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Broderagem sob os trópicos: a construção de masculinidades pautadas no desejo oculto

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BRODERAGEM SOB OS TRÓPICOS: A CONSTRUÇÃO DE MASCULINIDADES PAUTADAS NO DESEJO OCULTO

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Cami Santos Dias

Era o mês de março O calor tomava conta dos corpos Vento forte, água salgada, areia branda Assim era a vida nos trópicos.

Uma trilha entre pedras e árvores Escondia um segredo No topo da colina Uma vista estonteante E corpos sedentos Pelo prazer oculto.

O ensaio visual Broderagem sob os trópicos (2021) tem como mote debater a construção das masculinidades, suas subjetividades e relações de poder. O termo broderagem é empregado para denominar práticas sexuais entre homens, por vezes amigos — daí o caráter irônico com a palavra da língua inglesa “brother” —, que se definem como heterossexuais. Para este ensaio, acompanhei durante alguns dias estas práticas sexuais no litoral sul da Paraíba, no município de Conde. Sem organização prévia e de encontro com o inesperado, os registros foram feitos a partir do que dispunha em mãos: uma câmera Kodak descartável e um rolo de filme 35mm vencido.

Por volta das onze horas da manhã cheguei à praia, estendi minha canga sobre a areia, deitei e relaxei; essas coisas que se costumam fazer diante do mar. Após algumas horas de contemplação do azul, tive o olhar desviado para uma movimentação de corpos masculinos que subiam por pedras e desapareciam do meu campo de visão — como nesses portais de filmes fantásticos. Me aproximei do que pareceu ser um caminho para uma trilha. Por medidas de precaução, decidi subir portal adentro na companhia de um amigo — agradeço novamente a ele por ter topado a aventura. No caminho, em meio às pedras e vegetação, me deparei com vários pacotes rasgados de camisinhas, de diferentes cores e marcas, espalhadas pelo chão, o que sinalizava as interações que aconteciam no espaço. Chegamos, finalmente, ao que indicava ser o fim do caminho e local onde o portal se abria para corpos despidos com

o mesmo propósito: o prazer sexual.

Para compreendermos melhor as relações entre esses espaços e práticas de construção das masculinidades, faz-se necessário uma digressão para pensarmos que corpos são esses presentes nas fotografias. Para isso, lançamos mão da Rían Lozano em seu texto Corpos políticos e contrarrepresentações (2010): Seguindo a noção de discurso de Michel Foucault, é fácil compreender que os aspectos mais puramente materiais da corporeidade, seus limites sensíveis, podem ser interpretados como efeitos produtivos de poder; um poder que conformará simultaneamente sujeitos legítimos - apropriados aos discursos e aos saberes e poderes que implicam - e seres ininteligíveis, abjetos e excluídos, cujos corpos “não importam” ou, em todo o caso, não importam na mesma medida que as corporeidades “sujeitos”(inteligíveis) propriamente ditos (2010, p. 344).

Ainda neste campo, podemos pensar uma história da representação dos corpos versada na dominação física, simbólica e epistemológica, no qual a autora propõe uma quebra desse modo de violência representacional, o que chamará de contrarrepresentações. Embora seu foco seja a representação das mulheres ao longo da história da arte, a partir desta lógica das contrarrepresentações também podemos pensar os corpos e comportamentos abordados neste trabalho.

Sendo o gênero constituído através de uma relação social (SCOTT, 1988), as práticas de gênero também afetam o interior das masculinidades. Compreendido como grupo hegemônico de poder, como indivíduos são passíveis a sofrimentos dentro do próprio sistema opressivo que habitam. Na medida em que ten-

tam afirmar uma masculinidade perdida, pois esta é desde sempre utópica, essas frustrações acarretam em práticas de violências, a exemplo da homofobia (KIMMEL, 1998). As interações por meio da broderagem caracterizam-se dentro deste sistema opressivo, no qual os praticantes essencialmente se definem como heterossexuais. Nesse sentido, tal prática sexual pode ser entendida como fugaz, temporária e situacional, o que reflete as problemáticas da construção destas masculinidades.

Tal relação ficou evidente em uma situação que vivi naquela tarde ensolarada. Um rapaz se aproximou de mim e apontou para outro, alegando que este outro era “viado” e que não compactuava com a “viadagem” alheia. Dito isso, me peguei pensando se aquela fala refletia, de fato, um posicionamento preconceituoso do interlocutor ou se foi dirigida especificamente para mim, a única mulher presente e figura ameaçadora, como forma de honrar um status social para além daquele espaço. Essa fuga da heterossexualidade, delimitada apenas àqueles espaços e momentos específicos, é justificada pela questão da discrição.

