14 minute read

4 NOVA SINCERIDADE

4 NOVA SINCERIDADE

A “nova sinceridade”, em contrapartida, acontece quando há a busca incessante por uma pureza perdida. É um retorno ao gênero original, mas através de uma consciência contemporânea sólida. O filme que pertencente a essa classificação não pretende emular ou parodiar um gênero; pretende ser, de fato e irrevogavelmente, um filme de gênero, ao mesmo tempo em que trabalha com problemáticas supostamente contemporâneas num espaço de tempo idealizado.

Advertisement

Em Dança com Lobos (Dances with Wolves, 1990), temos um retorno ao filme de faroeste, mas de maneira diversa daquele de De Volta para o Futuro III. Dessa vez não há justaposição de elementos anacrônicos e estranhos. O filme de Costner é um faroeste revisionista que se esquiva dos elementos formais padrões do faroeste comum, enquanto o subverte para torna-lo mais humano.

Dança com Lobos acontece durante um período específico da história americana, logo antes da colonização, quando o Tenente Dunbar (Kevin Costner) é enviado pelo exército para a fronteira com o Oeste afim de aprender sobre o estilo de vida dos nativos locais. A maioria dos filmes faroeste, porém, acontece no período colonizador, quando os brancos já se estabeleceram em terras do oeste. Através das interações e anotações do Tenente Dunbar, Dança com Lobos se situa num período pré-colonizador, ao mesmo tempo em que trabalha com o gênero faroeste e resolve as problemáticas contemporâneas desse gênero (que é a própria colonização, a dizimação dos índios em terras americanas e a falência do cinema faroeste clássico em reconhecer a cultura nativo-americana como legítima ou ao menos existente).

Jim Collins descreve em seu ensaio alguns componentes encontrados, de maneira geral, nos filmes de “nova sinceridade”:

“(...) a volta ao tempo longe da sofisticação corrupta da cultura midiática em direção a uma autenticidade perdida definida simultaneamente como um cultura popular elementar ainda-não-corrompida, e como espaço bem sucedido de projeção narcisista, o “espelho mágico” do herói; a colocada em primeiro plano daquilo que é não apenas intertextual, mas também do “original-textual”, na qual um gênero original

assume uma postura quase-sacra como garantia de autenticidade; a fetichização do “crer” ao invés da ironia como única maneira de resolução de conflitos; a introdução de um imaginário de genérico novo que se torna o único espaço onde conflitos insolúveis podem ser resolvidos. ”5 (COLLINS, 1993, p. 259, tradução livre.)

A respeito disso, vale observar algumas coisas. Primeiramente, que a “nova sinceridade” surge como resposta a um problema de saturação de cultura midiática, como se houvesse demanda para que fossem feitas novas explorações no que diz respeito a gênero e cinema num contexto americano. O primeiro componente arrolado por Collins é justamente aquele que é, para ele, o mais primordial: o retorno a um tempo que não é apenas passado, mas também idealizado.

Segundo, o que foi traduzido como “original-textual” é originalmente referido por Collins como “ur-text”, termo de origem alemã pertencente à cultura da composição musical. “Ur-text” é a versão impressa original da composição, procurada quando o objetivo é reproduzir da maneira mais exata possível àquilo que o compositor original pretendeu. Collins furta esse termo para seu estudo objetivando referir-se ao gênero original, sem justaposições nem interferências, que ocorrem naturalmente no cinema com o passar das décadas. Portanto, também é objetivo da “nova sinceridade” buscar esse gênero imaculado, original.

A respeito do componente mais primordial, ele se encaixa em Dança Com Lobos perfeitamente, pois ao situar-se no período pré-colonizador, o filme é capaz de partir realmente do princípio da questão que aborda para então problematiza-la e resolvê-la. O problema mais emergente é justamente o tratamento que os nativos receberam no cinema americano de faroeste ao longo das décadas, num reflexo/metáfora com o tratamento dado a eles pelos colonizadores: cheio de ódio, preconceitos, deboche. O tenente John Dunbar não é um colonizador, mas uma espécie de cartógrafo, responsável por conhecer a região da fronteira e seus habitantes naturais. Para resolver a questão dos índios no cinema faroeste, Costner faz uma regressão que é anterior ao próprio cinema faroeste em si, na busca do mais puro princípio.

