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Memórias Imperfeitas: relato de invasões

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MEMÓRIAS IMPERFEITAS RELATO DE INVASÕES

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Yêda Bezerra de Mello

“Para o homem não existem alternativas senão experimentar o mundo, ser atravessado e transformado permanentemente por ele.” David Le Breton

1989, Aldeia Guarani – SP Fotografia Yêda Bezerra de Mello

O ensaio fotográfico que trago aqui foi fruto de um trabalho que realizei em São Paulo, em 1989. Quando era aluna da Escola Panamericana de Artes, que teve sua sede em Buenos Aires e filial em São Paulo, fui fazer o making of de uma atividade de professores que foram realizar uma foto para um concurso. O concurso, dirigido só aos professores da escola, era para abrir as comemorações dos 500 anos do Brasil. O local escolhido por eles foi uma aldeia Guarani, próxima a capital paulista, os professores tinham ido lá anteriormente e o que ficou combinado foi o seguinte: levariam um quadro da Monalisa e colocariam no centro da aldeia, os índios ficariam em volta, cultuando-a e seriam fotografados. Os professores levaram uma câmera 4 x 5, de grande formato e eu e outra monitora da escola iríamos documentar o processo, com nossas 35mm. Chegando lá, as questões começaram a aparecer, achei muito distante o tratamento dos professores com as pessoas da aldeia, não tinham uma interação e nem sei se explicaram o que estávamos fazendo ali. Enquanto isso, em São Paulo, estava sendo inaugurado o Memorial da América Latina, um projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer com o conceito e o projeto cultural desenvolvido pelo antropólogo Darcy Ribeiro. O Brasil se preparava para as eleições Diretas e nós, mais uma vez, invadindo uma aldeia. Em que lugar colocamos aquelas pessoas? Que narrativas queriam ser construídas?...

Hoje tenho estas questões mais claras, mas, na época, o incômodo não encontrava seu lugar. Dando um salto para hoje, percebo, como diz Azoulay, que “[p]or violência imperial, me refiro a toda empreitada de destruir os mundos de símbolos, atividades e tecidos sociais existentes e substituí-los por um ‘novo mundo’ de objetos, classificações, leis, tecnologias e significados. Nesse suposto ‘novo mundo’, populações locais e recursos são considerados problemas ou soluções, oportunidades ou obstáculos, e são designados para papéis, espaços e funções específicos. Por meio desses processos, conjuntos de direitos que eram próprios de cada

mundo e circunscritos em sua organização material são destruídos para que os direitos imperiais sejam impostos. Entre eles, estão o direito de destruir mundos existentes; o direito de produzir um novo mundo em seu lugar; o direito sobre os outros que tiveram seus mundos destruídos junto com os direitos de que usufruíam em suas comunidades; e o direito de declarar o que é novo, e, consequentemente, o que é obsoleto” (2019, s/p, grifado no original)

1989, Aldeia Guarani – SP Fotografia Yêda Bezerra de Mello

Fica claro o porquê que chegamos ali, os professores viram a oportunidade que aquela comunidade proporcionaria de criar uma imagem que eles estavam querendo, de impor ideias dando-lhes papéis que serviriam para o discurso que queriam produzir, se utilizar da história deles, de suas casas, seus corpos, enfim, de usurpar seus direitos. Vejo como fundamental a importância de se rever o que já foi produzido visualmente, com um olhar crítico, para que comecemos a mudar o que é feito, o que é visto, pensado e construído. Além da investigação sobre o outro, penso no lugar que Azoulay coloca a fotografia: “Tais reiterações não evidenciam a natureza da ‘nova’ tecnologia, mas a maneira como a fotografia,

entre outras tecnologias, estava enraizada nas estruturas imperiais de poder e de legitimação da violência na forma de direitos exercidos sobre o outro” (2019, s/p). Esta legitimação da violência representacional (Lozano, Rian) e de poder sobre o outro, da destruição de seus mundos em prol de outros construídos, deve ser questionada e extinta, dando lugar a novas formas de ver e se relacionar com o que vemos. As contra-representações vêm nos mostrar que outras formas de olhar para o mundo são necessárias. Lozano, citando Monique Wittig, nos diz: “‘livrar-se’ das ‘representações’, livrar-se da modelagem tirânica dos corpos, envolverá um profundo questionamento das estruturas sociais e epistemológicas que sustentam ‘o mundo social’.” (2019, s/p)

Como fotógrafa, observo como as pessoas têm sido fotografadas. Como os fotógrafos, em geral, (não) se relacionam com o outro. O outro geralmente é olhado como algo externo a nós, como objeto e passível de ser fotografado, sem uma permissão prévia, sem um entendimento do que será feito, continuamos invadindo seus espaços, seus corpos, suas vidas... Estas separações têm de ser

1989, Aldeia Guarani – SP Fotografia Yêda Bezerra de Mello

desfeitas, precisamos buscar o entendimento do todo, pensarmos que somos só uma parte deste todo e que as atitudes, perante o ato fotográfico têm de mudar. Pensar que o respeito é direito de todos, que a dignidade é essencial e o reconhecimento do outro é fundamental para se estabelecer qualquer relação.

