AMÊSA OU A CANÇÃO DO DESESPERO
Amêsa ou a Canção do Desespero é o retrato da dualidade de uma mulher, que nos chega pelos corpos das actrizes Claudia Rosa Pucuta e Sunny Dilage.
O espetáculo inicia com o confronto, os dois lados de Amêsa num jogo de movimentos dançantes, intensificado pelo ritmo do batuque. Não há no entanto, verdadeira dualidade, mas antes versões semelhantes da mesma pessoa. A intensidade do desespero e da solidão levou Amêsa a criar outra versão de si, por forma a lidar com a tristeza das suas memórias, com o desespero da sua solidão. Numa viagem imaginária pelo rio, somos levados por Amêsa pelas recordações da sua infância. A mudança, na infância, do interior para a cidade, deixando para trás o rio e a selva que sempre conheceu.
O definhamento e consequente morte da mãe, que nunca foi feliz com a mudança. O abandono pelo pai, desinteressado que era. No meio da tristeza, um rasgo de felicidade. O amor e o seu acto concreto trazem alguma medida de alegria a Amêsa, mesmo que momentâneo. No entanto, até isso é manchado pelo desespero, quando o fruto desse amor morre.
Aí, Amêsa afunda-se em si mesma, conversando com o outro lado de si, inflamando a tristeza e a dor exponencialmente numa tentativa de as consumir para poder retornar a sim mesma. Usando memórias de brincadeiras de criança, Amêsa alterna entre a alegria de reproduzir essas memórias e o desespero das perdas que sofreu, numa espiral que termina numa morte viva, até ao fim presa nas recordações e no desespero.
PALCO 1
O romance saramaguiano Ensaio sobre a Lucidez, que faz parelha em exponencial alegórico com o Ensaio Sobre a Cegueira, possui as graças e aparos para uma modelação dramatúrgica, como nos comprovou Caplan Neves e João Branco (dramaturgo e encenador, pela ordem). Assim, contaminaram o Centro Cultural de Mindelo com uma A PESTE BRANCA, que é, afinal, muito mais de que uma mera invisualidade ocular. A catastrofização político-social que pode resultar de uma maioria percentual de votos brancos, não teria sido melhor acendida senão pela tocha da intervencionalidade estético-discursiva do legado épico bretchiano, a qual é possante em toda a direção cénica.
A PESTE BRANCA
Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo Po Djam NeginO elenco basilar – com especial destaque para o retorno dionisíaco de Manuel Estêvão aos palcos Mindelactenses, e ao estrionismo cacafónico caricatural do pequeno grande Hugo Paz (equilibrados pela contenção assertiva da personagem vivida por Sílvia Lima) - são o cast acertado para estética satírica adotada que ao fim e ao cabo faz tão bem o ridendo castigat mores. Emerson Henriques, sempre presente, e embora com menos expressão e aparição diegética, arrebata a cena quando intervém, com a sua vocalização anticonvencional e cartonesca da autoridade política. Não vamos também esquecer, Daniela Santos que abre o ato com um número musical catártico e depois nos entrega, pontualmente, uma personagem ambígua e maliciosamente cínica.
A aparição surpresa de Lisa Santos que retumba versos de exortação fazem o pano cair no interior dos sentidos. Por fim, seria injusto deixar de fora o boom à la tabanka de um maestro-encenador que nunca se vê (mas que é sempre visto através de tudo o que compõe) e é ouvido a cada acentuação dos baticardiacos da tensão cénica. E sim, os figurantes de uma milícia governamental, são uma minoria significativa, mas que não podiam faltar para a ordem símbolica ganhar pujança. Peste Branca é uma adaptação que conhece o seu público e sabe o que lhes dizer e porque lhes tem de dizer. Atual e perigosamente revolucionário.