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“O melhor destino de importantes coleções são os museus”

“O melhor destino de importantes coleções são os museus”

Joaquim Paiva em entrevista com Pablo Lafuente

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O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro possui cerca de 6 mil obras fotográficas em seu acervo. Um dos mais importantes do país, o acervo mostra diversos tipos de práticas fotográficas, desde os primórdios da fotografia no Brasil no século 19 até trabalhos muito recentes. São obras artísticas, de documentação e registro. Muito da riqueza fotográfica das coleções do museu, que esteve presente na exposição Terra em tempos: fotografias do Brasil, deve-se ao comodato de cerca de 2.800 obras da Coleção Joaquim Paiva.

Nesta entrevista, realizada em setembro de 2022, o colecionador Joaquim Paiva discorre sobre a fotografia, as relações das instituições brasileiras com a fotografia e o comodato que fez com o museu. Joaquim Paiva é também fotógrafo, autor de primeira tradução do livro On Photography, de Susan Sontag, um apaixonado pela fotografia em sua variedade, faz diários de vida desde 1998 e há alguns anos cria cadernos fotográficos.

Pablo Lafuente: Como teve início seu impulso colecionador?

Joaquim Paiva: Comecei a colecionar em 1978, quando servia como diplomata em Caracas, Venezuela, e a prática me acompanha desde então. Caracas tinha um museu de arte contemporânea excelente, onde pude ver muito boas exposições, entre as quais uma mostra de dez fotógrafos americanos. Um deles era Diane Arbus, que fotografava pessoas que pareciam estranhas, como se o seu olhar definitivamente tornasse estranhas as pessoas. Comprei duas das fotos expostas no museu: Senhora em um baile de mascarados com duas rosas no seu vestido, Nova York, 1976, e Sem título (4), 1970/1971, com quatro pessoas usando máscaras de saco de papel no Halloween. Passados um a dois anos, adquiri mais quatro fotos de Arbus, todas fascinantes. A propósito, a primeira grande exposição de fotografia que eu vi foi de Diane Arbus, em Londres, na Hayward Gallery, em maio de 1974.

Antes de Caracas, eu havia servido em Ottawa, Canadá, onde tive a oportunidade de conhecer muito da fotografia norte-americana. A partir de então não mais parei de colecionar. Quanto aos fotógrafos estrangeiros, comecei realmente a adquiri-los depois que passei a ser convidado a cada dois anos, de 2000 a 2020, para a prestigiosa leitura de portfólio do FotoFest em Houston, Texas,

que se realiza bienalmente. Participei igualmente da edição do evento em Paris, em 2019.

Já se encontram no MAM Rio cerca de 2.800 fotografias da minha coleção – aproximadamente 500 fotógrafos e artistas, entre brasileiros (80%) e estrangeiros (20%). O comodato com o museu iniciou-se em março de 2005, quando ali deixei um primeiro lote de 1.100 fotografias de fotógrafos brasileiros. O segundo lote, em 2011, de brasileiros e estrangeiros; o terceiro em 2012 de brasileiros; e o quarto, em 2021, de brasileiros e estrangeiros.

Partes da coleção foram expostas nos Estados Unidos (San Francisco, Houston e Nova York), Argentina, Peru, Bolívia, Espanha e França. E igualmente no Brasil, em especial a exposição realizada em São Paulo em 2002, na OCA, no parque Ibirapuera.

Quando me perguntam por que colecionar fotografias, sempre volto à minha infância, pois lembro-me de que, pequeno, perguntava à minha mãe sobre o meu pai, que já havia falecido, e ela me mostrava fotos dele. Só o conheci por fotos. Fui assim exposto à fotografia desde muito cedo, em uma realidade ligada à perda de um ser querido. E também, como os meninos da década de 1950, eu colecionava figurinhas, flâmulas, botões de jogo e selos.

Toda a coleção foi feita com paixão e parece-me que o melhor destino de importantes coleções são os museus. Em uma ocasião me foi apresentada a possibilidade de vendê-la, mas preferi que a coleção permanecesse no Brasil.

