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Carlos Augusto Viana

BEIRA-SOL: A POÉTICA DE UMA CIDADE

Carlos Augusto Viana

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A escritura de Adriano Espínola enquadra-se, esteticamente, na tendência pós-moderna, daí sua preocupação em recolher os estilhaços da vida cotidiana, confgurando, assim, uma atmosfera caracterizada pelo caos e pela desfguração, ao mesmo tempo em que se alimenta da “maciça arqueologia imaginativa do passado”1, justifcando, desse modo, a sua inscrição estética.

A Expressão Literária

Especialmente em Beira-Sol2, alicerça seu discurso poético através do uso da metáfora, da sinestesia e da prosopopeia. O livro compreende uma série de postais-líricos da cidade de Fortaleza, constituindo fragmentos de sua paisagem física, (“Ao lado, o marazul./ Silêncio./ Jangadas levitam/ lentas”, p.21) social, ( “São as favelas das dunas/ que já faço levantar:/ aqui, o Morro do Teixeira/ que sobe sem se mostrar;/ ali, o Castelo Encantado/ que navega sem sonhar”, p.24) humana, (“Duas mulheres na areia,/ retalhando pargos/ cantam uma canção vermelha”, p.15) histórica (“Ali fundou um forte de colunas/ destemidas. Sonhou na areia ardente/ uma cidade lusa”, p.20) artística, (“Controla a sua forma/ a mão de Chico da Silva”, p.35) e cultural ( “O jangadeiro/ repete antigos gestos de outras vidas”, p.31).

Percorre, com a mesma habilidade, diversos metros e formas de composição. Nos poemas de versos livres há, curiosamente, a presença, mesmo que fortuita, do ritmo dos decassí-

1 CONNOR. 1993. p.99 2 ESPÍNOLA, 1997.

labos, bem como rimas ocasionais; já os sonetos, com variadas disposições de estrofes, são, em sua totalidade, decassílabos.

Há, em Beira-Sol, algumas heranças da experiência concretista: valorização da palavra solta (som, forma visual, carga semântica) que se fragmenta e se recompõe na página, tendo o poema o espaço como agente estrutural, em função de que deverá ser lido e visto, bem como a utilização de recursos topográfcos, como, por exemplo, no poema “Os pássaros” (p.68)

Beira-Sol aponta, no autor, a preocupação com a depuração da linguagem: a palavra é explorada em todas as suas potencialidades – formais, semânticas e visuais -, possibilitando a criação de imagens rigorosas, enxutas, livres de elementos supérfuos. Os versos, muitas vezes curtos, são um constante desafo à sensibilidade do leitor que deverá preencher os espaços vazios (mas cheios de sugestões) que os cercam.

Da Composição do Livro

A divisão da obra em duas partes: “Claridade” e “O cão dos sentidos” obedece a um projeto: o de traçar um perfl múltiplo da cidade de Fortaleza, revelando-lhe as duas faces: a da claridade (aquela que, naturalmente, imprime-se nos cartões-postais, através de motivos marinhos ou históricos) e uma outra: (marginal, obscura, que acolhe os excluídos, aqui sintetizados pelo espaço e por personagens do centro e da periferia:

O poeta fala de várias coisas e de uma só: o universo da cidade. É uma cidade em movimento, que é histórica, pois é de Fortaleza que o poeta fala, mas simbólica e mítica, porque povoada de elementos que ultrapassam suas individualidades e adquirem o estatuto do símbolo. O engraxate, o jangadeiro, a prostituta, os vendedores, os biscateiros etc. são personagens de todos os tempos.3

3 PARDAL, 2003, p.78-79.

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Dessa maneira, se, em “Claridade”, o eu lírico apreende, em suas retinas, a cidade e suas transfgurações; em “O cão dos sentidos”, deixa-se contaminar muito mais pelo real palpável: como um cão noturno, percorre os corredores obscuros da cidade, seus becos e suas vielas, para recolher-lhe o lixo social.

Leitura dos Poemas

Claridade

Nessa primeira parte, o poema de abertura se intitula “Pesca”4:

A aurora se desamarra do cais. Um barco singra o peito rosado do mar. A manhã sacode as ondas e os coqueiros.

