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3 IRONIA ECLÉTICA

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1 INTRODUÇÃO

1 INTRODUÇÃO

3 IRONIA ECLÉTICA

Temos a ironia eclética quando ocorre a justaposição de elementos anacrônicos e estranhos ao gênero que o filme busca retratar. Essa relação assume contornos inclusive metalinguísticos, pois nos casos em que há ironia eclética ela é geralmente acompanhada da autoconsciência narrativa na questão do gênero: é como se o próprio filme estivesse ciente de sua genericidade. O caminho aqui é justamente o oposto daquele percorrido na “nova sinceridade”. A paródia aparece com certa frequência, como uma maneira de comentar o gênero ao qual o filme se dedica, de maneira que não se pretende partir desse gênero para caminhar rumo uma reflexão que gera ressignificação, mas parte-se do gênero para trabalhar a colagem de diversos elementos num plano de fundo original.

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De acordo com o ensaio de Collins, a ironia eclética parte da justaposição de elementos anacrônicos para então assumir caminhos específicos em cada tipo de filme:

“As maneiras divergentes e por vezes até conflitivas que as narrativas recentes rearticulam as estruturas convencionais de gêneros populares se tornou uma característica distinta na textualidade contemporânea. (...) Enquanto as apostas e estratégias [dos filmes] podem diferir [entre si] profundamente, há uma coisa em comum: o reconhecimento de que as características convencionais dos filmes de gênero que estão subjugadas a essa rearticulação intensiva não são meramente restos de um passado cultural desgastado – esses ícones, cenários e convenções visuais continuam a levar consigo uma certa carga de ressonância cultural que precisa ser retrabalhada de acordo com as exigências do presente. ”² (COLLINS, 1993, p. 256, tradução livre.)

Em De Volta para o Futuro III (Back to the Future III, 1990), de Robert Zemeckis, ocorrem diversos estranhamentos em razão da contemporaneidade do protagonista Marty (Michael J. Fox) conflitante com a época em que o filme se passa – por volta de 1880, no “velho oeste americano”. O mais explícito estranhamento é a própria presença da máquina do tempo – um carro DeLorean – em um cenário insólito de faroeste. Em uma das cenas, Marty e Doc usam cavalos para puxar o DeLorean através do deserto: o futuro, presente e passado

coexistindo através de uma colagem eclética e pós-moderna, capaz de sintetizar em um mesmo plano John Ford, H.G. Wells e cultura popular dos anos 1980.

O plano de fundo original em De Volta para o Futuro III é o faroeste, enquanto a colagem de diversos elementos está presente nas figuras contemporâneas de Marty McFly, Dr. Emmet Brown (Christopher Lloyd) e até mesmo o próprio veículo que, no filme, funciona como uma máquina do tempo (o carro DeLorean). Além dos personagens, há outros elementos que também fazem parte dessa colagem. É o caso da placa de publicidade composta por índios, que aparece segundos antes de Marty voltar no tempo, fazendo referência direta ao passado que Marty estava prestes a visitar, um passado que não é real, mas da ficção, o passado mitológico do velho oeste americano, que a própria cultura cinematográfica clássica ajudou a criar. Também é o caso das diversas referências que se tem em De Volta para o Futuro III a outros filmes, especialmente os faroestes, como o relógio da cidade referenciando tanto a Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann, 1952) quanto aos outros dois filmes da série De Volta para o Futuro, o festival da cidade referenciando ao clássico Paixão dos Fortes (My Darling Clementine, 1946), de John Ford, ou as recorrentes citações de Marty a Clint Eastwood.

Justapor elementos originalmente pertencentes a uma cultura visual distinta já seria argumento para classificar De Volta para o Futuro III como pertencente a “ironia eclética”, mas o filme de Zemeckis não para por aí, pois se constrói a partir da fundação sólida de seus dois filmes antecessores (o primeiro e o segundo filmes da série De Volta para o Futuro), criando conexões literais com um vocabulário que esses outros filmes desenvolveram. Essa conexão ocorre na história o tempo todo, sem antecipação ou alvoroço: é exigido do espectador o conhecimento prévio dos dois primeiros filmes para que a experiência de se assistir ao terceiro seja completa e satisfatória. Isso pode parecer óbvio, se tratando de filmes de uma mesma série, mas a verdade é que existem inúmeros exemplos, anteriores e futuros à trilogia de Zemeckis, que contradizem essa aparente óbvia expectativa: os filmes do 007, da trilogia dos dólares, do Dr. Mabuse, a franquia Poderoso Chefão, os primeiros três filmes do Homem Aranha, o Cavaleiro das Trevas, etc. Os filmes dessas séries, em menor ou maior grau, possuem certa interdependência, mas cada filme é fechado e coeso em si mesmo.

Parte dessa conexão acontece naturalmente por se tratarem de filmes arquitetados para se relacionarem diretamente uns com os outros (no presente, por exemplo, do primeiro até o último filme não se passa mais do que 24 horas), mas muito decorre do próprio vocabulário

metalinguístico que a franquia formatou, ao unir ciência, cultura popular, cinema de gênero, personagens históricos, etc. É esperado que o espectador possua uma “alfabetização” de generalidades, que perpassam vários campos de conhecimento (da moda à música, do cinema à História, etc), constituindo um vocabulário pós-moderno por excelência.