Essa regressão ao princípio ocorre no cinema da “nova sinceridade” por três motivos principais: o primeiro é que apenas ao afastar-se da contemporaneidade mirando no passado, num passado idealizado e não corrompido, é que as problematizações contemporâneas de cinema de gênero podem apontar para algum lugar; a segunda é que esse afastamento ocorre

não apenas no nível da história, mas no gênero em si; a terceira, é que esse lugar geralmente se análoga com o protagonista.

À princípio, o tenente Dunbar é um homem vazio, de personalidade desforme. Os contornos da pessoa que ele realmente é são acentuados apenas na medida em que ele se afasta do nacionalismo yankee indo em direção ao estilo de vida da tribo Sioux.

Através da conversão de Dunbar em Sioux, ressalta-se outro componente mencionado por Collins: a crença colocada acima da ironia como ferramenta para solucionar conflitos. Ao entregar-se ao estilo de vida nativo, Dunbar está desmunido de sua identidade cultural original à procura de uma outra que lhe tenha mais valor e identificação. Essa estrega ocorre através de fé, e não da racionalização. Quando o tenente é capturado pelo exército yankee, sua conversão é tratada com ironia e desprezo, mas Dunbar permanece inflexível, mesmo diante da iminente possibilidade de ser executado, pois a sua crença é agora potente demais para ser ignorada.

Em Campo dos Sonhos (Field of Dreams, 1989), Ray Kinsella (Kevin Costner) ouve uma voz vinda do seu milharal que diz: “se você construir, ele virá”. A interpretação de Ray é que se ele construir um campo de beisebol, o jogador favorito de seu pai, Shoeless Joe Jackson (Ray Liotta) retornará para um último jogo. Movido por uma crença firme, porém inexplicável, Ray gasta suas despesas e constrói o tal campo, mas a voz não cessa em lhe dar novos enigmas para serem decifrados.

Logo no início o filme descreve brevemente o contexto familiar passado de Ray, ressaltando alguns aspectos importantes da complicada relação que tem com seu pai e também da apaixonada proximidade que, tanto ele quanto seu pai têm do beisebol. Quando Ray constrói o campo, Shoeless Joe Jackson realmente retorna do além para jogar, fundando ali uma fissura no tempo e na realidade. Embora a ação natural do filme se dê no final dos anos 1980, o campo mágico existe em 1919, ocorrendo aí a manifestação do primeiro componente citado por Collins, com a adição de um pormenor específico ao filme, já que a histórica equipe dos Chicago White Sox – a qual pertence Joe Jackson – entregou naquele ano o campeonato mundial para os Cincinnati Reds, muito embora não tenha sido provado que Jackson realmente participou dos escândalos. Ou seja, o campo mágico marca o retorno de um tempo anterior à corrupção cultural midiática citada por Collins, mas também da corrupção mais literal, praticada pela equipe adorada pelo pai de Ray.

O segundo componente, descrito como “o espelho mágico do herói” acontece na medida em que, dentro do filme, torna-se claro que o campo não é construído para fazer retornar antigas lendas do beisebol, mas para que Ray seja possibilitado de resolver as questões pendentes com seu pai. Num certo momento do filme, Ray fala sobre como o seu pai teve uma carreira fracassada no beisebol, e sobre como seu pai teria projetado nele a sua frustração. Durante a adolescência, Ray teria parado de jogar bola com o pai, fugindo posteriormente de casa durante anos, sem retornar a tempo de se desculpar. A jornada de Campo dos Sonhos é o despertar do herói para essa pendência, e sua consequente luta para resolvê-la.

A respeito do conflito entre crença e ironia, Campo dos Sonhos é também especialmente adequado para análise, pois o tempo todo as pessoas taxam Ray de maluco, por não conseguirem ver no campo construído por ele os jogadores do passado (ao passo que Ray e sua família veem). Ou seja, ao passo que o herói tenta manter inabalável sua crença, mesmo diante das adversidades específicas apresentadas pelo filme (Ray está à beira da falência), essa crença é rebatida duramente pela ignorância daqueles que não possuem a força da sua fé.

É no campo mágico também que ocorre a manifestação do último componente descrito por Collins: a construção de um imaginário que torna possível a resolução dos conflitos. Em razão da fissura temporal provocada pela construção do campo, acontece a materialização do pai de Ray, mas não sua versão corrompida pela amargura do fracasso de seu sonho, mas uma outra, bem mais jovem, repleta de estímulos e ânimos. No campo mágico, o pai de Ray não é um jogador fracassado, mas um jovem esguio e promissor. E Ray, agora mais maduro, não é mais um adolescente em crise existencial, incapaz de suportar e compreender a pressão opressora do pai, mas um pai de família emocionalmente bem resolvido. Diante dessas circunstâncias, possíveis apenas através da construção desse campo mágico, idealizado, manifestação pura daquilo que é chamado de “nova sinceridade”, Ray e seu pai são capazes novamente de jogar bola, unidos pelo afeto existente entre ambos, mas também pela paixão que compartilham.

