas ideias, harmonizadas com o discurso da contemporaneidade, produzirá resultados que ultrapassarão a crise atual, mas poderão servir ao redesenho da própria Democracia Representativa.
Não há um centavo do Erário envolvido nesse funcionamento eficaz, eficiente e efetivo do chamado foro extrajudicial. Ao contrário, o orçamento estatal é reforçado com a verba arrecadada pelas delegações.
Debruçar-se sobre as áreas de conhecimento até então negligenciadas poderá servir como convencimento ao Poder Judiciário, que padece igualmente de certo distanciamento da realidade gerada pela 4ª Revolução Industrial, de que novos parâmetros devem ser observados na tarefa de orientar, fiscalizar, corrigir e de prover as titularidades de novos quadros. Não será pouco, menos ainda insignificante, outorgar sugestões de aprimoramento de um modelo que vigora desde época longeva, mas que tem condições de servir ainda melhor à comunidade dos destinatários dos serviços prestados pelas delegações extrajudiciais. Para esse desafio todos são chamados. Os titulares, os prepostos, os subalternos, os stakeholders, enorme comunidade de interessados no adequado funcionamento desse conglomerado de prestações estatais confiado à iniciativa privada. Genial estratégia do constituinte de 1988, que deveria ser ampliada para contemplar outras obrigações do Estado que, em regra, quando se propõe a executá-las diretamente, o faz com ineficiência, com insuportáveis custos, se cotejados 50 ARISP JUS
Estes e outros aspectos da formatação contida no artigo 236 da Constituição da República Federativa do Brasil em vigor desde 5.10.1988, não são adequadamente transmitidos e precisam ser enfatizados, para assegurar a permanência de um ajuste dos mais saudáveis dentre os encontrados pelo formulador do pacto fundante para ofertar bons serviços à população. O momento é propício a essa união em propósito e em inventividade. Para concretizá-la, todos são conclamados. Não se espere chamado formal, porém alinhe-se junto aos que já se debruçam nos estudos que vão consolidar a válida constatação de que a delegação estatal dos serviços extrajudiciais é a mais eficiente, segura e confiável opção constitucional para a preservação de valores imprescindíveis ao Estado de Direito.
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