Um fundamento marcante para a “ironia eclética” no cinema de gênero é justamente o reconhecimento dos filmes pertencentes a esta classificação de que a bagagem do espectador comum tornou-se muito mais sofisticada e intertextualizada do que em outros tempos; exigese desses filmes, portanto, que dialoguem com esse espectador, através de um vocabulário de referências e conexões que seja igualmente sofisticado e intertextual.

Um outro exemplo de “ironia eclética” no cinema americano dos anos 1990 é Pânico (Scream, 1996). O renomado cineasta Wes Craven, tido por muitos como um dos grandes expoentes do cinema de terror dentro dos Estados Unidos, lançou em 1996 o primeiro filme dessa franquia, que não fora talvez pensada para ser uma franquia, mas uma ambiciosa e divertida homenagem a um subgênero do cinema de terror conhecido como slasher.

Existem alguns elementos que caracterizam o que se chama de slasher. Quase sempre os personagens principais são jovens e formam um grupo de amigos que vão sendo um a um assassinados por uma figura misteriosa, que se relaciona com o grupo em razão de algum evento passado que tem, no tempo presente, um significado marcante de sua memória (por exemplo, em Pânico, o evento marcante é o assassinato da mãe da protagonista, ocorrido exatamente um ano antes dos eventos do filme).

A origem do slasher está em Reação em Cadeia (A Bay of Blood, 1971), do grande mestre italiano Mario Bava. No filme, herdeiros de uma mesma família são assassinados, um de cada vez, por uma das filhas e seu marido (algo que só é revelado ao final do filme), para que eles possam ficar com todo o dinheiro da matriarca, que também fora assassinada por uma outra pessoa). No final, marido e mulher são mortos inexplicavelmente pelos seus filhos

pequenos.

Com essa gênese, o slasher já é uma vertente irônica do gênero de terror, pois releva a morte ao plano do mais puro espetáculo, esvaziando-a de significados. O objetivo é um só: o filme slasher deseja orquestrar as mais variadas e masoquistas mortes para seus personagens, tudo para deleite do espectador. A ironia aqui contida vai além do sentido comumente atribuído ao termo, de deboche. É a ironia dramática, artifício narrativo amplamente utilizado

desde os tempos da tragédia grega, que ocorre quando a mensagem transmitida pela obra tem caráter de alienação em relação ao personagem – ou seja, o filme utiliza o personagem para transmitir ao espectador certa mensagem, sem que o personagem tome ciência dessa informação.

Isso ocorre no slasher devido a uma particularidade deste subgênero, as sucessivas e espetacularizantes mortes. Diante de um filme slasher, o espectador reconhece essa particularidade e se torna ciente de suas ferramentas, dos seus clichês. Quando um personagem está próximo de sofrer um ataque, por exemplo, o espectador já é capaz de prever que esse ataque de fato ocorrerá.

Pânico surge nos cinemas num momento histórico específico, em que o slasher já havia caído em exaustão com o público. Porém, assume como proposta uma abordagem intertextual que encontra seus fundamentos nos princípios da “ironia eclética”. O filme é inteiramente consciente de que a) é de fato um filme e b) é de fato um filme de terror slasher, e seus personagens brincam, através de suas falas e ações recorrentes, com esse conflito.

Um fundamento importante para que Pânico assuma esses contornos de autoconsciência de gênero é que, no universo do filme, filmes do mesmo gênero existem e são a todo momento referenciados. Numa das cenas, por exemplo, Randy (Jaime Kennedy) assiste a um filme de terror em que uma criatura está atrás da personagem principal. Ele começa a gritar “olhe para trás, olhe atrás de você”, no exato instante em que o assassino está atrás dele, empunhando uma faca, prestes a mata-lo.

Porém, uma das cenas mais emblemáticas de “ecleticidade genérica” ocorre logo no início, em que a protagonista Sidney (Nave Campbell) está falando com o assassino ao telefone. Ele pergunta qual seu filme de terror preferido, e ela responde que não gosta “dessas merdas”, justificando que os clichês do gênero são irritantes, entre os quais ela cita o velho clichê da garota que, após investigar um barulho no escuro, corre escada acima para fugir da criatura/assassino. Após um pouco mais de conversa, Sidney realmente sai para investigar se há alguém do lado de fora da sua casa, mas não encontra ninguém. Então ela entra, tranca a porta de casa e vira para ir em direção à sala, quando é repentinamente atacada pelo assassino. Após golpeá-lo com o telefone, ela tenta fugir para fora de casa, mas como a porta está trancada, não há tempo hábil para isso, portanto ela é obrigada a subir as escadas.

Essa cena é tão importante porque escancara que Pânico está ciente dos clichês do subgênero ao qual propositalmente se enquadra, mas se recusa terminantemente a fugir deles, sempre se pautando pelo diálogo de intertextualidades metalinguísticas com o espectador.

