21 de junho a 4 de julho 2013 Lecus non et delessequi audae coriore
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Billy Wilder/ Fábio Savino, João Cândido Zacharias.– São Paulo: SESC – Serviço Social do Comércio, 2013. 228 p. il.
Inclui filmografia. Publicado por ocasião da Mostra Billy Wilder no Cine Sesc, de 21 de junho a 4 de julho de 2013. ISBN 978-85-7995-066-7
1. Cineastas 2. Wilder, Billy, 1906-2003 3. Cinema – Hollywood I. Savino, Fábio II. Zacharias, João Cândido III. Título.
CDD 791.4230 92 CDU 791 FIAF F81wilder
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A minuciosa sintaxe da imperfeição
“Ninguém é perfeito!”. Esta frase memorável conclui Quanto mais quente melhor, filme de um dos cineastas fundamentais para se compreender a cultura do século 20: Billy Wilder. Será possível decifrar sua produção tendo em mente o que sugere essa afirmação, aparentemente tão simples? Ao invés de perseguir modelos idealizados, a arte do século 20 interessou-se pelos limites e imperfeições do ser humano – ou seja, por aquilo que confere diversidade a homens e mulheres. Mas como abordar esse ser falível, extraindo dessa condição o ensejo para a criação artística? As respostas que Billy Wilder nos deu, múltiplas, vão da comédia ao suspense, dando a impressão de notável fertilidade. O famoso “well, nobody’s perfect” – que o personagem de Jack Lemmon, travestido de mulher, ouve de um admirador ao confessar sua condição masculina –, caberia bem num sem-número de personagens de Wilder: ingênuos, maliciosos, vingativos, vaidosos, melancólicos. Afiados diálogos, entremeados a enredos construídos com precisão, protagonizam uma trajetória que testou, de modo sutil, as convenções da tradição cinematográfica norte-americana.
Além da forma burilada, a ironia no trato das relações humanas é um sinal da poética de Billy Wilder. O fato dessa ironia ora despertar gargalhadas, ora suscitar um gosto amargo no espectador, revela uma versatilidade que mimetiza a rica topografia do mundo social, capaz de gestos singelos, mas também de farsas eloquentes. Assistir aos filmes de Wilder, visitar seus tipos curiosos e suas tramas bem arquitetadas, tudo isso nos mostra facetas daquilo que é, para além de qualquer idealização, demasiadamente humano. Daí a iniciativa do Sesc de reunir tal produção numa mostra de fôlego, que passeia por todas as fases e filmes de Billy Wilder, permitindo um olhar panorâmico. A possibilidade de comparar e estabelecer relações dá outra dimensão à expressão artística, sublinhando um potencial educativo nem sempre explícito. Como convém à arte, há camadas a serem penetradas nessa filmografia; mas a possibilidade de profundas prospecções não deslegitima apreensões puramente prazerosas. Aqui, não faz sentido pensarmos num modo correto de recepção, já que se trata de coabitar a complexidade das imperfeições humanas. E, vez ou outra, surpreender-se, de súbito, espelhado em tela grande.
Sesc São Paulo
(re)vendo Billy Wilder Jornalista, diretor, roteirista e produtor. Billy Wilder era tudo isso numa pessoa só. Considerado um dos mais versáteis e brilhantes diretores da era de ouro de Hollywood, Wilder conquistou o mundo com suas comédias. Esteve presente por quatro décadas na produção cinematográfica de Hollywood e, durante esse período, criou algumas das maiores comédias e dramas da história do cinema mundial. Foi um dos raros diretores a conseguir usar a narrativa clássica hollywoodiana para criar uma linguagem própria. Combinando o elemento popular com um olhar irônico, misturando uma imensa paixão em seus filmes com uma distância crítica, conseguiu se manter na linha tênue entre o cinismo e a razão. Criou filmes que enxergavam uma realidade que Hollywood preferia fingir não existir. Vindo de uma carreira de roteirista, Wilder sempre deu a maior importância à escrita. Certa vez chegou a falar que sempre evitou a exuberante fotografia de Alfred Hitchcock ou Orson Welles, pois acreditava que planos que chamam a atenção por eles mesmos distraem o público da história. Com isso, sempre foi conhecido por seus memoráveis diálogos e seu trabalho com os atores – no total 14 diferentes atores foram indicados ao Oscar sob a direção de Billy. Contribuiu para a fama de várias estrelas hollywoodianas e marcou alguns de seus melhores momentos nas telas de cinema; inesquecíveis as pernas da Marilyn Monroe surgindo sob uma esvoaçante saia branca em O pecado mora ao lado, Barbara Stanwyck como a venal Phyllis em Pacto de sangue; Shirley MacLaine como a prostituta sensual Irma la Douce; uma excelente Marlene Dietrich em A mundana e Testemunha de acusação; Jack Lemmon e Tony Curtis em roupas femininas no hilário Quanto mais quente melhor; Audrey Hepburn como Sabrina; e muitas outras performances inesquecíveis do ator preferido e mais querido por Billy Wilder,
Jack Lemmon (Se meu apartamento falasse; Irma la Douce; Avanti... Amantes à italiana; Amigos, amigos, negócios à parte; entre outros). Exibindo seus 26 filmes durante duas semanas, a mostra BILLY WILDER se propõe como maior evento já realizado no Brasil em homenagem ao diretor. Será a oportunidade de (re)ver grandes clássicos do cinema mundial como Crepúsculo dos deuses ou Quanto mais quente melhor na tela grande. O momento de descobrir a primeira tentativa de Wilder como diretor, com o filme Semente do mal, filmado em sua passagem por Paris pouco antes de se mudar para Hollywood e apresentado em versão restaurada. A mostra é o resultado de um trabalho de quase três anos de pesquisa acompanhando de perto todas as mais recentes restaurações de seus filmes. Fomos a quatro diferentes países e em nove diferentes arquivos para poder trazer a filmografia do diretor em sua íntegra e proporcionar ao público uma visão completa do trabalho de um dos mais importantes cineastas da era de ouro de Hollywood. A essa celebração da obra de Wilder, adicionamos ainda este catálogo, com textos de várias épocas sobre muitos dos aspectos de sua obra, além de artigos produzidos especialmente para esta ocasião. Selecionamos ainda duas conversas com o diretor, uma de 1979, à época do lançamento de Fedora nos Estados Unidos, e a outra de 1994, quando já estava há algum tempo longe das telas. As fichas dos filmes, além das informações básicas, contam ainda com curiosidades e reações críticas, tanto da época de seus lançamentos quanto mais recentes. Boa mostra a todos!
Fábio Savino
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O artista do claro-escuro Anna Dzenis
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Billy Wilder e o prêmio Irving G. Thalberg Billy Wilder
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Na terra dos ianques: as transferências culturais entre Europa e Hollywood Pedro Maciel Guimarães
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Doce e azedo: Lubitsch e Wilder na velha Hollywood Jonathan Rosenbaum
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Aspectos do filme noir em Pacto de sangue e Crepúsculo dos deuses Jack Ferdman
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Bode expiatório, Holocausto e macarthismo em Inferno nº 17 Sander Lee
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Billy Wilder e os censores: Pacto de sangue, Quanto mais quente melhor e outros filmes controversos nos EUA e na Europa Daniël Biltereyst
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Captando o frágil gigante: Billy Wilder e Marilyn Monroe Gilberto Silva Jr.
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A arquitetura de um protagonista: Billy Wilder e Jack Lemmon Fábio Andrade
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Rumo às rodadas adicionais Todd McCarthy e Joseph McBride
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Saul Bass e Billy Wilder: uma conversa Pat Kirkham
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Filmografia
222 Os autores
224 Créditos
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O artista do claro-escuro Anna Dzenis
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Imagine por alguns instantes uma festa, uma função um bocado elegante, povoada apenas por personagens dos filmes de Billy Wilder. Lá no piano, remexendo seu drinque, está o amaldiçoado Walter Neff de Pacto de sangue. Ele está tentando não olhar tão fixamente para a efervescente Sugar de Quanto mais quente melhor. Fran Kubelik e C. C. Baxter de Se meu apartamento falasse dançam estreitados ao som de algum jazz pós-moderno em outro cômodo, enquanto Norma Desmond de Crepúsculo dos deuses desce a escadaria principal para juntar-se ao duro e ambicioso Chuck Tatum de A montanha dos sete abutres. E do lado de fora, escondida sob uma árvore nesta noite enluarada, desejando ardentemente um vislumbre de David Larrabee, estudando cada movimento dentro daquela casa cheia de personagens tão diferentes, agacha-se Sabrina enamorada. Que grande noite esta seria. Cameron Crowe1
1 CROWE, Cameron. Conversations with Wilder. Nova York: Knopf, 1999. p.xi.
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Na quarta-feira, dia 27 de março de 2002, em Beverly Hills, Califórnia, morreu Billy Wilder aos 95 anos de idade. Naquele momento, o mundo perdeu um de seus grandes artistas, mas seu legado cinematográfico perdurará. Wilder foi um artista complexo e contraditório, cuja obra evidenciou diversos paradoxos. Ele era um artista do claro-escuro – contando histórias que alternavam caprichosamente entre luz e sombra, momentos de luminosidade e passagens de intensa escuridão. Conforme notou Cameron Crowe, citando I. A. L. Diamond, colaborador de Wilder desde há muito, “O toque de Wilder era uma combinação de amargo e doce”1. Os detalhes biográficos pertinentes à vida de Wilder são tão vibrantes quanto seus roteiros. Wilder nasceu Samuel Wilder, a 1906, em Sucha, um vilarejo na Galícia, província austro-húngara que atualmente integra a Polônia. É bem documentado o fato de que sua mãe amava tudo que vinha da América, e apelidou seu filho de “Billie” por conta de Buffalo Bill. O jovem Billy tentou brevemente realizar os outros sonhos de seus pais estudando direito. Porém, muito rapidamente, trocou de vocação e começou a trabalhar para um tabloide jornalístico. Histórias relativas a esse período de sua vida são muitas. Wilder era grande fã de jazz, bem como gigolô-dançarino. Ambas as atividades acabaram integrando seus escritos, e também motivaram-no a mudar-se para Berlim. De 1927 a 1929, ele aprimorou suas habilidades atuando como ghostwriter em mais ou menos 200 roteiros cinematográficos. Foi creditado oficialmente como roteirista pela primeira vez em Der Teufelsreporter (Ernst Laemmle, 1929), e a este seguiram-se créditos de roteirista e colaborador em diversos filmes silenciosos. Em 1933, a ascensão do nazismo fez com que ele fugisse da Alemanha para Paris, até emigrar finalmente para os Estados Unidos em 1934. Wilder era o último membro vivo de um grupo de “mágicos do cinema” que foram se exilar nos EUA e que inclui Fritz Lang, Max Ophüls, Otto Preminger, Douglas Sirk, Edgar Ulmer, Robert Siodmak e Fred Zinnemann. O gênio de Wilder estava nas palavras. Porém, quando chegou à 1 Idem. “The ‘Wilder Touch’: Both Sweet and Sour”, The New York Times. Disponível em: http://www.nytimes.com/2002/04/07/movies
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América, ele teve de aprender as nuanças do idioma de seu novo país. Isto acabou levando-o a duas longevas parcerias que já foram muito celebradas, com razão. A primeira foi com Charles Brackett, romancista, crítico teatral e republicano graduado por Harvard. Wilder começou sua parceria com Brackett em 1936 e nos 12 anos seguintes escreveram muitos roteiros juntos. Dois de seus notáveis trabalhos são A oitava esposa de Barba-Azul [Bluebeard’s Eighth Wife], de Ernst Lubitsch (1938), e Bola de fogo [Ball of Fire], de Howard Hawks (1941). Dos filmes que o próprio Wilder dirigiu, a dupla trabalhou em roteiros como os de Farrapo humano e Crepúsculo dos deuses. Em verdade, foi a insatisfação quanto à maneira como estavam lidando com um roteiro que ele e Brackett haviam escrito para Mitchell Leisen que conduziu Wilder à cadeira do diretor. O incidente que mais se conta envolve uma cena de A porta de ouro [Hold Back the Dawn] (Mitchell Leisen, 1941) em que Charles Boyer deveria conversar com uma barata que subia pela parede. A decisão de remover esta cena enfureceu Wilder de tal maneira que ele começou a fazer campanha junto a produtores para que o deixassem dirigir. Seu primeiro trabalho como diretor nos EUA foi o comercialmente bem-sucedido A incrível Suzana (1942). A este, sucederam-se mais 25 filmes. A segunda parceria de roteiro foi com o romeno I. A. L. Diamond, que tinha um diploma de jornalismo e trabalhava como roteirista na Paramount. Wilder e Izzy Diamond foram parceiros por 25 anos, o que resultou em filmes como Um amor na tarde (1957), Quanto mais quente melhor (1959), Se meu apartamento falasse (1960) e Beija-me, idiota (1964), entre outros. Alguns dos melhores filmes do período áureo do sistema de estúdios hollywoodiano foram dirigidos ou coescritos por Wilder. Seu trabalho atua como uma espécie de índice do que era possível àquela época. Ele experimentou com o filme noir em Pacto de sangue, com o melodrama em Crepúsculo dos deuses, com a farsa cômica em Quanto mais quente melhor, com a comédia romântica em Sabrina (1954) e com o drama de tribunal em Testemunha de acusação (1957). No entanto, não importa qual o gênero, um filme de Wilder sempre se parece com um filme de Wilder, seja pelo aspecto visual, pela sonoridade ou pelas sensações que provoca. Ele tem uma atmosfera, um tom e O artista do claro-escuro
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uma atitude particulares, com seus panoramas de indivíduos complexos e bem-compostos e tramas elaboradas. Por vezes há romance, em outras escândalo, talvez até mesmo um assassinato, mas serão sempre repletos dos diálogos rápidos e espirituosos de Wilder. A obra de Wilder também foi alvo de muitas críticas, inclusive a sugestão de que sua reputação teria sido ainda maior se seu estilo fosse mais reconhecível. Porém, Wilder obstinava-se em desenvolver princípios clássicos de transparência e invisibilidade. Gostaria de dar a impressão de que a melhor mise en scène é aquela que não se nota. Você precisa fazer com que o público esqueça que há uma tela. Você precisa conduzi-los para dentro da tela, até que eles esqueçam que a imagem é bidimensional. Se você tenta ser artístico ou afetado, você perde tudo.2 Richard Armstrong, no seu excelente livro Billy Wilder, American Film Realist3, enfatiza o uso que Wilder faz de locações reais, ruas e cenários urbanos de verdade – prática incomum à época. Armstrong detecta certa contundência poética na busca de Wilder por uma mise en scène realista. Ele isola sequências como “a desova do corpo de Dietrichson nos trilhos de trem” em Pacto de sangue, “rodada de fato à noite de modo que se obtivesse o máximo de tenebrosidade”4, como exemplo de um realismo poético à maneira das obras de Zola ou Renoir. A estética realista de Wilder, suas sombras profundas, ruas sórdidas, trilhos de trem, casas barrocas, escadarias dramáticas e áridas paisagens de deserto ofereciam imagens assombrosas, evocativas e sombrias. Mesmo que estivessem sempre a serviço de uma história, elas também descrevem um estilo cinematográfico fortemente expressivo que agora apreciamos como sendo próprio dele. A outra grande crítica que se costumava fazer a seus filmes era a de que eram excessivamente cínicos e desesperançados. A montanha dos sete abutres (1951) é o filme mais frequentemente assinalado sob esta ótica. Um 2 SIKOV, Ed. On Sunset Boulevard: The Life and Times of Billy Wilder. Nova York: Hymperion, 1998. p.177. 3 ARMSTRONG, Richard. Billy Wilder, American Film Realist. Londres: McFarland & Company, 2000. 4 Ibidem, p.33. 18
repórter jornalístico em dificuldades financeiras, Chuck Tatum, vislumbra uma chance de voltar aos jornais das grandes cidades quando se cruza por acaso com um homem preso numa mina desabada. Ele prolonga desnecessariamente as operações de resgate, no intuito de construir tanto a história quanto sua própria reputação, o que acaba resultando na morte da vítima. A história é brutalmente trágica e a maneira como são representadas a mídia e a sociedade, maldosa. No entanto, trata-se também de um filme muito divertido, com tiradas como “Eu nunca vou à igreja; ajoelhar estraga minhas meias de náilon” ou “Eu já conheci alguns ovos cozidos na minha vida, mas você, você ficou no fogão 20 minutos”. A visão de Wilder é, sem dúvida, sombria. Porém, através da escuridão, descobrimos igualmente aquilo que Cameron Crowe chama de “uma visão muito clara da vida em todo seu humor e dor”5. Na Austrália, os filmes de Wilder são exibidos na televisão como clássicos do cinema, bem como em nossa programação na Cinemateca. Há poucas noites, tive a oportunidade de rever Farrapo humano na tevê a cabo. Esperamos que mais retrospectivas de Wilder venham por aí. Tais mostras e eventos darão oportunidade de apresentar sua significativa filmografia àqueles que ainda não tiveram o prazer de conhecer suas vistas grandiosas, personagens incisivos, histórias agridoces, poesia ácida e tiradas espirituosas. Penso que Silkov expressou-o melhor que todos em sua biografia de Wilder: Nem mesmo Wilder, o mestre do cinismo, poderia antever o final. A grande piada é que, a cada década que passa, os contos acerbos de Wilder vão parecendo cada vez mais ternos. Ao final de nosso malvado e exausto século, a malícia de Wilder tomou sobre si uma espécie de pungência romântica. Seus filmes são delicados a ponto de chocar... Sempre houve decência ali, mesmo que ninguém conseguisse realmente entendê-la. Havia amor, ainda que incerto e vacilante.6 Texto publicado originalmente pela revista Senses of Cinema. Traduzido por Ismar Tirelli Neto.
5 CROWE, “The ‘Wilder Touch’: Both Sweet and Sour”. 6 SIKOV, On Sunset Boulevard, p.viii. O artista do claro-escuro
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Billy Wilder e o prĂŞmio Irving G. Thalberg
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Em 1988, Billy Wilder foi homenageado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas com o prêmio Irving G. Thalberg pelo conjunto de sua obra. A entrega aconteceu durante a cerimônia do Oscar daquele ano, em 11 de abril. Wilder já havia ganhado seis prêmios da Academia (direção e roteiro por Farrapo humano; roteiro original por Crepúsculo dos deuses; e filme, direção e roteiro original por Se meu apartamento falasse) e, em todas as ocasiões, agradeceu apenas com um “Muito obrigado”. Foi somente ao receber o troféu honorário, das mãos de seu amigo e constante colaborador Jack Lemmon, que resolveu fazer um discurso.
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Muito obrigado. Acredito que este seja o prêmio mais prestigioso que se pode ganhar, com a possível exceção do prêmio Nobel, é claro. Gostaria que você o segurasse [tira o troféu do pódio e o entrega a Jack Lemmon], porque tenho a sensação de que ele vai se quebrar. Gostaria de agradecer especialmente – após ter agradecido ao presidente da Academia, aos membros e a todos os milhões de fãs que tenho no mundo inteiro, nas partes civilizadas do mundo –, gostaria muitíssimo de agradecer a um senhor em particular, sem cuja ajuda não estaria aqui hoje à noite. Esqueci o nome dele, mas nunca me esqueci de sua compaixão. Ele era o cônsul americano em Mexicali, México. Agora, imagine que estamos em 1934. Um ano após Hitler dar o golpe de estado. Todos nós tínhamos nos exilado: em Zurique, em Londres, em Paris. Tive sorte. Vendi uma história para Hollywood e ganhei um visto de visitante com validade de seis meses. Aí vim para cá e comecei a trabalhar, mas seis meses passam muito, muito rápido. Bem, eu não queria ir embora. Queria ficar nos EUA. Então me disseram que precisava de um visto de imigrante, e para isso você tem que... Quero dizer, você tem que sair do país para pedir o visto de imigrante; com os papéis em ordem, você pode retornar. Fui a Mexicali, que é o consulado americano mais próximo, bastava atravessar a fronteira da Califórnia com o México. Eu suava em bicas quando me conduziram ao escritório do cônsul. Não era o calor. Era o pânico, o medo. Sabia que precisava de um monte de documentos: declaração juramentada, comprovante de residência anterior, testemunho juramentado de que nunca fui criminoso ou anarquista. Não tinha nada, absolutamente nada. Somente meu passaporte e minha certidão de nascimento, além de algumas cartas de amigos americanos que garantiam que eu era inofensivo. Parecia impossível. O cônsul – ele se parecia um pouco com Will Rogers – examinou minha escassa documentação. “É tudo o que tem?”, perguntou. Eu disse, “Sim”. Tenho que explicar isso; vocês sabem, tive que abandonar Berlim rapidamente, me avisaram com pouca antecedência, coisa de 20 minutos. Um vizinho tinha me prevenido de que dois homens usando uniforme haviam 24
me procurado. Só tive tempo de jogar algumas coisas na mala e de pegar o trem noturno para Paris. O cônsul olhou para mim e disse, “Certo, o que espera que eu faça somente com estes papéis?”. Eu disse-lhe que tinha tentado obtê-los na Alemanha nazista, mas não me deram qualquer resposta. Claro que poderia obtê-los se retornasse à Alemanha, mas naturalmente me colocariam no trem para Dachau. Ele ficou me encarando, me encarando insistentemente, e eu não tinha certeza se estava conseguindo fazê-lo entender. Ouvira falar de famílias inteiras que passaram anos ali esperando pelo visto e de outros que nunca o conseguiram. E, acreditem, queria voltar aos EUA. A coisa parecia ruim. Então a gente ficou lá, encarando um ao outro, o cônsul e eu, em completo silêncio. Finalmente, ele me perguntou, “O que você faz? Quero dizer, profissionalmente?”. Disse, “Escrevo para o cinema”. Ele disse, “É mesmo?”. Levantou-se e começou a andar para lá e para cá, um pouco atrás de mim, mas senti que estava me medindo. Depois voltou à escrivaninha, pegou meu passaporte, o abriu, pegou um carimbo de borracha e fez [bate duas vezes no pódio], me devolveu o passaporte e disse, “Escreva bons roteiros”. Isso foi há 54 anos. Tenho tentado desde então. Certamente não quis desapontar aquele bom homem de Mexicali. Sabem, quando olho para trás, percebo que tive uma vida cheia de encantos. Não esperava algo assim, algo como o Prêmio Thalberg. Vocês são, sem dúvida, as pessoas mais generosas do mundo. Espero que esteja assistindo, I. A. L. [Diamond, roteirista], porque parte disto é seu. Então melhoras, viu? Muitíssimo obrigado. Texto traduzido por Tiago Jonas.
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Na terra dos ianques: as transferĂŞncias culturais entre Europa e Hollywood Pedro Maciel GuimarĂŁes
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O fenômeno da migração de profissionais de cinema de outras parte do mundo para os Estados Unidos começou antes mesmo de Hollywood existir. Se, de acordo com as épocas e países, esse êxodo varia em número de cineastas, atores e técnicos, é inegável a importância dessas transferências culturais no estabelecimento e na manutenção dos filmes americanos como balizas formais e temáticas do cinema mundial – ainda que seja para serem contestadas, mais cedo ou mais tarde, pelos seus próprios integrantes. Nesse contexto, a ida de profissionais germanófonos para o cinema americano aparece como exemplar, e o percurso de Billy Wilder, além de desbravador, revela-se um dos mais pungentes. O fluxo de pessoas, que desemboca, necessariamente, num fluxo de ideias e formas, começou ao mesmo tempo que o cinema, mas teve motivações econômicas antes de estéticas ou históricas. Já em 1895, uma primeira onda de imigração, que durou até 1910, foi formada sobretudo por produtores de espetáculos europeus de origem judia, que viram, na indústria do entretenimento ainda embrionária da Costa Oeste dos Estados Unidos, uma oportunidade de negócios – não podia ser diferente num sistema de produção que se baseia, até hoje, na supremacia dos produtores e executivos, muitas vezes em detrimento aos criadores. Nesses primeiros anos, o cinema ainda era visto com ressalva pelos produtores de variedades, mas essa primeira leva foi o embrião do sistema de estúdios que só viria a se estabelecer na virada dos anos 1910. A Warner foi o primeiro estúdio a ser criado, por volta de 1903, por quatro irmãos de origem polonesa – os Warner Brothers: Harry, Albert, Sam e Jack – que, a despeito de produzirem filmes, iniciaram a carreira como exploradores de salas de cinema. Seguiram-se a eles o alemão Carl Laemmle, fundador da Universal; ov húngaro William Fuchs, criador da Twentieth Century Fox; o também polonês Samuel Goldwyn, da MGM; e seu associado Louis B. Mayer, originário da Bielorrússia. A segunda leva de imigração para os Estados Unidos inicia-se em 1910, quando Hollywood começa a se definir como capital do cinema.
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Logo nos primeiros anos, a chegada que causou mais estardalhaço foi a de Charles Chaplin, vindo da Inglaterra na trupe de Fred Karno para participar de uma série de espetáculos que misturavam stand up comedy e circo. Carlitos nasce para o cinema em 1914, nos filmes do estúdio Keystone, e o burlesco americano nunca mais se desvencilharia da influência de Chaplin. Mas, nesse caso, o imigrante (título, aliás, de um dos curtas de Chaplin) entrava num terreno quase virgem, em que tudo estava para ser construído e em que poucas convenções existiam para serem adaptadas ou transformadas. Essa etapa viveu o esboço do que seria, mais tarde, a regra dos deslocamentos artísticos para a capital do cinema: aquela gerada pelo fascínio que Hollywood despertava nos espectadores e profissionais do mundo todo, fruto de uma relativa facilidade de produção, de um savoir faire incontestável nas diversas etapas do fazer cinematográfico e do reconhecimento financeiro. Segundo a caracterização sociológica, essa foi uma época de verdadeira “migração”, do deslocamento voluntário, ou provocado pelo apelo corporativo dos estúdios (mas ainda assim, um deslocamento desejado pela pessoa que o executa), em detrimento ao que aconteceria logo depois. No lugar de um fenômeno migratório, a fase que se estende de 1932 a 1945 geraria um exílio artístico. Isso porque os artistas e intelectuais que foram para os Estados Unidos nessa época eram, em sua maioria, fugidos da ascensão do nazismo e escolhiam mudar de país por não ter outra opção, eram simplesmente impedidos de viver e trabalhar com liberdade nos seus países de origem. Foi nesse sentido que o historiador de cinema Tony Thomas teria dito que o grande benfeitor do cinema de Hollywood foi Adolf Hitler, devido ao grande número de profissionais europeus que foram para os Estados Unidos fugindo à sanha do ditador. Ironias à parte, o fato é que essa afirmação resume bem as condições de exílio de Billy Wilder: o fato de ser um exilado de cultura alemã, de origem judia, fugindo da Europa numa época em que a produção cultural da Alemanha e dos países vizinhos passou a ser censurada pelo nazismo. Não que o regime tenha tolhido apenas as vozes de artistas judeus, mas, como é sabido, eles 30
tiveram uma acolhida ferverosa de Hollywood, sobretudo pelos precursores da emigração para a terra do cinema, também judeus.
A passarela Viena-Berlim-Hollywood A relação simbólica que unia as capitais da Áustria e da Alemanha à capital do cinema americano foi a grande passarela por onde passaram a maioria dos exilados e emigrados desde a época da I Guerra Mundial, intensificando-se nos anos 19301. A lista dos exilados/emigrados cinematográficos é consistente e inclui diretores de teatro (Max Reinhardt, que influenciou diretores e atores formados na Alemanha como Murnau e Preminger), atores (Marlene Dietrich, Emil Jannings, Conrad Veidt, Erich von Stroheim e Peter Lorre), compositores (Max Steiner), roteiristas (Walter Reisch) e, claro, realizadores (Paul Leni, F. W. Murnau, Josef von Sternberg, Fred Zinnemann, Max Ophüls, G. W. Pabst, Fritz Lang, Douglas Sirk, Ernst Lubitsch, William Wyler, William Dieterle, Otto Preminger, Edgar G. Ulmer, Robert Siodmak). O exílio de Wilder da Alemanha, onde vivia desde o início da sua vida profissional como jornalista e roteirista, teve uma parada estratégica na França, país onde os artistas ainda pensavam estar a salvo dos desmandos de Hitler. Vindo de um carreira sólida de roteirista e script doctor na UFA desde 1927 – ele corroteirizou o vanguardista Menschen am Sonntag [Pessoas no domingo] (Siodmak, G. Ulmer, 1930) – Wilder realiza, na França, seu primeiro longa, em 1934, Semente do mal. O roteiro, também de Wilder, gira em torno de um playboy que se mete com um bando de ladrões de carros. Semente do mal é quase um filme de ação, recheado de perseguições de carros, que tem alguma coisa do clima de reviravoltas dos filmes que Wilder viria a realizar mais tarde. No entanto, o mais interessante do roteiro é a redenção do personagem principal. Depois de ser pego pela polícia e de se 1 Vienne et Berlin à Hollywood é o nome de um obra coletiva organizada por Marc Cerisuelo, editada em Paris em 2006.
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apaixonar por uma garota da gangue (a então iniciante Danielle Darrieux), Pierre Mingand, frente ao oceano, propõe para sua namorada: “Vamos embora, é a nossa única chance de escaparmos”. Toda a parte final da trama é uma discussão sobre como mudar de vida através de um deslocamento físico, inevitável face ao estado de point of no return vivido pelos personagens. Extradiegeticamente, Wilder está falando de si mesmo, da certeza da necessidade do exílio e da incerteza do que viria pela frente. Numa de suas mais inspiradas falas públicas, durante a cerimônia do Oscar de 1988, quando recebeu o Prêmio Irving G. Thalberg, Wilder contou como foi obrigado a fugir em menos de 20 minutos de Berlim, num trem noturno para Paris, tendo tempo para levar apenas algumas roupas e sua certidão de nascimento; e como só pôde permanecer nos Estados Unidos devido ao cônsul americano no México que teria carimbado-lhe o passaporte para voltar definitivamente aos Estados Unidos dizendo: “Você é roteirista... pois faça bons filmes”. Incorporando o espírito americano de contar histórias de maneira edificante e bem-humorada, Wilder encarou, no palco do Oscar, os piores momentos da sua vida sem perder a graça e a leveza, corroborando com o lema do mundo do espetáculo americano segundo o qual tudo pode se tornar história – até as tragédias mais pessoais. Wilder chegou aos Estados Unidos em fevereiro de 1934, tendo sido mandado chamar por Joe May, executivo da Columbia, a quem enviara um roteiro inédito com uma nota explicando a impossibilidade para ele, um judeu austríaco, de trabalhar na Europa naquele período. Wilder teve a viagem paga pelo estúdio. A chegada ao novo país foi, como para diversos outros exilados, penosa. Marc Cerisuelo, que dedicou uma série de pesquisas aos cineastas germanófonos em Hollywood, defende que a chegada de Wilder ao país revelou-se um duplo trauma, existencial e linguístico. Isso porque Wilder não falava quase nada de inglês, sendo obrigado a abdicar de falar alemão e a ouvir programas de rádio para aprender as gírias americanas. Cerisuelo afirma que “ao contrário dos intelectuais alemães, que vão encher as universidades dos EUA, o destino de Wilder se parece mais com o dos exilados comuns, cego às significações, prisioneiros em 32
um mundo irremediavelmente opaco”.2 Wilder teve, no entanto, mais sorte do que alguns dos seus compatriotas, que amargaram a depressão e o ostracismo em algum momento da passagem pelos Estados Unidos – Douglas Sirk chegou a criar galinhas num sítio, tamanha a dificuldade de se adaptar ao esquema de estúdios; Eric von Stroheim nunca encontrou o mesmo sucesso da Europa e caiu rapidamente no ostracismo. Até realizar seu primeiro longa americano, A incrível Suzana (1942), Wilder foi roteirista contratado pela Paramount, dividindo o escritório com escritores de peso como F. Scott Fitzgerald e Charles Brackett. Com esse último, estabeleceu uma das grandes duplas colaborativas de Hollywood, escrevendo, a princípio, roteiros juntos: A oitava esposa do Barba Azul (Bluebeard’s Eighth Wife, Lubitsch, 1938), Ninotchka (Lubitsch, 1939), Levantate, meu amor (Arise, My Love, Mitchel Leisen, 1940), Bola de fogo (Ball of Fire, Howard Hawks, 1941). Quando Wilder tornou-se realizador, ele elevou o amigo ao estatuto de colaborador sistemático de roteiro.
Autor exilado, estilo imutável O terreno de possibilidades dos estudos sobre as transferências culturais abre-se em duas frentes: primeiramente, cabe investigar como esses profissionais do cinema, artistas acima de tudo, conseguem manter a aparência de mundo pessoal, a tão festejada autoria, mesmo trabalhando dentro de um sistema altamente estratificado como o dos estúdios americanos; num segundo momento, a discussão ganha corpo com a investigação de como os elementos de uma outra cultura podem enriquecer ou modificar as regras e convenções formais e narrativas do sistema no qual esse profissional passa a atuar. Se o fenômeno da investigação da autoria não é 2 CERISUELO, M. “Hollywood, terre d’asile: Billy Wilder, scénariste. Transferts d’histoires et structures d’accueil.” In BESSIÈRE, I.; ODIN, R. (org.), Les européens dans le cinema américan – emigration et exil. Paris: Sorbonne Nouvelle, 2004. p.142.
