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Antonio Carlos Queiroz Filho
GEOGRAFIAS INVENTADAS: TRAVESSIAS, RASURAS, DEVIR
Primeiro Movimento
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Antonio Carlos Queiroz Filho
Terminava a disciplina de seminários, em que dois alunos que oriento no Programa de Pós-Graduação em Geografa da Universidade Federal do Espírito Santo apresentaram suas pesquisas. Durante a sessão de perguntas, das muitas questões instigantes que ali aconteceram, uma foi a que mais me tocou: “onde vocês querem chegar com isso”? Aquele tipo de indagação já havia ocorrido noutras ocasiões. Mais até do que eu gostaria. Isso porque o tom desse tipo de pergunta sempre tinha um caráter inquisitório, como se estivessem pedindo prova de que estávamos fazendo – realmente – Geografa.
Diante dessas ocasiões, sempre reagia entrando nesse jogo da Verdade Geográfca, como se aquele pressuposto não pudesse, por si só, me indicar outra perspectiva de olhar para o próprio saber geográfco como algo menos arrogante. E foi exatamente isso que ocorreu na ocasião do seminário dos meus alunos. A questão feita por uma professora, colega do programa, não teve como objetivo desqualifcar nossas balizas conceituais e metodológicas. Foi, de fato, uma curiosidade.
Na ocasião, apresentamos duas pesquisas que tratam, de maneira geral, sobre a relação Imagem-Cidade. Ambas buscam provocar as estruturas codifcadoras das paisagens clichês concernentes às cidades inseridas na lógica do turismo. São cidades, como outra mercadoria qualquer, que lançam mão de uma identidade visual – marca – para subsidiar uma experiência capturada para o consumo na relação paisagem-lugar.
Estou me referindo a um conceito muito caro para a Geografa Contemporânea na tentativa de lidar com essas
questões em que busco analisar, compreender e problematizar o papel político que as imagens têm efetivado na relação das pessoas com os lugares, com as coisas e com elas mesmas, numa perspectiva que toma a Geografa como uma Grafa, uma escrita, uma linguagem que dá a ver, dá existência a algo, nesse caso, uma imaginação espacial. Esse é o termo que nos interessa. O vi pela primeira vez no livro “Pelo Espaço”, da geógrafa inglesa Doreen Massey.
Massey está preocupada com as novas políticas da espacialidade, e argumenta que os modos de imaginar têm papel fundamental para o pensamento espacial e para as políticas no território, problematizando as “conexões entre a imaginação do espacial e a imaginação do político” (MASSEY, 2008, p.30). Tomei emprestado o caminho pelo qual a autora realiza suas refexões. Ela parte de três considerações (o que chamei de consequências), na qual se realiza um diagnóstico das estruturas imagéticas que confguram uma dada imaginação espacial estabelecida.
Massey faz proposições a essas constatações, espécie de alternativas para aquelas imaginações que foram verifcadas antes, o que denominei nas nossas pesquisas de problematizações. Nossas pesquisas, portanto, sempre partem de uma imaginação espacial hegemônica, onde realizamos num primeiro grande movimento refexivo – diagnóstico – a seguinte trajetória: consequências-problematizações, na análise 1; e a imagem que se repete, na análise 2 (ver Fig. 1 e Fig. 2).
IMAGINAÇÃO ESPACIAL HEGEMÔNICA
ANÁLISE 1 CONSEQUÊNCIA 1
CONSEQUÊNCIA 2
CONSEQUÊNCIA 3
Figura 1 – Mind Map Analítico: análise 1
Fonte: elaborado pelo autor
PROBLEMATIZAÇÃO 1
PROBLEMATIZAÇÃO 2
PROBLEMATIZAÇÃO 3
A principal característica da “consequência” é o seu caráter reducionista, totalitário, dicotômico e de verdade absoluta. Identifcar como o pensamento hegemônico promove essas questões é pauta dessa etapa.