O azul estica a linha do horizonte. Na praia, um pescador arrasta um sol de algas. Em suas mãos, um peixe salta: ó palavra escamosa, espírito agitado das águas. (BS, p.13). “Pesca” constitui uma síntese feliz entre elaboração formal e exercícios lúdicos. Dividido em três estrofes, cada uma delas comporta um movimento, cuja demarcação é dada pela sugestão da progressiva passagem do tempo: amanhecer, plenitude do dia e entardecer.

4 Para a análise dessa obra, a partir de seu primeiro poema, “Pesca”, a disposição dos versos na página não segue o padrão até aqui adotado, pois, procura aproximar-se da diagramação original do livro Beira-Sol, cujos poemas são alinhados de diversas maneiras, conforme o ritmo ou a função da palavra.

Na primeira estrofe, a metáfora (“A aurora se desamarra do cais”) une às primeiras luzes do amanhecer o início das atividades no cais; a indeterminação do barco ( “um barco...) reforça seu papel metonímico (um representa muitos), e o seu deslocamento lembra-nos, também, o das horas, sob a variação de suas cores: “rosado”, “manhã”.

A segunda estrofe, formada por apenas um verso, de ritmo decassílabo, estende-se sobre uma única linha exatamente para sugerir a ideia do encontro ilusório, na plenitude do dia, do céu com o mar, implicando, assim, um único “azul”.

A última estrofe funde contemplação do cotidiano e tom confessional. O eu lírico, a princípio, depara, na praia, a pesca de arrastão. Inscreve-se, nesse momento, uma metáfora de rara plasticidade: “um sol de algas”, cujo jogo de esconder e revelar tanto associa a forma da alga marinha à representação icônica do sol quanto remete, também, ao sol em queda, implicando o entardecer.

O ponto alto do poema é a exclamação abissal: “ó palavra escamosa”, pois, imprime uma identifcação entre o eu lírico e o pescador: se deste o peixe escapa, a palavra, por sua vez, também daquele foge. Trata-se, a rigor, de uma experiência epifânica: conscientiza-se o eu lírico de que, em sua “pesca”, a perda é inexorável: de volta às águas do mar, o peixe, um dia, poderá ser repescado; o mesmo, porém, não ocorrerá com a palavra, para sempre perdida nas águas da criação.

Ainda seguindo a temática da metapoesia, lê-se o poema “Língua-Mar”, escrito sob a forma de soneto:

A língua em que navego, marinheiro, na proa das vogais e consoantes, é a que me chega em ondas incessantes à praia deste poema aventureiro.

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É a língua portuguesa, a que primeiro transpôs o abismo e as dores velejantes, no mistério das águas mais distantes, e que agora me banha por inteiro. Língua de sol, espuma e maresia, que a nau dos sonhadores-navegantes atravessa o caminho dos instantes, cruzando o Bojador de cada dia. Ó língua-mar, viajando em todos nós. Em teu sal, singra errante a minha voz (BS, p.14).

Associa o ato de fazer poesia ao de navegar, pois, o poeta, assim como o marinheiro, também pode chegar a praias desconhecidas, que são as imagens poéticas. O neologismo do título sugere que, com as grandes navegações portuguesas, houve a difusão da Língua em outros continentes.

A composição, em 14 versos decassílabos, prima pelo uso do recurso da metáfora, em passagens, tais como: “A língua em que navego, marinheiro / na proa das vogais e consoantes”; “Língua de sol...”; “Ó língua-mar, viajando em todos nós”. O último verso sedimenta-se no compromisso do eu lírico em lutar pela conservação da Língua Portuguesa, – o que nos permite inferir que esta, sendo falada por povos economicamente dominados, sofre, por conta disso, a investida de estrangeirismos, tendo, portanto, a tarefa de vencer um “Bojador” a cada dia.

Serve-se, também, o poema do uso da intertextualidade com Fernando Pessoa, quando relembra que as conquistas marinhas exigiram sacrifícios e sofrimentos do povo português, aqui sintetizados pelas “dores velejantes”, antes apontadas por aquele poeta em “Mar Portuguez”: “Ó mar salgado, quanto de teu sal/ são lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / quantos flhos em vão resa-

ram! / Quantas noivas fcaram por casar / para que fosses nosso, ó mar!” 5

O poema Beira-Sol constitui, por sua vez, uma sucessão de quadros:

Nasce da luz solar um pescador.