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privilégio dos cineastas exilados, é certo que a bagagem cultural dos diretores do velho continente ajudou a redefinir alguns cânones de Hollywood. A experiência de Wilder e de outros diretores germânicos nos Estados Unidos resume bem a capacidade desses profissionais em entender e transpor para as telas, em situações e diálogos, o espírito da sociedade americana. O ataque e a apropriação dos mitos americanos fazem parte do programa de adaptação dos exilados, ataque esse mais frontal do que aquele estabelecido pelos diretores nascidos nos Estados Unidos. Jacques Portes resume essa postura na maneira de se filmar monumentos históricos, lugares-símbolo do espaço americano, como os que aparecem nos filmes de Hitchcock, o Monte Rushmore e a Estátua da Liberdade3. Wilder estava consciente que seu passado europeu lhe dava uma visão diferente da América. “Nós, que temos nossas raízes no passado europeu, tivemos uma atitude mais fresca com relação à América, um olhar novo para examinar esse país, em oposição ao olhar de um nativo, que estava acostumado com tudo o que via ao seu redor”.4 Passado o momento inicial do choque e da adaptação, Wilder se tornou um dos mais contumazes observadores da sociedade americana e do fenômeno de Hollywood enquanto produtor de bens culturais. E se o cinema de Hollywood é, basicamente, um cinema de gênero, atacar os mitos do imaginário coletivo norte-americano significava lidar com essas convenções narrativas e estéticas implantadas há décadas. Voluntária ou involuntariamente, os exilados de língua germânica deram grandes contribuições a filmes de gêneros tipicamente americanos, dando a eles novos rumos narrativos (as abordagens psicológicas e/ou femininas do filme noir com Preminger, Siodmak e Lang; e do faroeste com Lang e Zinnemann) ou releituras formais até então desconhecidas (o melodrama flamejante de Sirk; o filme de terror psicológico sem ser expressionista com G. Ulmer). Wilder, ao lado de Lubitsch, modificou a 3 Cf. “Des immigrants comme les autres?”, id, p.33-35. 4 Wilder op. Cit. PHILLIPS, Gene D. Some Like It Wilder. The Life and Controversial Films of Billy Wilder. Lexington: University of Kentucky, 2010. p.15.
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forma e o fundo da comédia, dando ao gênero o status de nobreza como raramente se viu noutras fases do cinema americano. Mas foi para o filme noir que os exilados germânicos deixaram seu maior legado. O qualitativo “noir” foi dado pela crítica americana para nomear filmes cujas histórias giravam em torno de intrigas policiais, crimes e algum suspense. Eram filmes noturnos, que abusavam do contraste das imagens – o preto e o branco serviam, então, como elementos expressivos de alta significação – e da exploração do lado obscuro do ser humano. A contribuição dos cineastas germânicos foi dada a um gênero que já vinha demonstrando uma força narrativa única desde os anos da II Guerra Mundial. Filmes como Relíquia macabra (também conhecido como O Falcão Maltês) (The Maltese Falcon, John Huston, 1941) e as histórias criadas pelos romancistas Dashiell Hammett e Raymond Chandler lançaram as primeiras balizas do noir, gênero portanto tipicamente americano. Mas o termo “noir” (negro, em francês) foi, voluntariamente, cunhado para se referir a um lado autoral europeu, de filmes mais sombrios, que tinham como ponto de partida a construção – ou a desestruturação, em alguns casos – psicológica e psíquica dos personagens. O filme noir americano é herdeiro direto do cinema expressionista alemão dos anos 20, com as devidas mudanças de estilo e da concepção de personagens. O historiador Siegfried Kracauer ligaria, mais tarde, o filme expressionista alemão à ideologia totalitarista que tomou conta da Alemanha em meados dos anos 305. Segundo ele, os filmes refletem, melhor do que qualquer forma de expressão artística, a maneira de pensar de uma sociedade e as interligações psicológicas e sociais que dominam a vida pública e privada. Kracauer defende que o clima macabro e de penúria humana no qual a Alemanha estava mergulhada desde o final da I Guerra Mundial teria dado substrato para a ascensão do nazismo. E o cinema expressionista, representado por O gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, Robert Wiene, 1920), seria a melhor expressão desse lado obscuro do ser alemão desses anos. 5 De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão (1947). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
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Os diretores austríacos e alemães, que aprenderam a fazer cinema no grande estúdio alemão da época, a UFA, levaram consigo para os Estados Unidos esse gosto pelo secreto e indizível, pelas representações metafóricas, pelo mergulho na alma e na cabeça dos personagens para representar o horror, o medo e a repressão. Para Foster Hirsch, “os melhores diretores de filme noir eram alemães e austríacos expatriados pois eles experimentaram uma visão de mundo formada por uma experiência amarga, a de escapar de um nação que havia perdido o rumo (...) e trouxeram consigo a predileção por histórias de um futuro incerto do homem, a obsessão psicológica e o descontrole”.6 A ousadia em se aproximar dos mitos americanos e falar abertamente das mazelas da sociedade americana e do show business hollywoodiano, muitas vezes criando situações constrangedoras protagonizadas por americanos em solo europeu, gerou alguns desafetos para Wilder e seus colegas expatriados. Em 1952, um jornalista chamado Herbert Luft chamou Wilder de antiamericano e o criticou por mostrar, “assim como outros alemães, apenas as fraquezas e as deficiências do povo americano em filmes como A mundana, A montanha dos sete abutres e Crepúsculo dos deuses”.7 Foi preciso Charles Brackett sair em defesa do amigo e colega para amainar a polêmica, aliás, completamente infundada. A passagem do lado noir do expressionismo para o noir americano não se deu, obviamente, sem uma mudança nos parâmetros de tratamento do realismo das imagens. É sempre ousado se falar de “realismo” no singular, já que, como nos lembrou em todos os seus escritos André Bazin, a imagem cinematográfica já é, por si só, uma garantia de realismo8. Falemos então de “realismos”, para comparar a representação deformada ou angulosa do mundo estabelecida pelo movimento alemão, e a estética hollywoodiana dos anos 1940 e 1950. De um lado e do outro, o 6 The Dark Side of the Screen: Film Noir. New York: Da Capo, 2009. p.117. 7 LUFT, Herbert. “A Matter of Decadence”. In “Two Views of a Director: Billy Wilder”, Quarterly of Film, Radio, and Television 7, vol.1, p.67, 1952. 8 Cf. a bíblia dos estudos de cinema: BAZIN, A. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
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que se sobressai, no entanto, é a predileção por personagens à beira do desespero e da loucura, de Caligari a Norma Desmond, assassinos contumazes ou em potencial, perversos e manipuladores. A passagem de um mundo ao outro fica evidente na comparação de dois filmes: Nosferatu (1922), de Murnau, outro apogeu do filme expressionista, e Crepúsculo dos deuses (1950). O roteiro do filme de Wilder, coescrito por Charles Brackett, guarda semelhanças perturbadoras com o clássico do filme de vampiros. Os personagens principais dos dois filmes, um vampiro e uma atriz, são seres que, essencialmente, alimentam-se da vida de outros: o vampiro para matar a fome; o ator para criar personagens. Drácula e Norma Desmond são criaturas pertencentes a um outro tempo, não àquele presente diegético em que a ação do filme se desenrola. Drácula vem de um passado longínquo, há séculos de distância; Norma vem dos tempos dos filmes mudos, objetos tornados obsoletos num mundo que valoriza a voz dos atores. Ambos são oriundos de um mundo sem palavras: Nosferatu é um filme do primeiro cinema, quando os atores não produziam sons e falas; Norma Desmond obteve sucesso em condições estéticas similares. As coincidências entre os dois filmes continuam. Em ambos, temos um personagem presumidamente inocente (o agente Hutter e o roteirista Joe Gillis) penetrando no mundo da velha raposa, mundo esse do qual depende a emancipação financeira deles, mas que é marcado pelo enclausuramento, pelo obscurantismo e pela obsessão. O momento da chegada do visitante Gillis à casa da estrela do cinema mudo parece decalcado do primeiro contato entre Hutter e Drácula. Em ambos, as presas foram mandadas chamar para prestar um serviço e deparam-se com um mausoléu povoado por fantasmas, obscuro e assustador, no qual as sombras parecem falar. Do fundo da obscuridade, o conde Drácula e Norma Desmond soltam, aproximadamente, as mesmas palavras: “Por que você demorou tanto? Estava te esperando há muito tempo”. O “muito tempo” refere-se aqui a anos de espera: para o Drácula, para reencontrar sua amada do passado; para Norma, para reencontrar a glória de outrora. Entoamos então que a relação que vai coNa terra dos ianques: as transferências culturais entre Europa e Hollywood
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meçar entre os iniciantes e os veteranos é baseada na manipulação e na doença. O neófitos pagarão com a vida por essa aproximação. Crepúsculo dos deuses joga na cara de Hollywood a loucura e a obsessão dos mitos criados por ela e é um dos filmes mais lúcidos e amargos sobre o ocaso de uma era. Através das falas de Norma Desmond, pode-se fazer o inventário sobre a passagem do cinema mudo ao falado. Assim como podemos entender a sociedade alemã vendo os filmes expressionistas, é essencial voltar ao cinema para entender como o star system hollywoodiano e a mentalidade dos estúdios criava monstros sagrados e, depois, os relegava ao esquecimento, a um túmulo onde eram enterrados vivos. Ver Crepúsculo dos deuses sem pensar nas influências do expressionismo e, principalmente, de Nosferatu, seria desprezar condições históricas e estéticas evidentes demais de transferência cultural. Norma Desmond e Drácula são vampiros da mesma espécie. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. CERISUELO, Marc. “Hollywood, terre d’asile: Billy Wilder, scénariste. Transferts d’histoires et structures d’accueil”. In BESSIÈRE, Irène; ODIN, Roger (org.), Les européens dans le cinema américan – emigration et exil. Paris: Sorbonne Nouvelle, 2004. ______ (org.). Vienne et Berlin à Hollywood. Paris: PUF, 2006. HIRSCH, Foster. The Dark Side of the Screen: Film Noir. New York: Da Capo, 2009. KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão (1947). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. LUFT, Herbert. “A Matter of Decadence - Two Views of a Director: Billy Wilder”, Quarterly of Film, Radio, and Television 7, vol.1, 1952. PHILLIPS, Gene D. Some Like It Wilder. The Life and Controversial Films of Billy Wilder. Lexington: University of Kentucky, 2010. PORTES, Jacques. “Des immigrants comme les autres?”. In BESSIÈRE, Irène; ODIN, Roger (org.), Les européens dans le cinema américan – emigration et exil. Paris: Sorbonne Nouvelle, 2004.
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A câmera é içada e contorna a grande fachada de um palácio, um castelo ou um luxuoso e magnífico hotel, perscrutando obliquamente pela janela as diversas atividades do lado de dentro. Ou ela fica pousada em um corredor, do lado de fora de um quarto ou de uma suíte de uma dessas construções, enquanto empregados, músicos ou cigarette girls [vendedoras de cigarro] entram e saem, nos fazendo imaginar quais travessuras poderiam estar acontecendo do outro lado da porta. Essas são as duas tomadas principais típicas do grande diretor hollywoodiano Ernst Lubitsch – especialmente no seu auge em Hollywood, na década de 1930 –, e podemos ver variações do segundo tipo, os interiores vistos do lado de fora, nos filmes mais românticos de Billy Wilder (o maior discípulo de Lubitsch), cujo auge em Hollywood foi na década de 1950. Em Ninotchka (1939), de Lubitsch, cujo roteiro Wilder e seu parceiro habitual de escrita Charles Brackett ajudaram a escrever, ficamos sabendo que três russos (Sig Ruman, Felix Bressart, Alexander Granach), que estão em Paris numa missão de governo, estão se divertindo em uma suíte de hotel; quando pedem cigarros, entendemos que estão pedindo três cigarette girls. E em Um amor na tarde (1957), dirigido por Billy Wilder – o tributo mais óbvio e explícito a Lubitsch e, talvez, o mais desajeitado, parcialmente inspirado em A oitava esposa do Barba Azul, dirigido por Lubitsch em 1938 (cujo roteiro Wilder e Brackett ajudaram a escrever e que foi estrelado por Gary Cooper, novamente interpretando um milionário americano mulherengo que vive na França) –, a câmera volta ao local predileto, o lado de fora da suíte do milionário no Ritz, toda vez que os músicos ciganos que ele contrata interpretam uma versão comovente de “Fascination” para ajudá-lo a ter sucesso nas suas diversas tentativas de conquista. Apesar de sua reputação, não considero, por diversas razões, nem Ninotchka nem Um amor na tarde meus filmes favoritos. Uma das razões é que ambos foram prejudicados pelo fato de que Cary Grant se recusou a interpretar os personagens principais. (Em Ninotchka, Melvyn Douglas aceitou o papel, contracenando com Greta Garbo; em Um amor na tarde, em que Audrey Hepburn interpreta a filha do detetive parisiense Maurice Lecus non et delessequi audae coriore
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Lecus non et delessequi audae coriore
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Chevalier, teria sido mais interessante se Cooper tivesse interpretado seu pai e Chevalier, seu amante.) Mas estou começando com esses exemplos porque eles ilustram de maneira mais simples e clara no que consiste o “toque de Lubitsch”. Como contraexemplos, gostaria de propor os tributos feitos por dois cineastas da nouvelle vague, Jean-Luc Godard e Alain Resnais, a Lubitsch; ambos aludem a crane shots [tomadas de grua] horizontais, em exteriores, em torno de fachadas, que podem ser vistas em muitos musicais dirigidos por Lubitsch e estrelados por Chevalier e Jeanette MacDonald, bem como em sua comédia mais conhecida da década de 1930, Ladrão de alcova. Ambos os exemplos, devo acrescentar, estão prontamente disponíveis, porque os dois filmes franceses em questão (juntamente com Ladrão de alcova) podem ser encontrados em excelentes cópias em DVD. Em Uma mulher é uma mulher (1961), de Godard, um dos personagens principais, Jean-Paul Belmondo, chama-se Alfred Lubitsch; quando ouvimos seu sobrenome a primeira vez, ele está sendo chamado para atender o telefone. Há em seguida um corte para uma longa e curiosa tomada da fachada de um prédio; um vizinho do andar de cima sai do seu apartamento pela janela e caminha por uma passarela, contornando o prédio até a janela de Alfred Lubitsch. Não há movimento de câmera; mas trata-se de uma comédia de baixo orçamento, e Godard claramente não tinha dinheiro para uma grua, então ele meramente sugere o movimento usando o deslocamento do vizinho. Em contrapartida, há em Stavisky (1974), um filme de orçamento relativamente alto que se passa em 1933, dirigido por Resnais – estrelado também por Belmondo (no papel principal) –, uma mise em scène extraordinária dentro e em torno de um resort palaciano em Biarritz, que na verdade é mais opulento e elegante do que qualquer coisa encontrada em Lubitsch. Tudo faz parte de um flashback de Stavisky e de seu amigo, o Barão Raoul (Charles Boyer), que estão em Paris; o filme é narrado pelo último, que descreve sua recente visita a Biarritz, onde viu a esposa de Stavisky, Arlette (Anny Duperet). Quando o Barão, no seu flashback, entra no hotel superlu44
xuoso onde Arlette está hospedada, ao som tenso e assustador da primeira trilha de Stephen Sondheim para um filme, e pega o elevador, há uma grua do lado de fora do prédio traçando seu percurso através de janelas francesas; ele atravessa então sua suíte suntuosa e é seguido por empregadas agitadas marcando seus passos, até que vemos, através da última de muitas janelas, Arlette se vestindo no seu quarto. Em seguida, há uma corte surpreendente, muito diferente do estilo de Lubitsch, do Barão batendo na porta para um close-up dela virando a cabeça rapidamente em resposta à batida. É um pouco como despertar de um sonho lubitschiano elegante – um efeito competente, porque no presente Stavisky está perguntando ao Barão sobre um pesadelo que Arlette teve, uma aparente premonição da sua própria desgraça. Baseado nesses tributos afetuosos e de uma maneira mais geral, alguém pode se perguntar em que consiste exatamente o famoso “toque de Lubitsch”. “Foi o uso elegante da superpiada”, disse Billy Wilder, o discípulo mais famoso e persistente de Lubitsch em Hollywood, ao jovem diretor e escritor Cameron Crowe no livro de entrevistas que fizeram juntos (Conversations with Wilder, New York: Knopf, 1999). De acordo com Wilder, tratava-se de um tipo de turbilhão extra em uma situação cômica – o tipo de coisa que certa vez impeliu o roteirista Wilder a colocar uma placa na parede de seu escritório com a pergunta: “Como Lubitsch faria isso?”. Wilder, um judeu vienense, usou Lubitsch, um judeu nascido em Berlim, como principal ponto de referência ao longo de sua carreira de diretor, e em que grau teve sucesso ou falhou em emular seu mestre é a principal questão que quero discutir aqui. Ambos os cineastas tendiam a usar pantomimas europeias pouco conhecidas, frequentemente francesas ou húngaras, como trampolins para suas próprias invenções cômicas e tinham uma maneira singular de justapor costumes e estilos europeus e americanos de comportamento para, de uma forma sutil, criticá-los e também valorizá-los. O melhor exemplo do que Wilder considerava o “toque de Lubitsch” foi uma sugestão que Lubitsch lhe deu durante a concepção do roteiro de A Doce e azedo: Lubitsch e Wilder na velha Hollywood
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oitava esposa do Barba Azul: “Gary Cooper caminha por uma rua de Nice, e o que ele está procurando talvez esteja em uma loja, uma loja muito, muito grande, como a Macy’s. Na vitrine da loja, está escrito, FALA-SE FRANCÊS... FALA-SE HOLANDÊS... FALA-SE ITALIANO... FALA-SE TCHECO... e no fim FALA-SE INGLÊS. O tipo de coisa que se vê em Nice. Então, embaixo de tudo isso – ideia de Lubitsch –, mais uma linha foi adicionada: ENTENDE-SE AMERICANO. Isso era Lubitsch. [Risos]. Antes não tinha piada nessa parte”. O próprio Wilder insistia que Lubitsch era inimitável, relembrando uma famosa conversa entre ele e seu colega diretor William Wyler, quando estavam ambos carregando o caixão de Lubitsch no seu funeral em 1947. “Não teremos mais a companhia de Lubitsch”, Wilder observou com tristeza, ao que Wyler acrescentou, “E pior, não teremos mais seus filmes”. Mas, apesar de toda a admiração que nutria por Lubitsch, Wilder não era historiador de cinema. Ele afirmou a Crowe que Lubitsch “não fez comédias na Alemanha, fez filmes históricos grandiosos e bem caros” – uma consideração que omite duas das comédias alemãs mais engraçadas de todos os tempos, Die Puppe (A boneca do amor) e A princesa das ostras, ambas de 1919, e outros filmes mudos considerados filmes “históricos” (i.e., de época), mas também comédias tais como Romeo und Julia im Schnee (1920) e Beijos que se vendem (1921). (Restaurações excelentes de A princesa das ostras e de Beijos que se vendem estão disponíveis em DVD). Wilder também declarou que após O círculo do casamento (1924) – segundo filme hollywoodiano de Lubitsch, após Rosita, cantora das ruas (1923), uma comédia que se passa na década de 1840 na Espanha – o mestre se ateve exclusivamente a comédias, o que é quase, mas não completamente, verdadeiro: a exceção foi Não matarás (1932), um drama antiguerra subestimado e sincero, mas comercialmente desastroso, que se passa após a I Guerra Mundial e acabou sendo a primeira colaboração entre Lubitsch e o homem que se tornou seu melhor roteirista, Samson Raphaelson, autor de Cantor de jazz, que também trabalhou em todas as três obras-primas de Lubitsch: Ladrão de alcova, A loja da esquina (1940) e O diabo disse não (1943), todas felizmente disponíveis em DVD de excelente qualidade. 46
Gostaria de propor uma definição um tanto diferente do “toque de Lubitsch” – uma que ajude a explicar por que Wilder conseguiu adotar alguns dos seus aspectos em seus melhores filmes, enquanto outros aspectos lhe escaparam. É uma definição que se divide em três partes. Parte um, como já sugeri, é a capacidade especificamente leste europeia de representar a sofisticação cosmopolita dos europeus continentais para os americanos – e com duplo sentido, como fica claro na gague do “Entende-se americano”. Lubitsch estava bem consciente das ironias envolvidas no seu papel de tradutor cultural: “Estive em Paris, França, e estive em Paris, Paramount”, certa vez comentou, frase que ficou famosa. “Paris, Paramount, é melhor”. Essa foi talvez uma de suas poucas declarações imodestas, porque ele praticamente inventou “Paris, Paramount”. E ele diferia do seu predecessor silencioso, o vienense Erich von Stroheim, na forma em que embalava suas especialidades para o público. Como disse certa vez Stroheim, “Lubitsch primeiro mostra o rei no trono, depois como ele é no quarto. Eu mostro primeiro o rei no quarto para que você saiba o que ele é quando você o vê no trono”. A segunda parte do “toque de Lubitsch” está mais para uma espécie de “abraço cuidadoso” do que para um “toque”. Foi na verdade uma visão que tive – uma forma de considerar seus personagens que poderia ser descrita como uma afeição crítica por fracassados que agem de acordo com duas normas. Isso provavelmente não inclui toda a obra hollywoodiana de Lubitsch, mas parece se aplicar a todas as comédias americanas mencionadas acima, bem como a outras joias, tais como – considerando apenas os filmes sonoros – A parada do amor (1929), Monte Carlo (1930), O tenente sedutor (1931) e Ser ou não ser (1942). Dois dos três personagens principais de Ladrão de alcova, interpretados por Herbert Marshall e Miriam Hopkins, são ladrões de joias em Veneza e Paris, artistas consumados da vigarice que enganam um ao outro e pessoas como uma herdeira interpretada por Kay Francis. Esses malandros alegres são hipócritas românticos que não podem ser simplesmente condenados ou aplaudidos; podemos descrever o toque de Lubitsch aqui como a capacidade rara de ver os lados hipócritas e românticos com quantidaDoce e azedo: Lubitsch e Wilder na velha Hollywood
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des idênticas de atenção nuançada e complexidade moral sem sucumbir a qualquer sentimentalismo. Similarmente, o par romântico de A loja da esquina é muito diferente – dois balconistas reprimidos e solitários, interpretados por James Stewart e Margaret Sullavan, são empregados de uma loja de aviamentos em Budapeste e vivem trocando ofensas no trabalho, sem perceber que são também amigos de correspondência apaixonados que acreditam que ainda não se conhecem. Ao dar bastante atenção a rabugice mal-humorada dos dois, Lubitsch torna os lados amorosos secretos ainda mais tocantes. E o herói dissoluto interpretado por Don Ameche em O diabo disse não é outra versão do mesmo tipo de duplicidade – um homem que claramente ama sua esposa (Gene Tierney), porém periodicamente, ao longo de sua vida, a trai. A terceira parte, e a mais simples, de minha definição do “toque de Lubitsch” seria a maneira graciosa que ele tem de lidar com a música como parte integral da construção do filme. Esse talento de Lubitsch, tenho que admitir, foi claramente ultrapassado por Wilder: nas suas últimas obras-primas supremas, A vida íntima de Sherlock Holmes (1970) e Avanti... Amantes à italiana (1972), é principalmente o uso primoroso da música – no primeiro a trilha de Miklós Rózsa e no segundo uma coleção de canções pop italianas – que torna esses filmes memoráveis. Wilder, que também começou a carreira como diretor da Paramount, eventualmente deixou o estúdio após alguns executivos tentarem persuadi-lo a trocar os vilões alemães em Inferno nº 17 (1953) – uma comédia dramática que se passa na II Guerra Mundial em um campo de concentração – por vilões poloneses, para que o filme não perdesse público no mercado alemão. (Como alguém que havia perdido boa parte da família no Holocausto, Wilder ficou compreensivelmente ofendido.) O fato de ter começado sua carreira como jornalista pode ter sido a mais significativa das diferenças de formação entre ele e Lubitsch; pode-se argumentar que um dos aspectos mais fortes de sua obra é o realismo quase documental, que o coloca em um mundo muito diferente do de Lubitsch. Pense nos aspectos documentais dos maiores filmes não cômicos de Wilder, tais 48
como Pacto de sangue (1944), Crepúsculo dos deuses (1950) e A montanha dos sete abutres (1951), com seus retratos indeléveis de Los Angeles, Hollywood e Novo México, e já podemos ver parte do que tornariam inconfundíveis comédias mais recentes como Cupido não tem bandeira (1961), Beija-me, idiota (1964), A vida íntima de Sherlock Holmes e Avanti... Amantes à italiana – a saber, seu uso engenhoso de locações em Berlim, Nevada, Londres, Inverness e sul da Itália, expressando um senso de atualidade que nenhuma simulação de estúdio poderia igualar. Se tivesse um tema cômico próprio que o tornasse mais cínico do que Lubitsch – que era às vezes um misantropo azedo –, esse poderia ser a duplicidade que leva seus personagens a decepções elaboradas e frequentemente atormentadas. O exemplo clássico seria o de Quanto mais quente melhor (1959), a comédia mais popular de Wilder. Tony Curtis e Jack Lemmon são músicos de jazz que precisam se travestir para fugir de gângsteres; eles se juntam a uma banda de mulheres em um hotel resort luxuoso. Mas podemos citar também O pecado mora ao lado (1955), Um amor na tarde, Cupido não tem bandeira, Beija-me, idiota e Uma loura por um milhão (1966), entre outros. Tanto Lubitsch quanto Wilder tinham a reputação de ser “malcriados” como diretores de comédias. Mas é interessante notar que, de alguma forma, os tópicos capitalismo e classe são ainda mais tabus enquanto tópicos de discussão na cultura americana do que sexo; e desse ponto de vista, parte da malcriadez de ambos os diretores tinha a ver com sua abordagem desses tópicos, especialmente a partir dos pontos de vista de suas respectivas eras. Há poucas comédias da década de 1930 que tenham uma visão moralmente mais complexa do capitalismo do que Ladrão de alcova e poucas comédias das décadas de 1950, 1960 e 1970 que exponham a feiura potencial do capitalismo de uma maneira mais direta do que A montanha dos sete abutres, Sabrina (1954), Se meu apartamento falasse (1960), Cupido não tem bandeira, Beija-me, idiota, Uma loura por um milhão e Avanti... Amantes à italiana. (Nos filmes de Lubitsch, ao contrário, considerando as fantasias da década de 1930 acerca da riqueza, temos mais frequentemente a pompa da realeza e dos Doce e azedo: Lubitsch e Wilder na velha Hollywood
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militares em vez do capitalismo – em parte é por isso que Maurice Chevalier acabou se tornando seu ator de apoio, da mesma forma que Jack Lemmon se tornaria subsequentemente o ator favorito de Wilder.) Continuando nesse tópico, Wilder se sente frequentemente atraído por personagens cuja característica mais forte é certa vitalidade vulgar: pense em Kirk Douglas na pele do jornalista desumano em A montanha dos sete abutres ou em James Cagney como o executivo da Coca-Cola em Cupido não tem bandeira. Nesse aspecto, ele é bem diferente de Lubitsch, que ridiculariza tanto os atores como os nazistas em Ser ou não ser, ambos vaidosos e infantis, mas que nunca sonharia em celebrar a rudeza de alguém da mesma forma que Wilder. E, com relação ao sexo, não é difícil perceber que homossexualismo masculino e travestismo aparecem repetidamente na obra de Wilder como suportes cômicos, mas quase nunca aparecem nos filmes de Lubitsch. Pense em quanta milhagem cômica é tirada de homens vestidos de mulher em Inferno nº17 e Quanto mais quente melhor ou de sugestões de comportamento gay nas sequências de abertura de A vida íntima de Sherlock Holmes e Avanti... Amantes à italiana. Lubitsch era realmente inimitável? Trago esse tema à tona porque há alguns “filmes característicos de Lubitsch” que ele supervisionou como chefe de produção da Paramount e que foram principal ou exclusivamente dirigidos por outras pessoas, tais como Ama-me esta noite (1932, dirigido por Rouben Mamoulian), Uma hora contigo (1932, codirigido por George Cukor) e Desejo (1936, dirigido por Frank Borzage). Alguns críticos até mesmo sustentam de forma razoável que Ama-me esta noite – estrelado por Maurice Chevalier e Jeanette MacDonald, par romântico que havia atuado nos filmes de Lubitsch A parada do amor, O tenente sedutor e A viúva alegre (1934) – é superior aos musicais que Lubitsch dirigiu. Por outro lado, pode-se argumentar que os melhores usos que Wilder fez do “toque de Lubitsch” são aqueles que vão além dos cacoetes superficiais do mestre e, de alguma forma, pode-se até dizer, que ultrapassam o mestre, criticando indulgentemente seus personagens ao mesmo tempo em que satiriza certos traços nacionais. (É interessante notar que isso nun50
ca aconteceu nas suas excursões por Paris: em Um amor na tarde, as observações clichês a respeito da cidade, como aquelas a respeito dos franceses em geral, parecem derivações de segunda mão de Lubitsch, enquanto as caricaturas dos franceses no desleixado Irma la Douce, de 1963, são estridentes e falsas.) Para mim, as abordagens mais profundas que Wilder fez dos europeus ocorrem em duas das suas últimas obras-primas, produzidas consecutivamente, que foram sucesso de bilheteria – A vida íntima de Sherlock Holmes e Avanti... Amantes à italiana, filmes que são registros de declarações definitivas a respeito da repressão inglesa e da sensualidade italiana (bem como da burocracia italiana). No caso do filme de Holmes, é toda a Era Vitoriana, incluindo a rainha Vitória, que é submetida ao escrutínio crítico de Wilder, e a sensualidade da heroína continental interpretada por Genevieve Page aparece como figura central para a diminuição das inibições do herói. Em ambos os filmes, trabalhando com seu colaborador favorito, talvez o melhor, o coescritor I. A. L. Diamond, Wilder usa material proveniente de outros autores (personagens no primeiro, uma peça no último) para criar uma história altamente pessoal. É uma pena que o próprio Wilder não estimasse muito esses filmes. No seu livro de entrevistas, ele confessa a Crowe que abandonara A vida íntima de Sherlock Holmes após este ter uma malsucedida pré-estreia, o que permitiu que outras pessoas o cortassem extensivamente, e ele menospreza principalmente Avanti... Amantes à italiana, em parte pelo que pode ser considerado uma de suas grandes forças: “Parecia um filme feito na Itália”, ele reclamou – como se uma Itália artificial criada em estúdio tivesse sido melhor, combinando com a preferência de Lubitsch por Paris, Paramount, em vez de por Paris, França. Mas o jornalista em Wilder acaba sendo muito mais relevante do que o celebrado confeiteiro; em alguns aspectos, as imagens do cineasta, que são normalmente negligenciadas, suplantam suas palavras: ambos os filmes começam essencialmente com sequências pungentes sem diálogo que nos trazem de volta para a expressividade do cinema mudo. (Avanti... Amantes à italiana é também excepcional na obra Doce e azedo: Lubitsch e Wilder na velha Hollywood
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de Wilder por sua profanidade e nudez – sem mencionar o grau ao qual ele efetivamente se qualifica como um filme italiano, por causa do número de italianos que trabalhou nele e da quantidade de diálogos em italiano sem legendas, sem nunca deixar que espectadores que não entendem a língua perder o fio narrativo.) Ambos os filmes têm heróis bem inibidos – Holmes (Robert Stephens), um homem brilhante, mas ensimesmado e emocionalmente blindado, e Wendell Armbruster Jr. (Jack Lemmon), um executivo americano de Baltimore, audacioso, mas inexperiente e pudico – com consequências que são respectivamente trágicas e cômicas. Holmes, o supremo sofisticado e cosmopolita, acaba se revelando um inocente extremamente vulnerável no que diz respeito às mulheres e às questões do coração, o que periodicamente o leva de volta ao conforto do vício em cocaína. E muito embora não haja personagens americanos em A vida íntima de Sherlock Holmes, creio que se possa argumentar que o Dr. Watson (Colin Blakely), como contraste cômico e incrédulo de Holmes, funciona aqui da mesma forma que um personagem americano entre europeus funcionaria em um filme de Lubitsch. (Ele é o suposto personagem de bom senso a quem Holmes periodicamente tem que explicar o enredo, quando na verdade somos nós, os rústicos ianques, que temos que receber dicas.) Todas as ambivalências de Wilder acerca dos europeus e americanos são mantidas em apurado equilíbrio em Avanti... Amantes à italiana (1972) – talvez a menos conhecida, mas certamente a mais bem-sucedida de todas as suas comédias à maneira de Lubitsch –, que ao longo dos anos, gradualmente, se tornou meu filme favorito. Ele descreve o romance muito breve que floresce entre o supracitado Armbruster e uma inglesa da classe trabalhadora chamada Pamela Piggott (Juliet Mills) quando eles se encontram em um spa luxuoso perto da baía de Nápoles. Eles vão a esse local específico porque o pai dele e a mãe dela, que acabaram de morrer em um acidente de carro, haviam tido secretamente um caso; o casal vinha se encontrando nesse spa já há uma década para passar o mês todo de verão – algo a respeito do que Piggott sabia e que Armbruster Jr. desconhecia com52
pletamente. À medida que eles descobrem e essencialmente recapitulam os diversos detalhes sobre o passado amoroso de seus pais, a apreciação quintessencial alemã pela cultura italiana (igualmente aparente em clássicos da literatura tais como Morte em Veneza), que também envolve aqui muitas observações satíricas, se torna o principal tema. (Curiosamente, uma das razões de Wilder ficar decepcionado com o corte final foi que originalmente ele queria que o caso de Armbruster Jr. tivesse sido com um porteiro do hotel, mas os executivos do estúdio o dissuadiram.) Ambos Wendell Armbruster Jr. e Pamela Piggott são indivíduos cheios de defeitos, para dizer o mínimo: ele é atrevido e raso, o mais feio dos “feios” americanos em confronto com os costumes italianos, e ela é uma neurótica obsessiva com uns quilos a mais. Porém, como no caso de Sancho Pança, parceiro de Don Quixote, a combinação de seus defeitos os torna irresistíveis e maiores do que a soma de suas partes. É uma característica de Wilder a maestria desse material romântico – uma peça de Samuel A. Taylor, autor de Sabrina, que ele adaptou em parceria com Diamond: (a) duas horas dos 144 minutos de filme se passam até que o casal finalmente se beije; e (b) vale a pena esperar. Graças à construção cuidadosa do roteiro escrito por Wilder e Diamond, isso acontece precisamente no mesmo momento em que um americano, que é ainda mais grosseiro, insensível e estúpido do que Armbruster, de repente entra em cena – um burocrata do governo brutamonte chamado Blodgett, astutamente interpretado por Edward Andrews –, o que faz Armbruster parecer um modelo de civilidade em comparação. É possível falar de um toque de Wilder? Creio que sim, especialmente se pensamos na maneira delicada e sutil do escritor-diretor traçar as vidas emocionais de Sherlock Holmes e Wendell Armbruster Jr. nessas últimas obras-primas. Quando paro para pensar chego à conclusão de que Lubitsch deve ter ficado com inveja. Texto publicado originalmente pela revista Stop Smiling. Traduzido por Tiago Jonas.
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Aspectos do filme noir em Pacto de sangue e CrepĂşsculo dos deuses Jack Ferdman
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Durante os áureos tempos de Hollywood, em fins dos anos 1930 até o fim da era dos musicais dos 1950, os filmes eram classificados segundo gêneros específicos, como ainda o são, nos quais a opinião pública exercia um papel normativo no sentido de mantê-los dentro dos limites da aceitação social e da manutenção dos valores familiares. O gênero do filme noir dos anos 1940 e início dos 1950 cruzou os limites do que era aceitável e calcou um universo sombrio, imoral e corrupto que não era mostrado por outras categorias de filmes. Diretores nos apresentavam vilões cheios de trapaças, paranoia, assassinato e ganância, contrastando-os com os heróis dos filmes, frágeis, confusos e vulneráveis aos encantos de uma bela mulher. Em Pacto de sangue (1944) e Crepúsculo dos deuses (1950), o diretor Billy Wilder se utiliza de uma gama de temas do noir. A cilada que vitima o personagem masculino, atmosferas de claustrofobia e desespero, bem como o poder e a ganância da femme fatale dominadora em ambos estes filmes de Wilder assinalam o apelo sinistro e sombrio do filme noir. Tanto em Pacto de sangue quanto em Crepúsculo dos deuses, Billy Wilder vale-se de um dispositivo de narração em primeira pessoa para alcançar diversos efeitos. A princípio, ele cria uma distância entre o narrador e o espectador, visto que os eventos descritos sucederam no passado. Além disso, o narrador guia o espectador pelo labirinto de trapaça, manipulação, luxúria e ganância do qual ele próprio já fez parte mediante uma série de flashbacks e sonhos. Um aspecto do filme noir presente em ambos os filmes é o foco na psique interna de um personagem masculino preso num mundo de medo. O fato de que ele próprio é o narrador da história alivia um pouco o fardo da plateia. Em Pacto de sangue, o narrador, o vendedor de seguros Walter Neff, transmite a história ao espectador sob a forma de uma confissão. Ele se colocou numa situação tão adversa que só poderá livrar-se de seu fardo de culpa, posto que matou um de seus clientes, redimindo-se através da narração do que aconteceu. Essa confissão feita a seu chefe, Barton Keyes, permite ao espectador tornar-se o investigador do filme, seguindo o caminho trilhado por Neff até chegar à emergência fatal em que o encontramos na sequência de abertura do filme. Lecus non et delessequi audae coriore
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Em Crepúsculo dos deuses, a narração assume uma forma existencialista. O roteirista Joe Gillis conta esta história de aprisionamento, ganância e trapaça já morto, boiando de bruços numa piscina em Beverly Hills. Wilder usa a morte de Gillis como um dispositivo de distanciamento ainda mais estranho, parecido com o de Pacto de sangue, na medida em que a história é contada em primeira pessoa e a perspectiva que o espectador tem do filme é diferente da que teria caso não houvesse um narrador, ou se uma narração em terceira pessoa houvesse sido empregada. Sua morte cria para o espectador uma abordagem investigativa dentro do filme. Perguntas como: “Como Joe morreu?” e “O que/quem causou seu falecimento?”, e “Ele poderia ter impedido este final terrível?” são colocadas ao espectador. A morte de Joe não impede o personagem de relembrar o que sucedeu nos últimos seis meses e de responder tanto a estas perguntas quanto quaisquer outras que o espectador possa ter. Independentemente de seu narrador estar próximo da morte ou já morto, Wilder mergulha o espectador num ambiente revelatório, porém insuportavelmente tenso, fazendo com que testemunhe a busca de um homem por um conhecimento que já não pode servi-lo. Um atributo típico do filme noir é a sua representação do crime. O espectador vê os atos criminosos, no mais dos casos, pelo ponto de vista do criminoso, e às vezes pelo da vítima, mas nunca realmente pelo ponto de vista de um terceiro. O espectador testemunha todos os aspectos da ganância por dinheiro e poder, bem como a substituição do amor pelo sexo, apenas para que seus protagonistas possam alcançar sem remorso seus objetivos. O espectador tende a se identificar com os narradores masculinos (possivelmente criminosos) em dados momentos do filme por conta de sua vulnerabilidade diante do apelo feminino da sexualidade e/ ou da riqueza. Tanto Neff quanto Gillis estão emaranhados na teia de poder de suas contrapartes femininas, respectivamente Phyllis Dietrichson e Norma Desmond, sendo que no caso de Neff e Phyllis há ainda a questão da sexualidade. Ambos os homens sucumbiram ao desejo de levantar seu status, independentemente de resultados trágicos. 58
Outra abordagem empregada por Wilder para salientar a dominância feminina e para aderir à atmosfera noir em Pacto de sangue e Crepúsculo dos deuses é seu uso da iluminação. Em Pacto de sangue, tanto em cenas noturnas quanto diurnas, Wilder cria sombras ricas, enfatizadas pelo uso de iluminação low-key, para criar uma atmosfera claustrofóbica e salientar o aprisionamento do protagonista. Por exemplo, Barbara Stanwyck (Phyllis) é filmada sob luz direta em closes, o que dá à sua personagem uma persona semelhante a uma máscara que permite que sua beleza superficial irradie pela tela dando, porém, a sensação de que sua personagem tem segundas intenções. Por contraste, a luz mais suave que ilumina o personagem masculino, dando profundidade (isto é, alma) a seu rosto, dá uma impressão de vulnerabilidade ao personagem, de resto, forte, interpretado por Fred MacMurray. A ameaça da escuridão sobre áreas de luz é comumente usada ao longo de Pacto de sangue, o que contribui para o motivo de aprisionamento que perpassa o filme. Por exemplo, durante as várias visitas que Neff faz à casa dos Dietrichson, a luz solar que penetra pelas janelas é filtrada pelas venezianas, criando assim múltiplas sombras em formato de barras de presídio sobre as paredes brancas da casa. Conforme ilustrado no primeiro encontro com Phyllis, Neff é visualmente aprisionado de imediato pelo uso que Wilder faz da escadaria, que o encarcera entre seus balaústres. Além do mais, durante este primeiro encontro com Phyllis, a câmera o filma bem do alto, o que fortalece Phyllis visualmente diante do condenado vendedor. Todas as táticas visuais por parte de Wilder que salientamos acima diminuem a força do personagem masculino e adensam o poder de sua contraparte feminina. Uma sensação de aprisionamento por parte do protagonista masculino também é ilustrada em Crepúsculo dos deuses. Joe Gillis, assim como Walter Neff, está preso num universo criado pela fêmea em seu próprio lar. A mansão de Norma é repleta de fotos de si mesma, há muitos espelhos emoldurados em cada cômodo, uma imensa escadaria com balaústres que lembram barras de presídio ocupa o centro da mansão, e objetos de seu passado enchem o resto da casa e cercam Gillis por todos os lados. Os movimentos manuais elaborados e dramáticos de Norma também dão Aspectos do filme noir em Pacto de sangue e Crepúsculo dos deuses
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a ilusão de uma aranha tecendo sua teia, nela emaranhando sua vítima para devorá-la quando bem entender. As roupas, os presentes, o quarto e a alimentação que ela providencia para ele atuam como atrativos dos quais ele não consegue se livrar e, portanto, condena-se ao aceitá-los. Gillis chega a recusar o verdadeiro amor de uma mulher mais jovem e mais bela, preferindo o universo poderoso e materialista que lhe é oferecido pela antiga estrela do cinema silencioso. A necessidade imperiosa de dinheiro que Gillis tem, conforme vemos ao longo das cenas de abertura de Crepúsculo dos deuses, satisfaz-se quando ele encontra Norma Desmond. Seu estilo de vida altera-se com esta nova fonte de ganho monetário, porém sua moral está corrompida e ele está portanto condenado pelo enlace da mulher fatal. Pacto de sangue e Crepúsculo dos deuses são dois filmes que exibem aspectos característicos, tanto estilísticos quanto temáticos, do filme noir. Billy Wilder emprega iluminação, ângulos de câmera e todos os outros aspectos da mise en scène, bem como o uso de uma narração em primeira pessoa para complementar a ambiência sombria destes filmes. Os motivos de aprisionamento em ambos os filmes, bem como as ilustrações de trapaça, ganância, luxúria e imoralidades apenas reforçam a noção do poderio feminino sobre os personagens masculinos dominados. Estes dois clássicos de Billy Wilder são excelentes exemplos do universo imoral e sombrio representando pelo filme noir. Texto publicado originalmente pelo portal de Jack Ferdman www. jackferdman.com. Traduzido por Ismar Tirelli Neto.
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Bode expiat贸rio, Holocausto e macarthismo em Inferno n潞17 Sander Lee
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A versão cinematográfica de Inferno nº 17 (1953) baseou-se declaradamente na bem-sucedida produção da Broadway realizada por Donald Bevan e Edmund Trzcinski. No entanto, como de hábito, Billy Wilder reescreveu boa parte do material original ao adaptá-lo do teatro para o cinema. Trabalhando com Edwin Blum, Wilder criou uma história que transcende o mistério cômico no qual se baseia. Neste ensaio, aponto algumas das implicações filosóficas do filme e afirmo que ele pode ser lido como um estudo dos fatores sociais que muitas vezes resultam em formas de bode expiatório, como as que tiveram lugar tanto durante o Holocausto como no período do macarthismo, época em que o filme foi produzido e lançado. O filme começa com uma narração em off, recurso favorito de Wilder. Cookie (Gil Stratton), nosso narrador, reclama de todos os filmes de guerra que focam os heróis vitoriosos, os “fuzileiros voadores”. Por que não fazer um filme sobre os outros participantes “reais” da guerra, ele pergunta, os perdedores, os caras que foram feridos e passaram a guerra em campos de prisioneiros? Wilder sinaliza então que esse vai ser um tipo diferente de filme hollywoodiano sobre a II Guerra Mundial; não será mais um filme sobre soldados superando adversidades a fim de derrotar nazistas ou japoneses inumamos e maus. Cookie é um desses perdedores, um homem fraco e manso que se agarra a Sefton, seu protetor, interpretado por William Holden. Como tantos protagonistas dos filmes de Wilder, de Walter Neff, em Pacto de sangue (1944), a Joe e Jerry, em Quanto mais quente melhor (1959) ou C. C. Baxter, em Se meu apartamento falasse (1960), Cookie e Sefton são marginais, levados por forças além de seu controle. Enquanto Cookie lida com seus medos tornando-se escravo de Sefton, Sefton é um cínico aproveitador, sempre se arriscando em um jogo em que geralmente sai perdendo. A certa altura, Sefton confessa que nem sempre foi assim. Ele admite que, quando chegou ao alojamento, era ingênuo e confiante. Mas logo descobriu que havia entrado em terreno selvagem, onde só os fortes e os espertos sobrevivem. Se não pudesse ser o primeiro, então certamente Lecus non et delessequi audae coriore
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seria o segundo, mesmo que isso significasse fazer negócios com qualquer um, inclusive com o inimigo. Ao longo do filme, os outros americanos do Alojamento 4 veem Sefton e Cookie como escória, cúmplices vis que entregariam qualquer um em troca de um ovo ou uma garrafa de vinho. À medida que o filme avança, a opinião deles sobre Sefton só piora, ele não é apenas mais um tratante inescrupuloso, é um verdadeiro traidor que entregou Manfredi (Michael Moore) e Johnson (Peter Baldwin). O soldado americano que melhor representa a atitude geral em relação a Sefton é Duke, interpretado por Neville Brand. É ele que diz o que os outros estão pensando sobre Sefton; e, quando as evidências indicam que Sefton é o traidor, é Duke que incita o linchamento. De certa forma, o filme pode ser lido como um confronto entre filosofias rivais, entre duas maneiras radicalmente diferentes de ver o mundo. Para Duke, Hoffy (Richard Erdman) e o resto, o mundo é um lugar preto no branco, preenchido com mocinhos e bandidos. Contanto que eles ajam da maneira esperada, os americanos do alojamento, incluindo Price (Peter Graves), são todos bons, e os alemães, todos maus. Os melhores e os mais confiáveis são aqueles que se exibem, vociferando patriotismo e desafiando abertamente os alemães em tentativas de fuga fadadas ao fracasso. Sefton vive em um mundo muito mais sombrio. Para ele, o Stalag 171 é apenas um microcosmo do mundo como um todo, um mundo de mentiras e fingimento, no qual slogans de liberdade e igualdade mascaram uma realidade baseada em preconceitos e jogos de poder. O mundo de Sefton é o mundo do cinema noir (um gênero que Wilder ajudou a inventar com Pacto de sangue). Aqui é cada um por si, os fracos estão à mercê dos poderosos, e a esmagadora maioria está atolada em uma moral escrava, aceitando as homilias douradas dos poderosos. Essa atitude é talvez melhor ilustrada 1 Stalag, abreviação de Stammlager, era o termo alemão que os nazistas usavam para designar campos exclusivamente de prisioneiros de guerra, administrados de acordo com as normas da Convenção de Genebra de 1929. O título original do filme, Stalag 17, faz referência a esse termo. [N.E.]
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pelo desprezo de Sefton por Dunbar (Don Taylor). Enquanto Duke e os outros veem Dunbar como um herói por seus inteligentes e corajosos atos de sabotagem, Sefton só o vê como um filho privilegiado de família abastada, alguém que nasceu com todas as oportunidades. É significativo que Wilder faça de Dunbar um tenente, enquanto todos os outros americanos são sargentos, uma sugestão clara de diferença de classe. O personagem Oberst von Scherbach, interpretado por Otto Preminger, reconhece imediatamente essa divisão. Como o oficial alemão interpretado por Erich von Stroheim em A grande ilusão (Jean Renoir, 1937), um filme que Wilder obviamente admira, Von Scherbach é rápido em reconhecer as semelhanças de classe entre ele e Dunbar. Ele se desculpa por colocar um oficial em um alojamento com subalternos, ainda que temporariamente, e, mais tarde, não se surpreende ao saber que o oficial foi responsável pelo ato inteligente de sabotagem. Por outro lado, o mundo mudou para os alemães desde a I Guerra Mundial de A grande ilusão. Ao contrário do oficial alemão desse filme, quando Von Scherbach convida Dunbar para seu escritório para se aquecer junto à lareira, o propósito não é beber e ter uma conversa de alto nível, Von Scherbach quer torturá-lo para obter informações. Von Scherbach claramente compartilha da visão de mundo de Sefton. Ele diz a Dunbar que sua família já ocupou uma posição de prestígio na sociedade alemã, por gerações orgulhosa e fielmente serviram como oficiais da cavalaria. Mas agora, em um novo mundo, a tecnologia os tornou obsoletos. Ele e seus colegas oficiais foram reduzidos a burocratas e guardas de prisão. Enquanto antes seus coturnos de cano longo e couro preto eram sinal de autoridade e patente, agora ele os usa apenas para bater seus calcanhares quando recebe ordens de seu superior por telefone. Desesperado para recuperar uma posição de poder, Von Scherbach não tem escrúpulos em torturar Dunbar para obter informações, não por uma questão de patriotismo alemão, mas unicamente para avançar em sua carreira: “Von Scherbach: Você vai ser interrogado pelo Estado-Maior. Quando chegar a parte sobre sua prisão, tenho certeza de que não se esquecerá de me dar o devido crédito.” Bode expiatório, Holocausto e macarthismo em Inferno nº 17
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“Dunbar: Só quero dormir. Não durmo faz três dias!” “Von Scherbach: Vai se lembrar do nome, Scherbach, Von Scherbach!” Apesar de desinteressante, von Scherbach não é um tradicional vilão nazista hollywoodiano. Ele é nitidamente muito inteligente, e sua sagacidade afiada rivaliza com a de Sefton. Como Sefton, Von Scherbach é apenas uma peça de uma grande engrenagem, tentando sobreviver e talvez ficar um pouco à frente do jogo. Schulz, interpretado por Sig Ruman, também é apresentado de uma forma mais complexa que o vilão alemão habitual. Ele também mostra sinais genuínos de inteligência e sagacidade, permitindo até mesmo que algum ceticismo político transpareça. Em uma cena importante à qual retornaremos, o pessoal do Alojamento 4 (excluindo significativamente Cookie e Sefton) coloca bigodes postiços de Hitler, fingindo ter aceitado a doutrinação nazista, sem perceber que eles já aceitaram a versão americana. Diante de um mar de pequenos Hitlers, Schulz murmura para si mesmo: “Um führer é o suficiente!”. Quando a televisão americana transformou Inferno nº 17 na comédia ofensiva Guerra, sombra e água fresca, obviamente, todos os alemães tornaram-se palhaços, enquanto os americanos adquiriram inteligência e astúcia (bem como patente). Mas, no original, os alemães é que são inteligentes, e os americanos são enganados repetidas vezes. Von Scherbach, Schulz e Price enrolam Hoffy e Dunbar, presumivelmente seus equivalentes americanos em patente e autoridade. O parceiro de Dunbar, Marko (William Pearson), pode ser bom em fazer imitações de estrelas de cinema, mas nunca lhe ocorre que Price possa estar fazendo uma imitação de um americano, embora esteja ciente do fato de que foi principalmente seu encorajamento que levou Dunbar a confessar seu papel na sabotagem e do fato de que há um espião alemão no alojamento. Dado que essa confissão levou à situação presente de Dunbar, é de uma estupidez monumental revelar a informação que o condenaria à morte como sabotador simplesmente para impressionar Price. O débil motivo dado por Price para perguntar sobre essa informação vital deveria ter sido imediatamente visto como suspeito. Qual necessidade poderia ter Price de criar um detonador para uma bomba68
-relógio estando detido em um campo de prisioneiros de guerra? O plano de espionagem dos alemães é tão engenhoso que Sefton só o descobre por acaso, quando, deitado em sua cama sentindo pena de si mesmo, nota a sombra do fio de energia. Armado com essa pista, Sefton só consegue descobrir a trama porque reconhece que os alemães são inteligentes. Ao contrário de Hoffy e dos rapazes, Sefton tem feito negócio com os alemães, então ele sabe que, apesar de suas diferenças, os alemães são pessoas comuns, dotadas de todas as virtudes e fragilidades humanas. No final, Sefton liberta Dunbar não por patriotismo, heroísmo ou mesmo apreço (até na fuga ele zomba de Dunbar por conta de sua riqueza). Sefton faz isso porque gosta das novas possibilidades e sabe que agora deve sair do alojamento. Para Sefton, a única coisa pior do que ser um traidor e ser desprezado por isso é estar no papel de “herói”. Nós vemos essa transformação ocorrer quando Sefton desmascara Price. Quando Sefton esbofeteia Price, que cai, todos no alojamento se surpreendem. Desse ponto em diante, Sefton será sempre visto como o salvador, aquele que finalmente foi mais esperto que os alemães. Tendo feito tudo que podia para reforçar sua má fama no alojamento, Sefton agora ressente claramente o culto ao herói brotando nos olhos dos outros. Esse ponto é marcado quando Sefton usa a barba por fazer de Duke para acender um fósforo. Duke fica com medo, mas sorri. Antes, Sefton não fazia nada certo, agora ele não consegue fazer nenhum mal. Sefton não quer fazer parte disso e o deixa claro quando diz a seus companheiros em seu último discurso que nunca mais quer ver qualquer um deles novamente. Se se encontrarem na rua, ele quer que o ignorem. Não suporta a ideia de que ele e os outros possam fingir que eles foram amigos no passado e que ele foi um grande herói. Como o além-do-homem nietzschiano que claramente caracteriza, Sefton não sente nada além de apatia por seus companheiros, e tudo que quer deles é ressentimento. No final do filme, nos são mostradas as reações dos que ficaram no campo depois da fuga bem-sucedida. Quando vira o cadáver e vê que é Price e não Dunbar, Von Scherbach olha para Schulz e apenas suspira. Bode expiatório, Holocausto e macarthismo em Inferno nº 17
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Ambos têm experiência o suficiente para entender que sua boa sorte tinha que acabar eventualmente. Nesse suspiro, pode até haver um sinal de que eles essencialmente sabem que esse é o começo do fim. Antes, na transmissão de rádio, ouvimos detalhes da Batalha do Bulge. Os prisioneiros americanos se desesperam com a notícia. Por outro lado, Schulz se gaba do sucesso alemão no campo de batalha e até sugere que, do jeito que a guerra está caminhando, provavelmente chegará aos EUA antes dos americanos. Mas nós, espectadores, sabemos do seu engano. As audiências de 1953 certamente estavam cientes de que a Batalha do Bulge foi o último suspiro dos alemães antes de caírem aos pés das poderosas forças aliadas. Em poucos meses, a guerra na Europa estaria terminada e o Stalag 17 libertado. O poder está prestes a mudar de mãos, e em breve serão Schulz e Von Scherbach que olharão para cima, do fundo do poço. A última cena do alojamento mostra o renovado otimismo dos americanos. Cookie está em seu beliche assobiando “When Johnny Comes Marching Home” com um brilho de idolatria em seus olhos. Enquanto antes ele era pouco tolerado pelos outros, agora ele é o sumo sacerdote da nova religião, o Seftonismo. Ele foi o único que esteve certo o tempo todo, apesar do fato de o filme ter deixado claro que a devoção anterior de Cookie a Sefton era baseada exclusivamente em interesse próprio e não em um reconhecimento perspicaz das excelentes qualidades de Sefton. O rei (Price) está morto, viva o rei (Sefton)! Sob os elementos do filme que acabamos de discutir há um subtexto ainda mais pessimista, que vai ao cerne da problemática suscitada pela ascensão nazista. A questão fundamental levantada repetidamente, desde a compreensão pública do grau e extensão dos horrores do Holocausto, manteve-se a mesma. Como isso pôde acontecer em uma cultura supostamente civilizada? Como pôde o mundo germânico de Mozart, Bach, Beethoven, Kant, Goethe, Mahler e Freud ter degenerado em algo tão maligno? Existe alguma falha intrínseca à natureza alemã? Teria toda uma cultura enlouquecido? 70
Wilder nos dá sua resposta na estrutura desse filme, uma vez que a história de Inferno nº 17 é a história dos alemães tornando os judeus bodes expiatórios. Da forma como apresenta isso, no entanto, são os americanos que caem em um preconceito estúpido, enquanto os alemães exercem o papel de aliados após a I Guerra Mundial. Como os alemães depois de Versalhes, os prisioneiros americanos passaram, da noite para o dia, de um povo orgulhoso e autônomo a perdedores oprimidos e humilhados por seu pior inimigo. Sua prosperidade e ordem social de antes foram destruídas pela derrota. Afastados de seus líderes tradicionais, os americanos devem viver em uma estrutura de poder que é imposta por seus conquistadores, que desejam que eles permaneçam fracos e sem liderança. A autoridade de Hoffy sobre os outros é tão ineficaz quanto a dos líderes da República de Weimar, e seu status econômico é igualmente reduzido. Incapazes de entender por que todas as tentativas de reafirmar sua autonomia falham (a captura de Manfredi e Johnson, a perda do rádio), eles desesperadamente vão em busca de uma desculpa, qualquer desculpa que lhes permita recuperar um pouco de dignidade. Quando Duke começa sua campanha para culpar Sefton, os outros estão inicialmente céticos, mas se mostram tolerantes com seus ataques. Ninguém se dispõe a defender o direito de Sefton de ser diferente. Conforme as coisas esquentam, eles se tornam cada vez mais abertos às acusações de Duke. Afinal, Duke aponta, em meio às calamidades que sofriam, que Sefton parece sempre se dar bem, que Sefton conhece todos os caminhos. Pessoas como Sefton são como vermes, sempre capitalizando as desgraças das pessoas “reais”, as pessoas de valor. Se as coisas vão mal, deve ser Sefton o traidor, aquele que está apunhalando-os pelas costas. Sefton nem sequer finge ser como os outros, e, se o fizesse, todos nós seríamos capazes de desmascará-lo. Pessoas como Sefton são todas iguais e merecem qualquer tipo de punição. Não basta apenas excluir Sefton da comunidade, não é o suficiente insultá-lo regularmente, mesmo que participemos voluntariamente das diversões criadas por ele, como as corridas de rato ou os jogos de azar. Sefton merece ter sua propriedade desaproBode expiatório, Holocausto e macarthismo em Inferno nº 17
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priada e usada para o benefício de toda a comunidade. Vamos trocar seu vinho pelo rádio, e é melhor que ele não reclame! Finalmente, quando as coisas vão realmente mal, os responsáveis líderes americanos, como Hoffy, cedem completamente a Duke e permitem que Sefton leve uma surra coletiva, sem benefício de julgamento ou oportunidade de defesa, exatamente como no caso dos judeus em relação aos alemães. Depois da surra, ficamos sabendo que Hoffy tentou transferir Sefton para outro alojamento, mas nenhum o aceitou (a Alemanha também não conseguiu encontrar países dispostos a receber os judeus em meio à depressão). Não tivesse Sefton desmascarado Price, as coisas continuariam de mal a pior; provavelmente Hoffy e os rapazes executariam Sefton para o bem do alojamento e como punição justa por seus crimes de traição. Como os cultos alemães permitiram o Holocausto? A resposta de Wilder é nos mostrar que um alojamento de rapazes americanos decentes pode ser levado a semelhantes atos de preconceito se submetido a um período de poucos meses de privação moderada. Afinal, as condições no Stalag 17 não eram realmente tão ruins. Embora a comida não fosse excelente, ninguém parecia estar morrendo de fome. Não havia sinais de doenças graves não tratadas. Os presos podiam usar um forno – até o momento em que eles o usaram para esconder o túnel – e tinham combustível o suficiente para manter o alojamento aquecido. Em outras palavras, sabemos que em 1944 os alemães estavam indo mal na guerra, mas os prisioneiros estavam relativamente bem, especialmente quando comparamos sua condição com a do alemão médio durante a década de 1920 e começo da década de 1930. Apesar do tom obviamente sarcástico, de certa forma acreditamos em Schultz quando ele professa afeto por seus “meninos”. De todo modo, essas privações menores e o sarcasmo de Schulz e Von Scherbach são fardos pequenos quando os comparamos com o sofrimento inimaginável dos prisioneiros de campos muito diferentes, lugares como Dachau e Auschwitz. Assim, quando os rapazes se passam por “bons Adolfinhos” na cena mencionada anteriormente, estão muito mais próximos da verdade do 72
que imaginam. Dado o histórico de Wilder como refugiado judeu, primeiro na Europa germânica e depois em Hollywood, e a perda de sua mãe no Holocausto, ele tem o direito de dizer o que os outros podem considerar ofensivo; que qualquer um pode agir como os alemães sob semelhante ou até menor provocação. Isso não é de forma alguma uma defesa dos alemães. Nunca saberemos o quanto Wilder foi afetado pelo Holocausto. Ele sabia claramente qual seria seu destino se tivesse ficado em Viena, que foi a escolha de sua mãe. Wilder não está defendendo os alemães, ele está denunciando todos nós, especialmente aqueles que presunçosamente afirmam que coisa semelhante não poderia acontecer aqui, não no “bom e velho EUA”, onde há a aceitação da Carta de Direitos e a liberdade de acreditar no que cada um desejar. É importante lembrar que esse filme foi produzido e lançado no início da década de 1950. Não é por acaso que o verdadeiro traidor dos valores norte-americanos tinha sido Price, o chefe da “segurança”. Pois, naquele momento, homens encarregados de funções semelhantes, ou seja, os membros do Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara (HUAC – House Un-American Activities Committee) se ocupavam da segurança americana privando os cidadãos do direito de ser diferentes, de maneira bastante similar à descrita no filme. Como Sefton, no entanto, Wilder não é nenhum herói. Mesmo que eu argumente que essa é a verdadeira mensagem do filme, Wilder a esconde sob comédia e enredo suficientes para não ofender os caça-comunistas. Imagino que ele não quisesse correr o risco. Texto publicado originalmente pela revista Senses of Cinema. Traduzido por Luis Fernando Furtado.
Bode expiatório, Holocausto e macarthismo em Inferno nº 17
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Billy Wilder e os censores: Pacto de sangue, Quanto mais quente melhor e outros filmes controversos nos EUA e na Europa. DaniĂŤl Biltereyst
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Billy Wilder tem uma importância significativa na história da censura em Hollywood. Embora não estivesse interessado em ser canonizado em um Valhala de diretores cultuados que possuíam uma lista completa de filmes proibidos, muitos de seus filmes desafiaram intensamente a censura interna dos grandes estúdios. Trabalhando segundo as regras dos estúdios e se comunicando com grandes audiências, a obra de Wilder permanece especial no sentido de que ela conseguiu desafiar os padrões morais que os estúdios hollywoodianos haviam adotado nos anos entre as guerras e que continuaram a adotar até a década de 1960. A PCA – Production Code Administration [administração do código de produção] (1934-1968), frequentemente chamada de Escritório de Hays (ou de Breen), foi a organização central da MPPDA –Motion Picture Producers and Distributors of America [distribuidores e produtores de cinema dos Estados Unidos] e era dirigida por Will Hays; a PCA exigia que os diretores submetessem seus filmes à aprovação e frequentemente supervisionava os tratamentos, fazia roteiros detalhados com diálogos e finalizava o filme, que eventualmente recebia um selo. É impressionante como os filmes americanos de Wilder ajudaram a modificar a forma como o cinema lidava com tabus sexuais (A incrível Suzana, 1942; Pacto de sangue, 1944), alcoolismo (Farrapo humano, 1945; A mundana, 1948), assassinato (Pacto de sangue, Crepúsculo dos deuses, 1950), assassinato coletivo (Inferno nº 17, 1953), adultério (Pacto de sangue; O pecado mora ao lado, 1955; Se meu apartamento falasse, 1960; Avanti... Amantes à italiana, 1972), questões de exploração sexual (Crepúsculo dos deuses), homossexualismo e travestismo (Quanto mais quente melhor, 1959) e prostituição (Irma la Douce, 1963). Embora frequentemente liguem seu nome a comédias comerciais água com açúcar, Wilder produziu filmes de uma grande variedade de gêneros, passando ao largo da autorregulação hollywoodiana. Seus filmes populares e farsescos confundiram muitos críticos, que o acusaram de ser cínico, vulgar e de mau gosto, ignorando o poder subversivo por trás de filmes cheios de anarquia, excesso e caricaturas grotescas. Em diversas entrevistas – outra arte que cultivava –, Wilder expressou abertamente sua resistência a qualquer tipo de censura e falou sobre Lecus non et delessequi audae coriore
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Lecus non et delessequi audae coriore
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o papel do censor no seu trabalho. Ele com frequência se referia ao jogo de gato e rato que jogava com o “excelentíssimo executor da censura na indústria cinematográfica”, Joseph I. Breen (STAGGS, 2002, p.33), com seu sucessor, Geoffrey Shurlock, e com outros representantes da PCA. Uma de suas estratégias era recusar-se a enviar o roteiro completo, embora mudasse cenas ou diálogos posteriormente. Wilder manifestou diversas vezes sua admiração por Ernst Lubitsch, outro mestre das narrativas indiretas, dos diálogos agudos e da ação sugestiva, com quem colaborara na segunda metade da década de 1930. Lubitsch ensinara Wilder não só a escapar de censores sem violar os códigos internos, mas também a usar as restrições da censura como uma força produtiva e para estimular a imaginação do público. Ao omitir informações específicas (por exemplo, uma cena de sexo), Lubitsch demonstrara como se certificar de que “o público adicionará informação por conta própria” (LALLY, 1996, p.73). Wilder admitiu: “Aprendi com Lubitsch que uma cena entre dois amantes na manhã seguinte diz muito mais sobre seu comportamento sexual do que efetivamente mostrá-los fazendo sexo; e faz a história progredir” (PRELUTSKY, 2001, p.186). Apesar de dizer que “a censura é sempre estúpida”, Wilder achava que involuntariamente ela exercia um efeito positivo: “Ela naturalmente nos estimula a enganá-la. Pode-se dizer talvez que é por essa razão que os filmes de Lubitsch são tão cheios de graça. Porque ele teve que dar um jeito de fugir da censura” (VANDAELE, 2002, p.270). Anos mais tarde, quando a censura interna se tornou mais frouxa, embora ainda crítico da posição paternalista, conservadora e tacanha do censor, Wilder comentou com ironia nostálgica que “há momentos em que gostaria que a censura voltasse, porque acabou a diversão, era divertido jogar com eles” (STAGGS, 2002, p.34). Apesar desse retrato de alguma forma simpático, é importante reconhecer o alto impacto que a PCA, a Legião da Decência americana e suas contrapartes estrangeiras exerceram no cinema, bem como o papel da autocensura. Este artigo examina como os filmes mais canônicos de Billy Wilder foram censurados nos EUA e na Europa. Além dos arquivos da PCA, me basearei em registros originais de censura, nas correspondências in78
ternas entre censores e nos arquivos religiosos (católicos) de classificação, focando especialmente a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha e uma série de outros países europeus. Vou me ater a Pacto de sangue e Quanto mais quente melhor, e argumentarei que Wilder não confrontou somente a PCA; suas tentativas sutis de transgredir as fronteiras aceitas de representação imagética também resultaram em uma resposta severa dos censores europeus.
A estrada para Pacto de sangue As primeiras experiências de Wilder com a censura interna ocorreram um ano após ter saído da Europa e ido para Hollywood. No verão de 1935, a Gaumont British Picture Corporation pediu a opinião da PCA sobre uma possível refilmagem de Semente do mal (1934), a estreia de Wilder como diretor (com Alexandre Esway). O tema – um playboy de Paris que tinha ligações com uma gangue de ladrões de carro – era inaceitável para a PCA; só aprovariam se o filme fosse completamente reescrito. A PCA argumentava que havia violação do Código de Produção em diversos aspectos, incluindo a demonstração dos métodos utilizados pelo personagem criminoso (SIKOV, 1998, p.111). Apesar da colaboração com Charles Brackett na concepção do roteiro, Wilder refinou ainda mais sua arte de contornar as suscetibilidades do Escritório de Hays. Particularmente, os filmes importantes nesse aspecto foram Ninotchka (1939), de Lubitsch, e Meia-noite (1939) e Levanta-te, meu amor (1940), de Mitchell Leisen. O último – sobre uma aventura amorosa entre um piloto (Ray Milland) e uma repórter (Claudette Colbert) na Guerra Civil Espanhola e na Segunda Guerra Mundial – levantou várias questões controversas com relação à política e à diplomacia internacional (a Paramount teve medo de lançá-lo em alguns de seus mercados estrangeiros). Alguns dos diálogos vibrantes de Wilder e Brackett foram vetados pela PCA, especialmente o da cena extremamente problemática em que Milland é visto em um banheiro privativo com dois outros personagens masculinos. Em certo momento, um dos homens olha para Milland, que Billy Wilder e os censores
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está numa banheira, e comenta: “Não sabia que você era judeu”. Essa fala teve que ser removida e, para Breen, que escreveu a respeito da cena numa carta para Hays, essa era “a nova baixaria dos pretensos entretenimentos visuais” e “a mais chocante exibição de mau gosto consumado já vista numa tela de cinema” (Ibidem, p. 147). A fúria de Breen advinha da visão da cena de “um dos homens [...] sentado em uma privada” (itálico no original), seguida de “diversas cenas de Ray Milland na banheira se barbeando”, além do fato de que “os ângulos da câmera nessa série de cenas são de tal forma que é quase possível ver a genitália de Mr. Milland”. Embora a cena tenha sido reeditada, uma série de referências críticas à situação de guerra foi mantida sem comentários (LALLY, 1996, p.95). Colocar alguns assuntos abertamente ofensivos no roteiro de forma a evitar que outros cortes fossem feitos tornou-se uma das estratégias de Wilder nas suas difíceis negociações com a PCA. Com uma reputação crescente de um time talentoso de roteiristas, Wilder e Brackett se tornaram “escritores executivos“ na Paramont, o que resultou em mais autonomia e responsabilidade, bem como nos primeiros filmes de Wilder como diretor. Embora os primeiros filmes hollywoodianos de Wilder ainda fossem feitos sob a supervisão de Breen, houve poucos problemas com a PCA. A incrível Suzana – comédia sobre uma mulher (Ginger Rogers) que se disfarça de garota de 12 anos para conseguir comprar uma passagem de trem para casa, de Nova York para Iowa – teve alguns problemas de classificação, principalmente porque se pensou que o filme sugeria pedofilia. Breen também fez objeções a partes específicas do roteiro de Cinco covas no Egito (1943) – thriller de espionagem que se passa durante a guerra –, por exemplo, a ideia de um cadáver na cama de uma mulher; mas o filme foi um sucesso, e Wilder estava agora pronto para um trabalho mais sério.
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A PCA e Pacto de sangue Em 1943, a novela policial de James M. Cain Pacto de sangue, publicado inicialmente na revista Liberty em 1935, ganhara reputação em Hollywood de ser “infilmável”. A história da adaptação do filme e de seus problemas com a censura remete à recusa inicial da PCA à história de Cain, que havia sido procurado por diversos estúdios para discutir a possibilidade de fazer uma versão cinematográfica do texto (BIESEN, 2005, p.96-123 / LALLY, 1996, p.125-139 / SIKOV, 1998, p.194-217). Em uma carta de duas páginas para L. B. Mayer da MGM, datada de 10 de outubro de 1935, Breen resumiu as violações que o conto cometia contra as cláusulas do Código. De acordo com Breen, Pacto de sangue tratava de “relações sexuais adúlteras e ilícitas”, descrevia “detalhes de um assassinato vicioso e frio” e os personagens principais eram “assassinos que burlavam a lei e morriam por suas próprias mãos”. De acordo com a carta, a primeira parte do conto estava “repleta de detalhes explícitos do planejamento do assassinato e da execução efetiva do crime”, enquanto a segunda versava sobre “os esforços bem-sucedidos dos criminosos para evitar a prisão e a punição, e culmina na decisão do homem de matar seu cúmplice”. No conto original, o crime é finalmente confessado aos oficiais da companhia de seguros, que decidem ocultar essa informação das autoridades legais, permitindo, portanto, a fuga do casal de assassinos. No fim, o casal, em desespero, comete suicídio. Breen concluiu que dado o “baixo nível geral e o tom sórdido... a história em discussão é extremamente censurável e, a menos que seja modificada materialmente, tanto em estrutura como em detalhe, toda consideração para sua adaptação deve ser rejeitada”1. Oito anos mais tarde, quando o conto ia ser publicado em livro, a Paramount reconsiderou a possibilidade de adaptar Pacto de sangue, enviando um novo pedido à PCA. A reação de Breen em março de 1943 foi idêntica 1 Carta de J. I. Breen para L. B. Mayer, 10 de outubro de 1935, Arquivos de Pacto de sangue, Arquivos da Administração do Código de Produção, Biblioteca Margaret Herrick, Academia de Artes Ciências Cinematográficas, L.A.
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à de 19352. Porém, o estúdio decidiu seguir adiante e, em setembro de 1943, o contato da Paramount na PCA, Luigi Luraschi, submeteu um roteiro parcial e um resumo. Surpreendentemente, a reação de Breen foi que fora alguns “itens menores... a história básica parece obedecer aos requisitos do Código de Produção”3. Sheri Chinen Biesen argumenta de modo convincente que essa mudança abrupta de atitude foi devido ao fato de que “a autocensura feita pela PCA na indústria hollywoodiana certamente diminuiu durante (e após) a II Guerra Mundial” (2005, p.97). Contudo, o fato de o resumo inicial, as versões posteriores do roteiro e o filme concluído não violarem mais o Código se deveu principalmente às mudanças importantes feitas no roteiro adaptado. Após Brackett ter manifestado sua inteira desaprovação da história, Wilder completou o roteiro com o escritor de estilo direto Raymond Chandler, autor de romances policiais. O roteiro desenvolvido modificou diversas partes do conto, e essas mudanças podem ser interpretadas como sinais de boa vontade em relação à PCA. Uma delas foi a eliminação do suicídio do protagonista, um ato que grupos religiosos objetavam fortemente. Na abordagem deles, Walter Neff mata seu cúmplice, após a confissão em um ditafone em seu escritório. Nesse momento, o chefe de Neff e o investigador da companhia de seguros Barton Keyes (interpretado por Edward G. Robinson) estão se aproximando dele e ouvem suas últimas palavras. Wilder e Chandler decidiram dar mais força ao personagem de Keyes, que é, como indica Ed Sikov, “não só uma força moral no filme mas também um personagem paternal, fraternal e avuncular, tudo em um só” (1998, p.204). Em contraste com a história original, o investigador da companhia de seguros não ajuda os assassinos a fugir. Essas intervenções, bem como a intensidade da confissão – que dá o sentido derradeiro de moralidade e a força motora narrativa ao filme (narrado em flashback) –, foram os fatores-chave 2 Carta de J. I. Breen para L. Luraschi, 15 de março de1943, Arquivos de Pacto de sangue, PCA. 3 A última se referia à exposição inaceitável do corpo feminino (“Essa toalha… deve se estender até abaixo dos joelhos”) e a detalhes da exposição do assassinato do marido. Carta de J. I. Breen para L. Luraschi, 24 de setembro de 1943, Arquivos de Pacto de sangue, PCA.
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do roteiro que possibilitaram a aprovação de Breen. E, mais importante, decidiram que os protagonistas deveriam ferir mortalmente um ao outro, cumprindo, portanto, as exigências do Código: os criminosos devem pagar por suas transgressões. Finalmente, a PCA fez objeções à inclusão da cena do julgamento de Neff e de sua execução numa câmara de gás. Breen, que já tinha se referido a essa cena na sua primeira carta sobre o roteiro em setembro de 1943, repetiu, “como lhe aconselhamos anteriormente... os detalhes da execução... parecem excessivamente horríveis do ponto de vista do Código; certamente serão removidos pelas comissões de censura”4. Esse final controverso, filmado por Wilder para ser incluído no filme, foi no fim removido (NAREMORE, 1998, p.81-95).
Poder, negociação, produtividade Entre setembro e dezembro de 1943, a Paramount e a PCA trocaram mais de 20 cartas, todas indicando que não havia grandes obstáculos, o que é estranho para um filme que é considerado importante na história da censura do cinema americano (BIESEN, 2005, p.98 / SCHUMACH, 1964, p.63). Retomando a questão do poder, poderíamos argumentar que Wilder (e Chandler) modificou a estrutura geral da história (sem suicídio), modificou ou incluiu ações (confissão) e remodelou personagens (Keyes) para satisfazer a moralidade do Código. É verdade que eles deixaram detalhes de fora (por exemplo, o assassinato ou o descarte do cadáver) e até mesmo acataram demandas explícitas de Breen e deixaram cenas-chave de fora (a câmara de gás). Por outro lado, Pacto de sangue foi ainda assim um filme corajoso e ousado em que os dois protagonistas e amantes conspiram para cometer um assassinato, e o adultério é examinado com um grau incomum de abertura e candura. O jogo de gato e rato e as inteligentes estratégias de negociação permitiram a Wilder circundar estipulações específicas 4 Carta de J. I. Breen para L. Luraschi, 1º de dezembro de 1943, Arquivos de Pacto de sangue, PCA.
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e demandas explícitas da PCA (por exemplo, a toalha de banho não cobria completamente os joelhos de Phyllis); ele se tornou especialista na arte de não mostrar atos específicos, deixando para a audiência o trabalho de imaginar o que o Código não permitia (por exemplo, sexo e assassinato). Os diálogos de Chandler e Wilder ficaram famosos por sua alusão indireta ao sexo. “Em Pacto de sangue, tínhamos que ter muito cuidado com o sexo”, Wilder mais tarde relatou em uma entrevista, mas “o fato de dormirem juntos era toda a motivação por trás do filme” (HESLING, 1991, p.30). Em uma cena-chave no apartamento de Walter, o vemos fumando um cigarro “pós-coito” em um sofá na sala de estar, enquanto Phyllis passa batom e pinta seus lábios de vermelho. O mesmo tipo de sutileza “de bastidores” foi utilizado na cena do assassinato: Wilder manteve o rosto de Phyllis em primeiro plano enquanto o amante estrangulava o marido até a morte. “Mantivemos o rosto dela em primeiro plano enquanto ela dirigia e sabíamos o que estava acontecendo fora da cena” (ALLYN, 2001, p.136). O fato de a reação facial de Phyllis mostrar uma mistura de prazer, excitação e satisfação dá ao filme uma dimensão grotesca de sadismo e perversão sexual que ia diretamente de encontro ao espírito do Código. Visto dessa perspectiva, Pacto de sangue foi sutil ao contornar o julgamento original de 1935; Breen o havia rejeitado por causa do “assassinato frio e vicioso”, da “relação sexual adúltera e ilícita” e do “baixo nível geral e do tom sórdido”5 do filme. Quando James M. Cain assistiu a Pacto de sangue, comentou: “É um dos melhores filmes jamais feito” e “ele viola praticamente todas as regras impostas pelo Escritório de Hays – é sobre uma mulher casada que se apaixona por outro homem, mata seu marido, tenta receber o dinheiro do seguro de forma fraudulenta... O filme apresenta essas pessoas de uma maneira simpática, compassiva e compreensiva” (HANNA, 1944, p.13). Em outra entrevista, Wilder disse: “Não tivemos problemas com o Código de Produção” (ALLYN, 2001, p.136). Contudo, Wilder certamente teve que levar em con5 Carta de J. I. Breen para L. Luraschi, 15 de março 1943, Arquivos de Pacto de sangue, PCA.
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sideração o Código, transigindo e buscando outras soluções criativas. Foi claramente um processo de negociação por parte de ambos os lados; “A adaptação de Pacto de sangue foi influenciada pelo Código de Produção”, aponta Biesen, mas também o filme “levou o Código de Produção de Obras Cinematográficas de 1930 ao seu limite e abriu as portas para a produção futura de filmes controversos e sombrios” (2005, p.97-98).
Os censores europeus e a igreja Embora Pacto de sangue não tenha sido um sucesso imediato de público, foi um sucesso de crítica e recebeu diversas indicações para o Oscar. A PCA, cuja missão era evitar que os estúdios tivessem problemas com comissões de censura locais e estrangeiras, conseguiu que o filme passasse pelas comissões de censura locais sem ser editado6. O filme pareceu não ter problemas com a Legião da Decência – que era frequentemente mais severa e não aceitava representações de adultério ou qualquer outro tipo de sexo ilícito –, ela classificou Pacto de sangue de “A-II” (para adultos e adolescentes). O filme foi recebido de forma menos favorável do outro lado do oceano. Na Europa, onde existia uma miríade de comissões de censura e classificação, Pacto de sangue recebeu classificações mais severas do que nos EUA, sendo indicado na maior parte das vezes apenas para adultos. O filme veio inicialmente para a Inglaterra, onde foi lançado durante a guerra. A BBFC – British Board of Film Censors [comissão britânica de censores de filmes] examinou o filme de Wilder em julho de 1944 e o liberou sem cortes, dando ao filme um certificado “A”, o que significava que uma criança podia assisti-lo se acompanhada de um adulto7. Dois meses mais tarde, os censores irlandeses rejeitaram Pacto de sangue, mas o aprovaram mais tarde 6 Para a censura em Nova York, Maryland, Kansas, Ohio e por outras comissões entre fevereiro e julho de 1944, ver Arquivos de Pacto de sangue, PCA. 7 O filme ainda tem a mesma classificação, ver: www.bbfc.co.uk. Os arquivos originais da BBFC foram destruídos por um incêndio.
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após apelo da Paramount (ROCKETT, 2004, p.125, 403). Uma das primeiras comissões de censura a examinar o filme após a guerra foi a Commission de Classification francesa, uma comissão estatal oficial de controle de filmes com a reputação de ser relativamente tolerante com violência e sexo, embora menos tolerante com relação à política e à imagem da França. A Commission de Classification não viu problemas em Pacto de sangue, que foi liberado na França para “todos os públicos”. Nos meses e anos seguintes, Pacto de sangue foi lançado em países europeus com uma variedade de títulos. Enquanto na Holanda o filme foi apresentado aos censores com o título de Bloedgeld (dinheiro de sangue), o distribuidor alemão lançou o filme com o título de Frau ohne Gewissen (mulher sem consciência). Na Itália, Pacto de sangue tinha uma clara conotação de pecado e fé (La Fiamma del Peccato / a chama do pecado). Esses títulos provocativos não facilitaram a carreira de Pacto de sangue. Na maior parte dos países europeus, crianças e adolescentes não podiam ver o filme de Wilder. Na Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia, por exemplo, os censores proibiram jovens com menos de 16 ou 18 anos, respectivamente, de ver Pacto de sangue, uma decisão que prejudicou o sucesso comercial do filme, pois não pôde ser considerado entretenimento para a família. Os vereditos dos censores expressavam sua aversão, ou sua ansiedade em relação, à cena do assassinato, a imoralidade da protagonista e o grotesco geral do filme8. Um caso em especial foi a Holanda, onde a Centrale Commissie voor de Filmkeuring decidiu em abril de 1947 que o filme não poderia ser exibido para pessoas com menos de 18 anos. Embora a comissão nacional de controle argumentasse que se tratava de um “filme honesto”, Bloedgeld exibia um “acúmulo de coisas abjetas, assassinato, fraude e adultério”. Alguns membros da comissão achavam que o filme não merecia qualquer classificação indicativa e fizeram um apelo, resultando em sua 8 Arquivos de Pacto de sangue, Arquivo da Comissão Belga de Controle Cinematográfico, Bruxelas; Arquivos de Pacto de sangue (com informação sobre Dinamarca, Finlândia, Noruega, Suécia), Arquivo do Conselho Dinamarquês de Mídia para Crianças e Adolescentes, Copenhagen.
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total proibição (em junho de 1947). É interessante notar como os argumentos originais de Breen sobre o conto reapareceram no relatório holandês. Embora a comissão tenha louvado Pacto de sangue sob um ponto de vista técnico, seus membros argumentaram que esse “filme cínico” mostra “a técnica do crime de tal forma que ele pode ser usado em cursos universitários que tratem de lei criminal ou em encontros de mafiosos”. A proibição holandesa durou oito anos. Uma versão reduzida do filme foi apresentada em março de 1955 com um título menos provocativo, De Volmaakte Moord (o crime perfeito), e recebeu uma classificação indicativa de 18 anos9. Na Alemanha, finalmente, onde a indústria cinematográfica havia instalado uma comissão autorreguladora, a Freiwillige Selbstkontrolle (FSK), o filme foi lançado somente em 1950. A FSK acabou se revelando bem severa, especialmente com esse tipo de filme noir ou “Filmes Sensação”, nos quais, acreditava-se, poder-se-ia aprender “os truques de como elaborar ou executar um assassinato”. Frau ohne Gewissen recebeu uma classificação etária de 16 anos e não podia ser exibido em feriados10. Em países europeus com maioria católica, grupos religiosos eram ativos em vários campos do cinema. Inspirados na Legião da Decência americana, esses grupos visavam influenciar a imprensa na sua cobertura cinematográfica, bem como tentar pôr pressão nas comissões oficiais de censura e nos cinemas comerciais, em que filmes “doentios” eram exibidos. Essas organizações católicas nacionais de cinema, que eram coordenadas em escala internacional via OCIC – Organisation Catholique Internationale du Cinéma [organização católica internacional de cinema], também instalaram comissões de censura ou classificação. Os arquivos e relatórios internacionais desses poderosos grupos de pressão acabaram rendendo boa leitura: Pacto de sangue foi muito elogiado esteticamente, mas foi muito atacado em termos de moralidade. A Organização Católica francesa, por 9 Arquivos de Bloedgeld, arquivo no N0666 (1º de abril de 1947; 12 de junho de 1947); arquivo de De Volmaakte Moord [Pacto de sangue], arquivo no X0333 (2 de março de 1955), Arquivo da Centrale Commissie voor de Filmkeuring (CCF), Nationaal Archief, Den Haag. 10 Arquivo de Frau ohne Gewissen [Pacto de sangue], Protocolo no 1097, 28 de março de 1950, FSK, Wiesbaden.
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exemplo, se entusiasmou menos do que os censores oficiais: em janeiro de 1946, classificaram o filme muito negativamente, deram-lhe um 5 ou “proibido” (6 era o código mais alto). Os censores católicos franceses (e críticos de cinema) condenaram Pacto de sangue por seu tema central, que tratava de adultério e assassinato, e por retratar uma “mulher ignóbil”11.
Em terreno mais movediço Após Pacto de sangue, filmes como Farrapo humano, que trata do alcoolismo, A mundana, uma comédia sobre um comitê do congresso americano que investigava a moral das tropas americanas em Berlim, e o agora clássico Crepúsculo dos deuses só aumentaram sua reputação de contestador do Código. Esses três filmes foram sucesso crítico e comercial, mas suas produções se mostraram tão difíceis quanto a de Pacto de sangue. Wilder e Brackett continuaram a submeter pequenas partes dos seus roteiros ao Escritório de Breen, que urgiu com os roteiristas de Farrapo humano para que minimizassem qualquer sugestão de homossexualidade e prostituição, bem como a representação realística do alcoolismo (LALLY, 1996, p.144 / SIKOV, 1998, p.217228). No caso de A mundana, a PCA objetou a ridicularização de membros do congresso americano e argumentaram que alguns trechos deveriam ser eliminados (LALLY, 1996, p.182 / SIKOV, 1998, p.276-277). “Crepúsculo dos deuses foi um filme mais ousado do que Pacto de sangue”, disse Wilder, um filme que o fez usar novamente a estratégia da “fragmentação”. Wilder e Brackett passaram o roteiro inteiro para a PCA somente após as filmagens terem sido finalizada. Antes disso, Breen reclamara com regularidade que o material estava “ainda incompleto” e reiteradamente perguntava sobre o caso entre os dois protagonistas, mas no fim aprovou o roteiro12. 11 Também em outros países como Áustria, Bélgica, Alemanha e Holanda, católicos se mostraram mais severos com o filme do que os censores oficiais, rotulando-o de filme perigoso. Arquivos de Assurance sur la mort [Pacto de sangue], Arquivo de 194648, DOCIP/OCIC, Bruxelas. 12 Carta de J. I. Breen para L. Luraschi, 24 de maio de 1949, Arquivo de Crepúsculo dos deuses, PCA. 88
O papel da PCA de proteger os filmes dos membros da MPPDA contra outras censuras se mostrou relativamente bem-sucedido, pelo menos nos EUA. Farrapo humano, por exemplo, passou em quase todos os lugares sem cortes, exceto na Pensilvânia e em Ohio, onde cortes foram exigidos. No Reino Unido, a BBFC exigiu dois cortes, incluindo o de uma cena-chave que mostrava a razão da dipsomania de Ray Milland, e o classificou de “A” (MATHEWS, 1994, p.125). O filme ganhou também um subtítulo (Diário de um dipsomaníaco), e trailers especiais advertiam as audiências britânicas a respeito das “sequências deprimentes e realísticas contidas nesse diário singular que contém uma moral bastante poderosa” (LALLY, 1996, p.160). A censura de Crepúsculo dos deuses foi, novamente, mais problemática na Europa do que nos EUA, onde ele passou por todas as comissões de censura locais, exceto em Ohio, onde uma cena teve que ser retirada (a cena entre Norma, a estrela de cinema mudo, e o gigolô Gillis, depois de ele encontrar Norma deitada na cama)13. Na Europa, os censores deram-lhe a classificação “somente para adultos”, mas em alguns países os censores foram ainda mais duros. Na Irlanda, Crepúsculo dos deuses foi inicialmente proibido, porque se centrava na “paixão de uma ex-estrela de cinema de meia-idade rica” por um jovem, mas o filme foi mais tarde exibido com um corte após o apelo do distribuidor (ROCKETT, 2004, p.127). No Reino Unido, a BBFC também cortou um trecho crucial que revelava que Norma havia sido casada com seu mordomo (MATHEWS, 1994, p.125). Na maioria dos outros países europeus, Crepúsculo foi proibido para crianças e não pôde ser considerado entretenimento para a família. Os censores de um modo geral fizeram algumas críticas vagas ao “relacionamento doentio” entre os dois protagonistas e a “descrição detalhada do assassinato”14.
13 Certificado Ohio, 27 de maio de 1950, Arquivo de Crepúsculo dos deuses, PCA. 14 Arquivo de Crepúsculo dos deuses, arquivo no T0011 (8 de janeiro de 1951), Arquivo da CCF, Nationaal Archief, Den Haag.
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Novos desafios, flexibilização gradual, pragmatismo Durante o início da década de 1950, a moralidade autoimposta da PCA gradualmente entrou em conflito com os interesses do público e das condições da nova indústria. Além da ameaça da televisão e da crescente competição com filmes estrangeiros mais maliciosos, o sistema de censura foi desafiado por produções cinematográficas independentes e de estúdio que exploravam temas mais adultos e sensacionalistas. Mesmo antes de os filmes estrangeiros começarem a invadir as bilheterias, o Código foi desafiado por filmes adultos como Uma rua chamada pecado (1951) e Boneca de carne (1956), de Elia Kazan, e por Ingênua até certo ponto (1953), de Otto Preminger. Este último não recebeu selo de aprovação, mas foi lançado e revelou-se comercialmente bem-sucedido. A vitória de Preminger sobre a PCA o inspirou a abordar temas mais ousados em filmes inovadores, tais como vício em drogas em O homem do braço de ouro (1955), estupro em Anatomia de um crime (1959) e homossexualismo em Tempestade sobre Washington (1962). Em 1954, Breen foi substituído pelo menos dogmático e mais pragmático Geoffrey Shurlock, um protestante que tinha pouca relação com a Legião da Decência e que se atrevia a se posicionar contra. Na década de 1950, Wilder fez filmes ainda mais controversos, incluindo A montanha dos sete abutres (1951), que continha ataques ao jornalismo sensacionalista, Inferno nº 17, um drama de guerra centrado nos prisioneiros de um campo de concentração alemão, e O pecado mora ao lado e Quanto mais quente melhor, ambos estrelados por Marilyn Monroe. A maioria desses filmes passou, apesar de tudo, pelo sistema de controle regular da PCA, e Wilder se envolvia bastante no processo de negociação15. Os arquivos da PCA sobre O pecado mora ao lado, por exemplo, contêm correspondências entre Breen, Shurlock e o representante da Fox no Escritório, bem como memorandos internos e resumos dos encontros. Em um memorando de 15 Para mais detalhes sobre a intervenção da PCA nesses e em outros projetos de Wilder, ver LALLY, 1996, p.224-226 e SIKOV, 1998, p.318-319, p.338-339, p.369-371.
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17 de novembro de 1953, Shurlock escreveu que a peça na qual o filme O pecado mora ao lado se basearia “viola completamente a cláusula do Código que determina que o adultério nunca deve ser tema de comédia ou motivo de riso”16. Wilder novamente iniciou o jogo de enviar pedaços do roteiro ao Escritório, esperar pela aprovação e finalmente receber o certificado da PCA. O certificado foi claramente o resultado do encontro em primeiro de março de 1955 entre, de um lado, Shurlock e sua equipe e, de outro, os representantes da 20th Century Fox. Em uma circular para Wilder e o produtor Charles Feldman, o representante da Fox na PCA, Frank MacCarthy, resumiu o acordo ente o estúdio e a PCA; nela ele se referiu às mudanças que deveriam ser feitas no filme: a substituição de seções de diálogo, a retirada de referências a glândulas e o acordo de que “das três cenas mostrando a saia da garota sendo soprada para cima pelo ar do metrô, uma deveria ser eliminada”. A carta concluía: “O escritório de Shurlock vai emitir o selo com a condição de que façamos essas modificações”17. Wilder, que queria ser mais franco com relação à ideia de que a garota (Monroe) e o homem casado seduzido (Tom Ewell) dormiram juntos, sentiu que tinha perdido mais uma batalha. Para satisfazer a Legião da Decência, a Fox removeu algumas sequências, mas isso não impediu que o filme recebesse a classificação “B” (“moralmente objetável em parte para todas as audiências”), devido ao julgamento de que “ele trata de uma maneira farsesca e leviana da fidelidade marital e é sugestivo em figurino, diálogos e situações”18. O filme foi proibido na Irlanda porque foi considerado “indecente e inadequado para exibição”19, ao passo que outros censores europeus classificaram-no de filme para adulto.
16 Memorando de G. Shurlock, 17 de novembro de 1953, Arquivo de O pecado mora ao lado, PCA. 17 Carta de F. McCarthy para B. Wilder e C. Feldman, 1º de março de 1955, Arquivo de O pecado mora ao lado, PCA. 18 Memorando da Legião da Decência, 30 de junho de 1955, Arquivo de O pecado mora ao lado, PCA. 19 Arquivo de censura da Irlanda, 1º de novembro de 1955, Arquivo de O pecado mora ao lado, PCA.
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Quanto mais quente melhor e os censores Em meados da década de 1950, Wilder decidiu não submeter mais roteiros a PCA; isso resultou em filmes mais provocadores como Quanto mais quente melhor (1959), Se meu apartamento falasse (1960) e Irma la Douce (1963). Consideremos o primeiro, agora um filme mítico, produzido pela Mirisch Company; é claro que há pouca coisa a dizer a respeito do confronto e da negociação de Wilder com a PCA. O filme finalizado não passou pelo guia de “proteção” da PCA, foi apresentado ao Escritório e recebeu a aprovação de Shurlock em fevereiro de 195920. Antes de nos voltarmos para os problemas e as reclamações de grupos de pressão e comissões estrangeiras de censura, é interessante olhar para o filme do ponto de vista de um censor. Quanto mais quente melhor é agora considerado uma comédia clássica, em que Wilder usa uma ampla variedade de meios para transgredir a representação hegemônica de gênero e sexualidade. O filme é notório, por exemplo, pelos diálogos maliciosos e alusões indiretas ao sexo, pelas referências claras à relação sexual (Curtis dizendo “Dei-lhe três transfusões”), ao sexo oral (Monroe falando em “pegar a extremidade quentinha do pirulito”) e à masturbação (Curtis dando a Lemmon o conselho de “puxar o freio de emergência”). O filme mostra homens e mulheres se beijando, mulheres tirando a roupa e exagera a representação dos seios de Marilyn Monroe, mas o filme de Wilder revoluciona também o que era moda no meio cinematográfico da década de 1950, pois ele cruza as fronteiras aceitas de gênero em termos de vestimenta e preferências sexuais. Vemos Jack Lemmon (como Jerry ou “Daphne”) e Tony Curtis (como Joe ou “Josephine”) vestidos em roupas de mulher e se comportando como mulheres, e há muitas outras referências claras a homossexualismo, lesbianismo e bissexualismo. O exemplo mais claro é a cena final na qual Lemmon revela ao milionário Osgood, que se apaixonara por “Daphne” (o alter ego feminino de Jerry), que ele é um homem. A reação de 20 Carta de G. Shurlock para W. Mirisch, 10 de fvereiro de 1959, Arquivo de O pecado mora ao lado, PCA.