IMAGINAÇÃO ESPACIAL HEGEMÔNICA
ANÁLISE 2 IMAGEM QUE SE REPETE REFLEXÃO
Figura 2 – Mind Map Analítico: análise 2
Fonte: elaborado pelo autor
Todo pensamento estabelecido tem uma grande imagem que lhe é correspondente. A maneira de conseguirmos identifcá-la é pela redundância/repetição, o famoso “clichê”. Para isso, procuramos pelas imagens associadas ao nosso tema/categoria no maior banco de dados existente no mundo de hoje, o Google Imagens. Depois dessa etapa de coleta, identifcamos qual é a forma visual que se repete e, na sequência, problematizamos. Com essas duas análises, encerramos o primeiro movimento analítico da pesquisa. Restam ainda outros dois, de que falarei adiante. Antes, retomando a questão inicial: onde se quer chegar?
Segundo Movimento
No mundo de hoje, em que as chegadas e partidas já estão todas semiprontas, eu diria que a melhor pergunta talvez seja: quer? Retiraria, de início, esse caráter utilitarista e fnalista da ciência – chegar – bem como, do caminho já traçado, defnido, fechado – onde, tal como nos sugeriu Clarice Lispector no seu livro, Água Viva, quando ela diz: “Para onde vou? E a resposta é: vou” (LISPECTOR, 1998, p.27)
O “ir” clariceano tem um componente que muito me interessa. Ele trata do “é” das coisas, que implica, ao mes-
mo tempo, lidar com o presente e apenas ele, o que seria o “histórias-até-aqui” da Massey (2008) quando ela se refere ao pensamento espacial como algo do agora, portanto, aberto; bem como, a perspectiva do devir deleuziano, tal como nos esclarece o flósofo Eduardo Pellejero no seu livro “A postulação da Realidade” (2009) quando nos explica que
Deleuze não é um idealista. Digamos que, simplesmente, se nega a fazer da expressão um efeito impassível e estéril das condições materiais, um resultado da história (PELLEJERO, 2009, p.79).
Ele continua dizendo que: [...] para Deleuze, nunca foi questão de escapar do mundo que existe (nem pela destruição da verdade da qual se reclama nem pela postulação de uma verdade superior), mas de criar condições para a expressão de outros mundos possíveis, por sua vez, capazes de desencadear a transformação do mundo existente (PELLEJERO, 2009, p.80).
Eis então o desafo: a possibilidade do outro como possível e para a Geografa, esse outro seria qualquer coisa que a deslocasse para além do paradigma representacional, onde sua grafa pudesse expressar algo que atravessasse o ilustrativo, o informativo, ou seja, uma imaginação espacial menos capturada pelos dispositivos que constituem as grandes “fcções hegemônicas” (PELLEJERO, 2009). É importante dizer desse caminho como uma travessia: Não se trata para Deleuze de decidir quem tem razão, quem está em possessão da verdade, detém o direito ou merece justiça. Porque a desabilitação das fcções hegemônicas não tem por objeto estabelecer uma verdade diferente [...] (PELLEJERO, 2009, p.87).
Travessia incerta, “porque são os passos que fazem os caminhos” (QUINTANA, 2012, p.22), diz Mario Quintana no
livro A Cor do Invisível. Isso não signifca o mesmo que dizer “sem rumo”, “sem objetivo”, “sem perspectiva” e sim, uma abertura para a experiência e experimentação, que nada mais são do que uma escolha política de estar no mundo, para além das “doutrinas do consenso” (PELLEJERO, 2009, p.76). Essa abertura implica numa multiplicação dos possíveis sobre o plano da expressão que desafam os pontos de vista consagrados e sentidos já dados pelas narrativas únicas (PELLEJERO, 2009). Chegamos ao segundo grande movimento da pesquisa: o tensionamento (ver Fig. 3).
P.H. DIAGNÓSTICO EXPERIMENTAÇÃO
P.M.
Rasura = Identifcar + Tensionar + Desterritorializar
Figura 3 – Sobre a Rasura
Fonte: http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/entre-lugar/article/ viewFile/2675/1521
O que fazer com o diagnóstico? Proponho uma travessia que suspeita. Intermeio. Inquietude. Incômodo. Tensionamento. Sem ser modelo, a problematização que permeia esse momento da refexão toma como “método” os pressupostos – talvez esteja cometendo um equívoco em chamar dessa forma – da poesia de Manoel de Barros. Desde “o livro das ignorãnças” (2007), passando pelo “o guardador de águas” (2006), a “gramática expositiva do chão” (2004), e chegando nas “me-
mórias inventadas” (2008), Manoel nos ensina, mesmo não querendo, a brincar com as palavras. Ele faz com a linguagem poética uma ética do dizer, em que o que importa não é a regra, nem a simetria, menos ainda o sentido último – moral – da fazer sentido.
Tensionar, portanto, é uma preparação para o movimento seguinte, que é o da desterritorialização da imaginação espacial. A passagem do diagnóstico para a experimentação, que seria o ato poético propriamente, é fundamental para que grafa inventada se efetive a partir dos deslimites, do desinteressante, do pouco eloquente, do delirante Seria, por assim dizer, os primeiros passos, aqueles bem desajeitados, do passarinho que tenta levantar voo, não porque ela vai conseguir em pouco tempo “voar certo” e sim, porque ela irá “voar fora da asa” (BARROS, 2007, p.21). É, nesse momento, que a Geografa faz sua imaginação hegemônica “pegar delírio” (BARROS, 2007, p.15).
Pausa?
Duas referências importantes têm me acompanhado nesse percurso com as imagens a suas geografas. Deleuze e Guattari, com as obras Mil Platôs, volume 2, em especial o trecho em que tratam dos postulados da linguística e Kafka: para uma literatura menor; e mais recentemente, Giorgio Agamben, com os livros Ideia de Prosa (2012) e O que é o Contemporâneo? e outros ensaios (2009). Deles retiro as ideias de pensamento menor, fabulação, dispositivo, linguagem, que alimentam outros conceitos que são adjacentes, tais como imaginação, poética, rasura. Com eles, tenho companhia solidária, inspiração perene nas travessias já feitas e naquelas muitas que ainda estão por vir. Apenas citando:
Ir cada vez mais longe na desterritorialização... à força da sobriedade. E dado a aridez do léxico, fazê-lo vibrar na intensidade. Deleuze e Guattari, Kafka: para uma literatura menor, p.43. A linguagem não se contenta em ir de um primeiro a um segundo, de alguém que viu a alguém que não viu, mas vai necessariamente de um segundo a um terceiro, não tendo, nenhum deles, visto. Deleuze e Guattari, Mil Platôs, v. 2, p.14. [...] tanto o dito como o não dito, eis os elementos do dispositivo. Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo? e outros ensaios, p.28. É precisamente a ausência de um objeto último do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das coisas. Toda verdade última formulável num discurso objetivante, ainda que em aparência feliz, teria necessariamente um caráter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade. Giorgio Agamben, Ideia de Prosa, (p.46).
Terceiro Movimento
Quero compartilhar agora, no terceiro movimento, ainda que de forma breve, uma das grafas-experimentações que tenho desenvolvido no corpo de algumas pesquisas que oriento. Ela toma a fotografa como uma superfície linguística para ser rasurada, ou seja, destituída do seu caráter representacional (ver Fig. 4) e, com isso, possibilitar outras imaginações e grafas possíveis.
slogans ”. do percurso da pesquisa sobre “cidades Mind Map Figura 04 – elaborado pelo autor
Fonte:
Salvador, Bom Fim. Pão de Açúcar, vende-se. São Paulo “NoFilter”
Poesia e Edição ca Fotográ f
Poesia Visual
Pensamento Menor
Polifonia e Redução Narrativa
Redução da Experiência Nomes Usuais e Narrativas do Cotidiano
ciais f Nomes O
Análise 01 a, Clichês e Iconogra f Slogans
A Imagem “Reduzida” da Cidade
Cidades Slogans Ideal Turístico
Salvador Rio de Janeiro Supermodernidade
São Paulo
Google Imagens
Análise 02
Aqui temos a poesia visual como elemento atuante no processo de desterritorialização dos slogans visuais que se pretendem como tradução máxima, imaginação espacial única, das cidades, a saber, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Para cada uma delas, foi produzido um poema visual, os quais compuseram suas referidas paisagens clichês com outros elementos narrativos e estéticos. O poema em devir-fotografa e a fotografa em devir-poema. Quando misturadas, ocorreu um movimento simultâneo: o de abertura da fotografa para algo além do representacional, bem como o da poesia como algo puramente aberto ou subjetivo. Tomamos a imagem mesma, aquela já desgastada pelo uso e a intensifcamos, fazendo-a dizer de cada uma daquelas cidades para além do slogan, a exemplo do poema visual que apresenta São Paulo:
Figura 5 – Poema Visual de “São Paulo”. Poesia: Vitor Bessa Zacché. Idealização: A. Carlos Queiroz Filho. Edição de Imagem: Rafael Borges
Cada letra, cada palavra, é o próprio “pixel” da fotografa digital. Esse é um poema visual que dialoga diretamente com os aplicativos presentes nos telefones celulares dos dias de hoje, onde o ato de fotografar passou a ser mais importante que a própria experiência vivida diretamente. Aliás, divulgar a imagem nas redes sociais tornou-se a experiência máxima das pessoas com os lugares. Há aqui uma alusão clara a isso quando o poema visual é uma fotografa “postada” numa famosa rede social de compartilhamento de imagens. Uma referência direta à perspectiva da gramática e ética do ver que trata Susan Sontag no livro Sobre Fotografa (2004)1 .
Outro aspecto tratado nessa rasura diz respeito aos índices que compõem uma imagem para que a aceitemos a própria realidade. A exemplo da famosa pintura de René Magritte, em que ele fazia uma provocação ao paradigma representacional quando “legendou” o quadro com a seguinte expressão: “isso não é um cachimbo”, nós resolvemos dizer os índices fotográfcos tais quais eles são, em palavra. Por isso as afrmações: “Aqui é uma rua”, “prédio”, “Av. Paulista”. Como se fosse um mapa, na perspectiva mais usual possível do termo.
Desfguração da fotografa, da palavra, da poesia, da concepção dura de mapa, da visualidade, do ilustrativo, do referenciado, da paisagem mesma, tudo isso, não inventando um outro estatuto de verdade, uma outra imagem autoritária. Queríamos desnaturalizar, desacostumar nossa imaginação espacial já tão autossufciente, autoexplicativa. Com uma fuga para dentro da própria matéria constituinte do pensamento espacial hegemônico, assumimos essa grafa como devir, assim como fez Mario Quintana quando escreveu o Epitáfo para Catulo da Paixão Cearense:
1 Ver artigo “A Edição dos Lugares”, de Queiroz Filho (2010). In: http://www.fae. unicamp.br/revista/index.php/etd/article/view/2116
Catulo não morreu, luarizou-se. Mário Quintana, A Cor do Invisível, p.114.
Deixemos a Geografa devir. Ela quer...
Referências Bibliográfcas
AGAMBEN, Giorgio. Ideia de prosa. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. ______. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó, Argos, 2009. BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008. ______. O livro das ignorânças. Rio de Janeira: Record, 2007. ______. O guardador de águas. Rio de Janeiro: Record, 2006. ______. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Record, 2004. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003 ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, v. 02. Tradução de Ana Lucia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1995. LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeira: Rocco, 1998. MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Tradução de Hilda Pareto Maciel e Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. PELLEJERO, Eduardo. A Postulação da Realidade: flosofa, literatura, política. Tradução de Susana Guerra. Lisboa: Edições Vendaval, 2009. SONTAG, Susan. Sobre fotografa. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
QUEIROZ FILHO, A. Carlos. A Edição dos Lugares: sobre fotografas e a política espacial das imagens. Revista Educação Temática Digital – ETD, 2010. Disponível em: <http://www. fae.unicamp.br/etd/index.php> Acesso em: 22 set. 2013. QUEIROZ FILHO, A. Carlos; DAMIANI, Hadassa. P.e BORGES, Rafael F. Rasuras e Experimentações: apontamentos sobre Cidade-Imagem-Experiência. In: Revista Entre-Lugar, 2013. Disponível em: <http://www.periodicos.ufgd.edu.br/ index.php/entre-lugar/article/viewFile/2675/1521> Acesso em: 22 set. 2013. QUINTANA, Mario. A cor do invisível. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.