Pablo: No período em que você começou a comprar fotografias, elas não tinham o reconhecimento no mercado de arte como nos dias atuais. Não consigo imaginar o quanto você pagaria, hoje, por uma fotografia de Diane Arbus, dada a sua valorização ao longo do tempo. Você trabalhou como diplomata, posição que o levou a diversos lugares do mundo, e nessas viagens começou a adquirir obras, resultando em uma coleção que ainda assim é majoritariamente brasileira. O fato de estar fora deu a você alguma perspectiva especial sobre a prática fotográfica do Brasil? O que aprendeu sobre a fotografia que estava sendo realizada aqui, morando em países como Venezuela e Argentina?

Joaquim: Na ocasião, o valor das seis fotos que adquiri de Diane Arbus mal chegou a quatro dígitos em dólares norte-americanos. Por outro lado, o que aprendi a distância, vivendo no exterior em minha primeira saída de 1974 a 1981, foi que a fotografia brasileira era muito forte, muito comprometida com a realidade política e social do Brasil, um país extremamente desigual, onde poucos têm muito

e muitos têm pouquíssimo. A fome, a pobreza, o desemprego, o racismo, o machismo, a proteção aos indígenas, entre outros temas, persistem no país.

O meu envolvimento com a fotografia se iniciou em 1970, quando me mudei do Rio de Janeiro para Brasília, onde comprei uma câmera e comecei a fotografar a cidade. A fotografia que então predominava era a fotojornalística e documental, que não era vista necessariamente como uma obra de autor, pessoal, e não tinha a visibilidade e o reconhecimento que tem hoje. Embora na época me interessasse mais pela fotografia como arte, esta pouco se exibia em galerias como meio de expressão artística, havendo tão somente uma ou outra no Rio e em São Paulo. No Rio, por exemplo, o fotógrafo Georges Racz criou em 1973 o Grupo Photogaleria para promover exposições de fotografia artística. Eu próprio tive como artista exposição auspiciada pela Photogaleria no Rio, em 1973.

Felizmente, o tempo confirmou que eu estava no bom caminho: as fotos, sejam jornalísticas ou documentais, só fazem ganhar com a passagem do tempo. A fotografia é algo misterioso, instigante, inquietante, belo, porque nos traz de volta o passado. Só faço me alegrar de ter adquirido tantas fotos documentais, sobretudo durante a década de 1980, como as que a curadora Beatriz Lemos muito bem escolheu para esta exposição

Terra em tempos: fotografias do Brasil, na qual se destacam efetivamente belos retratos do povo brasileiro. As fotos selecionadas me encantaram e também a muitas pessoas que viram a mostra.

Pablo: Quais foram os artistas com os quais você começou a sua coleção?

Joaquim: Entre os primeiros fotógrafos que deram forma à coleção estão Miguel Rio Branco, Mario Cravo Neto e Sebastião Salgado, que ingressaram no cenário internacional nos anos 1970. Em seguida, Alair Gomes e Orlando Brito. Depois procurei Claudia Andujar, José Medeiros, Nair Benedicto, Walter Firmo e outros que despontaram ao longo dos anos 1990, como Rosângela Rennó e Rochelle Costi, além de Eustáquio Neves, Fernando Laszlo, Roberto Stelzer e Vicente de Mello, que rompem com a fotografia tradicional. Eu conheci pessoalmente praticamente todos os fotógrafos presentes na coleção.

Pablo: Com relação à ideia do artista como fotógrafo, você fez a tradução para o português de On Photography, de Susan Sontag, um texto fundamental na teoria da fotografia, que defende que o importante na fotografia não é a técnica, e sim a aproximação do autor. Gostaria que você contasse sobre o que isso significa para você enquanto colecionador.

Joaquim: Quando morava em Caracas, viajei a Nova York no Natal de 1977, o que coincidiu com a publicação do livro da Susan Sontag, On Photograph. Algum tempo depois decidi traduzi-lo por minha conta e assim, em 1981, com o título Ensaio sobre a fotografia, o livro foi lançado no Rio e em São Paulo, com grande repercussão entre os fotógrafos. A longa intimidade com o livro de Sontag, nos meses em que me dediquei à tradução, me proporcionou uma base teórica que influenciou a minha compreensão da fotografia e a minha visão de mundo por meio da fotografia. O dia a dia, a realidade, as pessoas, a vida, vejo-os em boa medida permeados pela fotografia.

Alguns conceitos de On Photography foram determinantes para mim, como: “(...) a fotografia constitui uma interpretação do mundo, bem como a pintura ou o desenho”; “(...) o triunfo mais verdadeiro que obteve a fotografia foi sua capacidade para descobrir a beleza...”. E aqui me lembro da beleza nas fotografias em preto e branco de José Medeiros e de Walter Firmo, ambos fotojornalistas. Outra citação fundamental: “(...) a insistência em que o ato de fotografar é antes de mais nada a expressão de um temperamento, e apenas secundariamente a de uma máquina, sempre foi um dos temas principais na defesa da fotografia.”

“Enquanto a fotografia for sobre o mundo, o fotógrafo pouca importância tem, mas na medida em que for o instrumento de uma subjetividade intrépida e investigadora, o fotógrafo é tudo”. O livro de Sontag é impregnado de ideias, sentimentos, emoções; é um livro de grande fertilidade. “...qualquer tentativa de limitar a fotografia a certos temas ou técnicas (...) será fatalmente contestada e cairá por terra. Pois está na própria natureza da fotografia ser ela uma forma promíscua de ver e, em mãos talentosas, um instrumento infalível de criatividade”. Aproveito para comentar a segunda citação desse parágrafo: entendo-a como uma crítica da escritora ao excesso de especialização. É tão libertadora essa afirmação de Sontag!

“Que todos os diversos tipos de fotografia formam uma tradição contínua e interdependente é a suposição (...) que está na origem do bom gosto fotográfico.” E finalmente: “Para ser verdadeira como arte, a fotografia deve cultivar a noção do fotógrafo como autor e de todas as fotografias tomadas pelo mesmo fotógrafo como constituindo um conjunto”. Coloco duas perguntas: será assim para o mercado de arte? Romperá o artista com a regra de uma mesma temática ad infinitum?

O que pode significar tudo isso? É como se eu dissesse: “Olhe, esta foto é minha, é a minha vez de fotografar à minha maneira, é a minha vez de falar sobre o mundo”.

Pablo: Na exposição Terra em tempos: fotografias do Brasil logo se nota a técnica da fotografia, em que o aparelho muda muito. A fotografia, como o cinema, é uma prática que poderia ser feita só por aqueles que podem pagar a maquinaria que possibilita fazer aquela arte. Hoje, essa maquinaria está nas mãos de quase todo mundo. De volta às citações de Susan Sontag, é interessante notar que a visão de cada autor se traduz na posição do seu corpo em relação à imagem. Essa presença do autor dentro do mundo que ela ou ele fotografa é o que as obras mostram. Essa atitude do fotógrafo em relação ao mundo é o que faz dele um autor. Ao olhar fotos do Instagram de pessoas diferentes, é possível notar que a produção de imagens também é diferente. Cada pessoa tem uma estética e uma autoria.

Joaquim: Sim, os fotógrafos com as suas câmeras e as pessoas com os seus celulares (quantos bilhões?) estão fazendo – quem sabe? – aquele que é em parte um retrato da nossa era superacelerada. Os celulares estão documentando o nosso mundo. Se algo ficar, são alguns trilhões de cliques a cada ano, os rostos de nós próprios, poses narcisísticas, paisagens, bilhões de desconhecidos. Ao mesmo tempo nos mostram esse que é um tema inesgotável para a fotografia: o rosto humano, a alma humana, tema que a fotografia compartilha com a literatura, a poesia, o teatro, a dança, a música, o cinema, enquanto nos sobrar algo de humano!

Sobre estética e autoria, o fotógrafo francês Antoine D’Agata, em workshop de um dia no Parque Lage este ano no Rio, disse que a fotografia para ele é sobre desejo e medo.

Pablo: Essa frase de D’Agata me faz pensar em sua prática fotográfica. Como se dá sua relação com a criação de imagens? Quais coisas geram em você o impulso de criar uma imagem?

Joaquim: Criar imagens é para mim uma necessidade e o meu trabalho pessoal foi motivado pelas cidades onde morei, pelas pessoas que passaram pela minha vida. Prefiro continuar acreditando nos temas da fotografia e da arte que para mim são a vida, o desejo, o tempo, o poder, a beleza. É um trabalho autobiográfico.

A paixão pela fotografia iluminou a minha vida e eu sempre desejei que ela fosse a minha mensagem para o futuro. Tenho vivido a vida intensamente. A beleza do mundo e de muitas pessoas é o meu paraíso.

Sempre acreditei na importância de legarmos algo para as próximas gerações e noto que vários colecionadores brasileiros vêm buscando abrir os seus acervos ao público.

Pablo: É interessante notar como os seus livros dão uma visão de sua atitude como fotógrafo. O livro fotográfico reforça a visão que Susan Sontag tem da fotografia. As imagens não vivem sozinhas e seus livros mostram isso muito bem. Como você disse no começo, estamos em um museu, em um museu privado, mas com uma vocação pública; uma instituição que conserva acervos e também os disponibiliza para pesquisa e exposições. E toda coleção tem uma vocação pública, de contribuição à cultura. Eu queria que você contasse como enxerga esse ato de colecionar, e sobre esse ato que você fez com muita generosidade, de decidir que sua coleção esteja no MAM Rio, tanto para exposições como para pesquisa. Você poderia comentar o ato de compartilhar sua coleção com o MAM Rio?

Joaquim: O livro como objeto de cultura é muito importante para mim, tanto os livros e catálogos referentes à coleção, entre os quais Visões e alumbramentos – Fotografia contemporânea brasileira na Coleção Joaquim Paiva, BrasilConnects, 2002, quanto também meus fotolivros como artista, entre eles: Foto na hora: lembrança de Brasília, publicado pelo Centro de la Imagen, na Cidade do México; Farsa, truque, ilusões, 1927-1970, sobre minha mãe; Rodoviária de Brasília 1981 a 1984; Lantejoulas cintilantes no Vale do Amanhecer, todos disponíveis, entre outros lugares, na biblioteca do Instituto Moreira Salles em São Paulo e na do MAM Rio.

O ato de colecionar, para mim, significa que o papel do colecionador é tríplice: enriquecer a coleção, conservá-la e divulgá-la; e o ato de deixar a coleção para o museu é uma realização, é um legado para as próximas gerações, é um aceno para a posteridade.

A exposição Terra em tempos: fotografias do Brasil, em que dois terços da mostra são de fotos da minha coleção, foi uma grande surpresa, pois pude ver ao vivo tantas fotos dos anos 1980 e 1990, que o tempo só fez tornar preciosas! Agradeço à curadora Beatriz Lemos, à museologia, aos diretores do museu, aos diretores artísticos e a toda a equipe do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Joaquim Paiva

Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1946 Sem título 1988 série Por detrás da cortina emulsão de gelatina e prata sobre papel de fibra sem viragem 30 x 20,5 cm Coleção Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro Doação do artista

Sebastião Salgado

Aimorés, MG, Brasil, 1944

Região do Crateús – Ceará

1980 série Homem latino-americano emulsão de gelatina e prata sobre papel de fibra 30 x 40 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio

Rosângela Rennó

Belo Horizonte, MG, Brasil, 1962

Braço com mão

1996 emulsão de gelatina e prata sobre papel resinado com laminação 136,7 x 240,6 x 5 cm Coleção Gilberto Chateaubriand MAM Rio

João Urban

Curitiba, PR, Brasil, 1943

Bandeirantes PR – Boias-frias (colheita de algodão)

1978 emulsão de gelatina e prata em papel de fibra 24,2 x 30,4 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio

Evandro Teixeira

Irajuba, BA, Brasil, 1938

Bebeto, jogador do Flamengo, Maracanã

1989 emulsão de gelatina e prata sobre papel resinado fosco Kodak 23,9 x 29,9 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio

Guy Veloso

Belém, PA, Brasil, 1969

Nha Pereira, Belém, PA

1991 emulsão de gelatina e prata sobre papel de fibra sem viragem 27,5 x 35,3 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio

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