Diário Mindelact 2022 Celebração Nº08

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D ÁR O8 O8 MINDELACT 2O22 CELEBRAÇÃO www.mindelact.org M i n d e l a c t , 2 8 a n o s d e h i s t ó r i a q u e r e v o l u c i o n o u o t e a t r o e m C a b o V e r d e . N e s t e m o m e n t o , s ó t e m o s s a u d a d e s d o f u t u r o !
Borboletas Fotografia de @Queila Fernandes

As minhas borboletas começaram cedo, antes do início, ainda na entrada do ALAIM, por ser a primeira vez que tinha o privilégio e a responsabilidade de ser articulista do Mindelact, ainda por cima no último dia deste grande evento. Mas, felizmente, tudo foi acolhedor, convergiu a favor e permitiu que as borboletas voassem. Desconhecia por completo o artista em apresentação no espetáculo Borboletas, o Gery Mendes, e o seu grandioso nível. Apenas sabia, pela sinopse, que, tratando-se de espetáculo cujo conteúdo está ligado ao diálogo de pai e filho, para um filho que perdeu o pai há dois anos e para um pai que tem como um dos grandes objectivos na vida: ser bom pai, de alguma forma, ou de todas as formas, podia ser tocado e emocionar-me. Após a peça, a torrente de lágrimas, sozinho no carro a ouvir “Um minute d’silêncio” de Paulino Vieira, foi natural.

BORBOLETAS

PALCO 2

Certamente todas as palavras e adjetivos que utilizarei neste texto serão insuficientes para descrever o nível da apresentação, o nível do artista, as minhas emoções, durante e pós espetáculo... ainda estou remoendo parte dos diálogos e dos dizeres em modo de reflexão. O artista! Gery Mendes é artista, dos excelentes! Interpreta, toca, canta, dança, declama, liberta-se e entrega-se por completo, tornando impossível qualquer distração da plateia. A minha conexão foi imediata, quer pela atuação do artista, quer pelo conteúdo da apresentação. Impossível passar ao lado de detalhes como o súmbia que trazia à cabeça, simbolizando a luta pela independência, o Amílcar Cabral, a sua voz segura, afirmativa e cativante, o talento para a música e facilidade de tocar qualquer instrumento. A delicadeza do toque na guitarra, contrasta com a firmeza que demonstra quando segura na navalha para tocar funaná no ferro do cenário ou na forma como entrega o peito ao batuque e ainda a magnificência do uso da voz, à capela, para o rap. Foi impressionante a forma como expôs o diálogo de pai e filho em quatro línguas ao longo de uma hora. O inglês, holandês, crioulo e português entrelaçados de forma a que toda a história e o seu percurso fossem corretamente enquadrados e assimilados pelo público, sem tédio, sem que ninguém perdesse o fio condutor do que nos quis demonstrar, faz este espetáculo merecedor dos palcos do mundo.

Na sua essência, espelha-nos o amor entre pai filho. Muitas vezes pouco demonstrado, ou não demonstrado de forma explícita e afectuosa, mas, sempre presente em todos os momentos. Creio que espelho do nosso orgulho e de repressão das nossas emoções no masculino, particularmente se experiências de vida levam a sacrifícios e situações que podem castrar demonstração de afetos, como é o caso dos dissabores da emigração posteriores à da luta na guerra colonial, como foi o caso do conto que nos trouxe. O espetáculo baseado na história de um emigrante da Achada Grande, extravasa Praia e nos faz viajar por outras dimensões. As múltiplas dimensões do amor de pai e filho, as suas diferentes formas de manifestação, menos ternurento e visível que o amor de mãe, a luta pela liberdade, uma guerra e a emigração, seus sacrifícios e sua importância. Aliás, o próprio artista, é a personificação da importância que a emigração tem para Cabo Verde pelo brinde que nos trouxe.

Este espetáculo recomenda-se ao mundo, ontem, hoje, no dia do pai, todos os dias, pois, o seu conteúdo e a versatilidade do artista são necessários para quebrar mitos e ver o belo da relação pai e filho, particularmente numa sociedade como a nossa onde a paternidade responsável é uma das nossas fraquezas.

Aplausos, artista, muito aplausos, Gery Mendes!

PALCO 1

PALCO 1

As minhas expectativas sobre os espetáculos do Juventude em Marcha são sempre elevadas, por saber que me trarão a leveza de uma risada natural, super agradável, cuja intensidade é recomendada para a moldagem do abdómen, como é o meu caso. É sempre uma explosão de gargalhadas!

A experiência e a maturidade de um grupo que tem tantos anos de vida quanto eu, os gestos, os movimentos, os textos, a naturalidade e a simplicidade com que interagem com o público com coisas nossas, muito nossas, garantem sempre a conexão desejada entre o palco e a plateia durante todo o espetáculo. No fim, a felicidade é sempre plena, afinal, o final feliz existe. Penso que o Mindelact escolheu a chave de ouro para o fecho desta edição.

Grupo de Teatro Juventude em Marcha

PINHA MA KENTEI

por Nelson Faria

PINHA MÁ KENTEI do Juventude em Marcha é uma bela pintura e exposição da ilha de Santo Antão em palco de Teatro, da sua gente, trabalhadora e resiliente, séria e bem-humorada, dos seus mitos, música, dança, do seu folclore Leva-nos a conhecer a história de irmandade de dois amigos / irmãos nascidos no mesmo dia, na mesma hora pela mesma parteira que teve ajuda-los a chegar à luz da vida pelas orelhas e pelo nariz, motivo pelo qual eles podiam brincar um com o outro e iniciar a sessão de riso de uma plateia ansiosa por interagir com o espetáculo. Ah, não é admitido a nenhum terceiro interferir ou gozar com os dois, nem pelas orelhas, nem pelo nariz, apenas surfar no riso que nos permitem Aliás, é assim com todos os assuntos entre eles ao longo da peça. Discordam, concordam, brincam, conversam, entristecem, alegram-se, dançam, cantam, sempre unidos numa cumplicidade evidenciada em todos os atos.

Dois verdadeiros amigos que tudo podem dizer um ao outro, sem receios nem tabus, que se conhecem pela cabeça e pelo coração demonstrada numa conversa muito divertida Dois amigos que sabem-se compreender e caminhar juntos em todas as fases e peripécias que a vida lhes prega Atrevo-me a dizer que acaba por revelar, também, uma união muita parecida de outro Pinha (São Vicente) e Kentei (Santo Antão) já que a folia mindelense e os seus recantos foram igualmente convidadas para a peça, elucidativa da nossa complementaridade e irmandade desde que tempo é tempo A forma como são desconjuradas ou desconjuntadas os mitos das bruxas, das “canilinhas” e dos “mossongs” (maçons), a maestria dos diálogos cómicos, são deleites que levam esses seres ao desaparecimento, se não pelas palavras, certamente pela “explosão” do riso Apesar da trágica história da criação do Pinha e do Kentei após perderem os pais, não temeram a vida e tudo fizeram com valentia para serem Homens de honra Típico das gentes de Santo Antão onde a coragem e a honra são valores indisosiáveis Outra delícia da peça é a forma como Pinha má Kentei conquistam as suas amadas, amante ou viúva, com passagens que nos levam, uma vez mais, a rir sem parar

Entretanto, apesar da essência da peça caracterizar-se pela comicidade, falar da peça PINHA MÁ KENTEI é, como já disse, trazer a tenacidade, resiliência e espírito de sacrifício das gentes de Santo Antão, simbolizado pelos protagonistas. É assimilar alertas feitas sobre algumas das nossas agruras, nomeadamente a produção e consumo exagerado de grogue, do mau grogue, da ganância dos Homens, com enfâse na fragilidade das relações humanas nos dias de hoje, do nosso egoísmo, dos caminhos que a atualidade e as suas condicionantes tem-nos conduzido, fragilizando irmandades e afetos

Mereceu também a minha atenção e apreciação o espetáculo de dança que nos proporcionaram num contraste entre um estilo que praticamente já não vemos em eventos, a contradança, e a muito badalada dança de mandinga. Creio ter sido muito feliz o apelo indireto da importância de não renegarmos as tradições em detrimento das modas ou evoluções, a possibilidade de casamento no teatro de estilos diferentes que nos unem e caracterizam como povo. Além de darem palco e visibilidade a contradança com atuação magnífica do grupo no casamento que não foi, coçaram o ego mindelense com os mandingas em plena “lua de mel” do novo casal, sem tirar a mazurca que foi ouvida e dançada embora com mais timidez.

De forma magistral, o grupo Juventude em Marcha, em particular os protagonistas da peça, os atores Jorge Martins e César Lélis, propiciaram a Mindelo e ao Mindelact um grande espetáculo. Digno de fecho de evento com a magnitude desta grande festa do Teatro nacional e do Mundo. Todas as palmas, muitas palmas, pois, mereceram.

fotografia Queila Fernandes F I C H A T É C N I C A Mindelact 2022 Festival Internacional de Teatro do Mindelo Caplan Neves Coordenação edição e paginação Nelson Faria Articulista convidado
NOVEMBRO 2022
A R T E | A L M A | A F E T O

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