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O chão que pisamos, as imagens que salvamos
Beatriz Lemos e Natasha Felix
Dois meninos negros se equilibram sobre a carcaça de um trem em movimento, seus joelhos eternamente flexionados. Mais adiante é 1920 e a ressaca no Rio de Janeiro faz o asfalto reverenciar o mar, a imponência das ondas. Uma multidão de ponta a ponta, o imenso cartaz ergue os dizeres abaixo a ditadura / povo no poder em meio à histórica Passeata dos Cem Mil. Três rostos envelhecidos, paralelos uns aos outros, impressos em delicados filetes de látex, nos encaram de volta. Essas são algumas das imagens que dão contorno às 264 obras presentes na exposição Terra em tempos: fotografias do Brasil.
A escolha das fotografias que compõem a mostra nasceu de uma intensa pesquisa dentro das coleções do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e formam, coletivamente, um campo semântico em torno das construções da identidade nacional e da cultura do país. A partir da premissa
de que a identidade não é fixa ou permanente, a mostra debruça-se sobre a linguagem fotográfica, esse instrumento de poder em disputa desde o início do século 18.
O projeto partiu da noção prática de que estudar a política das imagens começa bem antes dos disparos da máquina. Atravessada por questões de raça, gênero e classe, essa gramática do ver nos permite questionar o acesso às ferramentas de trabalho. Evidencia as relações entre o indivíduo e sua autonomia, o indivíduo e o coletivo. Posteriormente, alcança discussões em torno da preservação de sua materialidade.
Voltar-se para a história da fotografia, em especial a história da fotografia no Brasil, mostra uma análise ampla sobre as lacunas que a edificam. Da fotografia documental ao abstracionismo. Das experimentações modernas e contemporâneas ao fotojornalismo. As fotografias nos colocam à frente de um duplo, que opera sob os cuidados da contradição. Colher fragmentos de instante cria pontos de atenção específicos para determinados signos, isolando-os. Ao mesmo tempo, há um jogo que consiste em expor aquilo que não está visível. Somos conduzidos ao que nos é apresentado e ocultado, simultaneamente.
Mais do que oferecer respostas, a exposição propôs que os públicos exercitassem também o poder que a ação de perguntar carrega em si. Convocada a atenção e a desconfiança do que
está à nossa frente, outros signos passam a integrar a conversa. Os suportes, as dimensões, as técnicas, os ângulos, as sobreposições nos contam histórias. Dão forma às narrativas. Afinal, as fotografias nos contam histórias não apenas daqueles fragmentos de memória, mas de outros tempos. Nesse sentido, foi fundamental, junto a toda equipe do MAM Rio, a participação das conservadoras-restauradoras de fotografia Marcia Mello e Sandra Baruki, que se debruçaram sobre as obras no trabalho de identificação das técnicas fotográficas, em uma operação que permite olhar para a materialidade das obras de maneira mais aprofundada.
Longe de categorizar, confinar e encerrar a história a uma narrativa única, a exposição oferece ao público chaves de leitura para interrogar as fotos e encontrar maneiras de contar a história, correlacionando ou afastando códigos visuais ao se movimentarem pelo espaço expositivo. Nesse sentido, Terra em tempos foi também um convite a habitar o espaço simbólico com os pés firmes no chão.
Terra em tempos: fotografias do Brasil foi dividida em sete núcleos conceituais, que trouxeram comentários sobre aspectos substanciais como imagem, território e história. Entre elas, a questão da crise da moradia e o direito ao lar, as relações entre a escravidão e a história do trabalho e as formas como as políticas de acesso estão postas ou são subtraídas na realidade
brasileira. Além disso, emergiram discussões sobre as estruturas de poder e suas relações com a gentrificação das cidades e o extrativismo ambiental. Foram trazidas as relações entre indivíduos, coletividade e suas subjetividades; as maneiras como o sagrado e o espiritual se imbricam à sociedade brasileira.
Formando uma espécie de teia, esses assuntos provocavam diálogos no espaço com ajuda da expografia espiralada. Em uma tentativa de abandonar uma noção de tempo linear, estratégias como atravessamentos, repetições, continuidades e retornos, apresentando um território erguido com cenas que se justapõem e se sucedem, construindo narrativas sobre o passado e o presente.
Além das obras do acervo do MAM Rio, a exposição contou ainda com dois empréstimos e um comissionamento de Aline Motta. A prática da pesquisa e a investigação histórica a que a artista vem se dedicando nos últimos anos conecta a iconografia de gerações passadas de sua família com uma reflexão sobre a tradição escravocrata brasileira, trazendo à exposição maneiras alternativas de ativar arquivos, cenários e memórias para pensar o território onde nos situamos.
Terra em tempos apresentou, por alguns meses, uma infinidade de imagens dentro das imagens. Contrária às verdades inquestionáveis do que seria um país específico, o ser brasileiro específico, pretendeu tocar aquilo que nos é invisível e muitas
vezes indecifrável. Afinal, é essa também uma das funções da linguagem artística, nos possibilitar imaginar em conjunto. A contrapelo do que é estático e passivo, a linguagem que nos movimenta até a vida-código, como canta Tiganá Santana. Diante de fotografias que trazem memórias, gestos, cheiros, texturas, sons, podemos pensar no Brasil que desejamos inventar.
Rogério Reis
Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1954
Surfistas de trem – Ramal de Japeri
1989 impressão em jato de tinta | pigmento mineral sobre papel de algodão baritado 54 x 79 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio
Athos Bulcão
Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1918 – DF, Brasil, 2008
O inferninho
1953 emulsão em gelatina e prata sobre papel de fibra a partir de fotomontagem 35,5 x 28 cm Coleção Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
Claudia Andujar
Neuchâtel, Suíça, 1931 Sem título 1974 emulsão de gelatina e prata sobre papel de fibra 38,3 x 50 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio
Daniela Dacorso
Belo Horizonte, MG, Brasil, 1969
Descontroladas
2001 série Totoma! – Clube Emoções da Rocinha, Rio de Janeiro emulsão de gelatina e prata sobre papel de fibra 25 x 37,6 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio
Antonio Manuel
Avelãs de Caminho, Portugal, 1947
Corpobra
1970 fotografia de emulsão de gelatina e prata sobre papel de fibra 200 x 48 x 48,5 cm Coleção Gilberto Chateaubriand MAM Rio
Élle de Bernardini
Itaqui, RS, Brasil, 1991
A imperatriz concreta
2018 série A imperatriz impressão em jato de tinta | pigmento mineral sobre papel de algodão 80 x 120 cm Coleção Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
Erick Peres
Porto Alegre, RS, Brasil, 1994 Sem título 2016–2019 série O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã. impressão em jato de tinta | pigmento mineral sobre papel de fibra baritado 40 x 60 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio
Renata Falzoni
São Paulo, SP, Brasil, 1953
Trabalhador sendo ‘’empurrado’’ por policiais em um blackout na cidade – Estação Júlio Prestes
1984 emulsão de gelatina e prata em papel de fibra 24 x 29,9 cm Coleção Joaquim Paiva MAM Rio