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Josier Ferreira da Silva

A CIDADE E A CONSTRUÇÃO DA CULTURA NOS ESPAÇOS FESTIVOS CATÓLICOS

Josier Ferreira da Silva

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Culto ao Santo: uma Dimensão Simbólica na Demarcação e Legitimação do Território Apropriado

A religiosidade católica acompanhou a ocupação territorial da América como fator orientador da cultura e da vida social em sintonia com as pretensões políticas e econômicas estabelecidas pelo mercantilismo. A legitimação da apropriação propriedade da terra, na condição de o colonizador ser católico, demarca de forma categórica a importância política da religião no processo ocupacional do Brasil, intervindo na produção da espacialidade enquanto representação da cultura materializada. As expressões simbólicas do catolicismo efetivadas pela religiosidade católica expressam uma concepção de mundo e de vida inerente ao modelo colonizador europeu, cujo poder político, se expressa nas relações de dominação e de estabelecimento de padrões morais que contemplam o modelo de exploração territorial sob a lógica do capital.

Assim, o catolicismo, enquanto cultura religiosa introduzida pela ocupação territorial, cumpre o papel de assegurar do ponto de vista normativo os preceitos morais que se identifcam com o estabelecimento de uma sociedade agrária, e se sobrepor à tradição milenar de crenças e rituais que representavam a concepção de vida e de vida dos nativos.

As festas de padroeiros remetem à necessidade do entendimento do aspecto religioso católico na composição da formação e apropriação territorial do Brasil. Neste caso, a religião católica aparece historicamente como fator de unidade e colaboração no processo de aplicabilidade de normas entre a

população, regulando a vida social no processo do estabelecimento de vilas e povoados. Essa conjuntura social se consolida numa base territorial, que recepciona os rituais e símbolos como expressão da vista sentimental e espiritual. Nestas condições, a espiritualidade manifestada em ritos se agrega aos lugares, que ganham importância simbólica na composição de uma paisagem cultural.

Inicialmente, é bom lembrar que as festas urbanas de padroeiros, como o próprio meio urbano, onde se operacionaliza seus rituais mais signifcativos, tais como missas e quermesses e hasteamento da bandeira em louvor ao santo cultuado, tem a sua origem forjada nas articulações sociais da sociedade agrária. Nestas condições, o urbano que se contextualiza na modernidade, é apropriado pela tradição, cujas raízes derivam do passado social camponês, e que, se mantém secularmente, operacionalizadas pela população em seus respectivos lugares, orientadas pela especifcidade dos fatores históricos e sociais de cada município.

Tratando-se das festas de padroeiros, no Cariri cearense, é importante ressaltar essa relação, entre o presente festejado e o passado que lhe deu origem. A religiosidade que se expressa na contemporaneidade, tem a sua origem no fator da indissociabilidade entre apropriação da terra e catolicismo, como elemento legitimador da sua apropriação e exploração, conforme a lógica da exploração territorial vinculada à dinâmica comercial. A dimensão religiosa acompanha e integra a produção espacial dos estabelecimentos rurais, cujos surgimento e desenvolvimento das atividades agrárias, se fundamentam na unidade socioideológica entre o colonizador e a Igreja Católica.

Na inserção do catolicismo no serão, Hoornaert (1989), refere-se à dimensão festiva das “santas missões” efetivadas pelos padres no interior cearense.

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O vaqueiro, que lidava com o gado, era um homem solitário, pois o proprietário do gado vivia nas cidades do litoral e o seu vizinho mais próximo vivia a uns três quilômetros de distâncias pelo menos: cada curral tinha meia légua de extensão, no mínimo. Daí porque a visita do padre é esperada com muito carinho e que não devemos exagerar a infuência da pregação missionária sobre a alma do povo: ela teve também seu aspecto muito positivo, sobretudo possibilitando momentos de lazer e encontro no mundo desolado por currais e das fazendas. Assim continua sendo até hoje: a Igreja possibilita o encontro entre pessoas, abre espaços festivos no meio da rotina da vida cotidiana, lembra ao povo que não se vive só para trabalhar e sofrer mas também para alegrar-se e festejar (p.57-58).

O fato da legitimidade da posse da terra, ser historicamente vinculada à condição do requerente ser católico, sinaliza o grau de comprometimento das articulações entre o Estado e a Igreja Católica no processo de formação territorial. Nessas condições, a coroa portuguesa busca da efetivar a colonização, optando pela doação do seu território aos fdalgos da Europa, cuja estabilidade econômica, sinalizava ser capaz de atender as expectativas de exploração da área ocupada. Assim, transferência da terra se efetiva no Brasil tendo como sujeitos, homens de posse, que encarnam o poder político e econômico em suas localidades norteadas ideologicamente pelo catolicismo, que legitima os valores morais e sociedade.

O fato de dotar as áreas ocupadas de infraestrutura, tais como lavouras, currais, engenhos, casa de morar, atendendo as exigências de exploração do Estado português para se manter no cenário político e econômico mundial, vai criando as bases para o adensamento demográfco que resulta na formação dos primeiros núcleos urbanos do interior nordestino. Esses processo, ocorrem sob a vigilância ideológica do catolicis-

mo e defne o estabelecimento de relações amistosas entre o poder político-econômico representado pelos fazendeiros e o poder atemporal representado pela Igreja. Nestas condições, esta última participa da efetivação da produção espacial das fazendas através da materialização da fé, expressada na construção de templos católicos. Nessa relação amistosa, é a Igreja, agraciada pelos proprietários rurais, com bens materiais, tais como terra, gado, escravos e outros, que passam a integrar seu patrimônio, inaugurando a implantação da religiosidade católica nas localidades em torno da devoção de santos europeus introduzido pelos colonizadores nos povoados.

Essa dimensão religiosa ganha uma expressão simbólica, comunitária, capaz de manter em torno do santo, a unidade do grupo social e colabora na legitimação das relações entre o Estado e a Igreja na vivência cotidiana. A introdução de um santo católico nas localidades rurais, no momento da gênese de sua formação, demarca a dimensão religiosa, materializada, no processo da sua produção espacial. Isso também se manifesta nos ritos que passam a integrar a espiritualidade da população local. Vale ressaltar, que nesse processo, que as comunidades rurais, no futuro, se transformam em povoados, vilas e cidades, cujo santo introduzido como referência do exercício, não são escolhidos por elas, e sim pela vontade do colonizador. O santo a ser cultuado nas áreas colonizadas geralmente corresponde ao santo de devoção da propriedade de origem dos proprietários que se estabelecem nas localidades, como uma espécie de extensão cultural da religiosidade da sua terra natal.

Essa condição é de grande importância, no entendimento a prática histórico-social e coletiva da fé católica da população, em torno dos seus santos padroeiros. O próprio nome padroeiro vem do termo padroado, que consiste no estabelecimento do sistema de padroado, introduzido pela constituição

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de 1824, que legitima o Catolicismo como religião ofcial do Brasil, onde a Igreja se vincula institucionalmente ao Estado e com ele compartilha a vida política, condicionando o clero às ações do Estado.

O Urbano como Lócus da Interatividade Política e Eclesiástica

No aspecto urbano, o surgimento de povoados, vilas e cidades deriva de antigos ambientes rurais, caracterizados pela pratica da agricultura e da pecuária, como principio básico do estabelecimento e fxação dos colonizadores, não obstante, também ocorram o surgimento de núcleos urbanos decorrentes de aldeamentos indígenas, sob a orientação do clero que exerciam atividades catequéticas. Assim, os núcleos urbanos surgem como um elemento, historicamente vinculado das propriedades rurais, cujo desenvolvimento, marcado pelo adensamento populacional e pelo fortalecimento da dinâmica das relações de produção vigentes são assistidos culturalmente pelo catolicismo.

Nesta perspectiva, a religião emerge como um elemento regulador da vida social, dos princípios morais e de comportamento que caracterizavam a sociedade agrária e patriarcal, sendo a Igreja Católica uma instituição necessária na operacionalização e ordenação das ideias, em consonância com os padrões sociais desejados pela colonização. Do ponto de vista cultural, a construção de capelas rurais, representa a materialização mais expressiva das ideias, da espiritualidade, de concepção de vida e de mundo que orienta a comunidade. Como um componente simbolicamente expressivo na espacialidade, ela a partir dos seus rituais católicos, converge a sociedade, como lócus de monitoramento da orientação da vida, amparada na dimensão mística da Igreja.

Neste sentido, o santo padroeiro adotado pelo colonizador tem o papel de ordenar e fortalecer a unidade da fé católica entre os habitantes do lugar em sintonia com os padrões e valores da sociedade agrária. Nesse processo, o sistema de padroado projeta e legitima a articulação entre o poder eclesiástico e poder político, respaldando os padres como funcionários públicos, cuja nomeação, para o exército das atividades religiosas nas paróquias, se realiza por determinação de leis estatais.

Essa unidade político-ideológica, ente Igreja e Estado, que se afrma no surgimento e consolidação dos grupos urbanos, é notória na forma de operacionalização da política, onde a paróquia torna-se a forma de organização do eleitorado, e os templos se constituíam em sedes de votação, com suas respectivas mesas paroquiais de recepção de votos. Do ponto de vista censitário, a população nas áreas ocupadas era contada por “almas”, num indicativo de que o reconhecimento e afrmação do sujeito como habitante, pelo Estado eram condicionados ao fato de ser batizado, bem como, o reconhecimento da sua morte, pela certidão de óbito, declarada junto a paróquia. Os padres, não raro, se constituíam ao mesmo tempo, agentes políticos e religiosos de suas localidades. O foco nesses fatores históricos evidencia o nível de comprometimento político e ideológico entre as instituições públicas, religiosa e familiar na orientação sociocultural da população.

Neste cenário histórico-social de recepção, buscamos entender como se projetam as festas dos padroeiros das localidades, como um marco de fortalecimento da fé católica aliada à administração pública e que promove a unidade espiritual dos habitantes em torno de um santo. Nestas condições, evidenciamos que tanto a população subalterna, na luta pela superação da sua condição de explorados, bem como, as elites

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no desejo de manutenção dos padrões morais e sociais estabelecido pelo modelo de sociedade vigente, tem na religião o ponto de apoio de suas expectativas. Apesar de o catolicismo se constituir no ponto de convergência de praticas espirituais, os templos se caracterizam como um espaço de segregação, onde os negros eram proibidos de frequentar. Esse fato faz com que eles os negros se organizem em irmandades religiosas, sob a devoção de um santo católico, com eles identifcados, tais como São Benedito ou Nossa Senhora do Rosário, e construíssem seus próprios templos para o exercício da sua espiritualidade.

Independentemente das classes sociais, a religiosidade é um fator presente na vida social das localidades, que elegem um período do ano, como momento de intensifcação do culto aos seus respectivos padroeiros, fortalecendo a unidade de ações e de pensamento norteados pelos valores religiosos, como um componente social. Assim, as festas dos padroeiros das localidades exercem o papel normativo nas relações sociais, de unidade de refexão do povo, como momentos de promoção do exercício coletivo da sensibilidade da espiritualidade, e que, integram o universo cultural da comunidade.

Festas de Padroeiros no Cariri: o Rural Dominado pelo Urbano

Tomando os municípios do Cariri cearense como referência de análise, convém lembrar que suas festas de padroeiros não se impõem como sinal de modernidade, ao contrário, a modernidade busca a sua promoção pela tradição, intervindo sobre ela atribuindo-lhes novo signifcado cultural.

Os antigos estabelecimentos rurais se desenvolveram no Cariri e no nordeste, de forma geral, dando origem a evolução dos núcleos urbanos no semiárido. A projeção urbana em

áreas correspondentes aos antigos sítios e fazendas não aboliu as características socioculturais marcadas por valores sociais agrários, patriarcal, que continuou a ser exercida no cotidiano dos povoados, vilas e cidades. Dessa forma, os núcleos urbanos surgem preservando a sua matriz ideológica da sociedade rural na orientação política das relações sociais estabelecidas no ambiente urbano. Não obstante a intenção de se implantar a modernidade pela via industrial ou tecnológica, o cotidiano dos lugares sertanejos se manteve entre gerações, preservando os padrões culturais dos ambientes agrários que lhes deram origem.

Neste aspecto, a religiosidade consiste num fator que orienta a permanência de padrões e de concepção de vida e de mundo, onde as festas e ritos religiosos continuam inalterados, ignorando a projeção do ambiente urbano sobre os antigos ambientes rurais. Assim, a cidade surge preservando suas relações socioculturais e de poder, numa conexão histórica com o passado, que lhe recepcionou. Num confronto com a modernidade, talvez as festas de padroeiros sejam quem melhor exemplifcação de permanência da tradição rural no mundo contemporâneo, executada no ambiente urbano, que mesmo resultando da intervenção da técnica, elege os costumes e tradições como forma de promoção econômica a partir do turismo.

Vale ressaltar, que não é o fator religioso orientado por princípios e rituais que se agrega à modernidade, mas, ao contrario, é a modernidade que se aproveita da tradição para promover o espírito comercial e a massifcação da cultura. É ela que se apropria do calendário religioso, dos momentos de convergência da movimentação social em torno das festividades dos municípios, para se promover a partir do espírito comercial. Isso evidencia um paradoxo, visto que ao mesmo

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tempo em que a lógica do capital intervém na originalidade dos festejos, busca a sua projeção midiática como forma de fortalecer suas expectativas econômicas.

Um dos fatores que colaboram com o processo de resignifcação das festas orientada pela dimensão econômica é o turismo, que aproveitando as manifestações populares como potencialidade de atração de visitantes aos lugares. Não raro, a incorporação da tradição ao turismo ocorre com ênfase eminentemente na dimensão econômica, ignorando as suas condições de inestabilidade cultural e ambiental, sobretudo a dimensão humana dos sujeitos envolvidos que matêm a tradição. Nessa ótica, tomando o município de Barbalha, ao sul do Ceará, como referência, é perceptível que a gestão pública da cultura tem tomado as manifestações culturais de origem rural como expressão de identidade cultural e religiosa do município, para fortalecer turisticamente a festa do seu padroeiro Santo Antônio, sem, no entanto, promover ações no campo da preservação das tradições rurais, a quem recorrem, em suas localidades de origem.

Isso se evidencia no fato de se promover o deslocamento de grupos religiosos e de brincantes da zona rural para compor um “desfle” por ocasião da abertura dos festejos juninos do padroeiro, onde se percebe a cada ano uma menor participação dos grupos de tradição, decorrente da falta de incentivo para valorizar e garantir a sobrevivência das suas tradições culturais. Trata-se da falta de perspectiva de incorporação dessa potencialidade turístico-cultural a proposta política de desenvolvimento local regional.

Muitas vezes, a dimensão midiática e a ênfase aos festejos marcados por sua espetacularização faz os gestores da cultura, ignorar brincadeiras e brincantes, como elementos simbólicos da originalidade agrária dos festejos. Nesta condição,

exemplifcamos o esquecimento por alguns anos consecutivos, da brincadeira do “pau de sebo”, como um componente dos festejos juninos, na festa de Santo Antônio de Barbalha. Da mesma forma, o falecimento dos mestres vai esvaziando os rituais, fazendo desaparecer determinadas manifestações agregadas à festa. É o caso da ausência do mestre Zé Velozo, conhecido como Pavão, que após a sua morte, deixou a condução do ritual do carregamento pau da bandeira de Santo Antonio de Barbalha, desprovido do espírito contagiante dos seus cantos e brincadeiras.

O urbano como palco das manifestações rurais, centrado na festa dos padroeiros no contexto de modernidade, recepciona alem dos interesses comerciais, os interesse políticos, que dialoga com o espírito de espetacularização dos festejos e promovendo facções políticas e comprometendo ainda mais a sustentabilidade cultural das tradições. Exemplifcando essa realidade, tem sido é comum, o carregamento de pessoas sobre o mastro de Santo Antônio de Barbalha, na busca de ganhar visibilidade política perante a população que participa da festa. Uma prática que se agregou ao rito e que ate a década de 1970, era restrita apenas à lideranças dos carregadores do mastro, devotos de Santo Antônio..

Podemos então, identifcar que a cidade, no espírito de modernidade recepciona as tradições, cada vez mais desarticuladas da sua originalidade, e que passa a ser retomada quando se objeto de investigação em trabalhos acadêmicos. A incorporação de interesses e aspectos da modernidade aos rituais festivos urbanos passa a se constituir em objetos de discussão entre os que aprovam as festas meramente como espaços de promoção da econômica, e, que para isso, recorre a cultura de massa, sobretudo bandas urbanas de forró, e, os que, numa leitura histórico e antropológica, atentam para

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a perda da identidade do lugar, como um contraponto a sua origem que deita raízes na tradição rural. Tal fato tem provocado de forma visível a redução e extermínio das tradições populares, que geralmente são marcadas pela simbologia do catolicismo popular.

Fé e Diversão: as Festas e a Produção de Espaços Híbridos

Tratando-se do urbano como ambiente receptivo aos festejos religiosos, é importante, no contexto de modernidade, perceber as diversas funções que nele se manifestam por ocasião das festas religiosas. O comércio e os lazeres se impõem como fatores atraídos pelo ambiente festivo, demarcando suas presenças nos arranjos espaciais que se constroem por ocasião da festa. Nesse sentido, o ambiente urbano, fxo, dotado da materialidade de residências, urbes, igrejas, praças, passam temporariamente a recepcionar outros serviços, tais como atividades tais como barracas de bebidas, jogos de azar, barracas de tiro ao alvo, parques de diversão e palcos de apresentações artísticas.

Esse arranjo espacial constituído de intervenções antrópica permanentes e efêmeras se articula com o imaginário coletivo, que elege o santo festejado como referencia e justifcativa da especifcidade da organização socioespacial da fé e do lazer. O sentimento religioso interage com o sentimento festivo que se articula e dialoga com a materialidade urbana, fxa e móvel, que lhe recepciona. Apesar de separados por funções diferenciadas, o espaço do lazer e religioso interagem, como se um fosse a extensão do outro na efetivação da dinâmica do ambiente festivo. Nestas condições quando se fala na festa do padroeiro, as lembranças reivindicadas pelos devotos é a da complexidade de movimentos em torno do santo.

Essa complexidade de funções festivo-religiosas leva, inclusive, a uma difculdade de delimitação de territórios entre o profano e a sagrado, em que quermesses, barracas de comidas e bebidas, apresentações artísticas ocorrem no entorno da Igreja, como extensões do ambiente físico que sedia o exercício da fé e que tem a mesma motivação religiosa para sua existência. Assim, a espacialidade projetada nos ambientes festivos traduz, simultaneamente a dinâmica religiosa e comercial nela envolvida.

Quando se trata de uma manifestação religiosa, marcada pela permanente mobilidade de romeiros no entorno de santuários, se vislumbra uma manifestação espontânea do comércio nos locais onde elas ocorrem, que resistem e ignoram à disciplina imposta da legislação urbana. Nesse caso, o poder público local tem encontrado difculdade em impor a sua ordem reordenação do espaço sob a lógica técnica da legislação.

Acontecimentos e fenômenos religiosos tais como atribuições de milagres a pessoas contemporâneas da população em determinadas épocas, como no caso do padre Ibiapina e do Padre Cícero, promovem de forma impactante a mobilidade de pessoas em torno dos fenômenos ocorridos. Esses eventos elegem e delimitam um território sagrado, projetando uma organização espacial articulada com a fé, materializada em templos, obeliscos, arcos, túmulos, cruzeiros que se projetam nas cidades. Pintaudi (1997) expõe que a

a materialidade da cidade tem importância não apenas porque permite que ela exista e funcione, porque o concreto adquire um valor simbólico. Compreender o imaginário signifca compreender, na escala da vida cotidiana, a procedência social das imagens (a que grupos pertencem, que experiência carregam), itinerários, relações passadas e presentes, e, portanto, desde logo signifca entender que ele não é um só (p.217).

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Imperceptivelmente a dimensão física do espaço é reivindicada pelo imaginário que ganha uma dimensão simbólica e interage com o imaginário que lhe respalda, seja no meio urbano ou rural, como no caso dos locais de vivência do padre Cícero e do padre Ibiapina, nas localidades do Horto e no Caldas, respectivamente nos municípios de Juazeiro do Norte e Barbalha. Locais respectivamente correspondentes aos espaços vividos e receptivos às manifestação de fé, expressada nas romarias.

A frequência aos locais e a intensifcação de deslocamentos de devotos a uma determinada área depende do conhecimento histórico de fatos relacionados com a fé, por parte da população. A propagação em larga escala desses acontecimentos entre as gerações delimita a convenção dos lugares como sagrados e à intensidade de movimentos de acesso. É possível que a falta de transmissão do conhecimento de fatos religiosos, que ganharam no passado o status de milagres pelo povo, e que, no passado, tenham impulsionado peregrinações e romarias a um lugar, no presente tenha perdido a representatividade pela falta de propagação dos acontecimentos entre as futuras gerações. É o caso do Caldas, em Barbalha – CE, cuja fonte, admitida como miraculosa, na cura de enfermidades no século XVIII, e que resultou em romarias para a localidade e construção da Capela do padroeiro, hoje, se tornou inexpressiva no aspecto de fomento religioso, passando a integrar um espaço comercial de lazer representado por um balneário, cujas gestões administrativas desconhecem e ignoram a memória religiosa do lugar.

O deslocamento de pessoas ou exercício de rituais motivados pela crença permite dotar as vias de acesso e lugares de uma simbologia representativa do imaginário católico. Nestas circunstâncias, o exercício do catolicismo popular, seja em ro-

marias, grupos de oração de penitentes, danças e folguedos rurais sintonizados com a religiosidade permitem a interatividade e articulação de espaços, centrados na mesma lógica de fé católica. Assim, o catolicismo tradicional se manifestado no meio rural, pela dimensão universal do exercício da fé cristã, se articula com outros espaços tendo a fé e a simbologia religiosa, materializada em cruzeiros, cemitérios, como pontos de convergência do mesmo imaginário católico.

Na lógica da modernidade e a incorporação da cultura ao turismo, adota esses elementos materiais e imateriais do espaço como referenciais de atração de pessoas, passando a constituir imagens de folders, cartazes e revistas, expressando especifcidades locais. Nessa lógica, as festas de padroeiros são incorporadas ao turismo, como uma atividade econômica, que num contexto de globalização, ganham novos signifcados que dialogam com a atividade comercial. Estamos vivendo uma nova referência de mundo, um mundo globalizado onde o volume e a velocidade da informação circulam instantaneamente em várias partes da Terra, acelerando os processos culturais e dando novos sentidos às identidades culturais. Identidades estas que estão em permanente movimento de negociação e articulação nos limitados fuxos de inter-relações das sociedades, que com suas artimanhas simulam e modelam novas experiência culturais. No mundo atual, as identidades culturais são menos rígidas, estão em permanente (re)processamento, mesmo as mais resistentes como as familiares e religiosas só para citar dois exemplos fortes da região nordestina (TIGREIRO, 2004, p.73).

Nessa proposta, religião e comércio são componentes dos festejos, independentemente ou não da posição ofcial da Igreja que apela para a separação destes fatores. A festa como expressão turística é vista como um todo, e a sua dimensão

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religiosa é articulada com a dimensão econômica que nela se faz presente. Muitas vezes a concepção de festa difere entre os agentes clericais e os agentes culturais, econômicos e administrativos que se envolvem na sua realização. Não raro, os primeiros, na intenção de fugir do foco dos questionamento sociais relacionados ao ambiente festivo, tais como a violência e impactos ambientais, fortalecem a dimensão religiosa como única característica que legitima os festejos, ignorando as expressões profanas que neles se manifesta.

As Festas de Padroeiros como Saberes Herdados

A festa revela a alegria, a vida em comunidade em torno do santo. É o momento de expor as angústias e o agradecimento ao santo pela sua intervenção na superação de problemas, através do pagamento de promessas alcançadas pelos feis por ocasião das procissões. O pipocar dos fogos, bandas de música e quermesses são representações sociais da alegria vivida em torno do santo cultuado. Assim, no ambiente festivo, a dimensão religiosa, espiritual não ocorre desarticulada e descontextualizada do clima de contentamento dos féis, que também buscam a diversão por ocasião dos festejos nas comunidades, como forma de expressar suas alegrias. Ela é simultaneamente exercida como forma de comemorar a esperança, de expressão de vida e de fé, momentânea ou duradoura, como contraponto as adversidades. A procissão do santo se constitui no momento de pedir e agradecer as graças ao santo, assim se torna um espaço de manifestações de alegrias e tristezas, que se converte em esperança, que existe por tradição entre sucessivas gerações.

Nessa condição, a população ao adotar o santo como protetor de suas vidas, deixa ocorrer, de forma implícita, a

transmissão de saberes e práticas culturais religiosas que se constituem em elementos da sua devoção. A fé, apesar de ser pessoal e individual, toma o padroeiro como uma referência herdada de uma memória coletiva religiosa e que contribui para a sua manutenção das tradições. É importante lembrar que as gerações que festejam os santos em suas localidades no presente, assim o fazem por tradição, e essa tradição se mantém pela transferência de valores, saberes, e práticas culturais, relacionada a uma concepção de vida e de mundo amparada na religiosidade em torno do santo cultuado. Daí, não se poder abolir desse contexto religioso o caráter popular dos festejos. Mesmo diante de imposições normativas da Igreja que possam ocorrer, o povo, indiferente às teorias teológicas, exerce a sua fé da sua maneira, expressando conforme a sua percepção de mundo e de vida, a sua devoção junto ao santo, que recorre como protetor de suas vidas.

A sustentabilidade cultural das tradições depende da propagação e manutenção do imaginário religioso católico em torno do santo de devoção pelas comunidades onde eles são cultuados. Essa condição permite a permanência das festividades e dos sentimentos religiosos no decorrer do tempo. As novas gerações, ao comemorar seus padroeiros, assim o fazem como expressão de valores culturais herdados, transferidos por seus ancestrais. Trata-se de um saber repassado entre os membros da comunidade, condicionado pela inserção nas praticas culturais coletivas, motivados no âmbito familiar e social. Nesse contexto, em sua abordagem sobre geografa regional, aponta características da cultura como

motivos para que as fronteiras possam construir limites geográfcos. Séculos de vida em comum dentro de um confronto bem defnidores forçam a personalidade de um povo. E com ela muitos aspectos da sua vida ma-

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terial – a casa, os instrumentos, o traje, as maneiras (RIBEIRO, 1987, p.59).

O culto ao santo se faz no cotidiano, porém, a festa do padroeiro se efetiva como um momento que dá projeção e visibilidade a fé exercida em comunidade em relação a ele. Projeta de forma intensifcada o santo como referência da formação do imaginário coletivo religioso e que norteia o sentimento de se pertencer ao lugar. O espaço vivido da fé em torno do santo caracteriza a identidade cultural do lugar. No entanto, massifcação e a espetacularização dos festejos, norteadas pelos interesses comerciais e turísticos, ao se sobrepor à originalidade das relações historicamente construídas ente a população local e a devoção festivo-religiosa, compromete a existência da categoria de lugar. Passa a se evidenciar um não lugar, desarticulado da vida de quem nele habita, que não mais se reconhece na nova dinâmica e movimento da festa. O lugar, enquanto espaço de vivência religiosa herdada por seus habitantes, passam a ter suas vivências e singularidades se dilaceradas e ofuscadas como composição festiva do ambiente sob a orientação da lógica do capital, dando aos festejos outro patamar, muitas vezes justifcados no espírito de modernidade.

Assim, é importe entender as festas urbanas de padroeiros como expressão histórica de um processo colonizador que articula os poderes temporais e atemporais, respectivamente representados pelo estado e a Igreja. Essas articulações de poderes ocorrem em diversas conjunturas e se projetam no ambiente festivo que caracterizam lugares no aspecto religioso e cultural. Esses fatores se projetam nas espacialidades construídas para recepcionar os ambientes festivos e que merecem ser motivos de investigação acadêmica

Referências Bibliográfcas

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