A intertextualidade também é assunto importante em Coração Selvagem (Wild at Heart, 1990), de David Lynch. Com interpretações de Nicolas Cage, Laura Dern e Diane Ladd, o filme narra as aventuras de um jovem casal pelas estradas do meio oeste americano enquanto tentam escapar das garras opressoras de uma mãe possessiva. O vocabulário imagético do filme é formulado a partir da intercalação entre fantasia e realidade, entre o escapismo e o mundano. A fim de darem sentido a um mundo que não compreendem perfeitamente, os jovens Sailor e Lula (Cage e Dern respectivamente) apropriam-se das imagens de O Mágico de Oz para apontarem quais são seus medos, incertezas, sonhos e alegrias.

As relações mais básicas aqui presente são a bruxa má do oeste como a mãe possessiva de Lula; a estrada de tijolos amarelos como caminho para a felicidade; e o lugar além do arco-íris como a felicidade plena. Ao aproximar seu filme do clássico juvenil de Victor Fleming, Lynch traça uma relação fundamentalmente intertextual que, por se tratarem de obras tão dissonantes entre si, existe em disparidade. Enquanto O Mágico de Oz é um filme essencialmente sobre valores morais e família, Coração Selvagem é um drama familiar com ares de horror e erotismo.

Collins menciona David Lynch em seu ensaio, caracterizando parte de seu trabalho como “paródia ambivalente” (COLLINS, 1993, p. 256). Coração Selvagem se encaixa nessa descrição, pois sua estrutura também se assemelha muito a de um road movie (filme de estrada, onde o assunto da história se desenrola ao longo de uma viagem ou jornada), com percalços e emoções semelhantes aos de O Mágico de Oz, estreitando ainda mais a relação entre os dois filmes.

Há um aspecto também bastante relevante quando se fala de “ironia eclética” , que Collins define como “sequestro de signos” (COLLINS, 1993, p. 256).

“Nesse ponto esses signos se tornam referências duplas, referindo-se ao mundo “realmente real”, mas também à realidade do conjunto, responsável por formatar as experiências cotidianas nessas culturas. É a negociação individual desse

conjunto que forma o processo delicado de não apenas manter, mas de rearticular memórias culturais”³ (COLLINS, 1993, p. 255, tradução livre)

Na argumentação de Collins, o cinema de gênero reflete aspectos sócio-culturais de uma determinada cultura, e a rearticulação desse gênero escancara que muitos desses aspectos já foram transformados pela sociedade.

Essas rearticulações são, como mencionado na citação acima, “negociações individuais”, cada filme realizando a sua própria. Por exemplo, Thelma e Louise, de Ridley Scott, rearticula o road movie e o “buddy film” (filmes em que o assunto principal é a amizade entre dois protagonistas masculinos) ao falar sobre a realidade oprimida das mulheres num contexto de gênero essencialmente masculinizado.

Coração Selvagem por sua vez, rearticula noções de família e burguesia afim de criar uma história de amor redentora, em que Sailor e Lula conseguem no fim a prerrogativa de serem livres: livres das convenções de uma família estruturada, de uma classe social essencialmente opressora. O tempo todo o filma pulsa com o embate entre o passado e o presente, daqueles que têm posses e lugar estabelecido num mundo vigente contra aqueles que são nômades, cujas posses se limitam aos seus intensos sentimentos. Segundo Tom Jannings, o arco dramático de Coração Selvagem é a história da nova classe média temendo retornar as suas origens desprivilegiadas:

“O passado sempre os alcança. (...) Os amantes buscam libertarem-se de abastada mãe de Lula cujo status deriva do gangsterismo – em muitos aspectos mais representativo para a história da economia Americana do que lojistas. (...) O inferno da classe baixa paira, e as preocupações de Sailor, Lula, sua família e comunidade, colidem e refletem com a cruel paixão animalesca de seus habitantes. (...) Eles escaparam do gueto, mas ao expressarem paixões perigosas podem retornar. Para estarem a salvo, o romance deve se limitar à própria classe e raça, demarcados psicológica e geograficamente por estruturas sociais convencionais americanas.

”4 (JENNINGS, Tom, Class-ifying Contemporary Cinema. Em: <http://www.tomjennings.pwp.blueyonder.co.uk/Class.html>. Acesso em 25 novembro 2014, tradução livre.)

É interessante a palavra escolhida por Collins para referenciar esse aspecto específico da “ironia eclética”: os signos, nesse sentido, não são meramente furtados, mas exatamente sequestrados; o termo original utilizado pelo autor é “hijack”, fazendo referência direta ao ato de sequestrar um veículo. Nesse caso, os signos são tomados de posse para seguirem por um outro curso, sob as rédeas de seu novo utilizador.

Em Coração Selvagem, a classe abastada é ressignificada em monstruosidade; o passado em trauma e fogo; o sexo em “droga e anestésico”. A estrada, que em road movies é geralmente símbolo de libertação, é aqui mero palco de uma fuga implacável fadada ao fracasso quase fatal dos protagonistas. A história é interpelada por flashes intrusivos de chamas em profusão e por imagens ruidosas da faixa amarela das estradas – figurações que dão o tom do confronto entre o passado obscuro e o presente em escapada.

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