Sobre uma pedra, fsga a carne prateada. Duas mulheres na areia, retalhando pargos, cantam uma canção vermelha.

Cajueiros sopram sua verde vigília na fonte de um cajueiro.

Nas dunas, meninos açoitam com a espinha dos peixes o dorso da claridade.

Três jangadas, inclinadas a praia, aparam a luz com seus brancos dedos entrelaçados.

O céu é uma vela infada ao sopro salobre das ondas.

Faiscante, a manhã marinha rola, em Fortaleza, à beira-sol (BS, p.15-16).

5 PESSOA, Op.cit., nota 64, p.82

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Esse poema, assim como “Pesca”, também se orienta segundo a passagem do tempo: as luzes da aurora revelam-nos um “pescador”; mas este, com os pés fncados sobre a “pedra”, não conhece, por certo, o “mistério das águas mais distantes”; trata-se, portanto, da pesca amadora ou de subsistência.

O espaço é, nitidamente, a Beira-Mar, transfgurada tanto pelo espetáculo humano (o pescador, as peixeiras) quanto pela presença de elementos singulares à sua paisagem (os cajueiros, as jangadas na praia; bem como o olhar perscrutador do Morro do Teixeira, que a tudo assiste). O poema, em síntese, é uma série de quadros que, uma vez unidos aos demais, apreendem a imagem em sua totalidade.

A sinestesia “canção vermelha” (v. 1) resulta da fusão entre a faina e o lúdico: cantando, enquanto tratam os “pargos”, as mulheres sublimam o extenuante trabalho, misturando ao sangue dos peixes acordes que as socorrem.

Os “cajueiros” (v. 7), por sua vez, se abrigam do sol os que se encontram na praia, servem, também, em sua “verde vigília”, de orientação espacial ao “jangadeiro” – este, ao contrário daquele “pescador”, conhece os líquidos abismos do mar, e, sobrevivente, já divisa de sua jangada fragmentos mínimos da praia.

As “dunas” (v. 10) compreendem, metonimicamente, o espaço social do morro, abrigo dos excluídos. A metáfora “açoitam/ com a espinha do peixe/ o dorso da claridade” (v. 11 a 13) estabelece dois planos de signifcação: a princípio, a integração do peixe ao universo daquela gente: é trabalho, é alimento e é brinquedo; por fm, a transfguração da “espinha” em arma branca (navalha, alfanje): índices e sinais dirigidos à outra “cidade” que, sob a tenda da “claridade”, esquece-se de que há outras fomes e outros alimentos.

As “jangadas” (v. 14), de velas já entrançadas a seus mastros, recolhem-se, momentaneamente, da aventura, dan-

do passagem a outra jangada: a do próprio mar que, sob os ventos e correntes, parece içar o bojo das nuvens.

O ígneo movimento da “manhã marinha” (v. 23) desemboca no adjunto adverbial “em Fortaleza”, (v. 24) justifcando a imagem síntese: “beira-sol”: cidade à beira-mar e ensolarada.

Segue-se, então, a leitura do poema “A praia”:

O azul é um animal marinho, dormindo na praia do Mucuripe.

Em seu dorso ancestral, barcos bebem ancorados o infnito. O tempo quebra na praia sujo de algas.

Pescadores arrastam o azul, surpreendido na rede da manhã.

A vida salta feito peixes, fora d’água, pelas ruas da cidade,

boiando na claridade, onde homens logo se batem para ganhá-la. Depois, retorna à praia, ao sono escamoso e fundo das águas. (BS, p.17)

O poema, a princípio, imprime-nos a seguinte indagação: que azul é esse “azul”, que, “animal marinho”, abriga, “em seu dorso” os “barcos” sedentos? Antes de tudo, um ser

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primordial, a que o eu lírico apreende em sua contemplação da paisagem marinha. O tecido sinuoso da praia, em seus contornos de água e de azul, reproduz a forma icônica desse animal, ofertado, agora, aos olhos inebriados do espectador.