O estereótipo do universo gay, muito ligado à cultura pop e à feminilidade, seria o oposto do que a broderagem põe em prática. Nas minhas conversas com alguns frequentadores assíduos do local, percebi que a virilidade e comportamentos tidos como masculinos são essenciais àquelas interações. Em uma abordagem psicanalista, Nancy Chodorow (1978) entende esse rechaço ao feminino e suas práticas como fruto de um rompimento do fim da

fase edípica e da formação de um self masculino.

Seus corpos eretos de olhares atentos transformavam-nos em animais, protegendo seu terreno e calculando meticulosamente o bote à presa. Ouviam-se apenas o som distante das ondas quebrando nas pedras, as patas selvagens e cautelosas sobre as folhas e discretos gemidos.

A atmosfera presente neste espaço, que aqui me refiro como portal, se assemelha ao que Foucault descreve como uma heterotopia de desvio: “lugares que a sociedade dispõe em suas margens, nas paragens vazias que a rodeiam, são antes reservados aos indivíduos cujo comportamento é desviante relativamente à média ou à norma exigida” (FOUCUALT, 2001, p. 22). Lançando mão de conceitos foucaultianos, pode-se entender este portal como um desvio das relações de desejo, fetiches e fantasias, provavelmente irrealizáveis em outros locais ou até mesmo em suas vidas cotidianas.

Nesse cenário, consigo enxergar nestes lugares e práticas uma relação paradoxal: na mesma medida em que são pontos de resistência devido aos desvios às normas, também carregam estigmas sexuais e reproduzem relações heterocentradas de poder. Mas, como pontuaria Brecht: “A realidade não é somente tudo o que é, mas tudo aquilo que está se tornando. É um processo. Opera por meio de contradições. Se não for percebida em sua natureza contraditória, não será nem mesmo percebida.” (HAUG, W. F., 2007, p. 153. apud MIRZOEFF, 2016, p.749).

É nesse cenário contraditório que surge esse ensaio, diante de

uma “crise da visualidade nos dias atuais’’ (MIRZOEFF, 2016, p. 747), para fomentar o debate acerca da construção das masculinidades e suas relações de poder dentro do próprio sistema opressivo e para com seu entorno. Ainda para Mirzoeff (2016), é através do direito ao olhar, de uma contravisualidade, que ocorre a deslegitimação da hegemonia ocidental de poder.

O resultado das fotografias foi, tal qual à experiência, imprevisível. Perdi boa parte dos registros no processo de revelação, o que reforça o tom de mistério da narrativa. O curioso é que, as fotos perdidas, não decorreram de subexposição ou superexposição, elas simplesmente não apareceram no filme, como se os reveladores não tivessem agido naquele determinado pedaço do material. Por ter sido um processo artesanal, feito em casa, é passível de erros. Mas prefiro pensar que algo de sobrenatural atuou ali, naquele instante, e revelou apenas o que deveria ter sido revelado. Observando o caráter estético das fotografias, os tons de roxo saturados conferiram uma atmosfera onírica às imagens, mesclando realidade ao sonho. Também os registros do lugar, ora com a presença de corpos, ora sem, marcam uma passagem temporal duvidosa, na qual não se tem certeza se aqueles corpos de fato estiveram ali ou se são projeções dos nossos duplos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Chodorow, Nancy. The Reproduction of Mothering: Psychoanalysis and the Sociology of Gender. 1978. FOUCAULT, Michel. “Outros espaços”. In: Ditos & Escritos III – Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. KIMMEL, Michael. A produção simultânea de masculinidades hegemônicas e subalternas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 4, n. 9, p. 103-117, out. 1998. Disponível em: <http://

dx.doi.org/10.1590/S0104-71831998000200007> Acesso em: 28 de abril de 2021. LOZANO, Rían. “Cuerpos políticos y contra-representaciones”. In Investigaciones Fenomenológicas, vol. monográfico 2: Cuerpo y alteridad. Tradução de Marina Feldhues. SEFE (Sociedade Española de Fenomenología), 2010. MIRZOEFF, Nicholas. “O direito a olhar”. In ETD - Educação Temática Digital, Campinas, SP, v. 18, n. 4, p. 745- 768, nov. 2016. ISSN 1676-2592. Disponível em: <https://periodicos.sbu. unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/8646472> Acesso em: 29 de abril de 2021. SCOTT, Joan. Gender on the Politics 01 History. New York: Columbia University Press, 1988 (p.28-50). Tradução de Guacira Lopes Louro, versão em francês. Revisão de Tomaz Tadeu da Silva, de acordo com o original em inglês.

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