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Osgood (“Bem, ninguém é perfeito”) é agora considerada uma cena clássica que cruza fronteiras sexuais e representa o ato de sair do armário. Embora Quanto mais quente melhor seja uma antologia de travestismo, desvio de gênero e tenha diálogos cheios de duplo sentido, ele contém muito mais itens para irritar censores. O filme de Wilder, por exemplo, mostra um amplo espectro de violência com uso massivo de armas de fogo e todos os tipos de crime e corrupção, como jogatina e comércio ilegal de álcool. Quanto mais quente melhor contém uma brincadeira bastante mórbida com cadáveres, por exemplo, bem no início do filme, quando gângsteres estão disfarçados de agentes funerários, usando um caixão para esconder bebidas. O tema continua, culminando em um massacre com submetralhadoras e em gângsteres mortos; os dois protagonistas se escondem debaixo de um bonde contendo um cadáver e fogem. O filme lida também cinicamente com uma série de questões sérias, como o poder da máfia, o desemprego e o alcoolismo (Monroe explica: “Não pense que sou uma beberrona. Posso parar quando quiser. Só que não quero”.) Quanto mais quente melhor, que foi lançado com o slogan “Um filme quente demais para ser posto em palavras”, recebeu o certificado da PCA em fevereiro de 1959, mas logo teve que se deparar com uma longa série de reclamações e protestos de outros censores e grupos de pressão. O primeiro da fila foi, é claro, a Legião da Decência. Em uma carta para Shurlock, o gerente geral Thomas Little anunciou em março de 1959 que Quanto mais quente melhor fora classificado de filme “B” ou “moralmente censurável” porque era “ofensivo para os padrões tradicionais e cristãos de moralidade e decência”. Argumentando que a Legião deveria o ter classificado de “C” ou “censurado” e que “o filme era a maior causa de preocupação para a Legião na sua avaliação classificatória de filmes”, Little reclamou do excesso de “referências ao homossexualismo e ao lesbianismo”21. No mesmo mês, o bispo McNulty, presidente do comitê episcopal de cinema, rádio e televisão, escreveu uma carta raivosa para Eric Johnston, sucessor de Hays 21 Carta de T. Little para G. Shurlock, 5 de março de 1959, Arquivo de Quanto mais quente melhor, PCA.
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na MPAA, reclamando que esse filme sobre “travestismo, homossexualidade e lesbianismo” violava em flagrante o espírito e a letra do Código22. Na sua resposta, Shurlock teve que defender a decisão da PCA, indicando que “simplesmente não houve qualquer reação adversa; nada além de elogios a esse filme hilário”, e travestismo “sempre fez parte dos programas padrões do teatro”23. Agora que Wilder não negociava mais com a PCA, mas ainda recebia um selo, não estava claro como as comissões estatais de censura reagiriam. A Comissão do Kansas, pelo menos, decidiu cortar uma cena (a cena de sexo no iate), enquanto a Comissão de Memphis classificou-o de filme para adultos24. Por toda a Europa, Quanto mais quente melhor não foi distribuído como entretenimento para a família, exceto na França onde os censores deramlhe o certificado “para todos os públicos” (26 de maio de 1959). Em todos os outros países, a classificação indicativa foi mais severa: “para adultos” no Reino Unido (3 de março de 1959), 18 anos na Alemanha (12 de maio de 1959) e na Holanda (30 de junho de 1959), e 16 anos na Dinamarca (agosto de 1959), na Suécia (26 de junho de 1959) e na Finlândia (3 de julho de 1959). Em outros países, os censores decidiram fazer cortes no filme. Foi o caso da Noruega, onde o filme recebeu a classificação indicativa de 16 anos e teve uma cena cortada (17 de julho de 1959), enquanto na Itália (setembro de 1959) o filme foi mutilado em duas cenas (o longo beijo no iate, e Monroe vestindo uma camisola muito curta) (BALDI, 2002, p.48). Na Espanha de Franco, uma companhia local tentou baixar o tom da sexualidade desviante na versão dublada do filme para fazer Quanto mais quente melhor passar pela censura. Na versão espanhola, referências possivelmente subversivas ao homossexualismo foram suavizadas na tradução, mesmo assim Quanto mais quente melhor permaneceu proibido até 1973 (VANDAELE, 2002, p.294, 299). Nas dé22 Carta do Bispo McNulty para E. Johnston, março de 1959, Arquivo de Quanto mais quente melhor, PCA. 23 Carta de G. Shurlock para T. Little, 18 de março de 1959, Arquivo de Quanto mais quente melhor, PCA. 24 Diversos registros de censura, março de 1959, Arquivo de Quanto mais quente melhor, PCA.
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cadas de 1960 e 1970, o filme foi relançado em diversos países; os distribuidores tentaram então obter classificações etárias mais favoráveis. Mesmo nesse período, Quanto mais quente melhor continuou a ser um material controverso. Na Alemanha, por exemplo, a classificação etária foi de 18 para 16 em 1971, e a FSK argumentou que “essa mistura de história de amor e crime ainda pode confundir os jovens”25. Dada a reação da Legião, estava claro que as comissões católicas europeias não seriam menos críticas. As audiências católicas foram certamente dissuadidas de ver o filme, principalmente mediante críticas negativas ao filme e classificações desencorajadoras em jornais e revistas religiosos. A Organização Católica de Cinema Italiana, por exemplo, classificou severamente A qualcuno piace caldo (“E” ou “proibido”); suas contrapartes belga, holandesa, francesa, alemã e espanhola fizeram ressalvas semelhantes, a maioria denunciando a violência, a sexualidade e a vulgaridade do filme26.
Conclusões Na década de 1960, o sistema de censura interna de Hollywood aos poucos chegou ao fim, resultando em um sistema de classificação da MPAA, que entrou em vigor em novembro de 1968. A contribuição de Wilder para esse processo fora fundamental, não com Quanto mais quente melhor, filme que apareceu em um momento em que a disposição social estava mudando e as estruturas da censura em vigor desde a década de 1930 estavam ruindo. Quanto mais quente melhor contribuiu pelo menos para uma atitude mais tolerante em relação à sexualidade e para a decisão da PCA, em outubro de 1961, de atenuar sua posição sobre a representação do homossexualismo. Filmes posteriores, como Irma la Douce e Beija-me, idiota (1964), ajudaram 25 Arquivo de Manche mögen’s heiB [Quanto mais quente melhor], Protocolo no 19682, 4 de abril de 1971, FSK, Wiesbaden. 26 Arquivo de Certains l’aiment chaud [Quanto mais quente melhor], 1959, Arquivo de DOCIP/OCIC, Bruxelas.
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igualmente no processo, porque foram, ao mesmo tempo, bem-sucedidos, controversos e censurados por grupos de pressão. Dada sua habilidade de contornar censores e sua disposição para evitar interdições, Wilder não é com frequência, ou o é apenas marginalmente, representado nos panoramas acadêmicos de história da censura, pelo menos naqueles que focam as grandes batalhas contra a censura27. Em outros campos mais especializados do estudo de cinema, no entanto, há o reconhecimento de que Wilder foi pioneiro em desafiar os censores e transgredir as fronteiras da representação. É, por exemplo, o caso dos trabalhos sobre os filmes noir (BIESEN, 2005 / NAREMORE, 1998) e a representação do Holocausto (HAGGITH; NEWMAN, 2005) e dos estudos sobre homossexualismo (RUSSO, 1981 / BARRIOS, 2003), em que filmes como Pacto de sangue, Inferno nº 17 e Quanto mais quente melhor receberam um status de quase clássicos. Em retrospecto, reconhece-se que a carreira de Wilder promoveu mudanças no sistema autorregulador de Hollywood. Com efeito, a posição de Wilder enquanto auteur, um conceito questionável que estabelece cânones e hierarquias, pode muito bem ser definida em torno da ideia de que ele era provocador, às vezes subversivo, e frequentemente transgressivo, pois seus filmes buscavam ultrapassar as fronteiras da representação das questões morais e sociais contemporâneas. Wilder produziu um cinema de transgressão, menos no sentido formal ou estilístico associado ao cinema underground e mais no nível de conteúdo e atitude. Este artigo focou o papel da censura e das comissões de classificação na obra de Wilder, por meio da qual “o mestre cínico com raízes vienenses” aprendeu a arte de negociar, contornar e usar produtivamente a censura (CIMENT, 1971, p.9). Não importa se os impedimentos causados pela censura constituíam formas de responsabilidade social ou resistência reacionária, um cinema de transgressão sobrevive mediante a recusa de acei27 Wilder não é mencionado, por exemplo, em panoramas gerais tais como o enciclopédico Forbidden Films, de Dawn B. Sova, ou o Dictionnaire de la Censure, de Jean-Luc Douin, enquanto outros trabalhos acadêmicos incluem apenas breves referências a um punhado de seus filmes (por exemplo, Dame in the Kimono, de Leff & Simons, e Censored, de Mathews).
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tar certezas estipuladas pela ordem dominante. Nesse sentido, a censura constituiu uma parte vital da arte de transgressão de Wilder. Alguns dos filmes mais canônicos de Wilder se beneficiaram do guia moral interno, embora tenham se deparado com problemas quando atravessaram o oceano. Ao entender a recepção histórica e as formas diferentes de censura nos EUA e na Europa, chegamos à conclusão de que a maior parte dos censores europeus não era mais progressista ou tolerante do que as contrapartes americanas. A censura estatal não foi a única força disciplinar incontestável no meio cinematográfico. Tanto nos EUA como na Europa, havia uma competição entre as diferentes forças que tentavam disciplinar materiais controversos e transgressores. Como este ensaio indica, a censura era o resultado da inter-relação de várias instituições, se estendendo da autorregulação da indústria cinematográfica e dos censores estatais aos grupos de pressão de inspiração ideológica que se envolviam nas negociações com diretores, indústria cinematográfica e moralidade pública. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLYN, J. “Double Indemnity: A Policy That Paid Off”. In HORTON, Robert (ed.), Billy
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“Eu acho realmente elegante que alguém tenha imaginação. Eu não tenho imaginação nenhuma. Tenho muitas outras coisas, mas nenhuma imaginação.” A Garota (Marilyn Monroe) em O pecado mora ao lado
“Não sou muito inteligente, eu acho. (...) Não, apenas tapada. Se eu tivesse algum cérebro, eu não estaria nessa banda ordinária de garotas.” Sugar Kane (Marilyn Monroe) em Quanto mais quente melhor
Lecus non et delessequi audae coriore
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Não é meramente o acaso que nos faz abrir esse texto com uma citação que fala justamente em “imaginação”. Partindo de suas primeiras aparições, que remetem ao final da década de 1940, Marilyn Monroe foi se estabelecendo como a mais duradoura figura de símbolo sexual entre os muitos que apareceram nas telas de cinema desde suas origens. Marilyn é um ícone eterno estampado em gerações eternas de homens e mulheres. Muitos destes, mesmo sem jamais ter visto um de seus filmes, reconhecem suas fotos ou criações feitas a partir delas (como os quadros de Andy Warhol, por exemplo) como determinantes de um padrão de beleza e sensualidade que persiste indefinidamente. Dentre todas as imagens icônicas de Marilyn, talvez a mais forte e persistente no imaginário popular ao longo de quase seis décadas foi criada por Billy Wilder: Marilyn num vestido branco de alças, com as saias levantadas pela passagem de ar num respiradouro do metrô. Essa imagem vem de uma sequência de O pecado mora ao lado, no qual Wilder, em 1955, dirigiu Marilyn Monroe pela primeira vez. A colaboração entre os dois seria retomada em Quanto mais quente melhor, de 1959. Mesmo tendo sido apenas um par de filmes, não é exagero dizer que estes muito provavelmente tenham sido os dois mais importantes que contaram com a figura de Marilyn desde a sua aparição inicial, uma quase figuração, em Idade perigosa (1947), de Arthur Pierson. Apesar de ter sido também dirigida por cineastas de prestígio como Howard Hawks, em O inventor da mocidade (1952) e Os homens preferem as louras (1953); Otto Preminger, em O rio das almas perdidas (1954); George Cukor em Adorável pecadora (1960); ou John Huston em Os desajustados (1961) – sem contar a pequena participação em A malvada (1950), de Joseph L. Mankiewicz foi Wilder quem melhor trouxe para as telas a encarnação da persona cinematográfica de Marilyn, misto de sensualidade e fragilidade, mulherão e criança, explorando limites até então não acessados de seu talento bruto como comediante. O pecado mora ao lado e Quanto mais quente melhor são os mais vistos até hoje dentre os 33 títulos da filmografia de Marilyn. Isso somado ao fato que o segundo é aquele que goza de maior prestígio como obra-prima, tendo sido eleito em mais de uma oportunidade como “a comédia mais engraçada” da história do cinema. 104
O pecado mora ao lado surge em um momento de transição na carreira de Wilder, quando este acabara de encerrar com Sabrina um longo contrato com a Paramount, estúdio para o qual trabalhou, primeiro como roteirista, depois como diretor, desde seus primeiros anos em Hollywood. Wilder estava também à procura de um novo parceiro fixo para escrever seus roteiros, atuando com colaboradores distintos desde o rompimento com Charles Brackett que se seguiu a Crepúsculo dos deuses. Era momento de explorar novos terrenos e assim lhe cai às mãos a adaptação de uma peça cômica que fizera sucesso na Broadway dois anos antes, da autoria de George Axelrod, que viria aqui a acompanhar Wilder como o corroteirista da vez. Parecia o material adequado para Wilder exercer sua ironia e humor ácido, herdados de seu mestre Ernst Lubitsch, brincando com as fantasias sexuais do homem americano, de classe média e meia-idade. Certo que havia concessões a serem feitas. Acostumado a um tratamento menos “espetaculoso”, Wilder se viu obrigado por razões contratuais com a 20th Century Fox, que naquele momento já tinha Monroe como um de seus maiores chamarizes de bilheteria, a trocar sua concepção inicial de um pequeno filme em preto e branco por um tratamento em cores e na amplitude do Cinemascope. Apesar de tudo, parece mesmo ter sido a ideia de trabalhar com Marilyn Monroe a mola propulsora para essa nova empreitada. Assim como faria cinco anos depois em Se meu apartamento falasse, Wilder abre O pecado mora ao lado com um prólogo debochado e sacana no qual introduz o cenário onde irá se desenvolver a ação (a cidade de Nova York, consagrada em seu espírito cosmopolita como arquetípica para qualquer cidade do mundo) e seu tema (o desejo masculino e a possibilidade de adultério), partindo da possibilidade dos homens permanecerem sozinhos na cidade enquanto suas famílias viajam em férias. As cenas iniciais na Grand Central Station, entupida pela turba que parte, mostram que Wilder, mesmo sem experiência anterior com o formato, já domina aqui a exploração da tela em Cinemascope, adequada ao retrato de multidões e espaços amplos, através de planos gerais. Mas, contrariando as palavras do grande Fritz Lang, que dissera que os formatos de Captando o frágil gigante: Billy Wilder e Marilyn Monroe
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tela larga só serviriam para retratar “cobras e cortejos fúnebres”, Wilder abandona a habitual abordagem grandiloquente do formato para centrar o restante de seu filme quase que somente num ambiente fechado, o interior de um apartamento, naquilo que poderia ser denominado como um “Cinemascope minimalista”, revertendo a seu favor as imposições do estúdio. Mesmo sendo, ao longo de sua carreira, um cineasta de obra muito mais ligada ao texto de seus excelentes roteiros, e pouco afeito a experiências ou mesmo a requintes visuais, é no mínimo exemplar a forma pela qual cada ângulo da residência de Richard Sherman (Tom Ewell) é ocupado pelo quadro e explorado pela câmera na mise en scène de Wilder e na fotografia de Milton Krasner, numa abordagem essencialmente cinematográfica, driblando a maior parte do tempo a rigidez das marcações de um texto inicialmente teatral. Voltando à sequência da estação de trens, é da multidão que emerge Richard Sherman, o protagonista de O pecado mora ao lado, que poderia ser qualquer um daqueles que volta ao trabalho sem a família que partira temporariamente, deixando uma (falsa?) sensação de liberdade. Daí, tornamos ao nosso ponto de partida e a ideia de “imaginação”, pois são a mente e as fantasias de Sherman os determinantes de toda ação a seguir. O filme se passa em um tempo psicológico de Sherman, para quem a mera possibilidade de se tornar um adúltero ou mulherengo, ainda que por um curto período de tempo, parece entrar em contradição com o seu temperamento pacato e monogâmico. Sherman libera suas fantasias, mas a possibilidade de concretizá-las gera nele um intenso desconforto, pelas repressões inerentes tanto às pressões sociais e familiares quanto ao seu próprio caráter. E num momento em que todo um imaginário cinematográfico já se havia cristalizado no inconsciente popular, Wilder consegue refletir essa cristalização encenando os delírios de Sherman como filmes dos mais diferentes gêneros, da comédia ao melodrama, incluindo uma referência explícita a A um passo da eternidade (1953), de Fred Zinneman. Como é reforçado pela esposa de Sherman num desses delírios: “Você começa a imaginar em Cinemascope e em som estereofônico”. 106
Se é do cinema que surgem as mais diversas referências emocionais e visuais, não seria diferente quanto às referências femininas. Já naquela época, não havia outra referência de beleza e sensualidade tão intensa como Marilyn Monroe. Bom, podemos dizer que havia Ava Gardner, definida por Jean Cocteau como “o mais belo animal do mundo”. Só que Gardner era dona de uma beleza impositiva, quase violenta, que não deixava espaço para fragilidades, assustando, ou ao menos inibindo o homem comum. Marilyn era de uma beleza cativante, tesão acompanhado de doçura, deixando nos homens não somente a vontade de possuí-la, mas também de cuidar dela. E essa figura feminina que, em O pecado mora ao lado, literalmente se materializa para Sherman na imagem de Marilyn. Sua personagem é justamente isso, uma imagem, um arquétipo sem nome, a quem o roteiro se refere somente como “A Garota”. E ela surge para ele, aos 11 minutos de projeção, como uma aparição, uma sombra que toca a campainha por trás da porta e se materializa no corredor com o rosto e o corpo da mulher do lado que todos desejam e estaria agora de alguma forma acessível, mesmo que unicamente pela proximidade. Num segundo momento, a figura da “Garota” praticamente desaba sobre a cabeça de Sherman, na forma de um vaso que cai da varanda e na silhueta de uma Marilyn nua por trás das plantas. Daí por diante, torna-se inevitável que ela invada definitivamente o mundo de Sherman, numa figura que a cada momento passa a misturar ainda mais as fronteiras entre personagem e intérprete. Bem mais que uma atriz, Marilyn Monroe encarnava uma fortíssima persona cinematográfica, que, como já dissemos antes, trazia em si todo o amálgama de sensualidade bruta e fragilidade, potencializado em sua vida pessoal através de sua insegurança emocional e do comportamento bipolar que acabaram por drená-la e levá-la a uma morte tão precoce. Em O pecado mora ao lado, Wilder trabalha de maneira mais intensa o lado sensual, sem descuidar do lado frágil, que acabava, de certo modo, a tornando mais desejável e acessível aos Shermans da vida. Mesmo em seu comportamento aparentemente “desmiolado”, a “Garota” é dotada de uma determinação que acaba por conferir ao final do filme um pouco de seguCaptando o frágil gigante: Billy Wilder e Marilyn Monroe
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rança ao indeciso Sherman. De alguma forma, aquele mulherão imenso guarda em si a simplicidade de uma moça comum e companheira, que tem prazer em dedilhar o “bife” ao piano e desconhece a sofisticação harmônica de um Rachmaninoff. Mesmo sendo basicamente Marilyn, a “Garota” guarda parentesco com outra personagem fortíssima no imaginário cinematográfico e que tem em si o dedo de George Axelrod: a Holly Golightly de Audrey Hepburn em Bonequinha de luxo (1961), dirigido por Blake Edwards e roteirizado por Axelrod a partir de um livro de Truman Capote. A tão famosa cena do vestido levantado surge como a quintessência da transfiguração da figura marilyniana, em paralelo com todo o espírito do filme. O vestido levantado vem do prazer ao se refrescar do calor, e apesar da consciência do efeito demolidor que a visão de seu corpo causaria aos homens, essa exposição transmite um quê da pureza da personagem/ intérprete (ou seria intérprete/personagem?), que ainda consegue tirar satisfação das pequeninas coisas da vida. Como todo o filme, que bem pode ser interpretado como um grande delírio entre os muitos vindos da cabeça de Sherman, no qual não ficam claros os limites entre o que possa ter sido vivido ou imaginado pelo narrador. Fica na memória uma forte comédia de costumes que, não fossem as restrições inerentes à época, à política dos estúdios e ao próprio mercado, poderia ter sido um pouco mais ácida e bem mais sacana, deixando um certo gosto de frustração pelo final moralista (porém coerente com o conjunto) no qual Sherman não consuma uma relação física com a “Garota”. Seria uma maneira, ainda que ilusória, como nos devaneios do personagem, de sublimar a possibilidade de ter a deusa Marilyn em nossas camas. Como qualquer resultado de listas ou eleições do gênero, pode ser questionável o fato de Quanto mais quente melhor ser considerado o “filme mais engraçado de todos os tempos”, ainda mais vindo de Wilder, que teria outros sérios candidatos ao título, como A mundana, O pecado mora ao lado, Se meu apartamento falasse ou Cupido não tem bandeira. O certo é que se trata de um dos momentos mais marcantes da carreira de Wilder, selando aí a parceria com o corroteirista que o acompanharia até o final da carreira, I. A. 108
L. Diamond, aquele que melhor compreenderia sua mordacidade, seu espírito de ironia e deboche. Wilder consegue aqui impor sua concepção cinematográfica, principalmente ao uso da fotografia em preto e branco. Numa época na qual as comédias, em especial aquelas de uma primeira linha de produção, em que o filme se encaixa, já eram associadas à cor, Wilder opta justamente por não usá-la. Acertada decisão, uma vez que personagens e situações retratados no filme já seriam tão extravagantes que o uso da cor poderia vir a intensificar essa extravagância em demasia. Quanto mais quente melhor é um filme que exala perfeição por todos os poros, contrariando a máxima proferida pelo personagem de Joe E. Brown ao final do filme. Parte da justificativa para tal perfeição parece residir no fato que estamos diante de um dos momentos de sua obra em que Wilder exerceu uma das aplicações mais radicais de seu estilo, principalmente no que se refere aos diálogos irônicos e na exploração de um duplo sentido. E assim não podia deixar de ser, quando tudo parte de uma história centrada em dois homens que se vestem de mulher. O apelo dessa situação, por si só já convidativa ao riso, se amplia ao pensarmos que estes dois homens são vividos por Tony Curtis – já na época consagrado com um tipo recorrente, misto de galã e trapaceiro simpático, como nos trabalhos que fizera anteriormente com Blake Edwards, em especial Anáguas a bordo (1959) – e Jack Lemmon – então ainda visto essencialmente como um comediante. Suas atuações permanecem até hoje como inusitadamente carismáticas e, no que tange ao duplo sentido, Lemmon e seu Jerry/Daphne, encarnam a mais perfeita transcrição do conceito de “dúbio” na história do cinema, nesta comédia que só viria 23 anos depois a ter um par na excelência de seu jogo de subversão de gêneros, sexualidade e aparências com outro filme de Edwards, Victor ou Victoria? (1982). Wilder e Diamond concebem um filme que é ao mesmo tempo uma farsa de aparências e um ensaio sobre sobrevivência. Em Quanto mais quente melhor tudo parece existir em cima do duplo, há sempre dois lados para cada personagem ou cada questão tratada no filme, e isso não se limita ao fato dos protagonistas se travestirem. Toda essa duplicidade Captando o frágil gigante: Billy Wilder e Marilyn Monroe
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que caracteriza um jogo de máscaras e oposições, força motriz do filme, se faz presente bem antes de Curtis e Lemmon assumirem suas personalidades femininas. Já nas primeiras cenas, quando um discreto carro fúnebre vai se descortinar como o veículo de gângsteres que transportam armas sob os estofados e bebidas dentro de um caixão, temos aí traçada uma linha definindo que, nesse universo criado por Wilder, as coisas, por mais que se insinuem como óbvias, quase sempre não serão aquilo que parecem. E é assim que a necessidade vai determinar a aparência que deve ser tomada. No caso dos gângsteres, para driblar a polícia e vender sua bebida em tempos de Lei Seca. No caso dos músicos protagonistas, por uma questão de sobrevivência. Além de toda uma comicidade calcada em dilemas universais, vemos que outra porção significativa do carisma de Quanto mais quente melhor tem origem no fato dessa ser uma comédia com os pés firmemente fincados no universo do cinema. Gângsteres, pitadas de humor físico que remetem aos filmes silenciosos, amores “impossíveis”, citações paródicas assumidas – George Raft e os mafiosos que o consagraram – ou veladas – Tony Curtis imitando Cary Grant ao assumir a persona do milionário –, tudo vai se somando num conjunto magistralmente organizado por Billy Wilder. Voltando à questão da sobrevivência, é dessa suprema necessidade humana que parece advir uma das principais razões da empatia infinitamente duradoura dos protagonistas de Quanto mais quente melhor e, consequentemente, do filme como um todo. Se os personagens das comédias de Lubitsch exercem seus jogos de aparência por motivos aparentemente fúteis, temos aqui que a dupla de músicos vai cogitar ser aquilo que não é, a princípio para comer e pagar as contas, num segundo momento para preservar a vida, ameaçada pelos bandidos, após presenciar uma chacina. Por outro lado, se jogar com as aparências é ato essencial para sobreviver, temos na necessidade desse jogo o principal dilema de Sugar Kane (Marilyn Monroe), que se coloca como uma derrotada por não conseguir ser outra coisa que não ela mesma. E esse ela mesma é, assim como em O pecado mora ao lado, nada mais do que a própria Marilyn. 110
Os quatro anos que separam O pecado mora ao lado e Quanto mais quente melhor marcaram uma intensificação na insegurança e bipolaridade de Marilyn, e isso se refletiu não somente nos transtornos durante as filmagens (atrasos, repetição excessiva de cenas pelos erros da atriz), mas também em toda uma concepção da personagem Sugar Kane. Se a “Garota” era uma Marilyn que sublinhava a força de seu lado sensual e uma figura em quem as fragilidades estavam mais associadas a uma humanização de uma beleza idealizada, Sugar Kane, como o próprio nome diz, é a encarnação da doçura, mas ao mesmo tempo um poço de insegurança e fragilidade. Sua beleza, sensualidade e seu consequente efeito sobre os homens são, para ela, motivo de desconforto. No lugar de uma “Garota” que, ao seu modo, se impõe ao universo masculino, temos uma Sugar Kane que sonha com fama e riqueza (personificadas no falso milionário que Curtis encarna com o objetivo de seduzi-la), mas que na verdade sonha com uma vida simples e um amor verdadeiro. Assim como Marilyn, que brilhava nas telas, em contraste ao crescente ocaso de sua vida pessoal, é no palco que Sugar Kane mostra toda sua força enrustida. Em sua impactante entrada em cena, na estação de trem, quando já decorreram 25 minutos de cena, Sugar Kane parece estar executando uma performance para o público da estação. A Sugar frágil e verdadeira só se revela para a personalidade feminina de Curtis ao beber escondida no banheiro. Mas é mesmo ao dançar e tocar seu ukelele que Sugar/Marilyn se mostra um gigante capaz de engolir todo um universo à sua volta, como prova a arrepiante interpretação da canção “I’m Through with Love”. Ninguém como Billy Wilder conseguiu tão bem captar esse gigante em celuloide.
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A parceria entre Billy Wilder e Jack Lemmon se tornou uma das instituições sagradas da comédia de estúdio norte-americana. Poucas vezes encontramos exemplos de encontros tão amplamente memoráveis entre um ator e um diretor no cinema, a ponto de os filmes feitos em dupla terem ficado para a história posterior associados igualmente a ambos, ator e diretor, sem que o trabalho de um se sobreponha ao do outro (não importa quem os dirigisse, os filmes de Buster Keaton, por exemplo, permanecem, até hoje, como filmes de Buster Keaton, assim como os filmes de Alfred Hitchcock permanecem apenas como filmes de Hitchcock, não importa o quão recorrente sejam seus atores e atrizes favoritos). É um desses encontros especiais – como John Ford e John Wayne; como Werner Herzog e Klaus Kinski; como Blake Edwards e Peter Sellers – que parece, inclusive, ter uma aura maior do que os filmes são capazes de emanar individualmente. Billy Wilder e Jack Lemmon tiveram longuíssimas carreiras. Wilder dirigiu 27 filmes e, embora alguns de seus mais célebres sucessos tenham sido estrelados por Lemmon (em especial os dois primeiros, Quanto mais quente melhor, de 1959, e Se meu apartamento falasse, de 1960), quando eles trabalharam juntos pela primeira vez Wilder já tinha no currículo mais de 15 longas-metragens, entre eles alguns de seus títulos mais notáveis, como Pacto de sangue (1944), Crepúsculo dos deuses (1950), Sabrina (1954) e O pecado mora ao lado (1955). Jack Lemmon, por sua vez, teve papéis significativos, e muitas vezes principais, em mais de 50 longas-metragens para o cinema, em trabalhos dirigidos por autores não menos reputados, como os próprios John Ford (que selecionou Lemmon para Mister Roberts, filme de 1955 que lhe rendeu seu primeiro Oscar, embora o diretor tenha sido substituído por Mervin LeRoy durante as filmagens, após problemas com o elenco e uma emergência de saúde) e Blake Edwards (em quatro filmes por ele dirigidos e em outros em que assina o roteiro); George Cukor (Demônio de mulher, de 1954); Robert Altman (O jogador, de 1992; e Short Cuts – Cenas da vida, de 1993); Costa-Gavras (Desaparecido – Um grande mistério, de 1982) e Ettore Scola (Maccheroni, de 1985); além de papéis marcantes em filmes de relativa importância, como Um estranho casal (1968), de Gene Sacks, e O sucesso Lecus non et delessequi audae coriore
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a qualquer preço (1992), de James Foley. Apesar disso, os sete filmes em que ambos atuaram juntos – a saber, Quanto mais quente melhor; Se meu apartamento falasse; Irma la Douce (1963); Uma loura por um milhão (1966); Avanti... Amantes à italiana (1972), A primeira página (1974) e o último filme de Wilder, Amigos, amigos, negócios à parte (1981), tido por ambos como uma experiência a ser esquecida – de alguma forma atraíram um fascínio especial, a ponto de ofuscar inclusive a parceria mais duradoura e significativa de Wilder (um escritor em primeiro lugar, um diretor em segundo – palavras do próprio) com seu corroteirista I. A. L. Diamond, com quem escreveu 12 longas-metragens, entre eles, os sete estrelados por Lemmon. Constatado o inegável magnetismo do encontro, ao crítico resta voltar aos filmes munido de uma pergunta: por quê? Por que o trabalho de Wilder e Lemmon parece merecedor de um nicho à parte, embora eles não necessariamente representem sempre o melhor de ambas as carreiras (talvez a de Lemmon, mas certamente não a de Wilder, que fez com Lemmon alguns de seus melhores e de seus menos expressivos filmes)? Por que as antologias e listas, como a de melhores duplas de ator e diretor da história do cinema, lançada pela revista inglesa Empire em 2010, seguem reservando espaço cativo (no caso, o sexto lugar) ao encontro da dupla, enquanto o encontro representa uma fração tão específica da carreira de ambos? Uma vez que é impossível voltar no tempo e acompanhar a cristalização dessa mitologia em tempo real, o que resta fazer é voltar aos filmes, ao primeiro dos filmes, e buscar nos procedimentos o que poderia ter gerado essa marca de distinção.
O espectador ideal Quando mais quente melhor, 1959. Jack Lemmon faz o papel de Jerry, um contrabaixista de Chicago, em plenos Roaring Twenties, nome dado ao final da década de 1920, época do apogeu da Prohibition – Lei Seca que dizimou a vida noturna do país e, ao mesmo tempo, permitiu uma escalada 116
sem igual do crime organizado, culminando na figura de Al Capone. Gerald toca em um speakeasy – como eram chamados os hoje folclóricos bares ilegais da época, onde era possível comprar e consumir bebidas proibidas e que funcionavam como um mercado à parte – ao lado de seu parceiro, Joe (Tony Curtis). Até que uma batida policial invade o estabelecimento e os coloca na rua. Em um conjunto de acasos, os dois testemunham uma execução feita pelos gângsteres que controlavam o bar, e terminam jurados de morte. Com a cabeça a prêmio e sem um centavo no bolso, Jerry e Joe se travestem de Daphne e Josephine, para participar da Sweet Sue and her Society Syncopators, uma big band formada apenas por garotas (liderada por Sugar, interpretada por Marilyn Monroe), com um contrato com um resort na Flórida, o que os tiraria da miséria e dos olhares dos mafiosos. Apesar de, com o tempo, Jack Lemmon ter se tornado a figura masculina (mesmo que vestido de mulher) mais associada a Quanto mais quente melhor, o espectador desavisado não demorará a perceber que quem faz as honras de protagonista, aqui, é na verdade Tony Curtis. É ele quem bola os planos da dupla, quem busca saídas para as situações mais complicadas. É ele quem – índice cabal de protagonismo no cinema clássico de Hollywood – fica com a mocinha no final. Lemmon, ao contrário, é a escada para toda piada, o bode expiatório para todo desejo, o sujeito que, do princípio ao fim, pagará o preço necessário para que o amigo tenha todas as regalias de quem fica no centro do palco. Novamente a pergunta: por quê? Por que nos identificamos com esse personagem secundário, em vez de nos colarmos irredutivelmente junto aos passos do herói? Por que é Lemmon quem fica marcado na cabeça do espectador quando termina a projeção? Por que seu drama (e sua comédia) como coadjuvante permanece, hoje, tão mais forte do que a trama principal, de forma que o espectador anseie o tempo todo pela volta de Jerry à tela, travestido de Daphne, perseguido por um milionário que deseja se casar com ele(a)? Por quê? Ou, no que cabe à crítica: como? Como Billy Wilder consegue transformar uma figura aparentemente secundária em um personagem tão cativante que imprime como um protagonista? A arquitetura de um protagonista: Billy Wilder e Jack Lemmon
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Logo no princípio, quando Jerry e Joe tocam no speakeasy, uma primeira pista é dada. Após uma perseguição, com direito a tiroteio na rua e caixões vazando uísque pelos buracos dos tiros, Wilder mostra a preparação da ação policial antes de levar o filme para o bar, ou seja, antes de nos apresentar aos protagonistas do filme. Já chegamos lá dotados de privilégios, de informações que eles não têm, de forma que toda a sequência no bar seja uma distensão temporal à Hitchcock – embora, para Wilder, isso esteja longe de ser a preocupação central de seu cinema (ao contrário de Hitchcock), de forma que todo esse prólogo se resolve em cerca de 10 minutos. Pouco antes da polícia invadir, é Jerry quem percebe, do alto do palco, o distintivo do policial sentado em uma das primeiras mesas, usando o alfinete para acertar um charuto (como faria, anos mais tarde, a personagem de Walter Matthau contracenando com o próprio Lemmon, anunciando o que está por vir). Mas algo de mais significativo acontece pouco depois, por volta dos 18 minutos de filme, quando Joe convence a secretária da agência de músicos a lhe emprestar o carro para que os dois possam fazer um show em outra cidade. Quando Joe consegue o que quer, Jerry, até então de costas para a câmera, se vira e fala diretamente com o espectador, comentando a cena: “Isn’t he a bit of terrific?” (“Ele não é demais?”). Com essa pequena estratégia – um olhar para a câmera (registro naquele momento extremamente associado aos cinejornais, depois herdado pela televisão) e um comentário direto ao espectador, verbalizando o que ele poderia estar pensando –, Billy Wilder sela um pacto entre Jack Lemmon e quem está do lado de cá da tela do cinema. É um pacto que será mantido ao longo de todo filme e que reverberará em filmes posteriores da dupla. A mesma estratégia seria usada no ano seguinte por Jerry Lewis, em O mensageiro trapalhão (e se tornaria um dos recursos principais do ator), e reinterpretada com enorme sucesso anos mais tarde por Woody Allen, em Noivo neurótico, noiva nervosa (1977) – muito comentado, à época, como um recurso supostamente inovador –, e por John Hughes, em Curtindo a vida adoidado (1986), alçando Matthew Broderick ao posto de herói juvenil daquela geração. 118
Poucos tabus são tão caros a Hollywood quanto a quarta parede, e essa quebra, quando usada com sabedoria, tem efeito extraordinário. Dentro de um registro realista – como é o caso de Quanto mais quente melhor, por mais estranha que essa afirmação possa parecer –, olhar para a câmera é quebrar um contrato, um engodo com o espectador, mas, ao mesmo tempo, selar um outro pacto: nós, espectadores, passamos a ter um representante dentro do filme. É a mágica mais simples, mas de efeito parecido com a saída de Buster Keaton da tela do cinema em Sherlock Jr. (1924), ou com a caminhada da personagem de Jeff Daniels para os braços de Mia Farrow, em A rosa púrpura do Cairo (1985), também de Woody Allen – quase sempre um competente imitador. Pois, apesar das informações privilegiadas no começo, o restante do filme se desenrola de maneira mais tradicional, mais linear, de forma que o espectador saiba dos acontecimentos à medida que eles desenvolvem. Se Joe, como protagonista, é o sujeito sagaz que ditará os caminhos da narrativa, é Jerry que, como nós, observa e se surpreende com as situações. Billy Wilder coloca Jack Lemmon em cena como um espectador envolvido, como um comentarista da ação, reproduzindo o comportamento que muitas vezes fazemos – nem sempre em silêncio – diante de uma comédia, reagindo fisicamente, com expressões faciais, a cada nova surpresa. Se Joe, como protagonista, terá enorme liberdade em dirigir a ação, em trocar de personagens e disfarces, Jerry, devidamente seduzido e envolvido naquela ficção, é quem, até o final será mantido refém de seu próprio papel e dos destinos que lhe são traçados. Não à toa, o final de Quanto mais quente melhor, um dos finais mais célebres da história do cinema, é uma reafirmação dessa estratégia. Joe é o protagonista – aquele que gostaríamos de ser – mas é Jerry, é Jack Lemmon, quem nos representa dentro do filme. É com ele que “conversamos”, que nos identificamos, com quem estamos em posição de relativa igualdade. Somos, ambos, reféns dos mesmos acontecimentos. Quando Joe tem a ideia de ligar para o anúncio das Sweet Sue and her Society Syncopators imitando voz de mulher, é novamente Jerry que reage, com surpresa, à ideia do parceiro, nos dando as indicações das fichas que A arquitetura de um protagonista: Billy Wilder e Jack Lemmon
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começam a cair. Quando Jerry decide surpreender a Joe, tirando-o de seu disfarce para denunciá-lo a Sugar, ele naturalmente chegará atrasado, e Joe terá milagrosamente refeito seu disfarce, nas brechas misteriosas da decupagem cinematográfica. E, novamente, com ele nos surpreendemos. A dupla Billy Wilder + Jack Lemmon se tornou tão querida provavelmente porque, neste primeiro filme (e ajuda muito que seja um belo filme), Wilder promove uma outra relação de parceria, mais forte e duradoura: uma relação entre Lemmon e o espectador de seus filmes.
Assumindo o primeiro plano Não é de se espantar que, após Quanto mais quente melhor, Billy Wilder e I. A. L. Diamond escrevessem um filme especificamente para Jack Lemmon protagonizá-lo. O resultado é Se meu apartamento falasse, e, logo no princípio, dadas todas as mudanças de ambiência, escopo de tela e tom, um dado remete à relação de cumplicidade criada com o espectador no filme anterior: em voz over, Jack Lemmon fala conosco. A narração faz um movimento do macro para o micro, de Nova York para o local de trabalho, para, em seguida, o apartamento onde mora o protagonista. Saímos do geral para o específico, mas quem nos guia nesse trajeto é o próprio Lemmon, alçado finalmente ao lugar de protagonista. Até que chegamos ao seu apartamento com ele e descobrimos que há um problema: ele não pode entrar em casa antes de um determinado horário. Em busca de uma ascensão mais rápida na cadeia hierárquica da empresa onde trabalha, C. C. Baxter (Lemmon) empresta seu apartamento para que os superiores tenham encontros amorosos fora de casa. É o espaço simbólico que nos alerta que o protagonismo não vem fácil: embora tenha seu próprio apartamento, Baxter não é dono de seu espaço. Sua agenda é planejada em função dos outros, de acordo com os encontros desejados pelos superiores, que não se incomodam em passar a chave de mão em mão sem maior consideração pelo dono da própria chave. 120
Lemmon pode ter se tornado o protagonista, mas seu personagem ainda age como um coadjuvante. Nesse sentido, é interessante perceber como, em Se meu apartamento falasse, embora a câmera seja fiel a Lemmon, a ação está sempre acontecendo em outro lugar, no fora de quadro. Mais especificamente, no lugar onde ele deveria estar – na sua própria casa. É como se a presença de Lemmon, secundária à ação mas priomordial à câmera, avançasse lentamente a partir da chave de companheirismo estabelecida no filme anterior. Desta vez, podemos até assistir ao filme de Baxter, mas ele assiste ao filme de outros protagonistas, os protagonistas que ele almeja e trabalha pra ser. Esse desejo fica espelhado na relação com Sheldrake (Fred MacMurray), seu chefe, e Fran Kubelik (Shirley MacLaine), a linda ascensorista que todos os executivos desejam, mas que parece impossível de se conquistar. Apenas parece, pois, enquanto Baxter pensa estar tomando as rédeas de sua vida e se aproximando da garota como se aproxima do topo, na hierarquia da empresa (lembremos: ela é uma ascensorista!), ela é a amante secreta de Sheldrake, o verdadeiro protagonista nesse jogo corporativo. A decupagem de Billy Wilder ressalta isso em uma montagem paralela que mostra Baxter frequentemente nas franjas da ação (esperando Kubelik na porta de um teatro, por exemplo) enquanto Sheldrake dá as cartas, retomando o caso com ela em um jantar. Até mesmo a tentativa de suicídio de Kubelik dentro do quarto de Baxter acontecerá sem que ele veja, e sem que ela saiba que está, de fato, em seu apartamento. Não surpreenderia se, em determinado momento, Kubelik se espantasse por estar tomando parte em um filme protagonizado por Baxter. A afirmação do protagonismo vem, justamente, quando Baxter deixa de jogar pelas regras dos outros e coloca um fim no empréstimo da casa, no empréstimo da cena, a quem detém poder sobre ele. É uma solução que hoje nos parece um tanto mecânica, mas que tem desdobramentos ainda hoje surpreendentes. Pois, por mais que o romance agora aparentemente oficial de Sheldrake e Kubelik continue além desse gesto de autonomia – e o filme tome a liberdade de, novamente, abandonar seu protaA arquitetura de um protagonista: Billy Wilder e Jack Lemmon
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gonista para seguir aquele que ainda detém o verdadeiro protagonismo: aquele que está com a garota –, há ainda espaço para uma reviravolta final que dribla o clichê e adia novamente a tomada de rédeas do filme. Quando Sheldrake conta a Kubelik que Baxter havia pedido demissão para não precisar emprestar a chave de seu apartamento, ela abandona seu atual amante e corre para o apartamento, atrás de Baxter. A expectativa pelo romance é construída junto à chegada do ano novo, e das caixas de pertences empacotados que Baxter leva para algum lugar. Eles tomam champagne, brindam, sentam no sofá. Baxter diz que é completamente apaixonado por Kubelik, mas o filme nos deixa pendurados na iminência de um final feliz que não termina de se consumar. Não será ainda desta vez que Lemmon ficará com a garota. Nos filmes seguintes, Billy Wilder trabalhará modulações diferentes para as personagens de Lemmon, mas mantendo sempre essa conexão com o espectador, essa margem que o coloca em pé de igualdade com quem assiste ao filme e desconhece o que está por vir. Mais do que isso, há uma propensão das personagens interpretadas por Lemmon ao fluxo dos acontecimentos, como se não houvesse muita autonomia sobre o próprio destino: um editor tirano em um filme, dois cadáveres desaparecidos em outro, um jogo de representação que foge do controle aqui e ali. Essa não autonomia está nas reviravoltas de Irma la Douce (filme em que o personagem de Lemmon tenta assumir o protagonismo repetindo a estratégia de Tony Curtis em Quanto mais quente melhor, mas com desdobramentos bem diferentes), na farsa de Uma loura por um milhão, no desconhecimento da vida íntima do pai no papel de Armbruster Jr., o esteriotípico americano de Avanti... Amantes à italiana (filme atípico no conjunto da obra de Wilder, mas que merece revisão atenta à luz do cinema contemporâneo, com seus tempos atravessados, suas cores vibrantes e seus enquadramentos rígidos), no jogo de ludibriação de Walter Matthau em A primeira página (adaptação da mesma peça que Howard Hawks usou como base para o grande Jejum de amor, e basta repararmos que Lemmon pegou exatamente o mesmo papel feito por Rosalind Russell no primeiro 122
filme, mantendo inclusive o nome feminino, para sabermos que a piada de dominação continua – devidamente ironizada nas cartelas finais, que contam o futuro de cada uma das personagens do filme) e no herói deprimido de Amigos, amigos, negócios à parte. Em todos os casos, os personagens de Lemmon carregam esse handicap, essa fragilidade do desconhecimento e da incompletude em sua própria jornada, que não só nos aproxima dele, mas o coloca em toda uma linhagem de “heróis do quase” que marca muito o cinema de Billy Wilder. Voltamos, com isso, à imagem icônica que abre Crepúsculo dos deuses com o protagonista morto em uma piscina antes mesmo de o filme começar, e não seria uma grande surpresa se encontrássemos os traços de Lemmon no rosto afundado de William Holden. Foi Jack Lemmon que melhor soube encarnar o que sempre esteve lá, no cinema de Billy Wilder, à espera do rosto ideal.
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Rumo Ă s rodadas adicionais Todd McCarthy e Joseph McBride
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Em Fedora, seu vigésimo quinto filme como diretor, Billy Wilder criou uma de suas mais belas obras. Tal como O diabo disse não [Heaven Can Wait], de seu mentor Ernst Lubitsch, trata-se quintessencialmente de um filme de velho, uma meditação sobre a mortalidade, e como tal pode não cair nas graças de críticos modistas e tipos industriais obcecados com lucro. Fedora é baseado em uma das quatro novelas que compõem o livro Crowned Heads, de Thomas Tryon, e como sempre Wilder escreveu o roteiro em parceria com I. A. L. Diamond. A epígrafe de Kipling na primeira página do roteiro já adianta o tema principal: “A juventude fora-lhe um hábito tão longevo que ela não conseguia separar-se dele”. A Fedora de Tryon conta a história de uma atriz garboesca, cuja retenção de sua própria juventude ao longo de 50 anos é um mistério finalmente resolvido por um escritor enxerido. Wilder e Diamond reforçaram os laivos pessoais do projeto transformando o escritor num batalhador produtor de idade avançada (William Holden) que tenta desesperadamente convencer a estrela reclusa a retornar às telas, de modo que ele possa usar fundos oriundos de incentivo fiscal para financiar seu próprio retorno à indústria cinematográfica. Hildegard Knef interpreta a grande Fedora, Marthe Keller é sua bela e enigmática filha e José Ferrer é um médico de caráter dúbio que possui o segredo da fonte da juventude. Wilder explora e amplifica muitos de seus temas prediletos – autoengano, fraude, performance, a formação de mitos inerente ao show business – e o faz com uma graça e elegância que se tornam cada vez mais raros no cinema mundial. Em maio passado1, Wilder acompanhou Fedora a Cannes para sua primeira exibição, e as reações se dividiram: os franceses quase que unanimemente o aclamaram; os americanos adeptos do cinema de autor (a despeito de suas críticas quanto ao elenco) apreciaram-no como um acréscimo muito honesto à obra tardia de Wilder, porém, Richard Roud e Rex Reed odiaram o filme, possivelmente antecipando uma reação negativa por parte de outros setores do establishment crítico americano. 1 Texto publicado em janeiro de 1979. [N.E.]
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O fato de que Wilder parece, por vezes, exageradamente defensivo ao tratar de Fedora em nossa entrevista (realizada ao longo de dois dias em outubro passado) certamente deriva dessa reação ambígua por parte da crítica, e do emaranhado de acontecimentos associado à produção. A Universal, que originalmente tinha planos de realizar o filme, eventualmente o recusou, e Wilder, bem como o personagem de Holden no filme, teve de recorrer a fundos de incentivo fiscal. Filmar na Europa causou muita dor de cabeça, e Wilder estava frustrado por sua incapacidade de encontrar o elenco ideal. Após Cannes, passaram-se meses antes que a Allied Artists selecionasse Fedora para um lançamento em fevereiro. O mero fato de a AA ser a distribuidora dá ao filme certo estigma comercial, visto que a companhia é agora relativamente pequena e financeiramente bamba. Wilder, recuperando-se dessa experiência, faz troça sobre ser “velho” (ele tem 72 anos), mas pessoalmente parece mais jovem que qualquer cineasta que tenha dirigido seu primeiro filme no início da década de 1930. Ele nos avisou com antecedência que queria limitar nossa conversa a uma hora, posto que estava ocupado trabalhando em novos projetos em seu elegante, porém não ostentatório, escritório de Beverly Hills. Ademais, Wilder, ávido fã de baseball, não perderia por nada a revanche entre os Dodgers e os Phillies que passaria mais tarde na tevê. Mas ele acabou descontraindose e terminou nos concedendo três horas de entrevista, uma sessão incomumente longa para o volúvel Wilder, que costuma impacientar-se com perguntas de “cinéfilos” sobre suas primeiras obras e preferia discutir a cena atual. Suas atitudes têm se tornado cada vez mais desafiadoramente tradicionais, mas Wilder demonstra um revigorante ímpeto de analisar e confrontar a nova Hollywood, a despeito de seu desprezo pela maioria das coisas que ela representa. O escritório de Wilder, que dá para uma barulhenta avenida situada no coração do centro comercial de Beverly Hills, já foi ocupado certa vez por Will Rogers. O diretor está listado na relação de moradores sob nome falso de modo a desencorajar intrusos, assim como um de seus vizinhos, cuja porta ostenta uma placa em que se lê: “E. Hemingway”. Compacto, 126
organizado e decorado com obras de arte moderna, o escritório de Wilder contém alguns artefatos de seu passado, tais como suas seis estatuetas do Oscar e cópias de seus roteiros encadernadas em couro, mas seus interesses contemporâneos espelham-se em itens como a agenda do futebol universitário colada ao quadro de avisos e exemplares de livros novos em diversos idiomas. Além disso, em conformidade com seu impudente e mórbido senso de humor, ele tem uma foto de Adolf Hitler no quadro de avisos com um recorte de jornal estrategicamente preso por uma tachinha à virilha do Führer. O recorte traz a manchete: “Refeições Europeias com Sabor Judaico”, e lista restaurantes kosher na área da Avenida Fairfax, em Los Angeles. “Um escritor está sempre procurando desculpas para não escrever”, Wilder confessou depois de falarmos um pouco sobre esportes. “Os Dodgers são a melhor desculpa de todas. Mostre-me um escritor que gosta de escrever e eu lhe mostrarei um péssimo escritor. O que não significa, no entanto, que você é necessariamente um bom escritor só porque não gosta de escrever.” Isto posto, prosseguimos à Fedora.
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Como encontrou Crowned Heads? Li no Publisher’s Weekly que um livro de Tom Tryon estava para sair e que tinha algo que ver com Hollywood. Eu estava com vontade de fazer um filme sobre Hollywood. Eu estivera trabalhando no conceito de um filme sobre Hollywood à época, e me agarrei à Fedora, sem saber como elencá-lo. Essa foi a grande desvantagem.
Chegou a terminar esse outro roteiro sobre Hollywood? Não, era só uma ideia. Eu queria chamá-lo de A saga do prepúcio. É sobre a família Mayer. Raízes.
O que mais lhe atraiu em A saga do prepúcio? Bom, eu a conheço. E são só sete minutos para chegar até a locação. Não preciso escalar nenhuma porra de montanha. Não preciso comer comida de merda e contrair diarreia, sabe? Posso ir ao Chasen’s. Mas só porque você conhece muito sobre algo não significa que tem a capacidade de fazêlo direito. É muito difícil fazer um filme sobre Hollywood. São poucos, bem poucos os que conheço e gosto. Amei a versão de Selznick para Nasce uma estrela [A Star is Born]. Achei-a simplesmente esplêndida. Amei o primeiro, Hollywood [What Price Hollywood?]. E também meio que gostei, se vocês me permitem, de Crepúsculo dos deuses.
Antes de vir para Hollywood, eu pensava que Crepúsculo dos deuses era uma visão demasiado cínica da indústria cinematográfica. Quando me mudei para cá, percebi que é quase como um documentário. Tudo é totalmente verdade. É um cartão de dia dos namorados. Mas não é só a indústria cinematográfica – é qualquer indústria. Você faz um filme sobre a Exxon versus a Texaco versus a Shell, toda indústria tem por debaixo dos panos esse tipo de sujeira. Rede de intrigas [Network]. O universo jornalístico. Naturalmente.
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As similaridades entre Fedora e Crepúsculo dos deuses lhe intrigaram ou repeliram? Não, eu não estava tão consciente delas quanto as pessoas que leram o livro ou viram o filme. Não ajudei a criar dessemelhança escalando Holden novamente. Sabe, naquele tempo, Crepúsculo dos deuses foi uma experiência única. E creia-me, a cidade não gostou do filme nem um pouco. Eles pensavam, “Aquele filho da puta com o sotaque, o Wilder, está mordendo a mão que o tirou da água e que agora o alimenta”.
Alguns dos temas de Fedora são os mesmos de Crepúsculo dos deuses: preservação, imortalidade, fama... Sim, e a grande saída em Fedora. Mas o que ajudou Crepúsculo dos deuses, olhando para trás, foi uma série milagrosa de incidentes oportunos. Eu quis DeMille e consegui DeMille. Quis alguém que já tivesse dirigido um filme com a Swanson e encontrei Stroheim. E pude usar cenas do filme Queen Kelly. E eu precisava dos estúdios da Paramount, e consegui os estúdios da Paramount. Tudo quanto precisei. Eu tive muita, muita sorte. Fedora foi um pouco mais difícil. Não me demoro nisso. Com sua licença, se eu começasse agora a pensar em como eu poderia ter feito as coisas de maneira melhor, então eu teria de retornar ao meu primeiro filme. Eu poderia reescrever e redirigir todos os filmes que fiz. Talvez haja uns cinco minutos aqui, uma cena acolá, um pequeno incidente que eu acho que ficou tão bom quanto eu podia deixá-lo. Mas não posso me chutar, isto se torna uma obsessão. Nunca assisto aos meus filmes antigos. Nunca. Se você tem esse tipo de temperamento... Wyler fez um filme há 50 anos na Universal chamado Três padrinhos [na verdade, a versão de Wyler chamava-se Hell’s Heroes, baseada no romance The Three Godfathers, de Peter B. Kyne], um faroeste bem famoso que John Ford já rodara antes e rodaria depois novamente. E era muito bom. Agora ele me diz que, há uns três ou quatro anos, ele quis rever o filme, então telefonou para a Universal e eles o acabaram localizando em seus arquivos. Ele o viu em sua casa. E depois de vê-lo, o Rumo às rodadas adicionais
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levou para uma sala de montagem, remontou o filme e o enviou de volta. Ele não aguentou. Eu tenho uma capacidade maravilhosa de apagar filmes antigos, bons ou maus, do quadro-negro da minha mente, eu simplesmente os apago. Tudo que penso é: “O que vamos fazer agora? O que vamos fazer depois como se nada tivesse acontecido antes?”. Jamais me alongo no passado. Seria como bater uma punheta para uma garota que conhecemos há 30 anos.
Em que momento a Universal recusou Fedora? Depois de concluirmos o roteiro. Não sei quem são eles, aquela gente misteriosa lá de cima: é como Kafka. Pelo que pude entender – nem sequer falei com eles, porque estava puto da vida, como se diz –, eles acharam que o filme não tinha chance. O que mais me magoa é que talvez eles tenham razão.
Conseguir levantar o dinheiro para o filme custou-lhe um bocado, não foi? Foi um suplício. Drenou todas as minhas forças. No fim das contas, acabei fazendo o filme com os alemães. E tive um ótimo encontro com um grupo de lá, Geria, uma empresa com muito dinheiro; foram eles, em parceria com a Bavaria Studios, que forneceram o financiamento para Fedora. Tenho algum tipo de reputação na Alemanha, não sei por que motivo, pois quando saí de lá eu era apenas um dos roteiristas da UFA. Já que os outros estão mortos, subitamente a mortalha de Murnau, de Fritz Lang, de Erich Pommer e de Lubitsch recai sobre os meus ombros. Eu apenas escrevi talvez um ou dois filmes mais ou menos interessantes. Mas agora eu vou para a Alemanha e eles me dão uma festa e, meu Deus, a velha UFA ainda há de se reerguer. E um dos sujeitos da Geria se levanta e diz: “Herr Wilder, nós lemos o roteiro, é muito interessante. Gostaria apenas de perguntar-lhe uma coisa. O filme se passa na Grécia, na França e há uma pequena cena ambientada em Hollywood. Por que o senhor quer filmar em Munique?”. Ao que disse: “Você conhece um homem americano chamado Willie 130
Sutton? Ele começou a roubar bancos quando tinha 16 anos e agora, aos 78, completa 48 anos de prisão. Agora eles o apanham de novo e o juiz lhe pergunta, ‘Sr. Sutton, por que você insiste em roubar bancos?’ E Willie Sutton diz: ‘Porque é lá que o dinheiro está’”. E então eu disse a eles: “Estou rodando em Munique porque é aqui que o dinheiro está”. O sujeito muito seriamente se volta para mim e diz: “Você não vai nos roubar, vai, Herr Wilder?”.
Foi seu agente, Paul Kohner, que viabilizou esse arranjo com os alemães, não foi? Sim, porque ele é de lá e sendo – como posso dizê-lo? – o sujeito do Ingmar Bergman, o grande contato cinematográfico europeu, não foi difícil arranjar um acordo, mas aqui eu não conseguiria esse dinheiro por nada. Veja, não há como eu me dar mal, porque se o filme for um sucesso, é minha desforra contra Hollywood. Se for um completo desastre financeiro, é minha desforra por Auschwitz.
Não foi Kohner quem produziu o seu primeiro roteiro na Alemanha? Em determinada época, Paul Kohner chefiou a Universal Productions em Berlim, isso quando eu era jornalista lá no final dos anos 1920. E foi nessa época que ele supervisionou a versão alemã de Nada de novo no front [All Quiet on The Western Front]. Eu vendi para ele um roteiro, não sei, algo assim.
Não foi Der Teufelsreporter [O repórter do diabo, 1929]? Ah, era uma porcaria, uma total porcaria. O galã era um velho caubói húngaro-americano chamado Eddie Polo, e ele já tinha, à época, uns 75 anos. Depois disso, o primeiro filme de que realmente considero ter participado foi Menschen am Sonntag [Pessoas no domingo, 1929], que foi uma fita silenciosa, a última delas. Foi lançado justo quando lançaram O anjo azul [Der blaue Angel]. Foi um filme dirigido pelo [Robert] Siodmak. Era um filme meio Rossellini, meio cinéma vérité, e por bons motivos: não tínhamos dinheiro para contratar atores, então tivemos que usar gente vérité. E tivemos de rodá-lo em locações reais. E o assistente do Sr. Siodmak, que estreRumo às rodadas adicionais
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ava como diretor nesse filme, foi Edgar Ulmer, que depois realizou alguns filmes como os que Don Siegel faz agora.
Ulmer se tornou uma espécie de diretor cult, também. Sim. Quando você se torna uma coisa cult assim, então eles fazem um pequeno festival para você. É uma homenagem que lhe rendem; na França, eles são ótimos fazedores de homenagem. Um dia, há alguns anos atrás, eu estava em Paris e olhei para uma coisa do lado de fora de um cinema com crianças fazendo fila, e eu não pude acreditar: era uma “Homenagem à Betty Hutton”. Eles já estão ficando sem gente para homenagear, sabe? Eles têm uma espécie de adulação contínua com o Jerry Lewis. É muito estranho. Quem virá depois, a filha de Danny Thomas?
O que achou dos comentários psicológicos que Maurice Zolotow fez acerca de sua infância quando lhe biografou [Billy Wilder in Hollywood]? Lixo. Loucura. Loucura absoluta. Foi uma espécie de análise freudiana muito primária. E a conclusão é tola. Ele tentou explicar por que eu odeio as mulheres. Bom, em primeiro lugar, eu não odeio as mulheres, então não há nada aí para escavar.
Zolotow afirma que o incidente-chave de sua juventude foi a descoberta de que uma namorada que teve aos 18 anos, Ilse, era na verdade uma prostituta. Isso aconteceu de verdade? Não. Balela. Totalmente balela. Meu Deus, durante minha juventude em Viena, o sexo era muito menos preponderante. Eu nunca dormi com uma prostituta nos meus tempos de ginasial porque: a) eu não tinha dinheiro e b) eu me cagava de medo. Naquele tempo, a ideia de pegar gonorreia e o medo que isso dava... nenhum menino fazia isso.2 2 A negação desta história por parte de Wilder não é de todo convincente. Zolotow não alega que Wilder dormiu com uma prostituta tendo consciência de sua profissão; o ponto principal da história é a desilusão de Wilder ao descobrir que a garota que
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Zolotow também parece dar muita importância ao fato de que o senhor abandonou a Universidade de Viena na época – em 1924 – por motivos que nunca explicou. Nenhum motivo, nem nada. Era para eu ter me tornado um advogado. Sabe como, na maior parte das famílias judias, quando há dois filhos, a mãe fica empurrando os filhos pelo Central Park, dizendo: “Ei, gostaria de apresentá-los ao meu filho advogado e este aqui é o meu filho médico”. Então, era para eu ter me tornado advogado, mas essa ideia me entediava, então abandonei o curso e me tornei jornalista.
Fez isso para se rebelar contra seus pais? Não, eles não eram rígidos. Só senti que seria mais divertido. E não havia muita afluência na época. A ideia de que eu ia sair e ganhar alguns schillings, eles não se opuseram a isso nem um pouco. Para mim, a ideia de me tornar um jornalista era uma espécie de passo à frente. Mas agora, se você é advogado, pode até se tornar chefe de estúdio. Mal sabia eu que estava tomando o rumo errado.
O senhor não teve muita sorte com os livros que foram escritos a seu respeito. Isto é absolutamente correto. Na verdade, não gosto muito de ler a meu próprio respeito. Me constrange. E sempre acaba parecendo requentado, depois adornam ou diluem ou então erram os nomes. Daí as coisas dos outros são atribuídas a mim. Fizeram isso por anos e anos. Qualquer piada que seja um tipo de comentário cínico, bom, então foi Groucho Marx quem disse. Qualquer coisa do lado feminino sempre era da Srta. Parker. Se é uma espécie de comentário imbecil de gente iletrada e no entanto faz algum sentido, então atribuem-no ao Goldwyn. São ele amava tinha um segundo emprego de prostituta, sem que ele o soubesse. O livro de Zolotow refere-se a isso como “uma traição tão profunda e tão dolorosa que ele jamais se recuperaria”. Se a história é verdadeira, é fácil ver por que Wilder, mesmo hoje em dia, acharia tão doloroso confirmá-la.
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personagens, onde convém. Então, me atribuíram algumas coisas erroneamente e isso me colocou numa posição terrível. Por exemplo, eu conheço Hal Wallis; gosto dele, e ele gosta de mim. Ele foi casado com uma velha atriz especializada em papéis secundários, Louise Fazenda. Alguém escreveu um artigo a meu respeito e disse, “Wilder o chama de O prisioneiro de fazenda”. Eu nunca disse isso. Então, lá vou eu pegar o telefone e dizer: “Hal, eu não disse isso”. Não existe como se defender, sabe. Se é cruel, então eu devo tê-lo dito. E eu nunca disse nada cruel. Tenho palavras gentis até para com Hitler. Isso já não é o bastante?
Quando era repórter em Berlim, você escreveu uma série de artigos acerca de suas experiências como gigolô no Hotel Éden. Ainda tem cópias desses artigos? Alguém me enviou um. Era uma reportagem um bocado bem escrita, com projeções de pensamentos, sonhos, não era tudo verídico. Foi fasciculado na B.Z. am Mittag, que foi um dos maiores jornais da Alemanha – um jornal muito classudo publicado por uma organização muito classuda. Era uma honra ser publicado naquele jornal, especialmente uma matéria audaciosa como aquela, porque falava das senhoras alemãs burguesas que vinham ao hotel para o chá das cinco enquanto ainda havia gente lá dançando. Ainda fazem isso em Zurique – entre as cinco e as sete horas há uma orquestra tocando e as pessoas dançam, pode imaginar? As senhoras ficam lá sentadas tomando café, com seu schlag e seu docinho. E os dançarinos ficam lá, enfileirados e abordando as senhoras, que já estão quase na menopausa. Eles vivem de gorjetas ou ganham algum salário básico. Eu escrevi sobre esta série de abordagens e diálogos: como conseguir gorjetas melhores, o que fazer. Se você dizia: “Estou em maus lençóis, na verdade sou escritor, mas preciso ganhar a vida de qualquer maneira. Especialmente – você não faz ideia – os sapatos, os sapatos para a tarde e para a noite, são muito caros”. Então, em vez de lhe dar uma boa gorjeta, ela acabava lhe enviando doze pares de sapatos velhos do marido.
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O senhor usou um pouco dessa atmosfera dos hotéis do “velho mundo” em Avanti... Amantes à italiana. Avanti... Amantes à italiana, esse eu também apaguei. Foi bom, sabe, mas suave demais. É simplesmente delicado demais. Em outras palavras, o filme só teria despertado o interesse geral, só teriam falado sobre ele se o personagem do filho do presidente daquela corporação imensa fosse reclamar o corpo do pai e descobrisse que ele e um empregado de hotel pelado haviam sido encontrados no carro, mortos. Ou seja, se o pai fosse bicha. Mas no filme é só uma jovem. Então, quem se importa? Daí que o sujeito trepou. Grandes merdas, certo? Precisava de um algo a mais. Tudo isso acabou: Lubitsch, Leisen, Um amor na tarde. É muito suave, sabe? A não ser que um homem pule do septuagésimo sexto andar com o traseiro em chamas, a não ser que haja um desastre entre 64 automóveis e um 747, eles não largam o saco de pipocas.
É um milagre que hoje em dia se consiga fazer qualquer filme bom, dado o sistema atual. Como disse George Axelrod, coberto de razão, “Antigamente, você tinha que se bater com um sujeito iletrado, matreiro e tirânico que era muito difícil de convencer, com o qual era muito difícil conversar, mas uma vez cumprida essa tarefa, você seguia em frente. Agora, há 20 desses sujeitos”. Você não tem forças para distinguir um do outro, sabe? E então, depois de um ano e meio, acaba descobrindo que esteve puxando o saco errado o tempo todo. Agora o diretor gasta 90% de sua energia levantando o financiamento. Quando você está fazendo um filme, é um pouco como se você estivesse pilotando um avião. Você decola e espera que ele voe muito alto e que aterrisse de maneira muito suave. Mas agora você precisa sair e, antes de qualquer coisa, levantar o dinheiro para comprar o avião. Daí, na cabine do piloto, 20 pessoas estão olhando por cima do seu ombro e dizendo: “Não, espere um instante, você está muito alto, você está muito baixo, levante aí essa alavanca...”. E no final o filme despenca, o avião despenca.
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A não ser que você esteja pilotando um sucesso garantido, a não ser que você tenha um contrato com o Travolta, a não ser que você esteja disposto a fazer A profecia III, tudo é muito difícil. Você tem que ir até as pessoas com dinheiro, até ao Bank of America, e dizer: “Escuta, eu estou com uma história ótima. Acho que daria um filme simplesmente esplêndido. Preciso de 4 milhões de dólares.” Eles dizem: “Quem está no elenco?” Você diz: “Você não quer ouvir primeiro a história? Porque ela é verdadeira, realmente inovadora, tem ótimas cenas, tem entusiasmo”. “Quem está no elenco?” “Não sei ainda.” “Lamento.” Outro sujeito entra com um saco de papel marrom nas mãos. Ele diz: “Eu quero fazer um filme disso daqui. Tenho Newman, tenho Redford e tenho Jane Fonda”. “Quanto?” “Preciso de 12 milhões de dólares.” “Aqui está.” E quando o sujeito está indo embora, o homem do banco diz: “Aliás, o que tem aí dentro desse saco marrom?”. Ele responde: “Bosta de cavalo!”. “Não importa. Você tem esses três atores, vá em frente e filme.” É assim que funciona.
Quando estava preparando Fedora, correu um boato nos jornais de que o senhor havia pedido a Garbo e a Dietrich para que interpretassem o papel. Não, Garbo nunca. Eu não ia fazer um papelão desses. Pedi, sim, à Marlene, que é uma velha amiga minha dos tempos de Berlim, quando ela era apenas uma atriz menor, antes de O anjo azul, e com quem fiz dois filmes [A mundana e Testemunha de acusação]. Mas ela recusou, por diversos motivos. Ela viu semelhanças entre a história e sua própria vida, o que certamente não é o caso. E ela não anda muito bem. Ela atuou por um dia num filme chamado Just a Gigolo, que estava sendo rodado em Berlim, mas tiveram que transportar o set inteiro e tudo o mais para Paris, porque é lá que ela vive agora. Ela trabalhou um dia e ganhou 250 mil dólares. Mas se você conhece a trama de Fedora, então sabe que é quase impossível arranjar o elenco certo, e talvez nunca devêssemos ter sequer tentado, porque certas coisas ficam muito bem no papel mas não são possíveis de filmar. É extremamente difícil. Na verdade, uma mesma pessoa deveria inter136
pretar ambos os papéis; quanto a isso, não há dúvidas. Mas se você consegue a Dietrich para interpretar a velha condessa, então desde o primeiro plano vão dizer: “Que merda, essa é a Fedora, não me enrole”. Mas se eu conseguisse a Dietrich e, talvez, Faye Dunaway – alguma semelhança, naturalmente – então eles iriam dizer: “Essa é a Dietrich, ou essa é Gloria Swanson, ou essa é Bette Davis...” Ou então, você falseia tudo, filma as coisas por detrás ou na sombra, o que os põe desconfiados. Certas coisas são impossíveis de filmar. Equus: impossível de filmar. No momento em que decidem usar um cavalo de verdade – mesmo que tivessem um Secretariat ou um Seattle Slew – já não funciona. É a própria estilização que fez funcionar o livro ou a peça.
Considerou a hipótese da mesma atriz jovem interpretar, maquiada, também o papel da velha? Bom, nós chegamos a considerar essa hipótese com a Keller, mas Keller já é difícil interpretando um só papel. Naturalmente, se nós tivéssemos uma jovem Garbo, tudo teria sido maravilhoso.
Você mudou de ideia e decidiu contratar Hildegarde Knef para interpretar a condessa depois do início da filmagem? Sim. Keller tinha sofrido um terrível acidente automobilístico. Seu rosto estava destroçado, e ela estava com um corte bem grande. Agora já está tudo bem, mas as terminações nervosas estavam em tal estado naquele momento que quando tentamos colocar maquiagem pesada, borracha e coisas assim, ela não conseguia tolerar a dor quando a removiam.
Por que decidiu colocar, na cena do suicídio, aquele efeito de moldura, aquela coisa Anna Karenina na estação de trem? É um tipo de momento de largar-a-pipoca logo de cara. Nós estávamos tentando fazer algo espantoso.
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O senhor também fez grandes mudanças no personagem
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Holden. No livro, ele é um romancista; no filme, ele é muito mais próximo a você, um produtor tentando realizar um filme com Fedora usando fundos de incentivo fiscal. Foi fácil decidir como esse personagem deveria ser? Eu poderia escrever uns quatro filmes sobre aquele personagem. Sim, com certeza. Aquele sujeito que está arrastando o traseiro por toda a Hollywood Boulevard.
Gostaria de ter tido a oportunidade de filmar nos Estados Unidos? É difícil rodar um filme inteiro fora de Hollywood. Muitas preocupações. Muito bancar o executivo. As dificuldades foram enormes. E também estou velho demais para ficar me arrastando pelo mundo. Você tem que trabalhar sob as melhores condições possíveis. Vou fazer outros filmes – certamente espero que sim – e vou tentar filmá-los aqui. Eu digo que “espero”, porque já estou na minha nona rodada. Espero conseguir algumas rodadas adicionais, porque eu pretendo empatar o jogo e talvez eu até consiga dar mais algumas boas tacadas.
Acabou de concluir um roteiro? Ainda não conclui não, estou trabalhando nele. Por ora, sozinho. Iz [Diamond] está trabalhando em outra coisa. Na verdade, estive brincando com uns três projetos e acabei eliminando um. Foi só semana passada que decidi levar adiante um projeto específico.
Poderia falar sobre essas ideias? Seria muito pouco esperto. Mas elas seguem direções diferentes. Não são parecidas entre si, e não se parecem com nada que fiz até agora.
São argumentos originais? Dois são.
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Tem planos de escrevê-los com Diamond? Ainda não sabemos. Se ele estiver disponível. O projeto pode não atraí-lo, mas se for possível, naturalmente, gosto de trabalhar com ele porque trabalhamos juntos há tantos anos e nos conhecemos. E toda aquela besteira de ter que ficar falando sobre o passado de cada um e a família de cada um, essa merda toda, já está eliminada. Podemos sentar e trabalhar imediatamente. Eu não preciso conhecer ninguém e ele não precisa mais me conhecer. Isso é uma perda de tempo.
Quando se senta hoje em dia para pensar em ideias originais, costuma pensar “Bem, eu adoraria fazer isso, mas a plateia de 25 anos não vai dar bola”? Eu nunca me sento para pensar numa ideia. Ou você está no banheiro ou num jantar ou está conversando com alguém sobre algo completamente diferente. Você senta para explorar uma ideia, mas não é só por que se está sentado que ela lhe ocorre. Porém, o que acontece então – e vou responder agora à pergunta da plateia de 25 anos – é que, uma vez que você tem a ideia, você tem um milhão, um milhão de variantes de como lidar com ela. Nunca, eu nunca penso nisso, eu só penso que vários filmes que têm sido bem-sucedidos recentemente estavam um pouco acima das capacidades intelectuais dos tipos de 25 anos. Eles se tornaram grandes sucessos porque tinham uma certa qualidade – Os embalos de sábado à noite [Saturday Night Fever] tinha uma certa qualidade, foi muito bom.
Mas não lhe incomoda – a mim me incomoda – que a maior parte dos filmes bem-sucedidos de hoje em dia sejam tamanhas atrocidades? Grease – Nos tempos da brilhantina [Grease], por exemplo? Como aborda isso? Se você é um ser humano decente, e se você, por exemplo, é um compositor de música popular, e tudo que sabe fazer é polca e valsa, e você continua compondo esse tipo de coisa e a pista de dança está vazia, eles simplesmente não vêm dançar, então você diz: “Bom, foda-se, se eles querem Rumo às rodadas adicionais
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disco music ou rock, eu posso fazer isso”. Mas eu não consigo. Não consigo nem fingir que consigo, porque se eu o fizesse, seria um verdadeiro suicídio. Eles ainda saberiam que é uma fraude, e continuariam se recusando a vir dançar. O fato é que não querem mais esse tipo de filme. Fiquei muito surpreso com o fato de que Julia, um filme muito bem feito de um amigo meu, [Fred] Zinnemann, foi um sucesso. Isto é muito positivo, um filme que não tem perseguições de carro, não tem violência. Acredite, eu vejo filmes como Hooper – O homem das mil façanhas [Hooper] ou até mesmo Agarra-me se puderes [Smokey and the Bandit] e eu me divirto um bocado. No entanto, eu assisto a eles no Canal Z. Eu não sairia de casa para vê-los. Mas sentado lá, tenho a chance de ver esses filmes lunáticos que foram obviamente compilados por um computador que dita o que funciona e o que não funciona. Eu vi um troço do Clint Eastwood chamado Rota suicida [The Gauntlet]. É inacreditável. O filme pega tudo que já funcionou em um filme e põe tudo meio que empilhado e sobreposto. A coisa toda é um ghoulash de doido. É como quando foram até um computador perguntar qual seria o filme mais bem-sucedido de todos os tempos, e a resposta foi um faroeste bíblico chamado O apóstolo com a pistola.
Uma de suas características mais marcantes costumava ser a crítica social precisa e a investigação acerca da vida contemporânea americana – como em Se meu apartamento falasse –, mas você não tem lidado realmente com estes assuntos nos últimos dez anos. Foi para a Europa filmar A vida íntima de Sherlock Holmes, Avanti... Amantes à italiana e Fedora, ou então voltouse para o passado, no caso de A primeira página. Você não tem lidado com a cena americana contemporânea. Eu sempre fui bem disperso, com muito apetite de tentar toda espécie de filme. Teria sido muito mais esperto, talvez, se eu tivesse feito uma carreira como a de – e vou mencionar um cineasta muito bom – a de Hitchcock. Você sabe o que é um filme de Hitchcock. Mas seria muito entediante, para mim, fazer sempre a mesma espécie de filme. Faço filmes de ambiências 140
várias. Às vezes, tenho vontade de comédia. Outras, quero algo mais sério. Não consigo usar sempre o mesmo paletó e a mesma gravata. Agora, isso é reforçado pelas tentativas de encontrar algo que seja negociável com os estúdios. Então, encontro-me com amostras relativas a três projetos totalmente diferentes, indo lá e discutindo com eles: “Você acha que tal e tal projeto se encaixaria em sua cartela?”. Mas, sabe, a questão não é se eu ou você achamos um argumento bom, é se o leitor lá da Universal ou da Fox ou da Paramount acha que o Sr. Alan Ladd Jr., o Sr. [Sid] Sheinberg, ou o Sr. [Michael] Eisner vão achar. Você não escreve ou faz filmes esperando que a plateia vá gostar, não mais. E um jornalista, ou alguém que trabalhe para um periódico semanal ou mensal, sabe muito bem o que é interessante agora. Mas você precisa encontrar algo que continue interessante daqui a dois anos, quando o filme tiver terminado. Bom, é por isso que investem tanto dinheiro comprando os direitos de uma peça bem-sucedida. Não há grande risco aí. Ou então um livro de Sidney Sheldon – A herdeira, por exemplo – fica na lista dos bestsellers por 40 semanas; eles sabem que há um público interessado naquilo. Mas se você começa com um argumento original, eles hesitam. Nunca foi testado. Não há nada em que eles possam aplicar suas técnicas de medição. Tudo tem que ter sido testado previamente. Aquilo foi um sucesso, então aquilo outro também será. E são aqueles que não estão exatamente na crista da onda que criam o precedente. Mas depois você faz um segundo, um terceiro, e aí já fracassou.
Outro problema para um diretor consagrado como você ou Hitchcock é que os estúdios não gostam de lhes deixar trabalhar fora da própria imagem. No meu caso, sempre dizem: “Ah, pelo amor de Deus, não me venha com essas merdas sérias. Onde estão suas comédias?” Ou então: “Por que você não para com essas comédias, elas não significam porra nenhuma. Que tal outro Crepúsculo dos deuses ou Pacto de sangue?”. Estão sempre choramingando por algum motivo. Rumo às rodadas adicionais
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Seus filmes dos últimos dez anos se tornaram mais abertamente românticos. Sempre houve um traço romântico em sua obra, mas era disfarçado por certo cinismo. Agora parece mais disposto a incluir cenas francamente românticas em seus filmes. Mas se eu sou cínico, que adjetivo então você usaria para os filmes de Peckinpah?
“Cínico”, em Hollywood, é sinônimo de “realista”. Eu não sei. Acho que toda peça de Ibsen era cínica, não? Toda peça do Strindberg era cínica.
Não quero enquadrá-lo usando essa palavra. Não, está tudo bem. Estou falando dos meus esforços, e pode acreditar, não exagero a importância de nada nisso. É entretenimento, as pessoas podem ir lá e passar duas horas sem que se demande demais de suas mentes. Por outro lado, que elas também não se sintam insultadas. Pegue, por exemplo, um filme como Se meu apartamento falasse. Você realmente acha que eu fiz grandes esforços para dramatizar coisas que não existiam? Uma sociedade na qual coisas assim não podiam acontecer?
De forma alguma. Se meu apartamento falasse parecia cínico apenas no contexto de filmes como Confidências à meia-noite [Pillow Talk]. Seu filme era como um sopro de realismo. Era o que eu pensava. Eu estava em Berlim, quando estávamos filmando Cupido não tem bandeira, e dali a uma semana eles ergueriam o Muro. Fizemos uma festa num edifício para os jovens cineastas comunistas. Tinham passado Se meu apartamento falasse na sala de exibição. E depois, houve um debate. Eles ficaram muito impressionados com o filme. Eles simplesmente o amaram, especialmente o ataque brutal ao corrupto sistema capitalista. E eu disse: “Isso não é típico de Nova York, poderia acontecer em qualquer lugar. Não apenas em outra cidade americana como Chicago ou Los Angeles; poderia acontecer em Sydney, na Austrália, pode142
ria acontecer em Paris; o único lugar onde não poderia acontecer é numa cidade russa, como Moscou, por exemplo”. Bom, eles adoraram isso. E então eu disse: “Vou lhes dizer por quê, porque em Moscou, se você consegue a chave de um apartamento para trepar, ainda haverá sete famílias lá dentro das quais você não vai conseguir se livrar”. Disso eles não gostaram.
Desde que Hollywood passou pela revolução sexual, o senhor não parece tão investido em chocar o público quanto costumava parecer. Eu nunca choquei desnecessariamente. Talvez o assunto de determinado filme fosse um pouco mais audacioso. Mas agora, meu Deus, vê-se de tudo até em novela. Às nove da manhã, dá para ver as coisas mais chocantes, sabe? Thommy Thompson, o sujeito que escreveu Blood and Money, fez um editorial para a Life depois de Beija-me, idiota dizendo que deveriam me deportar – loucura total! – pelo que eu tinha feito à moral do meu país adotivo.
Esse filme foi lindo. Eu o vi quatro ou cinco vezes. Foi o maior fracasso histórico de meus anos como cineasta. Ficaram absoluta e totalmente ultrajados. Não sei, nunca consegui realmente entender o porquê de tanta gritaria.
Na verdade é uma história bem romântica. Eu a achava bem romântica. Gostaria de poder refazê-lo, para mostrar a eles do que realmente se trata. Mas você consegue me imaginar indo lá e dizendo às pessoas que pretendo refazer Beija-me, idiota?
Poderia chamar o filme de Beija-me outra vez, idiota. Sim. Beija-me, idiota, duas vezes. Beija-me uma vez e Beija-me duas vezes e Beijame mais uma vez.
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Talvez essa mudança em sua obra nos últimos dez anos não seja exatamente uma mudança em sua pessoa, e sim decorra do próprio fato de que você permaneceu fiel a si mesmo, ao passo que a maior parte dos diretores, incluindo alguns de sua geração, tentou acompanhar a passagem do tempo. Você permaneceu você mesmo. Manteve sua integridade. Até o último metro de película que me derem! E depois, é o trabalho obrigatório no júri do Festival de Cinema de Teerã. Isso é Crepúsculo dos deuses. É meio que o fim da linha, sabe? Mas eu me recuso a fazê-lo. De vez em quando, é divertido conversar com os meninos nas universidades, no American Film Institute ou no Museu de Arte Moderna em Nova York. Acabei de fazer isso em Londres e em Paris. Onde quer que eu vá. Mas minha diversão é a conversa com os alunos, não a palestra que preparo, porque isso não é meu estilo, gosto de debate. Eu reverto: eu faço as perguntas. O que eles esperam de mim, o que os trouxe ali. E sou sempre pessimista. Eu digo a eles, “Olhem, a não ser que vocês sejam abençoados com extraordinária sorte e energia, ou com uma família endinheirada, só há duas maneiras de se dar bem no cinema hoje em dia: ou como dublê ou como criador de efeitos especiais. Estes são os dois únicos setores da indústria hoje em dia onde você consegue trabalho de cara”. Para ilustrar melhor o quanto as coisas mudaram no cinema: já lhe ocorreu que O último tango em Paris [Last Tango in Paris] é uma refilmagem de Um amor na tarde? Neste, havia também um homem americano mais velho e uma jovem francesa que se encontravam num hotel parisiense todas as tardes para ter um caso. Mas o tom, naturalmente, é totalmente diferente. Ela precisa esconder dele o fato de que ainda era virgem. Hoje em dia isso já seria levemente inacreditável. E é esse o ponto principal do original, de Ariane, o fato de que ela tem medo de contar a ele a verdade. Ele gosta de ter casos com as moças e depois ir embora, mas ele jamais encostaria numa virgem porque isso é comprometedor demais. Na realidade, em Ariane, quando eles fazem amor pela primeira vez, há sangue nos lençóis e ela põe fogo na cama para que ele não descubra. 144
Suponho que não havia como fazer isso em 1957. Não sei, talvez houvesse. O erro ali foi que meu amado amigo Gary Cooper, de quem sinto uma falta terrível, não foi a escolha certa para o papel, sabe? Ele era o homem que eu queria no filme, na vida real, mas ele imprimia como o xerife decente e durão de Matar ou morrer [High Noon]. Cary Grant deveria ter sido o amante, o homem sensual. De todo modo, é um filme ingênuo, mas era assim que nós éramos 20 anos atrás. Depois de assistir ao filme fico cheio de nostalgia. Gary Cooper está morto, Chevalier está morto, John McGiver está morto, e esta espécie de filme está morta. Ele é erótico na velha veia lubitschiana de erotismo, mas hoje seria delicado demais até para uma série televisiva. Hoje, você poderia usá-lo como um breve episódio num 747 submerso n’água.
Se fizesse hoje um filme sobre a vida sexual de uma jovem, como o faria? Estão fazendo isso o tempo inteiro. E estão fazendo bem. Acho que [Richard] Brooks fez isso muito bem em À procura de Mr. Goodbar [Looking for Mr. Goodbar]. Veja bem, a coisa se tornou extraordinariamente difícil, pois, como diz o meu colaborador, o Sr. Diamond: “Hoje em dia você vai ver um filme e sob os letreiros há mulheres trepando com zebras”. Agora, para onde vamos depois disso? Quero dizer, como superar isso? Perdeu-se toda a astúcia da sugestão, o deixar o público adivinhar, toda aquela abordagem atrás-de-portas-fechadas de Lubitsch, a insinuação em não mostrar a noite de sexo, e sim o desjejum após do sexo, e sabe-se pelo apetite o quanto estão esfomeados. Como fez o Sr. Tony Richardson em As aventuras de Tom Jones [Tom Jones]. A situação é muito peculiar hoje. Por um lado, há uma geração de cinéfilos novinha em folha. Houve um aumento tremendo de interesse nos filmes. Há estudantes de cinema. As universidades já se deram conta. Tornou-se algo muito, muito intelectual. E eles, naturalmente, são honestos. Mas os outros – tudo se achatou. É uma grande massa completamente blasé de pessoas que foram estragadas, destroçadas pela televisão. Eles sobrepujam o filme: já viram todas as tramas, conhecem todas as tramas. A não ser que Rumo às rodadas adicionais
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possam dançar nos corredores, a não ser que se trate de uma dessas coisas esquisitas que lhes agradam e que você nunca sabe realmente o que vai ser. Não dá para adivinhar. Por que Grease – Nos tempos da brilhantina deu certo e por que aquele blá-blá-blá do Dr. Pepper3 não deu, eu não sei. Ninguém sabe. O público mediano, mais ou menos educado, está se esvaindo. Ou são muito intelectuais ou são o pior tipo de gente. É muito difícil. O que nos traz ao problema do elenco. O que aconteceu com aqueles sujeitos altos e bonitos? Todo mundo é italiano. Todo mundo tem menos de 1,70. Tudo foi encolhido. De repente tornou-se mais realista – o cara do apartamento ao lado. Ora, porra, se eu quiser ver o cara do apartamento ao lado, eu vou e bato na porta ao lado. Veja bem, eu acho que [Richard] Dreyfuss e todos esses outros caras são atores infinitamente melhores que os antigos galãs, os bonitões. Mas sou um romântico à moda antiga, sabe, gosto de gente bonita.
Tem um ou mais filmes favoritos de Lubitsch? Naturalmente, gostaria de ter dirigido qualquer coisa feita por Lubitsch. Eu seria um homem muito feliz se tivesse dirigido apenas aquele sketch de dois minutos com Charles Laughton em Se eu tivesse um milhão [If I had a Million]. Tudo, qualquer coisa que o homem tenha feito. Mas tudo isso, como eu lhe disse, é delicado demais. É espirituoso. É lindo, para mim. Qualquer cena de sedução num filme de Lubitsch é tão cheia de charme, tão erótica, mas esta época não é para isso. Li um artigo de algum colunista em algum lugar, havia lá um questionário sobre os 50 maiores filmes já feitos. E você sempre acaba com as mesmas malditas coisas. É sempre Cidadão Kane [Citizen Kane] ou O Encouraçado Potemkin [Bronenosets Potyomkin] e Ladrões de bicicleta [Ladri di Biciclette]. Mas eu fiquei ultrajado, devo dizer, quando constatei que dentre aqueles 50, não havia um só filme de Lubitsch. 3 Referência ao filme Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band (1978), musical dirigido por Michael Schultz inspirado no álbum homônimo dos Beatles. Wilder faz trocadilho com o refrigerante Dr. Pepper, popular nos Estados Unidos. [N.E.]
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Howard Hawks foi um de seus modelos quando começou a dirigir? Nós [Wilder e Charles Brackett] escrevemos um filme para ele, Bola de fogo [Ball of Fire], e eu passei o tempo todo no set observando-o filmar, porque eu queria acompanhar uma filmagem do início ao fim antes de começar a dirigir eu mesmo. Mas eu não o chamaria de modelo. Talvez Lubitsch fosse mais, e Stroheim, uma mistura estranha.
O que aprendeu com Hawks? Técnica? Sim, técnica. Ele era um bom diretor. Ele era um sábio homem de cinema, extremamente prático e hábil. O Sherlock Holmes de Robert Stephens lembra Jack Lemmon em Avanti... Amantes à italiana e até mesmo a Garbo de Ninotchka, no sentido de que são todos românticos recalcados. Sua frieza e rigidez, seu moralismo tenso, gradualmente se dissolvem em decorrência de suas aventuras amorosas com uma europeia. Sim, é como o Reverendo Henderson em Rain. Agora talvez seja previsível. Essa coisa do Sherlock Holmes foi prematura, depois disso veio toda uma leva de filmes de Sherlock Holmes. Este foi meio que o primeiro. É este que eu gostaria de refazer.
Por conta dos muitos cortes que foi obrigado a fazer no filme, o que vimos foi mais ou menos metade do filme original, não é? Bom, uns 60% do filme. Originalmente, ele elaborava um pouco mais o relacionamento entre aqueles dois homens. Começava com eles num trem e ele está lá às voltas com suas deduções, depois voltam. Havia, em seguida, um episódio ambientado em Oxford, a corrida de barcos entre Oxford e Cambridge, na qual ele ganhava dinheiro para sair e pagar por uma prostituta. É assim que ele descobre que essa era a garota por quem ele estava apaixonado.
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Quando Avanti... Amantes à italiana foi exibido na televisão recentemente, houve muitos cortes também. Eu nunca vejo filmes na tevê, que dirá os meus próprios. Simplesmente me mata. É comum cortarem a melhor parte das piadas. Acho que eles contratam açougueiros desempregados e lhes deixam fazer o trabalho com cutelos.
Acha que há alguma chance de relançarem A vida íntima de Sherlock Holmes em sua versão completa? Sei que a United Artists tem o filme completo em Londres. Eu nunca procurei me informar, nunca procuro me informar sobre meus filmes antigos. Mas se dependem da minha permissão para restaurar o A vida íntima de Sherlock Holmes, fico feliz em concedê-la, quando quiserem. Se eles fizessem isso, eu não pediria mais dinheiro, poderiam exibi-lo à vontade. Eu ficaria absolutamente encantado.
Como se sente, agora, a respeito de seu filme A primeira página? Nunca se deve refilmar uma peça ótima. Se as pessoas a lessem agora, descobririam o quanto é ótima, ainda que hoje não pareça tão ótima assim, pois foi muito imitada.
Quando conversei com Diamond no set, ele disse que vocês dois achavam o papel da prostituta o elemento mais fraco da peça, mas não havia muito que fazer, visto que era importante para a trama. Além disso, achei que Carol Burnett não foi a escolha certa para o papel. Não foi mesmo a escolha certa. As pessoas estavam esperando a sua persona televisiva. Mas não havia nada a fazer. Era necessária alguma motivação, algum tipo de sentimento entre ela e o sujeito preso na escrivaninha, o protetor da prostituta. E também, seu suicídio era o que desviava a atenção de todos para que o sujeito pudesse escapar. Repito, não toque em algo que é absolutamente sagrado. Como eu tinha uma espécie de reverência 148
por Hecht e MacArthur, mantivemos isso, mas não funcionou. Poderia ter sido melhor escrito, também. Mas isso, eu apaguei há cinco anos.
Quando seus filmes faziam fortunas na bilheteria, os críticos frequentemente lhe tratavam de maneira ríspida, porque diziam que você era demasiado comercial. Desde A vida íntima de Sherlock Holmes, seus filmes não foram sucessos absolutos, e os críticos, ironicamente, têm se mostrado muito mais entusiasmados. Não, eles não têm se mostrado entusiasmados. Os filmes não foram nem elogiados nem financeiramente bem-sucedidos. Eu já fiz filmes muito rentáveis, mas nada como esses ditos blockbusters de hoje em dia. Até meus filmes mais bem-sucedidos, como Irma la Douce e Quanto mais quente melhor, apenas se pagariam com os preços de hoje em dia, já que os filmes se tornaram tão mais custosos.
No entanto, de alguns anos para cá, certos críticos que costumavam lhe atacar, como Andrew Sarris, mudaram de ideia e estão agora lhe exaltando. Sarris, sim, quando ele fez Hit Parade, eu estava na categoria ”não tão bom assim”. Foi absolutamente tolo. Eu o vi em Cannes e nem sequer mencionei que ele havia me desancado. Eu nunca faço isso. Não agradeço a eles, não reclamo com eles, não escrevo cartas para eles. Quando eu era muito bem-sucedido, eles só faziam me bater, agora alguns deles talvez se mostrem mais gentis porque se apiedam de mim. Comiseram-se de mim. Talvez, nesse quesito, sejam até humanos. Eles simplesmente não têm mais vontade de chutar um senhor idoso no traseiro.
Como acha que Fedora será recebido nos Estados Unidos? Tenho minhas sérias dúvidas. Simplesmente acho que não vão explorar o filme corretamente. Eles estiveram procrastinando por nove meses. Um filme não é como um violino ou como um vinho que melhora com o passar do tempo, sabe? Ele fica empoeirado. Esta é a última inscrição no quadroRumo às rodadas adicionais
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-negro que eu apaguei. Pretendo ajudar da melhor maneira possível, mas não posso dedicar minha vida inteira a este projeto só. Preciso continuar. Tenho outras coisas no peito das quais gostaria de me livrar.
Mas Fedora foi muito bem recebido pelos críticos na Europa. Os franceses gostaram muito. Ele recebeu ótimas críticas na França. Já os alemães se opuseram ao filme desde o primeiro momento. A teoria deles era: “Que direito têm tanto a Bavaria quanto a Geria de investir todo esse dinheiro num filme americano quando temos aqui tantos cineastas jovens maravilhosos que não conseguem financiar seus projetos?”. Fassbinder e todos aqueles caras, eles de alguma forma conseguem juntar dinheiro. Agora o Fassbinder está vindo para cá. É uma corrida maluca. Me diverte. Eu lembro que, há dois anos, houve uma disputa interna tão grande na indústria entre a Universal, a Warner Bros. e a Twentieth-Century Fox. Era como a vinda do Segundo Messias: “Conseguimos a Wertmuller!” Bom, ela é uma ótima cineasta, e Bertolucci, ele é certamente gigantesco, mas eles estão trabalhando a partir de temas que nos são tão distantes. Eles acham que nós estamos profundamente interessados no fim do fascismo como contraponto ao comunismo. Olha, talvez haja uns 27 mil comunistas nesse país, e nenhum deles jamais vai ao cinema. Mas eles dizem, “Não, não, não, temos que ter a Wertmuller”. Eles dizem também: “Ah, pelo amor de Deus, quem diabos lê Pauline Kael ou Andrew Sarris?”. Pois eu lhe digo quem os lê: aqueles caras os leem. Eles são muito pretensiosos, e estão sempre cagando nas calças, dispostos a tudo por uma crítica boa, e eles atentam. Dizem: “Ela nunca vendeu um ingresso”. Ela pode não vender ingressos, mas ela vende um bocado de cineastas e atores. Eu também admiro Fassbinder, mas tenho uma atitude completamente diferente no que diz respeito ao cinema. Em primeiro lugar, eu miro no entretenimento, algum tipo de gancho. Algo que, cinco minutos depois de ter visto o filme, faz você rir um bocado ou então se sentir feliz. Algum tipo de euforia. Algo assim. Não é sempre que eu alcanço isso, mas 150
é onde estou mirando. Agora tente imaginar uma família em Dusseldorf. O marido está inconsolável: ele chega em casa e há uma carta do pessoal do Imposto de Renda. Ele deve 11 mil marcos, e se não pagar vai para a cadeia. A esposa diz ao marido: “Escuta, estou apaixonada pelo dentista e estou te abandonando”. O filho foi preso porque é membro do underground. A filha está grávida e é sifilítica. E aí chega alguém e lhes diz: “Olha, sei que vocês tiveram um dia péssimo, mas vamos dar uma espairecida. Vamos sair e ver Desespero [Despair], do Fassbinder.” Texto publicado originalmente pela revista Film Comment. Traduzido por Ismar Tirelli Neto.