A água é o elemento ordenador do poema, cujo movimento é circular: uma vez despertado o “azul”, os “pescadores” arrastam a rede vazia em direção ao mar; da mesma forma, ao longo da cidade, os homens em geral lançam-se à luta pela vida diária; esta “salta”, e, sendo todos “peixes” – os pescadores e os outros homens – , “logo se batem”, asfxiados pelo calor da conquista do pão. Depois, “a vida”, extenuada, “retorna à praia”, ao sono “das águas”, para que, outra vez renovado o “azul”, tudo recomece; enquanto não, os homens navegarão sobre as ondas dos sonhos.

O poema “As dunas” imprime-se como uma marinha:

Avançam, sorrateiras, tangidas pela mão simétrica do vento.

A luz da manhã sobre elas escorre como ondas na maré cheia.

Verdevivos, os arbustos se agarram em desespero à alva memória da areia.

Ali, as dunas espreitam a cidade – o bote de areia armado –à espera do tempo.

Tácitas, levam nas costas, esvoaçante, o presente; nos peitos, o passado semovente (BS, p.19).

As “dunas”, a partir do processo da prosopopeia, inscrevem-se em sua natureza bélica: pacientes, “espreitam a cidade”, enquanto “avançam,/ sorrateiras”, como soldados camufados, em sua direção. O “desespero” dos “arbustos” antecipa-nos o dos homens, se, um dia, surpreendidos por esse “bote de areia”.

A última estrofe compreende as “dunas” como guardiãs da própria memória da cidade: movem-se por sobre elas o presente e o passado: este, preciso, bem guardado, e ainda vivo, pois “semovente”, recupera-nos os olhos dos primeiros descobridores e / ou conquistadores; aquele, mais frágil, uma vez que o cotidiano possui a faculdade de dissolver tudo mais facilmente; mais tarde, apenas alguns fragmentos serão por nós recolhidos.

Ressurge, então, o tecido do passado, com o poema “Martim Soares Moreno”:

A mesma praia, as pedras, essas dunas e a memória do rio com sua corrente já trazem para a margem do presente o guerreiro Martim com as escunas. Ali fundou um forte de colunas destemidas. Sonhou na areia ardente uma cidade lusa, clara e rente. E degolou francês e ouviu graúnas pelas praias... Depois, tornou ao mar a serviço d’ El-Rey noutra contenda. Voltou, porém, num sonho de Alencar a viver a verdade de uma lenda.

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Em meu sangue, que é praia do passado, Martim Soares combate, ressonhado (BS, p.20).

O encontro do rio com o mar, bem como a contemplação da paisagem marinha, tudo recupera o encontro do conquistador Martim Soares Moreno com as terras do Siará Grande. A construção do forte concretiza o sonho de erguer aqui outro Portugal. Destemido, o mesmo conquistador que expulsara com sua espada os piratas franceses também havia a sensibilidade para o canto das graúnas: cujo negror das penas encontraria, “num sonho de Alencar”, nos cabelos da virgem, vivendo, assim, “a verdade de uma lenda”.

Confessa o eu lírico ser o seu “sangue” uma “praia do passado”, onde o guerreiro português ainda, no presente, “combate, ressonhado”; ou seja, recusa-se a uma versão puramente histórica das origens de nossa terra, pois, em sua essência, o mito funde sonho e realidade.

Assomam, agora, poemas em que se retratam tipos culturais de nossa terra, como “O Jangadeiro”:

Jangadas amarelas, azuis, brancas logo invadem o verde mar bravio, o mesmo que Iracema, em arrepio, sentiu banhar de sonho as suas ancas. Que importa a lenda, ao longe, na história, se elas cruzam, ligeiras, nesse instante, o horizonte esticado da memória, tornando o que se vê mito incessante? As velas vão e voltam, incontidas, sobre as ondas (do tempo). O jangadeiro repete antigos gestos de outras vidas feitas de sal e sonho verdadeiro. Qual Ulisses, buscando, repentino a sua ilha, o seu rosto e o seu destino (BS, p.31).

