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Azul de tão preto: NoirBlue – deslocamentos de uma dança, de Ana Pi
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AZUL DE TÃO PRETO: NOIRBLUE – DESLOCAMENTOS DE UMA DANÇA, DE ANA PI
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Por Elysangela Freitas
A dança negra existe, aliás, é a única que tem uma cor. Ana Pi
Mineira de Belo Horizonte, Ana Pi é uma artista coreográfica e da imagem, pesquisadora das danças urbanas, dançarina contemporânea e pedagoga. Graduada pela Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia – Brasil, em 2009/10, estudou no Palácio das Artes em Belo Horizonte e no Centre Chorégraphique National de Montpellier, na França, formação EX.E.R.CE, sob a direção de Mathilde Monnier.
Ana performa e palestra, com apresentações realizadas na América Latina, na Europa e na África. Por meio de seu trabalho e como resultado de suas pesquisas, ela também se interessa pelo desenvolvimento de uma prática pedagógica, concebendo um diálogo mais direto com o público. Assim, dentro deste processo, ela ministra oficinas de dança, baseadas no que vem desenvolvendo, chamadas de CORPO FIRME: danças periféricas, gestos sagrados, onde as danças originárias das periferias das grandes cidades, também conhecidas como danças urbanas, se relacionam intima-
mente com gestos sagrados presentes na Diáspora Negra.1
Seu interesse se dá pelas danças que emergem nas periferias das grandes cidades do mundo, ditas também danças urbanas, danças de rua, ou ainda, street dance. Tal como escreve a curadora Maria Inês Rodríguez para a apresentação de um de seus trabalhos, Vós (2011), sua obra trata-se de [u]m encontro em que a dança, enquanto linguagem, transmite conhecimento, emoções e imagens através do corpo e de seu movimento.2
A artista se apresenta como uma pessoa curiosa, um corpo atento às coisas do mundo. Sua prática criativa e pedagógica passa pelo trânsito, o deslocamento, o pertencimento, a sobreposição, a memória, as cores, as ações ordinárias e seus gestos. Para Ana Pi: A diáspora negra forçada em direção às Américas durou cerca de 400 anos. Em outro terreno e sob a opressão do contexto, esta imensa massa humana em deslocamento teve a perspicácia de dançar. Compreender esse impacto oferece a oportunidade de viver de modo diferente as danças emergentes de zonas periféricas das cidades, ditas danças urbanas. A pesquisa coletiva sobre a adaptação, groove, improvisação e freestyle são a base desta prática. Dançar em roda, ativar pés, bacia e olhos são aqui percebidos como gestos sagrados, produtores de expansão em permanência.3 1 Citado de sua mini-biografia disponível no Instituto Meohtake, no link: https://www.institutotomieohtake.org.br/programacao/interna/ noirblue-por-ana-pi. Acesso em 29.04.2021. 2 Disponível aqui: https://masp.org.br/exposicoes/ana-pi. Acesso em 29.04.2021. 3 Retirado de seu website, no link: https://anazpi.com/corpo-firmecorps-ancre-steady-body-ana-pi/. Acesso em 29.04.2021.
Em 2017, Ana Pi cria NoirBlue, espetáculo de dança solo, e estreia o seu primeiro filme intitulado “NoirBlue – deslocamentos de uma dança” (26 minutos), gravado em 2016, em nove países da África (Níger, Burkina, Mali, Nigéria, Angola, Guiné Equatorial, Costa do Marfim, Etiópia e Mauritânia).
A viagem para os países africanos da África subsaariana, ou África Negra, aconteceu em 2016, em meio ao processo de criação do espetáculo NoirBlue. Em sua pesquisa, a que ela chama de exercícios de pertencimento, Ana queria entender o conceito de dança negra e de como poderia trabalhar de uma forma mais aberta, colocar juntas danças que são de contextos totalmente diferentes, como uma dança de cerimônia e uma dança de batalha. Sua preocupação maior era o processo de feitura do próprio espetáculo de dança. Ana conta que: Durante a viagem fui fazendo aqueles experimentos (...) e encontrei pessoas que foram me dando mais informações sobre danças negras. Então tudo foi ficando mais rico, e foi nesse momento que resolvi pensar nessa expressão racista “azul de tão preto”. Foi uma questão que me coloquei: como eu criaria uma dança “azul de tão preta”?4
4 Entrevista para o Cine Festivais, em 2019. Disponível aqui: https:// cinefestivais.com.br/ana-pi-fala-sobre-noirblue-deslocamentos-deuma-danca/. Acesso em 29.04.2021. Grifo nosso.