Em 2005, escrevi para uma exposição:

Vejo o mundo. Nessa experiência encontro o outro que de modo similar me observa e também me desafia. Pelo olhar posso acolhê-lo, pelo menos na parte dele que se oferece. Resulta, então, uma imagem que agora vos ofereço, para que possam ser testemunhas desse encontro, que me transforma e me alimenta. (Retratos – Yêda Bezerra de Mello, setembro de 2005)

1989, Aldeia Guarani – SP Fotografia Yêda Bezerra de Mello

Desejo um encontro, uma troca, compartilhamento e afeto.

Será possível?

Será que nós, que “produzimos” imagens, conseguiremos encontrar “uma gramática de não-violência (significando uma recusa à segregação), como forma coletiva”, como escreve Mirzoeff (2016, p.749)?. Que as relações que se estabeleçam nos processos fotográficos sejam de cooperação, respeito e pensamento. Ainda em Mirzoeff, sobre uma ponderação de Pasolini, “talvez devêssemos, com toda humildade e, nos apoiando num neologismo audacioso, definir a realidade como aquilo-de-onde-se-deve-extrair-sentido.” (idem, p.750).

Sentido, respeito, confiança, olhar, existência... Não poderemos esquecer e dissociar as questões sociais, econômicas, políticas e culturais que, revistas, devem apoiar e confluir para a construção de novas práticas, inclusive da pluralidade dos olhares. “O direito, no direito a olhar, contesta primeiramente o direito de propriedade sobre outra pessoa, insistindo na autonomia irredutível de todas as pessoas, antes de qualquer lei.” (ibidem, p.750).

Voltemos a 1989. Fotografamos e quando revelamos os filmes, a foto-

1989, Aldeia Guarani – SP Fotografia Yêda Bezerra de Mello

grafia escolhida para o concurso foi uma sequência de 5 imagens minhas.

Na escolha de qual sequência dar a elas, caímos então em todos os problemas pensados hoje: colonização, visualidades, hegemonia ocidental, eurocentrismo, autoritarismo, estereótipos, poder, invasão, destruição, imperialismo... Para os professores, só fazia sentido começar no índio e terminar com a Monalisa ao centro, pois estava em conformidade com a ideia inicial deles, A sequência que eu fotografei foi vencida, então, ganhamos o concurso e perdemos o “direito de olhar”.

Apresento aqui a sequência escolhida, a narrativa que imperou e que hoje tentamos desconstruir. O máximo que consegui, na época, foi que as fotografias fossem expostas separadamente. Quem sabe não seria possível, um dia, mudar a ordem das imagens? Confirmando, como diz Rian Lozano, que “a história das representações é, neste sentido, uma história de dominação física, simbólica e epistemológica” (2010).

Hoje estas imagens fazem parte do acervo do Museo de la Ciudad de Buenos Aires.

Chegamos a 2021.

Pegando como ponto de partida a sequência fotografada por mim, da Monalisa ao índio, que, na época, não tinha toda esta rede de significados que possui hoje, penso nas contravisualidades.

1989, sequência escolhida.

1989, sequência fotografada.

As contravisualidades estão aí, para que possamos questionar e romper com “o círculo da homogeneização do olhar”. Tentando quebrar este círculo, encontrar outros significados e provocar o deslocamento da narrativa que foi primeiro construída, venho propor outra visualidade, tomando a visualidade “como sendo a articulação entre informação, imaginação e uma compreensão que se dá de forma subjetiva sobre o que se vê” (Mirzoeff 2011, p.476).

Através da mudança na ordem das imagens, teremos a oportunidade de dar outros sentidos às mesmas fotografias. Estas imagens, depois de anos em silêncio, se reorganizam, se transformam em sentido, mudam a sua história, estão vivas. Se tornam capazes de gerar outros conhecimentos, compartilham de outras narrativas e geram novos significados. Podem ampliar o discurso quando fazem novas conexões com questões culturais, sociais, políticas... Compartilho com vocês minhas experiências, desejo me colocar na perspectiva do outro, questionar olhares e aprender com eles. Dividir a compreensão da necessidade de um estar no mundo repleto de reconstruções, escolhas e mudanças nas relações que envolvem nossas percepções. Ainda há muito a aprender, sempre.

REFERÊNCIAS

Azoulay, Ariella. “Desaprendendo as origens da fotografia”. In Revista Zum 17, 2019. Lozano, Rian. “Corpos Políticos e Contra-Representações”. In:

Investigaciones Fenomenológicas, vol.monográfico 2:

Cuerpo y alteridade. Espanha: SEFE/UNED, 2010. Tradução Marina Feldhues. Mirzoeff, Nicholas. O direito a olhar. ETD-Educação Temática Digital, Campinas,SP,v. 18, n. 4, p.745-768, nov. 2016. Abreu, Carla Luiza de; Álvarez, Juan Sebastián Ospina;

Monteles, Nayara Joyse Silva. O que podemos aprender das contravisualidades?, in: Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais(...) Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. P.831-846. Mirzoeff,2011, p.476 . in, Abreu, Carla Luiza de; Álvarez, Juan Sebastián Ospina; Monteles, Nayara Joyse Silva. O que podemos aprender das contravisualidades?, in: Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais(...) Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. P.831-846.

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