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Emanoel Luís Roque Soares Sayonara Cardoso Copque

A ORGANIZAÇÃO DOS AFRODESCENDENTES ATRAVÉS DO CANDOMBLÉ

Emanoel Luís Roque Soares Sayonara Cardoso Copque

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Milagres do povo

Tudo chegou sobrevivente num navio Quem descobriu o Brasil? Foi o negro que viu a crueldade bem de frente E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente (Caetano Veloso)

A música de Caetano Veloso “Milagres do povo”, letra esta que surge de uma inspiração a partir de uma conversa com o escritor Jorge Amado, em que o cantor tinha a curiosidade de saber se o escritor Jorge Amado tinha fé no candomblé1. Ele responde que não tinha fé por ser materialista, mas que ele tinha presenciado o candomblé fazer muitos milagres, chamados pelo escritor de “milagres do povo”. Esta música nos traz uma refexão sobre o processo do tráfco negreiro e a resistência cultural do povo negro escravizado, inclusive a formação do candomblé e o processo de organização sócio-espacial dos afrodescendentes dentro deste continente.

O terreiro de candomblé pode ser concebido como um espaço sagrado e cultural que guarda as tradições dos orixás, nkisis e voduns2 que se instalaram aqui no Brasil através dos negros escravizados vindos de várias nações da África. Cada um deles trazendo as suas culturas e seus deuses, que lá cultuavam nas diferentes regiões da África. Ao se estabelecerem

1 Segundo PRANDI: “O candomblé é o nome dado a religião dos orixás, formada na Bahia, no século XIX, a partir de tradições de povos iorubas ou nagôs, com infuências de costumes trazidos por grupos fons, aqui denominados jejes e, residualmente por grupos de africanos minoritários”. 2 Refere-se ao modo de como são chamados os deuses nas três diferentes nações fundadoras do candomblé, ex: no jêge (vodun), na Angola(nkisi) e no ketu(orixá).

no Brasil houve a junção desses povos e consequentemente a dos seus deuses e assim formou-se o candomblé3 – uma religião de matriz africana, porém brasileira, mas que mantém as tradições dos cultos aos orixás, nkisis e voduns.

A história das irmandades e confrarias, que data desde o império romano, nos ajuda a melhor perceber como vai se dar a formação da identidade negra no Brasil principalmente na Bahia que vai levar o povo negro do banzo ao xirê com a invenção do candomblé e a criação do espaço que aqui conhecemos como terreiro. Elas tinham funções assistencialistas para com seus membros, além de política e religiosa, iriam ocupar lugar de destaque na igreja como instrumento de difusão do cristianismo, e no Estado como espaço de cidadania. Deste último, herda a forma burocratizada das suas autarquias, com seus livros de registro e contabilidade e os cargos hierarquizados dos quais podemos destacar o de juiz ou juíza suprema, tesoureiro(a) e secretário(a). Vivem, basicamente, das joias pagas por cada membro ao entrar, de contribuições mensais dos mesmos, de doações e heranças além de verbas governamentais e a utilização de prédios públicos. As irmandades não trabalhavam de graça por seus membros. Estes as sustentavam por méis de jóias de entrada, anuidades, esmolas, coletadas periodicamente, loterias, rendas de propriedades legadas em testamentos. Os recursos auferidos por várias fontes eram gastos nas obrigações com os irmãos e em caridade pública; na construção, reforma e manutenção das igrejas, asilos, hospitais e cemitérios; na compra de objetos do culto, como imagens, roupas, bandeiras, insígnias; na folha de pagamento de capelães, sacristãos, funcionários;

3 Na África cada clã ou família africana cultuava somente um único deus. A junção dos cultos é um fenômeno brasileiro decorrente da importação de escravos, estes agrupados nas senzalas nomeavam um babalorixá (pai de santo) ou uma yalorixá(mãe de santo).

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e não pouco, nas despesas com festas anuais (REIS, 1991, p.59).

