SOLITÁRIA
Solitária de Alma d'Arame parte de uma premissa fascinante: a construção de uma narrativa visual e sonora a partir da interação entre homem e máquina. O espetáculo se assenta na transdução, em narrativa sonora e visual gerada por computação, da energia solitária de um corpo humano em movimento.
A interação homem/máquina se tornou não apenas inevitável mais imprescindível para o florescimento humano e a conceção de uma fusão entre a inteligência humana e artificial não mais se circunscreve ao domínio exclusivo da ficção científica. Independentemente da natureza desta interação, ela provê aos seres humanos progressivos poderes divinos de criação em todas as áreas de atividade. Como ela se refletirá na arte, uma área de atividade humana cuja essência é a própria criação? Como esta interação ajustará os nossos conceitos de “arte” e da própria “humanidade”? Se a premissa é cognitivamente instigante, a sua operacionalização estética e narrativa em Solitária acaba talvez por se revelar demasiado elementar, não obstante a sua eventual complexidade técnica. A performance explora a interação entre homem e máquina a partir do matriz essencialmente formal sem explorar, explicitamente, suas potencialidades narrativas e filosóficas.
Parece assim reduzir-se a jogabilidade e manipulação de formas gráficas animadas geradas por computação. Assim, as imagens performáticas artisticamente mais impactantes acabam por resultar da tecnologia mais simples (por exemplo a instigante imagem de um homem que segura seu crânio maleável que, a certa altura, explode violentamente, é produzida por um balão e um efeito visual gerado em tempo real). Estas parecem relacionar se mais a questão da solidão criativa do que a relação de interação homem/máquina e as potencialidades fecundas ou problemáticas desta interação. A progressão lenta do espetáculo é em parte justificada narrativamente pelo tema da solidão, mas por vezes inspira a sensação (acertada ou não) de resultar das limitações técnicas associadas à tecnologia utilizada.
Apesar das criações visuais e sonoras não inspirarem uma identidade diferenciada – algo passível de ficar impresso em nossa memória como sua personalidade visual Solitária é um espetáculo visualmente aprazível e aliciante.
Transfiguration, de Olivier de Sagazan, é um dos espetáculos mais instigantes, poéticos e perturbadores que alguma vez assisti. No entanto, o tentame de estabelecer esta apreciação sobre bases racionais pode revelar-se ainda mais incomodo que a própria performance.
TRANSFIGURATION
Olivier de Sagazan Por Caplan NevesIniciámos sob deliberada forma ritual, facilitado pelo canto rítmico, que nos envolve em sua cadência repetitiva, intensificada por frases enigmáticas e por movimentos e sons bruscos, incómodos e imprevisíveis das unhas e da argila contra as placas de metal, enquanto Sagazan desenha formas semicirculares em torno de si. Cobre então, progressivamente, a face com argila branca, o qual se converte numa extensão do próprio corpo, agora maleável a transfiguração. Nesta fase, público e performer comungam um estado espiritual e emocional que propicia a experiência partilhada que então se segue.
Ao enterrar se sob a argila, Sagazan força o corpo a trabalhar sobe a cegueira e a privação, propiciando o surgimento de formas vivas que emergem quando o corpo é forçado à situação estrema. A experiência preceptiva coagula se então em torno de um irresistível ensaio de horror e poesia de formas monstruosas, simultaneamente perturbadoras e comoventes: figuras divinas, formas animalescas, seres fantásticos, criaturas monstruosas. Através da substância maleável e húmida no/do rosto, Sagazan se faz porco, ave, mulher, monstro, demónio, uma cabeça sem face, várias faces, uma face que se descoagula, vários olhos, um ventre que infla, violento esventrar de um ventre, arte viva. O milenar sonho de conceber e dar vida à matéria inerte e sob múltiplas formas, seja humana, animal, divina, diabólica, se concretiza quando Sagazan oferece o próprio corpo em sacrifício e à possessão. Uma meta-performance que desnuda a natureza última das artes performativas: o corpo que se converte em objeto artístico. A energia eletrizante da performance resulta da imprevisibilidade e aleatoriedade das formas, movimentos e sons; o perturbador desfile de imagens impassíveis compreensão narrativa; da monstruosidade das criaturas deformadas, assimétricas (olhos demasiado próximos e pequenos, bocas desproporcionais) que provocam um certo tipo de experiência visual que redescoberta da perceção do rosto; do uso chocante das cores que inspira decomposição, sangramento, enfermidade. Estes elementos imprimem sob o espetador emoções intensas, das quais não é possível compreender coerentemente sua direção na medida que vagueiam simultaneamente entre o repugnância e o encanto, o horror e o humor, a poesia e a brutalidade.
Temos em parte a sensação de que a forma, natureza e intensidade da experiência guarda semelhanças com rituais religiosos, onde um irresistível estímulo leva o participante ao colapso emocional e sugestionabilidade intensa talvez reside aqui o fascínio quase consensual que a performance inspira. Esta é, pois claro, apenas uma sensação, que não pretende sequer uma aproximação a solução do enigma da Transfiguration.
Reside no mistério e na indecifração, o fascínio e a perturbação comovente que Transfiguration inspira. A performance é, não raramente, uma disciplina artística particularmente permeável a propostas tão pomposas quanto vazias De resto, obras de rara qualidade artística são, por definição, raras. Ê sabe pa kaga, de vez enquanto, encontrá las.