4 de agosto de 2016 retornar <> revenir, mais um exercício para essa criação (azul) em deslocamento. Ontem em Paris, ao som da super 8 de Indira Dominici, dancei aqueles gestos trazidos de África, das 9 cidades percorridas em junho e julho desse ano. Dentro do meu tênis ainda tem areia da Mauritânia, percebi. Coberta pelo meu tecido eu pude ver mil rostos. Nas ruas desertas desta cidade atual eu dancei gestos daquele pertencimento, no vazio deste espaço tudo era abundância dentro do meu movimento, me bastava só fechar os olhos e todo mundo estava ali comigo.5
5 O texto acompanha as imagens na postagem de 04 de agosto de 2016 em seu site. Disponível no link: https://anazpi.com/2016/08/04/ retornar-revenir/. Acesso em 29.04.2021.

6 Idem. Aujourd’hui elle existe cette danse bleue qui dérive de la noire. Hier j’ai dansé sans peur, dans l’obscurité. On était là, le son, la lumière et le mouvement, ensemble à se voir et s’écouter. Les yeux devant moi étaient, eux aussi, luminescents. J’ai sentais leur vibration curieuse. Je suis partie et ça vibrait encore, c’est ça que je voulais faire sans concession. La liberté est bleue.6 Hoje existe essa dança azul que deriva da negra. Ontem, dancei sem medo no escuro. Estávamos lá, som, luz e movimento, juntos para nos vermos e ouvirmos. Os olhos à minha frente também eram luminescentes. Eu senti sua vibração curiosa. Saí e ainda estava vibrando, era isso que eu queria fazer sem compromisso. A liberdade é azul. (tradução livre)

Já o filme NoirBlue – deslocamentos de uma dança, disponível no site da artista (https://anazpi.com/noirblue-doc/), surgiu um pouco por acaso. Ana só percebeu que tinha um filme muito tempo depois de voltar da África, quando o Facebook lhe mostrou as lembranças, por meio da amostra de pequenos vídeos diariamente. Assim, o filme foi realizado de forma independente, com poucos recursos, uma câmera e sem equipe. Inicialmente as imagens foram feitas com o objetivo de compartilhar a experiência da viagem com pessoas próximas e como objeto de observação da pesquisa em dança, e não era visto pela própria artista como “cinema”. 7
Narrado em primeira pessoa, o filme é, ao mesmo tempo, o relato de uma experiência pessoal e uma performance. Ana Pi narra e dança o que sente: O mais importante pra mim era contar sobre os pensamentos que me ocorreram por estar ali, daquela experiência, como me senti, que informações que eu tive acesso que não chegam até aqui, ou que não saem de lá, inclusive. 8 7 Retirado do link: https://www.hojeemdia.com.br/almanaque/ jovens-cineastas-mineiros-se-destacam-na-mostra-de-cinema-detiradentes-1.687754/cineasta-ana-pi-1.687758. Acesso em 29.04.2021. 8 Idem.
Ana conhece a África de seus ancestrais dançando, volta a se ligar às suas origens através do gesto coreográfico, se deixa imergir nesse mundo novo, estando dentro dele, em movimento constante. Segundo Le Breton, para nós, seres humanos, não existem alternativas senão experimentar o mundo, ser atravessado e transformado permanentemente por ele, sendo que o mundo é a emanação de um corpo que o penetra. Um vai e vem instaura-se entre sensação das coisas e sensação de si. Antes do pensamento, há os sentidos. 9
O antropólogo afirma ainda que o corpo é a condição humana do mundo, este lugar onde o fluxo incessante das coisas se detém em significações precisas ou em ambiências, metamorfoseia-se em imagens, em sons, em dores, em texturas, em cores, em paisagens etc.10
E é assim, consciente de seu corpo e com um olhar de dentro, que a artista vivencia e filma essa experiência, com o objetivo de mostrar uma outra África, diferente daqueles relatos explorados pela grande mídia. Em entrevista, a artista afirma: Porque acaba que a maioria dos materiais que a gente tem em imagem sobre África são muito exotizantes, muito expositivos de uma África ritualística, mas totalmente fora de contexto, vista pelo olhar de pessoas que são inclusive céticas de tudo. Ou então mostram a fome, a miséria, os animais selvagens… Quando aconteceu a viagem, já nesse primeiro momento do avião, que está na narração do filme – quando vi todas aquelas pessoas negras, principalmente o piloto e quem estava na primeira classe –, percebi que iria me deparar com uma
9 Le Breton, David, 1953. Antropologia dos sentidos. Tradução: Franciso Morás. Petrópolis: Vozes, 2016. 10 Idem.
complexidade, que eu iria ficar ao avesso mesmo. Pensando nessa questão do quão humanos podemos ser enquanto pessoas negras, ou mesmo nessa coisa do status social. Naquele momento eu já percebia que estava indo para um lugar absolutamente humano, humanizado mesmo, e isso foi maravilhoso. (...) Então o deslocamento era isso, um deslocamento visando ampliar a reflexão sobre essa questão de onde viemos e como aquele lugar de onde viemos está. De uma certa forma as imagens dão conta de mostrar como ele está um pouco. Entendo como se fosse uma contação de história, um griot mesmo, acompanhada das imagens.11
Dessa forma, Ana Pi em sua obra constrói contravisualidades, promovendo outras narrativas e incentivando deslocamentos nas formas como aprendemos a ver e a vivenciar o mundo. Na avaliação de Abreu, Álvarez e Monteles, As contravisualidades ajudam a questionar o círculo da homogeneização do olhar, no qual os dispositivos de visibilidade formalizam o que é representável e o que não pode ser visto. Trata-se de narrar uma alternativa a outras realidades, onde a presença, em geral invisibilizada do ‘outro’ e de outros contextos socioculturais, é requisitada.12
11 https://cinefestivais.com.br/ana-pi-fala-sobre-noirblue-deslocamentos-deuma-danca/. Acesso em 29.04.2021. 12 ABREU, Carla Luzia de; ÁLVAREZ, Juan Sebastián Ospina; MONTELES, Nayara Joyse Silva. O que podemos aprender das contravisualidades?,
Quais as sensações e sentimentos que um gesto provoca em nós e no outro? Quais os outros modos de conhecer o mundo? É possível experimentar-compreender através do puro movimento? Assim, eu conheci Ana Pi, fui atravessada por sua narrativa e sua dança. Poesia. A obra da artista me chama a experimentar outras existências, mesmo sem a presença física naquele espaço.
No início do filme, a artista pede a benção dos ancestrais e, ao final da narrativa, aos mais jovens. Ela afirma, ainda, que quando o visível se torna invisível o olho demora a se acostumar e nos convida a imaginar. Então, vamos imaginar e sonhar um passado, um presente e um futuro que dialoguem com os deslocamentos e conexões geográficas afetivas que Ana Pi nos propõe.