O jogo cromático dos dois primeiros versos sugere as cores da bandeira do Ceará, erguida, liricamente, sob o azul do

céu e as brancuras das espumas do mar. A partir de uma intertextualidade com José de Alencar, (“o verde mar bravio”), há uma nota inicial de erotismo: o movimento das ondas do mar é associado ao do corpo de Iracema quando da cópula com Martim. Observa-se, também, a fusão entre passado e presente, uma vez que a forma verbal “invadem” remete a imagem das “jangadas” às escunas do conquistador português. A ideia do “mito incessante” justifca-se pelo fato de que está fncada, no imaginário cearense, a natureza histórico-lendária da nossa formação. A aproximação entre o jangadeiro e Ulisses lembra-nos o fato de que aquele é um ícone da formação do povo cearense, pois, ao repetir “antigos gestos de outras vidas”, funde passado e presente, revivendo hoje a bravura de outrora, atualizando, simbolicamente, as peripécias do herói grego, sendo, como este, predestinado ao cumprimento de uma tarefa: “buscando, repentino, / a sua ilha, o seu rosto e o seu destino”.

O Cão dos Sentidos

Nessa segunda parte, a primeira peça intitula-se “Praça”:

A manhã me afoga, iluminada, com seu cardume de ruídos. Violento, o sol abre as comportas do azul

As coisas avançam sobre mim, penetram dentro dos olhos, amedrontam-me:

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– o vermelho eriçado dos cartazes.

Ah, estar aqui, às dez e meia da manhã, na Praça José de Alencar.

A meu lado, um mendigo cata sobre a calçada a queixa sonante das moedas.

A buzina amarela dos táxis corta a mão agitada das mãos.

Dez ônibus sacolejam as ancas das esquinas.

Engraxates esfregam com uma fanela o ódio reluzente nos pés dos homens.

Vendedores de pano gritam a nudez das criaturas.

Biscateiros beliscam a indiferença da estátua.

Num canto da praça três pivetes pastoram o desdém metálico dos carros.

Numa fla, malandros acenam para o meu coração pugilista.

Padre Manfredo, na porta da igreja, debulha o roto rosário do abandono.

O Teatro José de Alencar sopra em minha nuca o bafo peludo da vida. Ó manhã transfgurada. A loucura acende por um instante o rosto crispado dos objetos

A praça invada uma outra praça. Transeunte do acaso, me perco entre as duas (BS, p.43-45).

A metáfora inaugural “afoga” ressalta a natureza inebriante da manhã na praça, onde o “cardume / de ruídos” confgura o ir e o vir desordenado de pessoas e maquinarias numa sinestesia cubo-futurista.

Percorrendo a praça, o eu lírico se sente absorvido pelos apelos os mais diversos, ideia reforçada pelo pleonasmo: “penetram dentro dos olhos”, e o clímax é a sedução da publicidade: “ – o vermelho eriçado / dos cartazes”.

Se o primeiro movimento é absolutamente poético, sedimentado em jogos metafóricos e sinestésicos, o que faz com que a praça seja um espaço universal e imaginário, o segundo movimento, ao contrário, inscreve-se como prosaico: “Ah, es-

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tar aqui, / às dez e meia da manhã, / na Praça José de Alencar”, exatamente para iniciar o processo de singularidade do lugar, fagrando imagens não captadas pelos cartões-postais: a miséria dos mendigos, o caos do trânsito, os engraxates, os comerciários, os camelôs, os pivetes, os malandros, o abandono da arquitetura.

O último movimento, a partir de “Ó manhã transfgurada”, inaugura uma outra praça, erigida na imaginação do eu lírico, que, “transeunte do acaso”, perde-se “entre as duas”: a real, que, até então, denunciara em seus mecanismos de penúria social e humana; e a outra, a que ele espera surgir quando a consciência do bem comum instalar-se no poder e na sociedade em geral.

Em “Prisma”, o poeta escreve:

Verde a voz por entre as árvores. Amarelo oleoso o ar do meio-dia. A memória é azul à beira-mar. Cinza, a hora que escorre dos edifícios. Vermelha a vertigem do poente. Violeta a raiz do sono. Branquíssimo este instante que a tudo resume (BS, p.78).

O espaço do poético é um vazio a preencher-se ininterruptamente; compreendendo um “instante” branco por demais, o branco é a união de todas as cores, da mesma forma

as imagens poéticas unem-se e se esgotam. Nesse metapoema, a criação artística percorre a busca das palavras como se atravessasse o labirinto em cores de um prisma: a cidade, amanhecendo sob o “verde” canto dos pássaros, convoca o eu lírico a percorrer-lhe o corpo; e eis os caminhos da criação: se o “ar do meio-dia” é de um “Amarelo oleoso”, ou seja, se, viscoso, o cotidiano se lhe escapa em sua totalidade, se não consegue apreender-lhe as múltiplas manifestações, que, então, sirva-se da faculdade da transfguração, bebendo, assim, o “azul” da “memória”. Desmaia o sol sobre a cinza dos edifícios, e, cansado de suas buscas, o eu lírico pode, fnalmente, enraizar-se no sonho de sintetizar tudo isso.

Outra confguração da temática social, em “Maria”:

Diz que dá pernadas na lua. Entre uma cerveja e outra, decifra os bigodes do chinês. Com a mão esquerda, retira um búzio da boca de um marinheiro. Com a bacia das coxas, apara a resina do sexo. Arranha com as unhas esmaltadas a miçanga das estrelas. Depois dorme por entre gatos e palavras impublicáveis. Ave Maria, cheia de graças (BS, p.79).

O título “Maria” converte-se num desvio de uma imagem sacralizada pela cultura: de vestal passa a prostituta. Em consonância com a atmosfera lúgubre de “O cão dos sentidos”, o texto perfla a prostituição no universo da miséria: “Depois dorme por entre gatos”, alcoolizada.

A metáfora “dá pernadas na lua” traduz a faina noturna da prostituta pela sobrevivência: ela, “Entre uma cerveja e ou-

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tra”, palmilha o desejo mais secreto dos homens: “os bigodes do chinês” – ressalte-se que, costumeiramente, associam-se exotismo e mistérios aos orientais.

O caráter transgressor da prostituição é sintetizado pela “mão esquerda”, a que a tradição cristã associa ao demoníaco, ao pecaminoso: “a direita tem um sentido ativo, e a esquerda é passiva. Também a direita signifca futuro; e a esquera, passado, sobre o qual o homem não tem poder. Enfm, a direita possui um valor benéfco e a esquerda parece maléfca”. 6 A metáfora “Arranha com as unhas esmaltadas / a miçanga das estrelas” acentua-lhe a penúria, presente inclusive no brilho falso de seus adornos.

Fecha-se essa análise com o poema “Residência”; este, por sua vez, traz para o conjunto total dos poemas uma nota até então ausente: a do erotismo, consoante os versos que se seguem:

O corpo de minha cidade é um naco de terra à beira-mar. Nele, as ondas quebram o tempo por entre as pedras. As dunas empinadas apontam-no Para o céu de minha boca. Traz sobre as ancas um sol selvagem tatuado. Um riacho corre até à foz de seu sexo salitroso. Pássaros marinhos migram de seus olhos para as mãos. Esquinas e gestos logo irrompem sobre a praça de seu ventre. Pelas ruas diariamente atravesso o mapa de seu sangue. Amar esta mulher é habitá-la. (BS, p.82)

6 CHEVALIER & GHEERBRANT,1989, p.343.

Sofrendo um processo antropomórfco, a cidade de Fortaleza assoma ao eu lírico como um corpo de mulher; assim, uma sucessão metafórica enumera-lhe os peitos, (as dunas) as ancas, (as praias) o sexo (a barra do mar) os olhos, (os faróis do Mucuripe) o ventre (a praça) e suas veias (as ruas), para fnalmente, consumar a posse: “Amar esta mulher é habitá-la”.

Referências Bibliográfcas

CHEVALIER, J. e GHEERBRANT. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. CONNOR, S. Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo. São Paulo: Edições Loyola, 1993. ESPÍNOLA, Adriano. Beira-sol. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. PARDAL, Paulo de Tarso. Discurso do imaginário. Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2003. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986.

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