Os Viciosos (The Addiction, 1995), de Abel Ferrara, coloca questões pertinentes da “nova sinceridade” sob a ótica do cinema de terror. No filme, uma estudante de filosofia interpretada por Lili Taylor é repentinamente transformada em vampiro e deve lidar com seu anseio por sangue humano e todas as implicações éticas e morais disso.

A assimilação de Os Viciosos na “nova sinceridade” é um pouco mais complicada do que a de Campos dos Sonhos, por exemplo, porque muitos dos elementos arrolados por Collins como caracterizantes do que ele define como “nova sinceridade” não são, talvez, explicitamente identificáveis, sendo necessária uma análise um pouco mais aprofundada do filme para serem encontrados.

Primeiramente, observa-se que elementos da estrutura técnica da obra, como e especialmente a fotografia em preto e branco e um certo aspecto tosco na captação de imagem e áudio, existem para que o filme assuma contornos nitidamente antigos, muito embora lide com inquietações contemporâneas. Caracteriza-se aqui, então, o retorno ao “original-textual”, através de meios sonoros e visuais principalmente, e não tanto formais ou filosóficos (como ocorre em Campos dos Sonhos).

Outro aspecto sumariamente importante é o que Collins define como “volta ao tempo longe da sofisticação corrupta da cultura midiática em direção a uma autenticidade perdida” (p. 259). Mais uma vez, esse aspecto aparece explicitamente em Campos dos Sonhos, e em Os Viciosos sua manifestação é mais contida, expressa no próprio processo de crescimento/aceitação de sua heroína. Primeiramente, há de se notar que estamos na Nova York dos anos 1990, cheia de sujeira, carros, fumaça, prédios, asfalto e sujeitos estranhos. É o revelar completo de um contexto social contemporâneo corrompido, cheio de bagunça e encontros desajustados. É nesse lugar que Katheleen Conklin é mordida por uma figura feminina misteriosa durante a noite, apenas para se ver com fortes dores e desconfortos psicológicos algumas horas mais tarde, em função de um desejo que fora recém-despertado, muito provavelmente em função da estranha mordida: o desejo de sangue humano.

A principal inquietação de Os Viciosos é o conflito pelo qual Kathleen passa entre ceder aos seus recém adquiridos instintos, cedendo ao mesmo tempo à maldade, pois tirar sangue humano de uma pessoa significa mata-la (ou transforma-la igualmente nessa criatura morta, vampírica, que ela agora é), ou resistir, tendo uma postura moralmente bela que vai, porém, contra aquilo que ela é e deseja.

A “nova sinceridade” requer um lugar específico, de forte significado para a história. Um lugar que é ao mesmo tempo reflexo narcisista do herói e único local possível para resolverem-se conflitos impossíveis.

Portanto, para que um filme seja “nova sinceridade”, é necessário que nele se encontre esse lugar mítico, capaz de transformar para sempre a vivência do herói. Em Dança com Lobos esse lugar é a cultura Sioux, que descortina para Tenente Dunbar a pessoa que ele necessita ser, enquanto se torna palco da aproximação improvável de cultura nativa e cultura yankee, harmoniosa e respeitosamente. Em Campo dos Sonhos esse lugar é o campo de futebol construído por Ray, que é ao mesmo tempo um campo e um portal do tempo, capaz de tornar possível o retorno de seu pai para que eles possam, mesmo após a morte, se reconciliar. Esse lugar também existe em Os Viciosos, embora não se manifeste fisicamente. O local de projeção narcisista bem-sucedida de Kathleen é o momento em que ela reconhece sua essência maldosa, aceita suas desfigurações e se compromete a enfrenta-las, diretamente, não como negação de seu próprio ser, mas como força motriz para uma redenção que ela, ao final do filme, acredita ser possível. É um lugar que de uma só vez é um retorno ao tempo, um espelho-mágico e o espaço mítico onde o insolúvel é solucionado: é a salvação através da religião, mais precisamente a religião católica.

