A fotorreportagem como projeto etnocida: o caso da índia Diacuí na revista O Cruzeiro Helouise Costa* Museu de Arte Contemporânea, Universidade de São Paulo (MAC-USP)
A revista O Cruzeiro publicou entre os anos de 1952 e 1953 uma série de fotorreportagens sobre a relação do sertanista Ayres Câmara Cunha com a índia Diacuí. A revista ajudou Ayres a obter autorização para o seu casamento civil e religioso com a índia e teve participação ativa no processo de aculturação a que ela foi submetida. A série abrange desde o noivado de Diacuí com o homem branco, passando por sua estadia no Rio de Janeiro para o casamento e seu retorno ao Xingu, até o desfecho trágico de sua história. O foco de nossa análise neste artigo é o modo de construção do discurso jornalístico da fotorreportagem, em sua estrutura narrativa própria, expandida aqui por um tipo de seriação que muito se aproxima do modelo da novela.1 * Uma avaliação temática das fotorreportagens publicadas na revista O Cruzeiro ao longo das décadas de 1940 e 1950 nos permite identificar o papel exercido pela imagem do Outro nos meios de comunicação de massa então emergentes no Brasil. A alteridade estabelecia o contraponto necessário para a construção de representações sociais que se pretendiam hegemônicas e funcionavam como exemplos normativos. Naquele momento o Outro podia se materializar em diferentes tipos considerados desviantes – no doente, no louco, no presidiário, no negro, no índio, no malandro, 1. Este artigo, publicado inicialmente na revista Studium do Instituto de Artes da Unicamp, resultou de uma comunicação apresentada no XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Intercom em 2004. Para esta coletânea foram realizadas correções e atualizações pontuais que não modificaram a estrutura e os argumentos principais do artigo original.
no comunista e no estrangeiro –, todos eles transformados em personagens de fotorreportagens ilustradas de cunho sensacionalista.2 A imagem do índio, em particular, foi explorada sistematicamente nesse contexto. Já tivemos oportunidade de demonstrar que, subjacente ao conjunto de fotorreportagens de O Cruzeiro sobre os índios brasileiros, pode-se apreender um verdadeiro projeto de aculturação para as nações indígenas (ver Costa, 1994). O índio era considerado um empecilho para o avanço do progresso e sua imagem era incompatível com o modelo de nação desenvolvida apregoado pela revista. Inaugurada por Jean Manzon e David Nasser em 1944, essa vertente temática nos fornece exemplos contundentes do exercício da violência no processo de representação do Outro, fundamentada em relações de poder extremamente desiguais entre os detentores dos meios de representação e os representados.3 Sob esse aspecto destaca-se especialmente a série de fotorreportagens acerca do caso Diacuí, que em 2. Listei especificamente aqui os temas das fotorreportagens produzidas por Jean Manzon para O Cruzeiro entre 1943 e 1951, período em que o fotógrafo francês trabalhou para a revista dos Diários Associados. Em estudo mais recente, no entanto, observei que esses temas estiveram presentes também em fotorreportagens produzidas por outros fotógrafos da revista. Ver: Costa, 1997 e 2012. 3. A primeira fotorreportagem sobre a temática do índio foi “Enfrentando os chavantes!”. Texto: David Nasser. Fotos: Jean Manzon. O Cruzeiro, 24 jun. 1944, p.46-62 e 96, 100, 106. Embora haja fotografias de índios publicadas em O Cruzeiro antes disso, foi somente a partir de 1943 que a revista adotou o modelo da fotorreportagem internacional, segundo o qual a fotografia deixava de ter um papel meramente ilustrativo e passava a construir um discurso especificamente visual sobre os acontecimentos. Interessa-me aqui analisar somente as fotorreportagens. Sobre a temática indígena em O Cruzeiro ver: Costa, 1994; Costa; Burgi, 2012, p.42-77.
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