O papa Gregório I foi o autor de uma posição estratégica de grande signifcado para o futuro do cristianismo: para desvincular-se radicalmente da estagnada política bizantina, voltou sua atenção para os novos reinos bárbaros do Ocidente, fundados na Inglaterra, na Gália, na Germânia, na Hispânia, todos eles carentes de estrutura administrativa e quadros qualifcados, como terrenos mais propícios para a expansão do Cristianismo romano. Gregório é pratico e defende a efciência do culto às imagens, argumentando que, para um povo bárbaro e pagão, uma imagem vale mais que mil palavras, e que esta imagem não é o fm e sim apenas o meio de se chegar a Deus. Ele sabia que para controle das massas é necessário o uso da imagem, e através delas introduz a culpa, antes inexistente nos povos pagãos, e que, para o convencimento de ignorantes à fé cristã é imprescindível; ele também sabia da efcácia de ser maleável e permitir prazeres físicos limitados, como festas, procissões, banquetes e outros, agregando e substituindo as datas tradicionais pagãs por datas do calendário católico que era uma maneira de manter o povo sob controle mais efcaz que o fundamentalismo irlandês. Todas estas medidas de propaganda estavam contidas nas irmandades leigas, espalhadas por todas as camadas sociais, que tinham como base o culto aos santos e uma comunicação social educativa que tinha como alvo os iletrados.

O objetivo estratégico da política cultural gregoriana era portanto manter e propagar a ordem estabelecida. Neste sentido, o pastor deveria manter uma ritualística solene diante das imagens, estimulando “com insistência”, recomenda Gregório, a “compunção”. Eis o conteúdo político do novo ensinamento: nos seus textos

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de teologia moral, ele nos explica que a compunção é um sentimento de humildade dolorosa da alma que se descobre pecadora”. A alma é que deve ser fustigada, parece nos dizer Gregório, não o corpo, porque a função da imagem cristã é ajudar a inocular nas mentes bárbaras o sentimento de culpa, inexistente na religião pagã, o qual predispõe a obediência. Assim psicologicamente a imagem desempenha um papel relevante no dispositivo colonizador, ao contribuir para a formação da mentalidade submissa; e sociologicamente é o ponto de atração para a reunião do “rebanho disperso” na confraria: a existência da imagem é portanto uma condição fundamental para a aglomeração das ovelhas em uma instituição em que as mentalidades possam ser convenientemente condicionadas (SILVEIRA, 2006, p.133).

Os fundamentalistas reagiram, porém foram vencidos pelas ideias midiáticas de Gregório que além de serem tolerantes as manifestações de fé que estivessem fora das liturgias as incorporou e transformou-as em festas católicas enriquecendo este ciclo, de tal maneira que às vezes, estes festejos vão fugir do controle da igreja abrindo caminho para que fosse contestada a ordem estabelecida, através de reivindicações além do enorme precedente que tanto os fundamentalistas temiam que fosse a tolerância ao sincretismo no seio da santa igreja como argumento para o aumento da popularização do cristianismo.

Alguns cultos como, por exemplo, o de Nossa Senhora do Rosário, como conta Renato da Silveira (2006), por ser fácil na organização de rezas públicas foi introduzido na África e no Brasil, tornando-se protetora dos escravos, passando a se chamar Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e aqui na Bahia esta instituição vai promover a fundação do primeiro terreiro de candomblé no Brasil, o da Barroquinha.

No entanto, quando os escravos ou libertos negros começam a adentrar as confrarias, as contradições vêm à tona, pois,

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se ser cristão e participar de uma irmandade é sinal de prestígio, liberdade e cidadania, além de amparo social, como posso continuar escravo? Na confraria liberto-me, reivindico para mim e para os outros a condição de cristão livre, alforrio-me.

Aqui está clara a inversão, uma vez que a irmandade foi criada para conter os ânimos, arrefecer e acomodar as almas sob a égide do cristianismo colonizador consolidando a escravidão passa ela ser o local de onde os negos vão clamar por liberdade. Tal inversão é recíproca, pois neste movimento os sujeitos trazem consigo seu mundo existencial, deslocando-o na fgura do outro seu confrade livre branco que, às vezes, fazia parte da mesma irmandade, no caso das mistas, onde brancos e negros conviviam juntos ou em irmandades puramente de negros que requeriam o status igual ao das puramente brancas.

Tal deslocamento é uma mudança de ponto de vista, de foco dentro de um mesmo jogo. Se sou cristão, então quero os direitos do cristianismo e tal direito me dá liberdade para até professar minhas crenças. Oprimido, desloca-se na fgura do opressor e agradece a liberdade, cavando trincheiras no campo de batalha do inimigo. Quando me torno cristão me desloco de mim, torno-me diferente, não sou mais escravo, sou cidadão livre e, agora, coopero para liberdade total dos outros meus iguais, por isto torna-se quase impossível viver fora das irmandades de leigos que na Bahia colonial antiga era o único acesso à cidadania, a troca da identidade pagã pela cristã. Vai agora invertidamente reconstruir a identidade africana, conforme Reis (1991, p.55):

Esta identidade reinventada vai inclusive ser vital para o nascimento do candomblé na igreja da Barroquinha no seio da irmandade através das “famílias de santo” que substituirá importantes funções e signifcações da família consanguínea desbaratada pela escravidão e reconstruída na diáspora atra-

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vés dos séculos, ora construído por Gregorio. Foi na mesma brecha institucional que a irmandade penetrou. Os irmãos de confraria formavam uma alternativa ao parentesco ritual. Cabia à “família” de irmãos oferecer a seus membros, além do espaço de comunhão e identidade, socorro nas horas de necessidade, apoio para conquista de alforria, meios de protestos contra abusos senhoriais e, sobretudo rituais fúnebres dignos.

O candomblé é uma religião que possui uma cultura muito rica cheia de símbolos e tradições, e o espaço do candomblé pode ser percebido como lugar de cultura e fonte de aprendizado. Sendo assim, o terreiro pode ser considerado como espaço de produção do conhecimento, que contribui para a construção da identidade do individuo afrodescendente. Permitindo uma refexão a este sobre sua convivência no mundo e na sua comunidade. Ainda dentro deste contexto, o candomblé promove a igualdade social em seu aspecto acolhedor na inclusão dos diferentes, respeitando a diversidade.

O espaço do terreiro pode ter um papel social relevante na vida dos adeptos e da comunidade local. Dentre vários outros aspectos de aprendizado busca-se dentro dessa cosmovisão africana trazer equilíbrio entre o homem, a natureza e a sociedade em que vive. Portanto é de fundamental importância conhecer o candomblé e a importância da religião para a formação da cultura do Recôncavo Baiano e da espacialidade do terreiro para desmistifcar os mitos negativos que geraram o preconceito e a discriminação sobre esta cultura religiosa. O candomblé é uma religião que durante toda sua história foi demonizada, marginalizada e muito perseguida pela polícia e pelas igrejas. Que luta pelo seu reconhecimento e sua legitimação religiosa na conservação dos cultos sagrados aos orixás, inkices ou voduns. No candomblé não existe pecado,

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tem um caráter acolhedor que valoriza e exalta o ser humano e a vida. Nisto percebe-se a importância do seu papel social com o indivíduo, independentemente da cor de sua pele, sexo, idade, religião ou opção sexual.

Para que este espaço seja percebido como um lugar que tem um papel social relevante na sua comunidade local, para a afrodescendência e até mesmo na sociedade, é preciso que haja um cuidado por parte dos adeptos pela preservação destes espaços de terreiros. Sendo assim este trabalho nos coloca o seguinte problema: será que os candomblecistas têm percebido a importância do papel social que o terreiro de candomblé pode promover tanto para afrodescendência quanto para a sua comunidade?

E na sua criação encontramos pistas para elucidarmos este problema na invenção do xirê, que é a grande roda onde os Orixás de nações diferentes dançam e cantam nas festas públicas, é o símbolo máximo da união sincrética dos orixás que vai dar origem ao que conhecemos por candomblé, onde pela ordem se começa com canto para Ogum, passando por todos Orixás e terminando com Oxalá.

Tais pensamentos são frutos de duas constatações; uma é que o xirê é a grande saída para a criação do candomblé, uma vez que a formação circular acaba com a hierarquia que possibilita o nascimento da religião, formada por vários Orixás de nações diversas, dando um exemplo de tolerância e diplomacia, gerida por Exu, que convoca a todos para o culto em um ritual anterior ao xirê que é o padê sendo que é que o próprio Exu signifca, conceitualmente aquilo que é redondo e por isso circular assim como o xirê, é o redondo e circular Exu que convida a todos para dançar em círculo.

Para os nagôs dos candomblés tradicionais da Bahia, Èsù ou Exu – escrito na sua forma abrasileirada – é a

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principal entidade, não só do culto aos Orixás em que ele é a força dinâmica que move o sistema mítico ancestral, como também na vida, no dia-a-dia que, segundo a crença do povo de santo, é a energia que vitaliza as pessoas e de tudo o que existe. Em resumo, sem Exu não tem movimento, logo sem ele não teríamos culto aos orixás, nem vida para os seres (SOARES, 2008, p.37) Estudar o xirê enquanto obrigação que faz parte de um ritual religioso, em que estão presentes a música, dança, encenação, saída política de forma circular pode contribuir para entendermos uma flosofa da educação afrodescendente, entrevistas com a Yalorixá do Terreiro Ilê Axé Yepandá Odé, localizado na Baixa do Morro, zona rural de Santo Antônio de Jesus-BA que são evidenciadas na estrutura do trabalho foram essenciais para entender como o candomblé pode contribuir para o fortalecimento da cultura afrodescendente. Nesse sentido, o artigo busca entender as relações sociais no candomblé como uma organização sócio-espacial da afrodescendência através da metáfora do xirê, que é a grande roda onde os orixás dançam nas festas públicas, representando a grande festa em louvor e enaltecimento da ancestralidade afrodescendente. A palavra banzo signifca saudade e tristeza, era como se chamava o sentimento de melancolia em relação à terra natal e de aversão à privação da liberdade praticada contra a população negra no Brasil na época dos processos escravistas. Foi também uma prática comum de resistência à escravidão, portanto, o título do trabalho Do Banzo ao Xirê traz uma ideia de tristeza convertida em alegria. Para isso, o trabalho está organizado em dois momentos. No primeiro, aborda-se a importância do candomblé para o enaltecimento da cultura afro. No segundo momento trata da relação dos adeptos com o candomblé. Os diferentes grupos étnicos possibilitaram os

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confnamentos das senzalas a junção de diferentes culturas dos povos africanos. Cada um com seus costumes, religião e diferentes línguas Munanga (2009). Dentro desse contexto em que se encontravam os negros escravizados, houve uma resistência cultural dos modos de vida africano. Mesmo com todas as difculdades possíveis, como as condições desumanas com que eram tratados, os negros escravizados resistiam a duras penas contra o abandono das suas origens africanas deixando legados importantes para formação da cultura afrobrasileira do Recôncavo Baiano como o candomblé, como nos afrma Munanga (2006):

No campo da religiosidade, as contribuições dos povos da área ocidental, particularmente do chamado Golfo do Benin, se destacam. Eles legaram ao Brasil um panteão religioso organizado segundo o modelo cultural jêje-nagô, conhecido como candomblé da Bahia (MUNANGA, 2009, p.94). Um dos processos mais marcantes dessas resistências culturais foi a criação do candomblé. Para os negros escravizados foi uma forma de continuar praticando no Novo Mundo a sua fé. Fé esta que contribuía para aliviar os pesares da escravidão. O culto aos deuses africanos pelos negros escravizados serviu para perpetuar costumes e tradições africanas que contribuiriam mais tarde para a formação de espaços que valorizam a afrodescendência, de acordo com Sousa Júnior (2011):

Já há algum tempo vários autores se ocuparam em demonstrar a importância dos espaços terreiros como mantenedores de uma identidade, não necessariamente fragmentada pelo drama que representou a escravidão aos povos africanos, mas também uma identidade reconstruída de forma criativa a partir do vários elementos simbólicos fornecidos por matrizes culturais diversas

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que desde cedo marcaram a formação de nossa cultura (SOUSA JÚNIOR, 2011, p24).

O terreiro, portanto se confgura como um legado importante na construção de identidades ricas em cultura. A musicalidade, as danças, as roupas e toda estrutura desse espaço são símbolos fortes que contribuem para o bem-estar, o prazer de estar presente neste lugar. As regras no candomblé como, por exemplo, as quizilas, a hierarquia, os resguardos, o vestir-se de branco ou vestir-se com roupas luxuosas não só mantêm uma ordem. Mas estas regras de comportamento são aceitas e entendidas pelos flhos de santo como uma maneira de dar importância as pessoas que pertencem a este universo místico, alegre, festivo e sagrado. Os cargos de babalorixá, yalorixá, ekedes, ogãs, dão certo status aos que ocupam estas posições nos terreiros.

O status social, no interior do candomblé não traduz apenas ou principalmente uma hierarquia de direitos; não se defne tampouco por “papéis”, como os sociólogos têm o costume de considerar hoje, ou pela simples posse de encargos, de poderes estabelecidos e admitidos pelos subordinados, nem por normas institucionais. É a imagem do lugar, ocupado pelo indivíduo na escala da existência. O status mais ou menos elevado sem dúvida alguma se manifesta exteriormente pelo poder, pelo mando, pela autoridade sobre os indivíduos de status baixo; mas essa autoridade não passa de irradiação do ser que o orixá possui no indivíduo (BASTIDE, 2005, p.228).

Pertencer ao candomblé é pertencer ao orixá, que é a força, a energia emanada através do sobrenatural. Este pertencimento é o que confere aos adeptos do candomblé certo poder de se manter forte através do orixá que lhe protege e que o ajuda na sua sobrevivência, mantendo a força vital, infuenciando em todos os aspectos da sua vida.

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Com o processo de escravização no Brasil, negros de várias partes do Continente africano passam a fazer parte da população brasileira a partir do século XVI. “A partir de 1570, os engenhos de açúcar começam a dividir espaços entre a mão de obra indígena e a africana” (ARAÚJO, 2006, p7). O tráfco negreiro é considerado, como uma das maiores tragédias da humanidade, por seu longo processo de duração e milhares de africanos escravizados mortos pelas más condições de saúde decorrentes da forma de como eram transportados na diáspora África-Brasil. Segundo Araújo (2006 ):

Altas taxas de mortalidade caracterizavam o tráfico atlântico. Desde seu embarque em feitorias africanas, os escravizados estavam expostos a diversas doenças. Nos navios negreiros conhecidos como tumbeiros por causa das inúmeras mortes ocorridas ao longo da travessia atlântica esses escravos enfrentavam trágicas jornadas. Com elevadas taxas de mortalidade, aqueles que sobreviviam chegavam aos vários portos e às praias nas Américas em péssimas condições de saúde: magros, debilitados, com problemas de pele ou com doenças mais graves (p.15). As junções dos africanos e de suas culturas serviram também para a construção de um elo que os fortalecia e iam criando caminhos para uma possível espacialidade frmada na legitimação da cultura africana no território brasileiro, de acordo com Sodré:

Do lado dos ex-escravos, o terreiro (de candomblé) afgura-se como a forma social negro-brasileira por excelência, porque além da diversidade existencial e cultural que engendra, é um lugar originário de força ou potência social para uma etnia que experimenta a cidania em condições desiguais. Através do terreiro e de sua originalidade diante do espaço europeu, obtêm-se traços fortes da subjetividade históricas das classes subalternas no Brasil (SODRÉ, 1988. p19).

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O terreiro de candomblé se diferencia de outros espaços religiosos porque a espacialidade do terreiro é vivenciada de modo familiar. O terreiro é a casa da família de santo, os adeptos são chamados de flhos, os flhos de santo e dentro desse espaço praticam certas atividades do seu cotidiano como comer, dormir, dentre outros. Os flhos de santo interagem com seus irmãos e são responsáveis pela manutenção do terreiro. [...] O candomblé é mesma coisa, candomblé requer uma responsabilidade muito grande, quando não está presente, onde o iniciado estiver ele sempre deve pensar no coletivo do seu terreiro, seus irmãos e mãe (SOARES, 2008).

O candomblé é uma religião que exige compromissos e um deles é esse laço familiar e afetivo entre seus adeptos e o espaço do terreiro. Então esse trabalho pra gente é importantíssimo porque nós podemos levar isso á frente na demonstração do que é possível se fazer dentro da religião de matriz africana. Não é só o culto e o culto é importantíssimo porque tudo parte disso aí, mas nós podemos agregar valores outros. À nossa religião, às nossas práticas, ao nosso ambiente religioso, estendendo isso pra que sirva de exemplo pra outras entidades, que possa fazer, que possa desempenhar esse trabalho também... e que o candomblé possa ser levado cada dia com mais seriedade, com mais fundamentação. O que é mais importante num terreiro de candomblé é o ser humano em si, é o fortalecimento das suas raízes, da sua identidade, a valorização do ser humano por si só. Porque quando se entra num terreiro de candomblé não se pergunta de onde você veio, quem você, o que você tem. Então essa valorização do ser humano que em algumas religiões não se encontra, mas na nossa isso é fundamental. Nós estamos de braços abertos, sempre recebendo as pessoas, acolhendo, principal-

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mente num terreiro como nosso, que é um terreiro de Oxum, e tem um colo enorme onde as pessoas podem ser acolhidas como flhos...4

Por isso é importante pensar como o espaço do terreiro de candomblé ajudou na reorganização familiar e afetiva dos negros que foram escravizados, retirados da sua pátria e que viram sua família dispersada nesse processo de escravidão, devolvendo a cidadania. As religiões de matrizes africanas são, assim, lugar de reconhecimento e construção de cidadania ao menos para homens e mulheres negras (SOUSA JÚNIOR, 2011, p.25).

... Essa é a nossa base, é a nossa essência né, essa cultura, a valorização do que nós recebemos dos nossos ascendentes africanos, a valorização de tudo que eles passaram pra nós e que nós demos uma feição nossa brasileira, mas seguindo essas matrizes, seguindo essa base, essa cultura, a preservação de tudo isso é de suma importância pra que o negro continue sendo ele mesmo, responsável pelo culto aos orixás, ele mesmo sendo responsável como preservador dessa cultura, de toda sua cultura, da cultura de sua raízes, e que eles veem as práticas e que a cada dia mais essas práticas se tornem necessárias na vida de pessoas e pessoas. E que hoje graças a nossa resistência, graças a nossa força, graças aos orixás hoje já nós vemos colhemos os frutos disso porque outras pessoas já frequentam a religião. “É muito forte para nossa descendência afro e nossa religião a preservação dos valores da cultura do nosso povo.”5

4 Depoimento da Yalorixá Mãe Nilza de Oxum em maio de2013, do Terreiro Ilê Axé Yepandá Odé, localizado na Baixa do Morro-zona rural em Santo Antonio de Jesus-BA, educadora, mãe, mulher negra que possui grande infuência na cidade de SAJ como sacerdotisa e fundadora da Associação Ilê Axé Yepandá Odé, que tem o intuito de promover ações sociais e valorizar a cultura de matriz africana. Dentro desta associação ela desenvolve vários projetos como o Tecendo Renda Colhendo esperança que promove cursos de dança afro, percussão, culinária, costura e bordado, projetos que contam com apoio do Governo da Bahia. 5 Ibdem

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E que até hoje as religiões de matriz africana acolhe pessoas que por algum motivo vêm de famílias onde não experimentaram laços afetivos de uma família carnal, mas que encontram dentro destes espaços de terreiros uma referência de família, de afetividade com direito a pai, mãe e irmãos e outros graus de parentesco que não discriminam sexo raça ou outra religião responsável por retirar os afrodescendentes do banzo para lúdica e educativa forma circular e inclusiva do xirê.

Referências Bibliográfcas

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. REIS, João José Reis. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras. 1991. SILVEIRA, Renato da. O candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto. Salvador: Ed. Maianga, 2006. SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1988. SOARES, Emanoel Luís Roque. As vinte e uma faces de Exu na Filosofa Afrodescendente da Educação: Imagens, Discursos e Narrativas. Tese (Doutorado), UFC/FACED. Fortaleza,2008. SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Alves Editora, 1988

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