NOUAKCHOOT / Mauritânia
In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 831-846.

MALABO / Guiné Equatorial

LUANDA / Angola

ENUGU / Nigéria

BAMAKO / Mali

LAGOS / Nigéria

OUAGADOUGOU / Burkina Faso


NIAMEY / Níger

NOUAKCHOOT / Mauritânia



REFERÊNCIAS:
ABREU, Carla Luzia de; ÁLVAREZ, Juan Sebastián Ospina; MONTELES, Nayara Joyse Silva. O que podemos aprender das contravisualidades?, In: Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 831-846. Le Breton, David, 1953 - Antropologia dos sentidos. Tradução de Franciso Morás. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. NoirBLUE – les déplacements d’une danse (2018, 27’). Réalisation : Ana Pi. https://anazpi.com/noirblue-doc/. Acesso em 29.04.2021
Links de entrevistas e textos biográficos curatoriais:
www.anazpi.com. Acesso em 29.04.2021. https://anazpi.com/corpo-firme-corps-ancre-steady-body-anapi/. Acesso em 29.04.2021. https://ims.com.br/convida/ana-pi/. Acesso em 29.04.2021. https://www.institutotomieohtake.org.br/programacao/ interna/noirblue-por-ana-pi. Acesso em 29.04.2021. https://masp.org.br/exposicoes/ana-pi. Acesso em 29.04.2021. https://cinefestivais.com.br/ana-pi-fala-sobre-noirbluedeslocamentos-de-uma-danca/. Acesso em 29.04.2021. https://anazpi.com/author/anazpi/#:~:text=Ana%20Pi%20 est%20diplômée%20de,E.R. Acesso em 29.04.2021. https://www.hojeemdia.com.br/almanaque/jovenscineastas-mineiros-se-destacam-na-mostra-de-cinema-detiradentes-1.687754/cineasta-ana-pi-1.687758. Acesso em 29.04.2021. https://cinefestivais.com.br/ana-pi-fala-sobre-noirbluedeslocamentos-de-uma-danca/. Acesso em 29.04.2021.