“No filme (...), a fé Católica é retratada como algo que seu possessor ingora, ou até nega, mas que eventualmente torna-se forte demais para ele: algo insistente e, em última instância, belo. Para descrever essa visão, Ferrara faz uso de uma série de ferramentas narrativas relacionando o venal com o sagrado.”6 (SCOTT, Jason Mark, Beautiful and Opressive – Lyricism and Catholic Angst in Abel Ferrara’s Bad Lieutenant. Em: <http://offscreen.com/view/bad_lieutenant>. Acesso em 25 Novembro 2014, tradução livre.)

Neste excerto, Jason Mark Scott fala a respeito de outro filme do diretor, mas a correlação entre as temáticas torna possível o uso desse pedaço de texto para descrever uma característica de Os Viciosos, até porque no último a ideia de redenção através da fé católica é ainda mais evidente e manifesta.

Falar sobre catolicismo é, dentro do contexto da estética de Abel Ferrara, falar de cultura popular; seu cinema é fortemente influenciado pela sua origem italiana, num embate feroz contra a cultura americana a qual sua criação fora submetida. Essa dicotomia na construção de personalidade do diretor se análoga muito bem com o que a própria ideia de “nova sinceridade” significa para os anos 1990: o cinema de gênero que se enquadra nos

preceitos da “nova sinceridade” tenta recuperar as raízes perdidas com o que há de mais clássico e puro em determinado gênero, enquanto coexiste com a intensa tendência de miscigenação cultural do fim do milênio.

E o catolicismo enquanto cultura popular é milenar, de forma que retornar a ela é olhar para trás em muito e muito tempo. Enquanto em Campo dos Sonhos o retorno à cultura popular demarca-se nos Estados Unidos dos anos 1920, por exemplo, em Os Viciosos, sair do contexto jovem e universitário da efervescente Nova York dos anos 1995 para retornar ao catolicismo é um regresso ainda mais impactante.

Diante dos tormentos por Kathleen na sua cidade-mãe, incapaz de encontrar a paz interior que ela tanto procura por ver-se subjugada demais a uma vontade moralmente maldosa que ela não consegue controlar, o seu último refúgio é a encontrar a todo custo a morte; Kathleen tenta de fato morrer materialmente, mas vê-se impedida de concretizar tal tarefa devido as particularidades da pessoa que ela é. Consegue, no entanto, sepultar seu corpo num sentido espiritual, fundamentalmente católico. Fazer morrer o corpo, na mitologia cristã, é abrir mão de seus desejos e suas vontades; segundo essa mitologia, somente assim poderá ser alcançada a vida eterna, em gozo de plena felicidade. Entregando-se à fé católica, Kathleen consegue reunir motivação suficiente para abrir mão de seus desejos carnais (o vício em sangue humano) e, mais do que isso, consegue alinhar seus posicionamentos morais e filosóficos com uma teoria que parece ser sólida e verdadeira o suficiente para inquietar seus incômodos mentais.

É preciso observar novamente que Os Viciosos é, antes de qualquer coisa, um filme de terror sobre vampiros; possui lá suas variadas interpretações, e realmente há fortes indícios de que o vampirismo é usado também como metáfora para representar qualquer tipo de vício ou distúrbio humano – mas é, repito, um filme sobre vampiros em primeira instância. O vampiro, mitologicamente, é representado em total desacordo com o catolicismo – uma das maneiras mais efetivas de salvar-se de um, segundo as mais famosas histórias, é ter posse de uma cruz, por exemplo. Realocar o vampirismo para um contexto de redenção católica é, portanto, “introduzir um novo imaginário genérico que se torna o único local onde os conflitos insolúveis podem ser resolvidos”, e ainda fazendo uso da “fé ao invés da ironia como única maneira de se resolver conflitos” (COLLINS, 1993, p. 259), como Collins propõe. É exatamente através do uso dessas forças que o diretor Abel Ferrara faz florescer uma de suas mais notáveis características: o uso do catolicismo como dispositivo narrativo. Como

apontado por Jason Mark Scott, a fé católica manifesta-se de forma tão intensa no imaginário dos filmes de Ferrara que torna-se força inexorável, irresistível. Criar uma atração entre o vampirismo e o catolicismo é unir, através das inquietações pessoais do diretor, duas forças antagônicas, excludentes; essa união só é possível, dentro de Os Viciosos, pela constatação de que simplesmente não há outra saída para Kathleen – das infinitas escolhas que ela poderia fazer enquanto pessoa, a única que lhe pacificaria seria a redenção católica.

This article is from: