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Francisco Ari de Andrade
Francisco Ari de Andrade
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Introdução
O presente texto traz uma refexão acerca da ocupação política, econômica e social do espaço sertanejo cearense, a partir do último quartel do século XVII, quando se iniciam os empreendimentos das fazendas de gado na ribeira dos principais rios desse território, com destaque para o Jaguaribe.
A história política e econômica da Capitania do Ceará tem sua gênese na base das fazendas de gado assentadas nas margens de rios que cruzam o sertão em direção ao litoral.
Ao ser eleito tal tema para se discutir a origem do poder no Ceará, não há nenhuma pretensão de formulação de uma teoria política em busca de um entendimento de tal fenômeno, mas, apenas, lançar um olhar criterioso compreensivo dessa evolução política, que não seja arrogante e nem fechado em si mesmo, mas que abra espaço para o debate sobre o conjunto de fatores que vieram a contribuir, sobremaneira, na metodologia de se fazer política nessas paragens brasileiras. Com destaque para famílias poderosas do sertão, envolvidas com fazendas de gado, agenciadas na fgura de um coronel, potentado da política local, na busca do domínio político mais amplo.
A legislação portuguesa estabeleceu limites entre as áreas agricultáveis para cana-de-açúcar e aquelas destinadas à criação bovina. Reservou-se a faixa litorânea para plantação de cana e produção de açúcar. Ali se instalaram os engenhos, marco da organização política e social colonial brasileira. No
sertão, o “país das caatingas”, faixa de terra que desce das chapadas úmidas em direção ao litoral, instalar-se-iam as herdadas de rebanhos bovinos.
A partir de uma revisão bibliográfca, procura-se trazer à baila uma refexão sobre o percurso e o itinerário do processo de ocupação espacial e política da Capitania do Ceará, que se originou no sentido oposto ao processo institucional da maioria das capitanias nordestinas, isto é, do litoral para o sertão. Aqui na Capitania do Ceará, o processo se constrói do sertão para o litoral. E, precisamente, a historiografa local atribui às fazendas de gado o papel de ocupação espacial do território sertanejo e do delineamento político e institucional do Ceará.
Ao prosperarem as fazendas de gado no sertão pastoril surge a classe social dos fazendeiros, em contraposição a dos senhores de engenho do litoral. Por conseguinte, o criatório bovino dará origem à agroindústria da carne seca, a chamada charqueada, na cidade litorânea de Aracati. Não obstante, a origem e a apropriação primitiva do poder política na capitania são tributárias das fazendas de gado.
As Fazendas de Gado na Origem do Poder Local no Sertão
Cada fazenda era um microcosmo social no sertão. Era a grande propriedade. Uma unidade econômica e moral que se confgura politicamente pelo pater família. O título honorífco de fazendeiro era dado ao sesmeiro pela Coroa portuguesa. Signifcava antes de tudo homem de bens, criador bovino. Toda a vida na fazenda girava em torno da criação de gado. Aos poucos, cada proprietário foi se transformando num chefe político em torno de sua órbita geográfca, por demais limitadas, a intervir nos destinos e na vida de muita gente, apesar das relações sociais serem caracterizadas pela mão de obra livre.
Nessa base econômica e social do sertão nordestino surge uma aristocracia territorial, endinheirada, prestimosa e politicamente forte a intervir na dinâmica regional. Apesar de seu domínio político ser demarcada pela área geográfca de onde se situava a fazenda, as prósperas cidades do litoral se tornaram acuadamente dependentes da economia dos estabelecimentos rurais. Nessa relação de subordinação da litoral ao sertão reside uma das explicações para o fenômeno do coronelismo nordestino (FERNANDES, 1977, p.60).
Não obstante, o processo civilizatório cearense acontece do sertão para o litoral. Através dos rios Jaguaribe e Acaraú uma perspectiva de vida é levada às populações mestiças do semiárido.
Do Vale do São Francisco, em busca de pasto nas caatingas verdurosas, desceram as boiadas que se fxaram nas margens dos rios dando origem, anos mais tarde, às principais cidades cearenses.
Com o surgimento das fazendas de gado, a partir de meados do século XVIII, nas ribeiras cearenses, decorre a gênese do nosso mandonismo local. Cada proprietário de terra, possuidor de uma patente militar, dada pela Coroa portuguesa, passara a legislar seu território pelo poder da força. Demarcam um espaço territorial e passam a impor seus interesses acima dos coletivos. Fica o meio rural reduzido a um ambiente produtivo, mas, também, num cenário de disputas políticas, de lutas entre os próprios fazendeiros e, destes, com a resistência silvícola, que se vê ameaçada devido a invasão de seu território. Os potentados criadores de gado ambicionam, também, o controle do mandonismo local. E chegam, no decorrer do processo cearense, a se projetar como lideranças junto às forças que esboçaram o sistema político brasileiro.
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Das unidades criatórias do sertão cearense, originou-se no Litoral, principalmente na vila de Aracati, a indústria e o comércio da carne salgada seca ao sol, conhecida por charque. Não foi à toa que o historiador cearense do século XIX, Capistrano de Abreu (1988), na sua crônica resolver chamar a civilização do couro, aludindo ao desenvolvimento de indumentárias decorrentes da indústria pastoreira. As fazendas de gado foram evoluindo ao longo do nosso processo civilizatório. De microcosmos políticos independentes vieram a se constituir em vilas e cidades. Foram peças-chaves, na medida das exigências históricas, do esboço da nossa geografa política. No desenrolar do contexto histórico, foi sendo gestada uma classe social, de traços aristocráticos, territorialmente importantes que, paulatinamente, fora se apropriando do poder político na região.
A Emergência da Aristocracia Territorial Sertaneja
A classe social aludida, constituíra-se, num primeiro momento, empreendedora de gado e, num segundo, como consequência do primeiro, principalmente, detentora do controle das diretrizes políticas locais. Assim, fora surgindo um poder local, arraigado pela tradição e de base familiar, caracterizando-se pela presença central de um coronel, como entidade máxima, que incorpora a política e a justiça, guardiã da manutenção da “ordem”. Detentora da produção material da sociedade, devido à montagem de um sistema produtivo, que apesar de requerer uma mão de obra especializada no trato com os animais, entra em cena o trabalho dos vaqueiros, estivera submissa aos seus interesses, sendo o ponto crucial dessa incorporação o absoluto controle dos direitos sobre a vida e a sobre o destino fnal de todas as criaturas a seu alcance.
A respeito de tal fato, são importantes as considerações feitas por Sucupira: No Ceará, as rédeas do governo, desde os primórdios da sua formação política, estiveram sempre na dependência de poderosos grupos familiares.Isso começou com a família Castro, atuando desde os tempos coloniais, seguindo-se com as famílias Alencar, Pompeu, Feitosa, Fernandes Vieira, Paula Pessoa etc. Na monarquia as famílias Pompeu e Paula Pessoa, embora dissidentes, formavam as duas alas do Partido Liberal (SUCUPIRA, 1987, p.138).
Pelas alusões de Sucupira, denota-se uma relação de famílias cuja historiografa veio a identifcar como poderosas durante o processo de evolução social cearense, que delas tenham começado a apropriação do poder no Ceará, fazendo surgir uma elite política profundamente identifcada com a terra.
Tal elite territorial, agenciadora do ritmo e da dinâmica do mandonismo local, com infuência, em larga escala, no poder nacional, tanto no período colonial e imperial quanto nas primeiras décadas da fase republicana cearense, apropria-se, decisivamente, da capital, sede do governo, tendo em vista que é neste espaço onde rolam as transações fnanceiras e os serviços decorrentes da dinâmica da vida comercial e política da Província.
A necessidade de debruçar um olhar sobre a forma primitiva de apropriação do poder no Ceará, longe da pretensão de descortinar as teorias que discutem a origem do político no mundo moderno, busca-se, apenas, seu entendimento a partir das fazendas de gado.
Tal visão, talvez, contribua para uma melhor aproximação com as nossas raízes e, a partir dela, se possa perceber
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com maior nitidez as contradições sociais que tão fartamente têm caracterizado o nosso processo histórico.
A Territorialidade Cearense à Luz da Sua Crônica Histórica
Segundo Yaco Fernandes (1977), a colonização do Ceará começa, verdadeiramente, com a presença de empresas criadoras de gado voltadas para a exploração das terras do sertão. Para tal investimento, fora de fundamental importância o “trilho ribeirinho”, com ele destaca, principalmente o rio Jaguaribe, pois sem tal caminho, as especulações teriam fcado reduzidas, por algum tempo, a uma signifcante faixa costeira sem condições de penetrar no espaço interiorano.
Essas estradas, que os vaqueiros reinauguram, quase sempre, de jusante para montante, são a glória e a servidão das cidades sertanejas cogumeladas ao longo de seu traçado. E explicam como ninguém a maneira por que se processa a formação da sociedade cearense, particularista, familiar, excessivamente mediterrânea, – sem um pingo do universalismo que lhe daria a extensa faixa costeira, se fosse mais abordável e se se comunicasse, de modo efetivo, com as regiões do interior (FERNANDES, 1977, p.57).
Aludindo aos rios como estradas, percebe-se a preocupação do autor em demonstrar que, na origem do Ceará, está o papel desempenhado por eles. Como destaque para o Rio Jaguaribe, que vai ser considerado a ”estrada geral do Jaguaribe”, pois nas suas margens vão surgir as primeiras unidades de criação de gado. O recorte apresenta aquilo que já havia se apresentado anteriormente, que o estudo da nossa formação social nos remete à necessidade de se compreender a dinâmica das fazendas na consolidação e integração do sertão e do litoral.
Um contato com o poema “Jaguaribe” do jornalista cearense Demócrito Rocha, remete-se, também, àquele rio. Nos primeiros versos, verifcam-se imagens atribuídas, pela força poética do autor, um canto de louvor por onde correria o sangue do Ceará. É-lhe atribuída a fonte da vida do nosso povo que, ao contrário disso, não poderia ter existido. Assim se expressa o poeta: Rio Jaguaribe é uma artéria aberta por onde escorre e se perde o sangue do Ceará O mar não se tinge de vermelho Porque o sangue do Ceará É azul [...]1
Pelas imagens apresentadas, tal personagem da paisagem cearense é comparado a um organismo vivo. Daí a sua importância para a história cearense, porque a seu favor cantam e decantam os versos melodiosos de poetas, as palavras adocicadas dos cronistas da terra, além das análises sociológicas, quando se debruçam na compreensão da nossa gênese histórica.
Ao procurar apresentar ao leitor uma clareza acerca dessa faixa de terra que recebeu o título de capitania, eis o seguinte trecho trazido por Antônio Bezerra:
Situado ao norte do continente sul-africano, o atlântico deu ao seu território quase que a mesma confguração e relevo do continente africano, que lhe fca fronteiro, e grande parte do interior, aberto em extensos taboleiros que aos ardores do sol do estio se despem da ligeira vegetação , semelha em muito por esse tempo aos campos do continente negro.
1 ROCHA, Demócrito. O Rio Jaguaribe. In: SECULT. Terra da Luz. Antologia. Fortaleza: Secretaria da Educação e Cultura do Ceará, 1966. p.33.
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Há lugares que são verdadeiros desertos, e em geral, o terreno tem feição diversa da dos outros Estados (BEZERRA, 2001, p.1).
Na sequência, o autor veio a classifcar o território cearense em três zonas: litorânea, sertaneja e agrícola. A partir dessa classifcação, procura apontar algumas características psicológicas de cada habitante.
Nota-se, pelo recorte, que o autor apresenta um quadro geográfco com semelhanças com o território africano. Noutra passagem da obra, ele indagaria se os primeiros europeus que tomaram contatos com esta terra, a serviço do Estado português, no caso a expedição de Pero Coelho de Souza e depois as missões dos padres Francisco Pinto e Luis Figueira, não teriam despertado a terminologia Ceará, associando-a ao termo Saara, ou seja, o deserto?
É notório assinalar, os contrastes naturais reservados ao Ceará. Renegado a um naco de terra com variações e irregulares estações climáticas, tendo toda extensão do seu litoral, ao contrário da Capitania de Pernambuco, contornado por dunas de areias brancas, leves e soltas à mercê da direção dos alísios, marcado por vegetações rasteiras destacado pela exuberância de altos coqueiros, sob os raios do sol escaldante, impingira aos primeiros colonizadores os castigos inclementes, durante a travessia em direção à Ibiapaba. Por conta disso, a nossa experiência colonizadora fora retardada, fcando à espera dos empreendimentos na segunda metade do século XVII, quando começam os registros das primeiras fazendas de criar. Os estudos de Pompeu Sobrinho (1966) acerca dos aspectos fsiográfcos e antropológicos do Ceará vão de encontro ao ponto de partida dessa discussão, em que se procura descortinar o passado social cearense. Seus apontamentos nos colocam diante uma realidade das mais contraditórias possíveis:
O Ceará constitui vasta região intertropical, encantonada no extremo nordeste do Brasil, intimamente articulada, tanto sob o aspecto físico, como sob o social, aos estados do Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte e da Paraíba. Terra do Sol e irregular umidade, sofre os percalços destas condições e goza também os favores delas decorrentes ( POMPEU SOBRINHO,1966, p.11).
A partir do que está posto, verifca-se o aspecto natural do nosso território em situação diferenciada daqueles por onde foram empreendidos, por exemplo, os engenhos da cana-de-açúcar. Por aqui, a natureza não fora tão favorável à montagem daquelas empresas de exploração do açúcar.
O nosso litoral não ofereceu condições naturais favoráveis, pois “acompanhando de perto a linha do mar, elevam-se dunas de areias movediças à feição dos ventos dominantes.”, é, precisamente, por trás destas elevações movediças que” se estendem os tabuleiros, também arenosos, sulcados pelos rios que descem do sertão, para logo em seguido “cortados por lombadas e elevações” se projetarem as famosas “terras mais altas do sertão”. (POMPEU SOBRINHO, p.12)
E naquelas paragens altas e longínquas do litoral, vai acontecer a revolução da terra cearense: o forescimento das fazendas de criar bois. O sertão vai demandar a expansão demográfca do território cearense, por força da pecuária.
Voltando a Pompeu Sobrinho, este considera que, diante das contradições geográfcas do espaço cearense, fora a única atividade econômica possível naquele processo de colonização. Segundo ele, alguns fatores contribuíram para o desenvolvimento dessa atividade no solo cearense. A começar pela atividade em si que não requeriria um aviltado número de trabalhadores. Além disso, dispensaria a montagem de uma engrenagem bem como de um conhecimento especializado,
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(uma ciência), capaz de fazê-la funcionar. Sem levar em conta que o gado se transportava por si e não precisava de estradas.
As condições físicas da região, fnalmente, ganham uma apreciação louvável pelo referido autor, principalmente no que facilita ao deslocamento e a fxação dos rebanhos:
Corroborando tal discussão, Fernandes (1977), também, procura apresentar uma descrição daquela realidade seguindo o mesmo viés de raciocínio do autor, anteriormente apreciado. Para este, toda dinâmica do processo cearense giraria em torno da água. Daí a importância dos rios, pois dos sopés das chapadas úmidas brotam essas fontes, que ao descerem a procura do litoral, vão recortando, quase que em linha reta , o solo do sertão, e trazendo durante as cheias periódicas a fertilização ao solo, brotando neste a vegetação típica da região, vindo a integrar o chamado “ o sistema-Nilo do Ceará”. Pelo olhar do cronista:
Da raiz das chapadas, as terras descem para o mar, num plano inclinado de ondulações sempre mais ligeiras, que os agentes físicos e químicos laboriosamente vão nivelando num desmarcado e único pléneplain: é o sertão, país das caatingas.
Com tal investida, o sertão vai contornando a linha da civilização cearense. Vai aos poucos sendo moldado aquilo que tornaria o reduto de famílias abastadas. Os sesmeiros vai construindo as primeiras, porém primitivas, edifcações no espaço sertanejo.
E da forma como o meio rural ia sendo deforado, as populações nativas eram dizimadas ou empurradas mais para dentro daqueles confns. Qualquer reação por parte das tribos que habitavam o sertão, que se vira atingida pelo usufruto de suas terras, entrava em ação o poder da força delegado aos sesmeiros pelo Estado lusitano.
As Relações de Poder na Sociedade Sertaneja
Ergue-se tal sociedade a se confgurar numa nova dinâmica da geografa política nordestina, como aquela em que pesa a seu favor a existência de classes sociais compostas por homens supostamente livres, articulados, direta ou indiretamente, com os negócios da lida do gado. Nas relações de trabalho numa fazenda de gado, como é destaque na análise sociológica, não se aplica a metodologia escravista dos engenhos, mas as relações livres embora rígidas e estreitas. O critério da obediência ao dono da fazenda era uma das exigências aos agregados da estância. O não cumprimento das regras estabelecidas pelo fazendeiro, de acordo com as matrizes advindas da celebração do pacto colonial, cabia punições que iam da prisão à decretação de morte.
O gado no pasto é criado às soltas. O trabalho dos vaqueiros, na lida com o gado, era livre. Os currais de confnamento serviam aos animais apenas durante o período de estiagem. Mas, a fazenda mantém pessoas sob as intenções do proprietário. Índios convertidos ou mamelucos compunham uma classe subalterna, ao lado do fazendeiro, do padre, da guarda de segurança, dos mercadores e agregados. Eis que assim se descortina uma nova perspectiva social para o Ceará. Por assim lentas e trabalhosas as viagens, ao sabor caprichoso das necessidades bovinas, e porque o sertão pulula da indiada hostil, os homens se reúnem em grupo numerosos, verdadeiras caravanas, para a realização das jornadas; convencionam-se locais certos e épocas determinadas para esses encontros: tal como no cruzamento das grandes estradas e nos vaus mais difíceis dos rios (quando correm), nesses pontos de reunião surgem ranchos onde demoram os viandantes e para os quais acorrem os selvagens circunvizinhos e os desinquietos
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negociantes que andam acima e abaixo trafcando as suas mercadorias. O pouso dos tangerinos transforma-se num posto de trocas e de intenso comércio sexual; aparecem as primeiras vendas e bodegas: é uma cidade que nasce. A fórmula conserva-se e aperfeiçoa-se: na seqüência, quem quer fundar uma cidade instala à beira da estrada, num lugar de águas fáceis e próximas, uma tasca onde haja aguardente, uma casa de raparigas e, se possível, uma capela. É o quanto basta. (FERNANDES, 1977, p.58)
O recorte ilustra bem as classes sociais que manifestam dentro do processo histórico enfocado. Como podemos notar, apesar das colocações grosseiras que aos olhos de uma nova interpretação sociológica não reduz os silvícolas cearenses a selvagens, aparecem fazendeiros, tangerinos, comerciantes, prostitutas de ganho etc.
Na sequência de tal identifcação, o autor apresenta outro recorte de tal realidade em que podemos perceber a dinâmica do mundo do sertão, em processo, possível de se compreender a questão das classes que se aglutinam em torno do processo de produção implantado na região naquele período.
A população dessas aldeias é extremamente futuante, seu número está na razão direta da importância das estradas que se servem. Seus elementos fxos são um diverso refugo humano: terrível malta de mestiçozinhos semi-selvagens, vagabundos e desordeiros [...]. Com o tempo, acomodam-se às aldeias artistas de variados ofícios, prosperam os acanhados comerciantes, a população vai-se estabilizando. Já cidades, entretanto, esses aglomerados humanos se compõem de artífces, negociantes, funcionários da administração, trabalhadores braçais e uma amálgama informe de indivíduos sem profssão conhecida ou honesta.(FERNANDES, p.59)
A descrição do referido autor é precisa por aproximar uma compreensão micro das classes sociais dentro de tal sis-
tema. A ressalva pertinente da análise destaca pessoas à margem daquela sociedade, que se confgurava no sertão. A miopia sociológica impediria uma leitura mais crítica do processo de acumulação de riqueza na região, sobretudo naquele momento de apropriação primitiva de poder e de capital, em que as relações de mando se davam através da força física pelo uso da violência do mais forte sobre o mais fraco. Mesmo assim, feito tal comentário, a geografa política do espaço sertanejo vais sendo esboçada como a presença de tais personagens.
Uma compreensão da nossa história sem levar em conta a apreciação do campo de força a existir entre as camadas sociais que disputam o direito à vida num território, naturalmente adverso, porém transformado pela ação humana, num mundo político extremamente conservador aos interesses da elite emergente, tornando-a fosca aos olhos ansiosos por uma análise mais compreensiva.
Como critério de discernimento acerca da discussão, que vem sendo desalinhada do novelo que entrelaça a história cearense, debruça-se uma apreciação sobre as fazendas de gado no sertão naquele contexto. Tal olhar se monta a partir de uma apreciação da literatura de fcção, tida como regionalista, pois dela é possível identifcar as imagens expressa pelo senso de produção estético de seu autor. Para tal apreciação fora eleita a obra O sertanejo do romancista cearense José de Alencar. Pelo enredo da obra se passar numa fazenda no interior do Ceará, permite ao leitor uma aproxima e compreensão das relações sociais, tanto numa escala ampla quanto particular, do microcosmo político que representara a fazenda de gado no espaço sertanejo nordestino.
É, precisamente, à cata das imagens existentes no enredo da narração em destaque que o presente estudo se direciona agora. Nele verifca-se a dinâmica interna ao mundo
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das fazendas como tentativa de rever a base onde se origina o mandonismo político cearense.
A fazenda de gado fora um microcosmo político no semiárido cearense. Dito isso, tal terminologia sugere que na base de sua organização, além da atividade econômica, há, também, um poder politicamente constituído, que opera dentro de uma demarcação geográfca. O campo de força girava em torno do território de domínio da fazenda e fora representado na fgura central de seu proprietário, que viera a receber do próprio Estado português uma patente militar. De posse de tal poder na capitania, que lhe corresponderia a responsabilidade pela preservação da unidade territorial dos domínios lusitanos, mediante a defesa da posse contra as invasões de outros Estados europeus, principalmente franceses e holandeses, passa ele, então, a legislar, também, em defesa dos valores exauridos do que fora estabelecido pela celebração do pacto colonial. O absoluto controle de tal ordem impõe um sistema político-jurídico na colônia onde essa fgura, em nome da Coroa portuguesa aplicaria, radicalmente, o poder de julgar e decidir sobre a vida e a morte dos súditos.
Um olhar atencioso sobre alguns recortes da obra alencarina O Sertanejo, sem a pretensão de transformá-la em depoimento histórico, mas ao mesmo tempo apresentá-la como suporte na reconstrução do real, observamos algumas situações que nos remete a refetir a dimensão da ostentação do poder que emana a partir das fazendas.
A Fazenda Oiticica de propriedade do capitão-mor Campelo fcava no sertão do Ceará. A descrição do espaço ocupado por ela segue a narrativa do autor:
A morada da Oiticica assentava a meio lançante em uma das encostas da serra. Erguia-se do centro de um terreno revestido de marachões de pedra solta. Por diante, além
do terreiro, descia a rampa com suave ondulação até a planície; atrás da habitação, remontava-se ao dorso de uma eminência donde caia abrupta sobre um vale profundo que a separava do corpo da montanha. Na frente elevava-se no terreiro, a algumas braças da estrada, a frondosa oiticica, donde viera o nome à fazenda. Era o gigante da antiga mata virgem , que outrora cobria aquele sítio.[...] As casas da opulenta morada eram todas construídas com solidez e dispostas por maneira que se prestariam sendo preciso, não somente à defesa contra um assalto como à residência em caso de sítio. Ocupava a maior área do terreiro um edifício de vastas proporções que prolongava duas asas para o fundo, fanqueando um pátio interior, bastante espaçoso para conter horto e pomar. À extremidade de cada uma dessas asas prendiam-se outros edifícios menores, alguns já trepados sobre os píncaros alpestres, porém ligados entre si por maciços de rochedos que formavam uma muralha formidável (ALENCAR, 1982, p.24).
Percebem-se na narrativa aqueles edifícios construídos no sertão por força do novo ciclo da economia nordestina, o ciclo do couro, a representar um novo ambiente social e político, com suas contradições e embates internos.
Apreciação Final
Aqui não se encerra essa discussão. Pode-se assegurar um primeiro passo, como uma tentativa de compreender a origem do nosso estado e das suas relações sociais e políticas. Retratar a história das fazendas de gado no sertão cearense é não desconsiderar as nuances dos grupos políticos que vão estar à frente dos destinos políticos da nossa sociedade,
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no limiar da consolidação do Estado brasileiro, por todo o século XIX.
Estudar a nossa história é fcar atento ao modelo social que se descortina a partir da segunda metade do século XVII, com a expansão das fazendas de gado. Porque daquele modelo de unidade produtiva, mesmo que pese contra si a falta de uma racionalidade capaz de usar conhecimentos para prever e prover as consequências das intempéries naturais, tão adversas, que poria fm àquele ciclo novidadeiro na economia colonial, não se deve deixar de enxergar que daquele modelo econômico e social brotou o modelo institucional da sociedade cearense, que veio a se consolidar a partir do ultimo triênio do século XVIII e até a segunda metade do século XIX, tendo Fortaleza como sede do governo a representar a centralidade do poder político e pela via parlamentar a congregar, na Assembleia Provincial, os representantes políticos dos interesses da aristocracia territorial do sertão.
Finaliza-se estas traçadas linhas pedindo licença para reafrmar ser sempre desafante diante daquilo que se pretende apresentar em sintonia com o ponto de vista de quem o lê, que na maioria das vezes busca encontrar, nas suas páginas, respostas às inquietações latentes que carecem de caminhos. Nesse sentido, tal empenho esbarra na necessidade de se reconhecer que há algo mais a ser dito, principalmente se tratando de olhares sobre universo contraditório como o em apreço.
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