5 minute read

CULTURA E HISTÓRIA

Next Article
TURISMO E LAZER

TURISMO E LAZER

UM SÍMBOLO DA HARMONIA COM A NATUREZA

A canoa caiçara resiste como um patrimônio cultural das comunidades litorâneas

Advertisement

FOTOS ALLAN ARAGÃO

Pintadas de branco, azul celeste, verde e tantas outras cores alegres, as canoas caiçaras podem ser encontradas em muitas praias do litoral norte paulista onde estão presentes comunidades tradicionais da região. Elas representam o ganha-pão de um grande número de famílias que ainda trabalham com a chamada pesca pequena ou artesanal, feita com linha, rede ou espinhel, que consiste em um sistema com vários anzóis. Mas as canoas caiçaras, construídas a partir de um único tronco de madeira, representam muito mais do que isso. São talvez o maior símbolo da cultura caiçara, formada ao longo de séculos de ocupação do litoral brasileiro, e que ainda resiste apesar da dificuldade em manter vivas as heranças do passado. Desde sua produção manual até seu uso na vida e na subsistência de famílias litorâneas, a canoa caiçara carrega consigo o poder de transmitir essa cultura de uma geração a outra, em uma época em que isso é cada vez mais desafiador e importante. O projeto “Com quantas memórias se faz uma canoa”, realizado pelo Instituto Costa Brasilis e seus parceiros, catalogou mais de 400 canoas em 36 praias e illhas de Ubatuba. Na época do estudo, publicado há alguns anos, o lugar com maior número de canoas, 38 no total, era a vila de Picinguaba, um reduto de pescadores no extremo norte do município, onde até hoje a pesca artesanal é uma das principais fontes de renda, juntamente com o turismo. O estudo também identificou os construtores de canoas em Ubatuba, e listou 45 deles. Os mestres canoeiros, como são conhecidos esses artesãos, sabem trabalhar a madeira como poucos, e tirar dela a canoa perfeita, que combina funcionalidade, manutenção mínima e facilidade de manejo. E o mais incrível é a forma como fazem isso: eles não trabalham com projetos desenhados em papel, construindo as canoas exclusivamente a partir de modelos mentais, o que torna seu saber ainda mais precioso. Para o feitio da canoa, os mestres recorrem aos instrumentos mais

simples da carpintaria, mas hoje também são usadas a motosserra e ferramentas elétricas para agilizar e baratear a produção. Porém, o símbolo do ofício de confeccionar canoas está em uma só ferramenta: o enxó. Um dos primeiros utensílios inventados pelo homem, o enxó tem várias funções na fabricação da canoa e é sempre adaptado de acordo com o estilo de cada canoeiro. Um desses artesãos que trabalha combinando ferramentas tradicionais às modernas é Renato Bueno, nascido em Santos e morador de Ubatuba desde os três anos de idade. Hoje, com 44 anos, reside no Perequê-Mirim e vive de construir canoas e de outros trabalhos de carpintaria. Mestre Renato, como ele é conhecido, conta que começou a aprender o ofício de pequeno, observando o tio, que fazia e consertava canoas. "Desde os sete anos de idade comecei a pegar gosto por ferramentas e a acompanhar a construção de canoas. Depois, mais tarde, fui aprender com o Baéco, de Ubatumirim, talvez o maior construtor de canoas do país inteiro, que me ensinou a bater a linha de carvão". A expressão "bater a linha de carvão" a que ele se refere corresponde a marcar as medidas da canoa na madeira bruta, o que é feito riscando a tora com carvão. Uma vez aprendido o ofício, começou a diversificar sua produção: "Fui inventando outras canoas e comecei a usar a motossera para adiantar o trabalho, e uma canoa, que antes eu tirava em 10 dias, passei a tirar em apenas um". Mestre Renato estima já ter produzido centenas delas, e não apenas para a pesca. Segundo ele, também há grande procura de canoas para serem usadas como elementos de decoração. As canoas caiçaras são feitas de diversas madeiras, entre elas o guapuruvu, o cedro e o ingá, entre outras. E aí está o aspecto da atividade que talvez mais tenha mudado ao longo dos anos: as madeiras são as mesmas de sempre, mas árvores não são mais derrubadas para a construção das canoas. Os canoeiros trabalham agora

apenas com madeira autorizada pela Defesa Civil, como árvores secas ou caídas na mata, sempre respeitando a Lei nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006, conhecida como “Lei da Mata Atlântica”, que restringe o corte de árvores e foi criada para proteger esse bioma tão delicado. Os mestres canoeiros tiveram que se adaptar à lei e hoje reconhecem sua importância. A produção foi adequada e todos continuam trabalhando, mesmo quando têm que lidar com a escassez da matéria-prima: "Acabo usando o que tiver", conta Mestre Renato. "Nem sempre a gente acha uma madeira de cinco metros. Às vezes você só tem madeiras menores para trabalhar, então o jeito é fazer canoas menores. No final, tudo vira arte", conclui. O próprio professor dele, o Mestre Baéco, declarou em uma pesquisa para o Iphan sobre a canoa caiçara que, depois da lei, passou a trabalhar com madeiras defeituosas, o que demanda mais tempo e habilidade do mestre canoeiro. A restrição ao corte das árvores da Mata Atlântica é mais um capítulo na longa história da canoa caiçara, mas essa forma sustentável de selecionar e trabalhar com a madeira não deixa de estar em sintonia com o antigo espírito caiçara de viver em harmonia e equilíbrio com o ambiente natural. Já faz tempo que a madeira deixou de ser um problema para o Mestre Renato, mas hoje ele tem uma grande preocupação: transmitir seu ofício à próxima geração. "Vou a eventos em vários lugares ensinando o que sei, já estive em diversas cidades e participei de documentários", conta. Apesar de não encontrar o interesse do tamanho que gostaria, ele não se cansa e continua disposto a percorrer comunidades caiçaras de todo o litoral norte paulista apresentando a canoa caiçara e contando como ela é construída. No que depender de mestres como ele, este é um símbolo que continuará sempre vivo em nossa rica cultura brasileira.

Mestre Renato na sua carpintaria localizada na praia da Enseada

This article is from: