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Filha natural, uma umbigada no tempo

Aline Motta

Depoimento da artista Aline Motta colhido em vídeo por Matheus Freitas para o MAM Rio. A artista apresentou na exposição Terra em tempos: fotografias do Brasil duas instalações do seu projeto Filha natural, baseado em pesquisa genealógica sobre sua família, e o painel Tempos em terra, criado em diálogo com o acervo exposto.

Participo de Terra em tempos: fotografias do Brasil com uma obra que se chama Filha natural, projeto em que faço uma pesquisa genealógica sobre minha família, lançando hipóteses sobre quem teria sido minha tataravó.

Eu sabia que ela tinha sido uma mulher escravizada em Vassouras (RJ), na metade do século 19, e se chamava Francisca Maria da Conceição. Encontrei um atestado de óbito de alguém com uma idade aproximada que fazia sentido. Nesse documento, diz que uma Francisca Maria da Conceição faleceu na fazenda de Ubá, uma das mais importantes durante o ciclo do café. Eu sabia que minha tataravó tinha sido escravizada numa fazenda de café, eu tinha essas informações, e a partir desse documento criei toda essa obra.

Quando fiz essa pesquisa em Vassouras, em 2016, conheci a Claudia Mamede. Todo mundo na cidade disse que eu deveria conhecê-la, e realmente foi um encontro de muitas vidas. A Claudia é uma líder comunitária, uma das conselheiras tutelares da cidade. Ela tem um grupo de jongo que nasceu em sua própria família. Achei a Claudia muito parecida com a minha bisavó Mariana, que é a filha de Francisca.

Nas instalações de Filha natural ela representa não só ela mesma como suas ancestrais, e também representa a mim e minhas ancestrais. É um jogo de várias temporalidades, e de vários laços de parentesco.

Uma das fotografias mostra Claudia na varanda da fazenda – a mesma varanda da casa-grande que vemos na fotografia que foi tirada em cerca de 1860. Uma outra instalação, que também faz parte desta exposição, apresenta um jogo de deslocamento de uma fotografia do século 19 para uma quadra de tênis, o antigo terreno de café da fazenda de Ubá. No dia em que a foto foi feita estava chovendo bastante, o que não foi planejado, mas em retrospectiva resulta interessante ver Claudia usando esse guarda-chuva. Na nossa cultura afro-brasileira, o guarda-chuva e o guarda-sol têm vários significados associados à realeza, adicionando mais uma camada de sentido para essa fotografia.

A obra é fruto dessa pesquisa, que pode ser considerada inédita na historiografia brasileira, e que juntou todo o material sobre essa fazenda de Ubá, sobre seus antigos donos, e fazendo uma ponte, um elo, com os dias de hoje. Dentro dessa fotografia, coexistem todas essas temporalidades, e fui trabalhando com esse passado, presentificando o passado, criando uma ponte para o futuro, e explorando as conexões que a gente pode fazer com os dias de hoje.

Na exposição, foi apresentada esta instalação com duas imagens: à direita, a fotografia do século 19, e à esquerda, a fotografia do século 21. De um lado, a Claudia Mamede, e de outro, as duas meninas: a escravizada de pé e a sinhazinha sentada. Na minha pesquisa, descobri outras imagens dessa fazenda, incluindo uma imagem com toda a família sentada e duas mulheres escravizadas em pé. Estas duas fotografias do século 19 são de autoria do fotógrafo Revert Henrique Klumb.

É um trabalho de pesquisa de longo fôlego, que tem muitas camadas e dimensões, e no MAM Rio estão presentes só duas delas. Essa montagem retorna a um tipo de fotografia muito comum no século 19, a fotografia estereoscópica, que era como se fosse o 3D da época. A fotografia era duplicada, colocada em um visor, e daí resultava uma espécie de 3D.

Com essa montagem de Filha natural tentei construir esse jogo da fotografia duplicada, só que

substituí uma das imagens pela foto da Claudia. A gaiola que está na fotografia, nas mãos da Claudia, não tem grades. A imagem da Claudia está duplicada, como se ela fizesse o papel tanto da sinhazinha como da escravizada, e segura um livro. Fui pegando os detalhes da fotografia do século 19 e fui compondo essa nova fotografia.

Como eu sou ligada ao cinema, também existe um vídeo de Filha natural, com toda essa ideia de montagem, edição, jogo, troca de olhares. Eu procurei também trazer elementos que vêm do cinema, da linguagem cinematográfica, de transformar uma imagem em duas dimensões em uma imagem 3D.

É interessante, numa exposição de fotografias, em que a maioria das fotos estão impressas em papel, emolduradas, com toda uma expografia que a gente está acostumada, um trabalho extrapolar essa forma de exibição de fotografias. Ao utilizar o tecido como suporte, entre movimentos por conta do vento e da passagem de pessoas, a obra começa a se movimentar e dar a ideia de que a fotografia está viva, fazendo com que esses personagens ganhem vida e ocupem o museu de outra forma.

Tempos em terra foi um trabalho comissionado especialmente para a exposição. Tenho alguns trabalhos gráficos, alguns livros de artista, e nos vídeos sempre há partes gráficas, grafismos, com os quais gosto muito de trabalhar. Então, quando

Aline Motta

Niterói, RJ, Brasil, 1974 Filha natural #1

2018–2019 impressão digital por sublimação em tecido voal 280 x 419 cm Coleção da artista Beatriz Lemos me convidou para criar esse trabalho para a exposição Terra em tempos: fotografias do Brasil, ela esperava que eu fizesse uma espécie de diagrama, que é um jeito de trabalhar com texto. Comecei a estudar as fotografias da exposição, a entender certos temas a partir da minha visão, e criei o painel Tempos em terra, em vinil adesivo.

Essa obra é baseada em algumas das fotografias presentes na exposição, como as de Marcos Bonisson, Evandro Teixeira e Cristiano Mascaro. Fui criando esses desenhos do painel com os títulos das fotografias. Sabemos que a legenda das fotografias é algo complexo, e às vezes até polêmico, principalmente fotos dos

fotógrafos estrangeiros que registraram o Brasil no século 19, então meu trabalho também fala disso. E acho que ele traz uma criticidade a respeito desses autores, quem fotografa e quem é fotografado.

Também é interessante perceber na exposição a quantidade de obras sem título, sem data e sem autor identificado. Na exposição predominam fotógrafos homens, brancos, e sabemos que a fotografia até hoje no Brasil tem esse caráter, mas a situação tem se modificado com as novas tecnologias, como o celular, então vemos um pouco mais de diversidade entre as pessoas que fotografam.

Para compor os grafismos do painel, que vêm das imagens das fotografias que selecionei, separei os títulos em certos temas. A exposição tem muitas fotografias sobre o Rio de Janeiro. O corpo representado no painel, a partir da fotografia do Marcos Bonisson, ganha um novo caráter. A exposição inclui também uma quantidade grande de fotografias sobre Brasília, sobre a construção da cidade, e aqui neste painel a fotografia se revela instrumento da tomada de posse desse território. Tanto é que as imagens de Brasília que mais chamam atenção são da construção dessa nova cidade, contribuindo ativamente, portanto, para a criação de todo um imaginário ficcional sobre esse projeto falido desde sua concepção.

Ao caminhar pela exposição, percebemos também uma grande quantidade de pessoas

indígenas que foram fotografadas, em um caráter às vezes de fotojornalismo, às vezes de pesquisa etnográfica, principalmente nessas fotografias do século 19. Há imagens de Marc Ferrez fotografando indígenas e que trazem o imaginário que foi criado sobre eles. É uma linha muito tênue entre documentação, registro, fotojornalismo, pesquisa etnográfica e pesquisa de campo, e a fotografia certamente foi um instrumento utilizado politicamente.

No painel tem toda uma seção dos títulos que foram dados para essas fotografias dos indígenas. Na parte central da obra tem uma encruzilhada baseada em uma fotografia muito famosa da construção de Brasília, da cruz que constitui o marco central, que se chama Cruzamento dos eixos. No trabalho, eu substituí por títulos de fotografias de pessoas negras e pessoas escravizadas presentes na exposição.

Em outra parte do painel, utilizei os títulos dos trabalhos de fotógrafos contemporâneos que lidam com o próprio fazer de fotografar: tem nomes como Olho mágico, Fotoformas, Janelas, Fotomontagem, com um grafismo que aponta para o futuro, do que pode ser a fotografia do Brasil, esperando que novos agentes, que novas pessoas, estejam representadas em um acervo como esse. O painel está no final da exposição, então funciona como um enigma.

Walter Carvalho

João Pessoa, PB, Brasil, 1947 Sem título sem data impressão em jato de tinta | pigmento mineral sobre papel de algodão baritado 66 x 87 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio

Maureen Bisilliat

Englefield Green, Inglaterra, 1931 Sem título sem data emulsão de gelatina e prata sobre papel de fibra 27 x 40 cm Coleção Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro Doação da artista

André Dusek

Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1956

Serra Pelada – Pará

1980 emulsão de gelatina e prata sobre papel de fibra 24 x 30 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio

André Dusek

Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1956

Serra Pelada – Pará

1980 emulsão de gelatina e prata sobre papel de fibra 27,7 x 34,8 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio

Luiz Baltar

Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1967 Sem título 2016 impressão em jato de tinta | pigmento mineral sobre papel de algodão Aquarelle Rag da Canson 82 x 100,5 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio

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