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Saul Bass e Billy Wilder: uma conversa Pat Kirkham
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Em agosto passado1, em LA, tive o prazer de almoçar tranquilamente com Billy Wilder (89) e Saul Bass (75) – ambos excelentes contadores de histórias e considerados por muitos o melhor diretor vivo e o melhor designer gráfico, respectivamente. Bass – mais conhecido por conta dos créditos de filmes da década de 1950 e 1960, incluindo O homem do braço de ouro (1955), Anatomia de um crime (1959), Psicose (1960) e, seu próprio filme, Quest (1984) – ainda comanda um bem-sucedido escritório de design (no verão passado estava envolvido num projeto de postos de gasolina no Japão). O trabalho no meio cinematográfico era apenas uma parte de sua vida profissional: quando a indústria queria o tipo de crédito que ele não estava disposto a produzir, retornava simplesmente ao que fizera desde o começo: design gráfico. Recentemente, e em colaboração com sua esposa Elaine, se voltou novamente para o cinema e desenhou créditos muito admiráveis, incluindo os dos filmes mais recentes de Martin Scorsese: Cabo do medo (1991), A época da inocência (1993) e Cassino. As coisas eram um pouco diferentes para Wilder, quando a indústria queria o tipo de roteiro ou filme que ele não estava disposto a escrever ou dirigir. Sem qualquer outra ocupação a qual recorrer, o que poderia terem sido tempos difíceis foi suavizado pelo dinheiro ganho com o que fora basicamente um hobby: uma coleção magnífica de arte e design. Embora não tivesse nenhuma necessidade financeira de continuar escrevendo, ele o fez e continua a fazer ainda hoje. Em parte, creio que tenha continuado porque havia ainda dentro dele textos querendo vir à tona, mas em parte porque parar seria talvez reconhecer que “eles” tinham ganhado; que o que acreditava não poderia florescer.
1 Texto publicado em junho de 1994. [N.E.]
Lecus non et delessequi audae coriore
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Lecus non et delessequi audae coriore
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Saul Bass: Billy, sua vinda hoje me trouxe lembranças de quando trabalhei na propaganda do seu filme Cupido não tem bandeira (1961), e gostaria de lhe dar esta prova que tivemos que descartar. Tenho que lhe contar esta história, Pat. Billy publicou isto como anúncio comercial, mas o inferno se instalou, porque eu usara a forma de uma garrafa de Coca-Cola. Era uma imagem poderosa, mas a Coca-Cola Coorporation não gostou muito dela, e foi seu fim. Billy Wilder: Rapaz, foi isso mesmo. A Coca-Cola fez um barulho danado, tivemos que descartá-lo. Pat Kirkham: E vocês o substituíram pelo quê? SB: Usamos uma abordagem totalmente diferente, eficaz, mas menos satisfatória. BW: Afora seus pôsteres, Saul, cheguei à conclusão de que alguns dos melhores pôsteres são poloneses, especialmente os de filmes. Tenho um de Crepúsculo dos deuses (1950). É simples, mas poderoso. Você olha e percebe que é Gloria Swanson, mas do seu cabelo sai o filme. É a Medusa. Por que não conseguimos fazer algo assim, me pergunto? A resposta é simples: é porque aqui insistimos nos rostos das estrelas, em seguida os advogados das diversas estrelas discutem sobre o tamanho das imagens. SB: É igualmente verdadeiro no que se refere ao tamanho dos nomes das estrelas. É difícil lidar com a tipografia em um pôster de um filme, porque com frequência quatro nomes devem aparecer em uma única linha. Um nome não pode aparecer na frente do outro. Você acaba com uma tipografia alta, fina e comprimida. BW: E você não consegue lê-la – e nem quer lê-la. Depois, é obrigatório adicionar os nomes dos sete ou mais produtores – o produtor delegado, o produtor executivo, o produtor assim e assado, um filme de fulano e sicrano. É tudo ego. Você acha que alguém vai ver um filme porque Joe Smenderink o produziu? Ninguém sabe quem são essas pessoas. SB: Foi isso que me levou aos créditos. Eu sentia que as pessoas certamente queriam (ou mereciam), no início de um filme, mais do que uma longa lista de nomes que não significavam nada. 156
BW: Tudo que você precisa são os elementos principais – como você faz! – em um pôster ou nos créditos. Não há muitas pessoas que sejam boas em créditos – não é uma tarefa fácil. Mas há uma pessoa que queria mencionar: Maurice Binder, que foi para Inglaterra. Ele fez os créditos para a série James Bond [a partir de 1962]. Você se lembra da arma; ela rodopia, se torna maior, e aí vem o Sean Connery, que atira em você. Na verdade, foi meio bobo da parte deles fazer tudo isso, porque era a melhor parte do filme! Há um problema; se exagerar nos créditos do início, a tendência é que as coisas só declinem depois. Não dá para refazer todo o filme. Saul, você foi o melhor fazendo créditos, mas mesmo com um bom diretor, você ainda pode acabar com um filme medíocre. SB: É verdade. Isso aconteceu comigo algumas vezes. BW: É verdade que você fez aquela montagem extraordinária do chuveiro em Psicose, um dos momentos mais maravilhosos do filme? SB: Foi realmente uma situação incomum. Quando fui trabalhar em Psicose (1960), já tinha trabalhado em Um corpo que cai (1958) e Intriga internacional (1959), então já nos conhecíamos bem, eu e Hitchcock. Ele me disse que havia algumas cenas que eram muito importantes – cenas de fulcro –, e eu queria fazer algo especial. Então, ele me passou essas cenas e me pediu que trabalhasse nelas, que pensasse sobre elas. Mas quando voltei com o storyboard do chuveiro, Hitch se sentiu inquieto com ele. Minha abordagem foi muito diferente da dele. Seu forte – sua grande paixão – eram as tomadas contínuas e muito longas, e eu estava propondo uma montagem em staccato. Ele ficou apreensivo. Então fiquei até tarde certa noite e usei a dublê de Janet Leigh... BW: ...e a matou cruelmente. SB: Só usei alguns metros de filme, fiz pequenos cortes, os montei e mostrei o resultado para Hitch. Sua confiança foi renovada. Concluiu que funcionaria. BW: E como! É uma dessas coisas inesquecíveis. Isso me faz lembrar quando o encontrei pela primeira vez – bem, eu o vi, não fui apresentado a ele. Foi na Alemanha. Tinha 26 ou 27 anos, nessa época começaram a Saul Bass e Billy Wilder: uma conversa
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pôr som nos filmes, na velha UFA (Universum Film Aktien Gesellschaft). Usavam elencos de três países, da Alemanha, da França e da Inglaterra. Havia três diretores nesse filme em particular, mas o principal era o diretor alemão – ele decidia onde a câmera deveria ficar. Hitchcock era o cara que fazia a versão inglesa. Eles não haviam aprendido como montar um filme ou como legendá-lo (que é algo que odeio). Estive recentemente conversando com alguém a respeito da importância de um insert. As pessoas pensam que inserts são fáceis de filmar, mas não são. Fritz Lang colocava, digamos, um par de óculos em uma superfície e levava de três a quatro horas para decidir como filmá-lo. Falamos sobre quais foram os inserts mais instigantes do cinema. Meu voto foi para O Encouraçado Potemkin (1925), de Eisenstein. PK: Que insert em particular? BW: Os óculos e as larvas. Os marinheiros estão se revoltando contra a condição da comida no barco, e o capitão diz que não há nada de errado com ela. Os marinheiros dizem que há pequenos animais na carne, devorando-a. “Ok”, diz o capitão, “vamos chamar o médico”. Agora, nesses tempos, os óculos eram feitos de tal forma que você podia deslizar uma lente sobre a outra, transformando-os em lentes de aumento, e quando você olha por lentes de aumento, há milhares de larvas. O médico coloca os óculos, se volta para o capitão e diz: “Está em ótimas condições”. Nessa hora, você fica com vontade de pular da cadeira e aderir logo ao comunismo. Incrível. Com Hitchcock, é a cena do homem sem um dedo [Os 39 degraus, 1935]. SB: Há uma grande montagem feita por Hitch em A dama oculta (1938). Primeira cena: ela abre a boca para dar um grito. Segundo cena: o apito do trem chia. Sabe, sua menção a Eisenstein me fez lembrar o cinema russo e a montagem, e uma experiência que quero compartilhar com você. Na minha adolescência, assisti aos filmes russos e me apaixonei pela montagem. Conhece Slavko Vorkapich? BW: Sim, ele esteve aqui [em LA], morreu não há muito tempo atrás. O cara dos efeitos especiais. 158
SB: Fez todas aquelas montagens para a MGM. Você sabe, imigrante chega a Nova York. Nós o encontramos cavando um canal. A picareta cai, a sujeira sobe. Corte: fagulhas de um soldador se espalham. Os motores de uma fábrica se agitam. Pistões bombeiam. Chaminés expelem fumaça. Folhas de um calendário flutuam até sair do enquadramento. Arranhacéus se erguem do chão. Damos uma panorâmica na lateral do prédio e subimos. Subimos, subimos até o topo. Atravessamos a janela e vamos até um homem que está em uma escrivaninha, cercado de telefones e assistentes. Atendendo telefonemas. Berrando ordens. Fechamos nele. É o nosso imigrante. É um titã da indústria. Governa o mundo! Tudo em um minuto e meio. Isso era Vorkapich. Bem, estive uma noite com Slavko e disse-lhe que achava a montagem russa maravilhosa e imaginativa. Ele riu com desdém: “Montagem! Deixe-me lhe falar sobre montagem!”. Então me disse que na época da Revolução Russa, quando era jovem, trabalhou nos estúdios alemães, na UFA. Após a revolução, os russos tinham equipamento, mas não tinham filmes. Então os camaradas alemães da UFA costumavam coletar sobras de filmes e enviá-las para a Rússia. Slavko desdenhou [aqui Bass imita a voz e o sotaque de Vorkapich]: “O que você poderia fazer com essas sobras de filme a não ser montagens?”. Ultrajante, mas razoável. Dá para acreditar? BW: Bom, é uma boa história. PK: Como vocês se conheceram? BW: Por intermédio de Charles e Ray Eames. Acho que eles sugeriram que eu usasse Saul, de cujo trabalho eles gostavam. SB: Nosso primeiríssimo contato foi quando você me pediu para fazer os créditos de O pecado mora ao lado (1955). Só tinha feito três ou quatro créditos até então. Lembro-me que meu encontro com você e os Eames foi depois disso. BW: Você ficou com uma boa reputação de uma maneira muito, muito rápida. Mas com os créditos, o perigo é: se fizer muitos filmes, terá que ser muito inventivo, senão as pessoas vão dizer, “Ah, esse é o mesmo cara que...”. Tem que mudar com o filme. Saul Bass e Billy Wilder: uma conversa
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SB: Exatamente. Fiz os créditos para o filme Da terra nascem os homens, de Willie Wyler, em 1958, e recebi uma ligação de um de meus amigos que viu o filme; ele disse: “Sabe, aquilo não foi bem um crédito à maneira de Saul Bass”. Perguntei: “Que diabos é um crédito à maneira de Saul Bass?”. É o filme que conta, e o crédito tem que dar apoio ao filme. Tentei dar a meus créditos uma coloração que fosse apropriada para o filme. Eventualmente, alguns créditos não funcionavam. Às vezes parecia que alguém tinha pulado na frente do filme e dançado um sapateado. Créditos extravagantes entraram na moda, mas não eram úteis, e foi aí que abandonei o negócio. BW: Pat, os créditos de primeira qualidade feitos por ele podiam ser dolorosos para o diretor, às vezes suas coisas eram muito superiores ao filme. Para serem de primeira classe, os créditos têm que ser originais, ajudar o público bem como colocá-lo na disposição adequada. A coisa mais importante é trazer o público para seu lado, fazê-lo trabalhar com você e para o filme. PK: Quando o contratou para O pecado mora ao lado, você estipulou limites rígidos ou deu a esse novo talento razoável liberdade? BW: Não me lembro bem agora. Mas, mudando de assunto, fomos completos idiotas por não capitalizar o que 30 ou 40 anos depois seria o símbolo desse filme. Você sabe, o vestido de Marylin sendo soprado para cima. Nós tínhamos a cena lá, mas não nos ocorreu usá-la. Não lembro agora como foi a campanha publicitária final. Na verdade, O pecado mora ao lado não é um filme muito bom. É razoável. SB: O que está falando? O pecado mora ao lado é um filme maravilhoso! BW: Vou lhe explicar o que quero dizer. Primeiro, fui à Nova York para fazer testes, porque sabíamos que tínhamos Marilyn Monroe, mas não tínhamos um ator principal. Testei um cara, um homem muito jovem que improvisou essa cena. Ele era muito engraçado. Chorei de rir. Pensei, tenho que escolher esse cara porque ele é muito interessante. O sujeito era Walter Matthau, e ele teria sido absolutamente fantástico. Mas os produtores disseram: “Por que você torna as coisas tão difíceis? Tom Ewell já interpretou esse papel pelo menos 900 vezes [na versão teatral original], 160
ele conhece todos os diálogos, sabe quais são as partes engraçadas”. Não tive poder o suficiente para contratar Matthau – e Marilyn Monroe não era ainda Marylin Monroe naquela época. Eu lhes disse, olha, essa coisa só é boa quando há aquilo que os alemães chamam de “viúvo efêmero” [um marido separado temporariamente da esposa]. A família vai para o interior para passar os meses de verão, e o sujeito pira. Há duas coisas que precisamos planejar, e planejá-las muito, muito bem. Uma delas é que o cara que tem todos aqueles devaneios não deve ser de forma alguma atraente, e a outra é que a garota do andar de cima deve ser extremamente sexy e deve querer alguma coisa dele, para que ele pense que ela o quer. E esse objeto é o ar-condicionado. Dessa forma, ela pode dizer: “Posso dormir aqui hoje à noite?”, e ele enlouquece. Ela diz: “Não consigo dormir neste calor, só vou lá em cima pegar minhas calcinhas que estão dentro do refrigerador”. Ele diz: “Uau, dentro de onde?”. A censura foi um problema. Argumentei com eles que, em determinado momento, tínhamos que dizer, ver e sentir que ele dormira com a Marilyn Monroe. “Oh, Deus, Maria, Maria”, o estúdio dizia. Censura, censura. Lembro-me de passar uma noite pensando no que fazer. Tinha que inventar alguma coisa. Finalmente, disse: “Há uma coisa que podemos fazer que será sutil o suficiente para os censores não objetarem. Tentemos isto: há uma arrumadeira que está fazendo a cama, e há um grampo de cabelo, que ela simplesmente pega e joga fora”. Um grampo de cabelo, isso é tudo. Isso era tudo que eu queria. Mas não foi possível. Tive momentos difíceis. Foi menos complicado com Quanto mais quente melhor (1959), mas aí eu tinha um material melhor. O pecado mora ao lado poderia ter sido certamente dez vezes melhor. SB: Lembro-me dele muito bem. Para você, meus créditos eram apenas mais um elemento em uma coisa muito complexa – um filme. Para mim, esse elemento era uma vida. Estava fazendo parte de um filme de um homem cujo trabalho reverenciava. Só havia feito um crédito, para um filme chamado The Racers (1955), para Darryl Zanuck. (Na verdade tratava-se de um filme produzido por Julian Blaustein, mas Zanuck estava lá, por trás Saul Bass e Billy Wilder: uma conversa
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das câmeras.) Foi meu primeiro projeto de algo que requeria ação ao vivo. Meu trabalho anterior fora animação – O homem do braço de ouro e tal –, tinha pouquíssima experiência. Nem mesmo sabia que ia fazer a filmagem. Tudo o que sabia era que eles haviam me perguntado se estava disponível na manhã de terça. Então subo ao palco às 7 da manhã de terça, pensando que era incrivelmente gentil da parte deles me convidar para ver o que iam fazer com meu storyboard. Fiquei vendo a preparação, a colocação dos trilhos para a Dolly, etc. Então um homem se aproxima e me pergunta: “Está pronto?”. Em seguida, o diretor assistente grita, “Silêncio!”, e me dou conta de que sou o diretor! Pensei: “Ora, estou no comando!”. Eu disse: “Espere um pouco, deixe-me ver o movimento”. BW: O que você faz é dizer: “Deixe-me olhar pela lente da câmera”. Em seguida, você olha para um parafuso na parte de trás e diz: “Sim, parece que está tudo bem”. Você sabe, Pat, na década de 1930 – na época dos antigos grandes estúdios – quando cheguei a Hollywood, dizíamos que a MGM tinha mais estrelas do que o céu. Os estúdios eram como castelos, mas não havia qualquer relação entre eles. Havia certo patriotismo relacionado ao estúdio no qual você estivesse trabalhando: “Estou na Paramount”, dizíamos. “Estou na Warner”. Estava na Paramount e não conhecia ninguém que estivesse na Warner Bros. Havia espaço para o homem forte e ignorante, mas com instinto e ambição. Como Goldwyn. Ele era meio analfabeto, mas sabia o que era bom e o que funcionaria, e havia dinheiro para os melhores diretores e escritores. Cada estúdio tinha mais de 100 escritores; a Paramount tinha 105. Onze páginas de roteiro tinham que ser entregues toda quinta e em papel amarelo. Por que, não sei, mas era assim que fazíamos. Os chefes do estúdio simplesmente pegavam os roteiros da sua equipe de roteiristas e perguntavam quais das suas estrelas estariam livres de compromissos nesta ou naquela data. “Clark estará livre? Não – Ok, então vamos chamar Spencer Tracy para este filme.” As discussões não eram com agentes. Atualmente os escritores trabalham em casa, os agentes fazem negócios e 162
vendem roteiros para os estúdios. Nós entramos somente nas preparações finais e para filmar. Os estúdios são para nós agora como os hotéis Ramada – você entra e sai. PK: Atualmente o interesse por seu trabalho é maior do que jamais foi. Alguns dos filmes que escreveu ou dirigiu estão sendo refilmados. O que acha disso? BW: Neste momento, sou o rei das refilmagens. Quatro dos meus filmes estão sendo refilmados, mas não estou ganhando nada por isso. Isso porque os contratos foram feitos após a televisão. Vou lhe dizer, um dia encontrei Jack Warner, que me disse: –“Este é o melhor dia da minha vida”. – “O que aconteceu?” – “Adivinha.” – “O que aconteceu, Jack?” – “Vendi a merda toda, o estúdio, o prédio, a bosta toda, por 25 milhões de dólares.” Bom, qualquer um conseguiria 50 milhões só por Casablanca , mas ele estava tão feliz porque conseguira se livrar da tudo. PK: Que filmes estão sendo refilmados? BW: Fizeram uma ópera baseada em Crepúsculo dos deuses, está em cartaz em Londres e aqui, e estão refilmando Sabrina (1954), Um amor na tarde (1957) e Se meu apartamento falasse (1960, mas este será feito para a televisão). Não ganhei um só centavo. Só tenho poder de decisão em um filme, se alguém quiser refilmá-lo – esqueci qual é agora. Sim, é o Um amor na tarde. Eles (a Columbia, acho) me ligaram e disseram, “Sr. Wilder, temos boas notícias. Você deve se lembrar do filme Um amor na tarde”. Eu digo, certamente, lembro-me desse filme. “Talvez o refilmemos.” “Como o farão?”, pergunto, “Será difícil, não há Hepburn, Bogart ou Holden”. Eles me dizem: “Você receberá 2.500 dólares agora e quando finalizarmos o filme receberá 25 mil dólares”. Eu lhes digo: “Vocês devem estar loucos!”. Disseram que pensariam a respeito, então eu disse: “Enquanto estiverem pensando, lembrem-se de que Sr. Eszterhas acaba de receber três milhões por Natural Saul Bass e Billy Wilder: uma conversa
163
Instincts, quero dizer, Basic Instinct1, três milhões de dólares, estão ouvindo?”. Em seguida, desliguei o telefone. Ligaram de novo, os fiz subir o preço até 100 mil dólares. Finalmente disse: “Olha, não importa o que eu venha a receber, metade vai para a viúva de I. A. L. Diamond, com quem trabalhei”. Sabe, trabalhamos muitos anos juntos. SB: O que eu quero lhe perguntar é por que você não deveria se envolver de alguma forma na refilmagem de “seus” filmes. Eu sei a razão, mas isso ainda me desconcerta, porque o criador dessas obras está vivo e atuante. Tudo o que estão comprando de você é uma commodity. BW: É terrível o que estão fazendo [na indústria cinematográfica] agora. É tudo efeitos especiais ou mezzo-pornografia, não posso fazer essas coisas. Eles também temem que eu peça coisas com as quais não concordam, temem que eu os faça de tolos. Mas nunca faria isso, não importa quão ignorantes eles sejam. Sou bom e gentil. De saída, o chefe do estúdio sabe que Sr. Wilder quer o corte final; digo-lhes isso, ou meu agente o faz, e então ele me liga e diz: “Não consegui muita coisa”. Mas não me importo. Não sou mais tão ávido. Não há ninguém com quem esteja morrendo de vontade de trabalhar. Não há ninguém mais. Audrey Hepburn foi a última, e ela já se foi. Se você pensar em todas as pessoas que morreram – de Gary Cooper a Clark Gable e Spencer Tracy, blá-blá-blá – e as mulheres também. Agora falam de Harrison Ford como se ele fosse uma grande estrela. Teria sido só mais um na multidão. No banco de reservas, na cabina, havia pessoas como Claude Rains, George Raft, Charles Laughton: todos esses atores secundários que entravam em cena quando você estava cansado dos atores principais. Quando precisava de uma pequena pausa, os usava. Excelentes atores – nunca haverá alguém como Claude Rains ou Charles Laughton. Hoje cada um deles teria sua própria série de TV: dá para imaginar O show de Claude Rains no ar por 20 semanas. Simplesmente não sabíamos o que tínhamos. Sou apenas uma daquelas pontes infelizes que se estende 1 Instinto selvagem (1992), de Paul Verhoeven, escrito por Joe Eszterhas [N.E.]
164
para o passado – para 1934, quando vim para os EUA. Vejo como é hoje, a crueldade da coisa. Se fizer um filme, vou trabalhar como um escravo – e vai levar um ano e meio se for um diretor sério –, e se esse filme não gerar uma determinada quantia em dinheiro no primeiro fim de semana – digamos, 12 milhões de dólares –, não farão mais a publicidade dele, não querem nem saber, e você é largado na sarjeta. Mas se houver um filme que surpreendentemente custe apenas oito milhões de dólares e seja um sucesso, vão lhe dedicar duas páginas. (Estou de saco cheio de ver artigos de duas páginas.) “Fantástico, é o melhor filme que já vi.” Mas se você olhar logo abaixo, vai ver que é um jornalzinho de meia-tigela, o Cucamonga Register ou algo que o valha. Nenhum grande crítico, tudo salpicado em duas páginas. Então não estou tão incomodado de não fazer filmes agora. Estou passando por um bom momento. Escrevi um livro, o escrevi na Alemanha, e agora vai sair na França, na Itália e na Espanha. E vou fazer uma versão estendida desse livro. Tenho minhas pequenas obsessões. Coleciono obras. Consegui 34 milhões de dólares quando vendi metade de minha coleção de arte em 1989, quando os preços estavam elevados. Você lê essas coisas todas nos jornais, sobre os preços, mas achei que estavam blefando com relação às estimativas, então coloquei à venda apenas as pequenas coisas que comprei. Mas consegui 34 milhões, dos quais paguei 13 ou 14 milhões em impostos. Então não preciso mais dirigir filmes: não preciso do dinheiro. Como meu pai costumava dizer, “Garoto, não dá para comer macarrão de platina”. Tenho o suficiente para levar uma boa vida. Contanto que eu saia para almoçar com pessoas agradáveis como vocês e possa desfrutar da companhia de alguns dos meus amigos. Contanto que tenha o dinheiro do aluguel e da comida para minha filha, neta e bisneta (tenho uma). SB: Só me chateia o fato de que as circunstâncias impedem alguém do seu talento de dirigir um filme. BW: Eu diria que isso não me chateia. SB: Você pode não se chatear, mas eu sim.
Saul Bass e Billy Wilder: uma conversa
165
PK: Muitos outros também. BW: Vocês são muito gentis. Vocês ingleses sempre foram maravilhosos comigo. Lembro que a BFI me deu um prêmio. Um dia escreveram um artigo de página inteira sobre mim no Observer: perguntaram a diretores quem era o melhor diretor segundo o ponto de vista deles. E eu (sou um homem muito modesto, vocês sabem) apareci no topo. Meu amigo, Sr. David Lean, lançou minha “candidatura” lá. Alguns diretores muito bons estavam em discussão, quando alguém disse: “Votaria em Wilder, mas ele morreu”. Enganaram-se. Graças a Deus não tinha morrido. SB: Tem um diretor estrangeiro que recebeu o Oscar no ano passado que disse: “Não acredito em Deus, acredito em Billy Wilder”. BW: Foi um espanhol, Fernando Trueba. Estava preparando um Martini para mim e ouvi na TV. Derrubei no chão uma garrafa de gim. Alguns amigos meus estavam lá, eu disse: “Ouviram isso? Deus? Coloquem-me no nível de um D. W. Griffith ou Murnau, mas Deus?”. SB: Eu acho que é apropriado. BW: Pat, querida, foi absolutamente maravilhoso encontrá-la. Vamos nos encontrar de novo para falarmos de cinema e dos Eames. Saul, é sempre ótimo encontrar com você. Todo agradecimento por esse almoço fantástico e excelente conversa seria pouco. É muito prazeroso conversar com pessoas que realmente apreciam o cinema. Seria ótimo ficar mais tempo. Há tanto sobre o que falar. Acredito que os diretores nem sabem ainda do que o cinema é capaz – há tantas possibilidades. Mas já estou atrasado e tenho um compromisso antes de voltar para casa para finalizar um roteiro. Vê, ainda gosto de escrever roteiros, são só os produtores que não me deixam fazer o que quero com eles. Texto publicado originalmente pela revista Sight & Sound – Junho de 1995. Usado com permissão, cortesia do BFI. Traduzido por Tiago Jonas.
166
Saul Bass e Billy Wilder: uma conversa
167
Filmografia
168
170 Semente do mal
198 Águia solitária
172 A incrível Suzana
200 Quanto mais quente melhor
174 Cinco covas no Egito
202 Se meu apartamento falasse
176 Pacto de sangue
204 Cupido não tem bandeira
178 Farrapo humano
206 Irma la Douce
180 A mundana
208 Beija-me, idiota
182 A valsa do imperador
210 Uma loura por um milhão
184 Crepúsculo dos deuses
212 A vida íntima de Sherlock
186 A montanha dos sete abutres
Holmes
188 Inferno nº 17
214 Avanti... Amantes à italiana
190 Sabrina
216 A primeira página
192 O pecado mora ao lado
218 Fedora
194 Testemunha de acusação
220 Amigos, amigos, negócios
196 Um amor na tarde
à parte
Lecus non et delessequi audae coriore
169
Semente do mal (Mauvaise graine, França, 1934, 86 min, p&b, 35mm > DCP)
Estúdio: Compagnie Nouvelle Commerciale. Direção: Billy Wilder e Alexander Esway. Roteiro: Billy Wilder, Max Kolpé, Jan Lustig e Claude-André Puget. Produção: Georges Bernier e Edouard Corniglion-Molonier. Direção de fotografia: Paul Cotteret, Maurice Delattre e Fred Mandl. Montagem: Therese Sautereau. Trilha sonora: Franz Waxman e Allan Gray. Elenco: Danielle Darrieux (Jeannette), Pierre Mingand (Henri Pasquier), Raymond Galle (Jean-la-Cravate), Paul Escoffier (Dr. Pasquier), Michel Duran (o líder da gangue), Jean Wall (a zebra), Marcel Maupi (o homem de chapéu-panamá), Paul Velsa (o homem dos amendoins), Georges Malkine (o secretário), Georges Cahuzac (o senhor).
SINOPSE:
policial, na qual Jean é baleado e morre. O
Henri, um jovem playboy, vê seu antigo
pai de Henri, a fim de ajudá-lo a escapar de
automóvel estacionado, com as chaves
uma vida de crimes, dá-lhe dinheiro para
na ignição. Incapaz de resistir à tentação,
que viaje com Jeannette para fora do país.
ele pega o carro para ir a um encontro. No caminho, é perseguido e levado a uma ofi-
CURIOSIDADES:
cina mecânica que serve de fachada para
Quando Billy Wilder chegou a Paris em
uma quadrilha de ladrões. Acreditando
março de 1933, fugindo da ameaça nazis-
que Henri é um deles, os homens o avi-
ta, ficou hospedado no mesmo hotel que
sam a não tentar competir. Lá, ele conhece
muitos artistas alemães que estavam na
Jean, que o convida para morar com ele
mesma condição. Entre eles, estavam o
e sua irmã Jeannette. Henri entra para a
músico Franz Waxman e os roteiristas Max
gangue e, quando conseguem roubar três
Kolpé e Jan Lustig, que o ajudaram a de-
carros de luxo, insiste que todos têm direi-
senvolver o argumento deste filme.
to a uma remuneração melhor. O líder do
Para conseguir financiamento, o grupo
grupo, percebendo que Henri e Jeannette
precisava de um diretor com créditos de
estão começando a causar problemas, os
direção em seu currículo. Foi assim que
envia para Marselha em um carro danifica-
Alexander Esway se juntou ao projeto.
do. Eles sofrem um acidente, mas escapam
Mas a direção de fato ficou toda a cargo
ilesos e decidem fugir para Casablanca.
de Billy Wilder.
Mas Jeannette se recusa a ir sem o irmão e
Rodado praticamente sem dinheiro, o filme
Henri retorna a Paris para encontrá-lo. Mas
teve quase todas as suas cenas internas fil-
ele chega à oficina no meio de uma batida
madas numa loja de automóveis, com mo-
170
dificações na direção de arte para se adap-
CRÍTICA:
tar a cenários diferentes. As cenas externas
“Combinando a música encantadora de
de perseguição de carro foram feitas como
Alan Gray e Franz Waxman, que já havía-
perseguições reais, nas ruas. Sobre isso, Billy
mos provado em Emil und die Detektive
Wilder costumava brincar que “nós estáva-
[Emil e os detetives]; um uso completa-
mos fazendo a nouvelle vague 25 anos antes
mente inovador do som, que nos garante
de inventarem um nome chique para isso”.
ritmos criados com paixão; e o trabalho
Foi o primeiro e último filme dirigido por
desses jovens atores e técnicos, vemos
Wilder na Europa. No ano seguinte, ele se
novos tipos de imagens se desenrolarem
mudou para Hollywood e começou uma
em um estilo afiado e vivaz.” (La Comédia,
carreira de sucesso como roteirista, para,
1934)
em 1942, voltar a dirigir.
Semente do mal
171
A incrível Suzana (The Major and the Minor, EUA, 1942, 100 min, p&b, 35mm)
Estúdio: Paramount Pictures. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e Charles Brackett. Produção: Arthur Hornblow Jr. Direção de fotografia: Leo Tover. Montagem: Doane Harrison. Direção de arte: Roland Anderson e Hans Dreier. Figurino: Edith Head. Trilha sonora: Robert Emmett Dolan. Elenco: Ginger Rogers (Susan Applegate), Ray Milland (Major Kirby), Rita Johnson (Pamela Hill), Robert Benchley (Sr. Osborne), Diana Lynn (Lucy Hill), Edward Fielding (Coronel Hill), Frankie Thomas (Cadete Osborne), Raymond Roe (Cadete Wigton), Charles Smith (Cadete Korner), Larry Nunn (Cadete Babcock).
SINOPSE:
que Pamela se casou com outra pessoa,
Após ser assediada por um cliente, Susan
Susan corre para a estação de trem e se
se demite e decide deixar Nova York. Ao
confessa para Philip, que decide se casar
chegar à estação de trem, ela descobre que
com ela antes de embarcar para a guerra.
só tem dinheiro para uma tarifa de criança e decide se passar por uma menina de
CURIOSIDADES:
12 anos. Quando um condutor a pega fu-
Ginger Rogers estava no auge de sua carrei-
mando, ela se refugia no compartimento
ra quando foi convidada a estrelar este fil-
do Major Philip Kirby, que concorda em
me. Ela havia acabado de ganhar um Oscar
escondê-la. Quando o trem para no meio
por Kitty Foyle (1940) e podia escolher o pro-
do caminho, Pamela, a noiva de Philip, vai
jeto que quisesse. Um dos pontos da histó-
buscá-lo de carro. A família de Pamela,
ria de A incrível Suzana que a convenceu a
acreditando que Susan tem 12 anos, con-
entrar no filme foi o fato de a protagonista
corda em deixá-la ficar com eles. Porém
se disfarçar de criança, coisa que ela mes-
Lucy, a irmã adolescente, descobre seu dis-
ma fez várias vezes durante sua juventude
farce. Ela promete manter segredo caso a
a fim de participar de feiras infantis.
moça a ajude a conseguir que Philip reali-
Uma noite, enquanto dirigia, Billy Wilder
ze seu desejo de ir para a guerra. Susan se
parou num sinal de trânsito e viu no carro
envolve nessa situação confusa e se vê nas
a seu lado o ator Ray Milland. Num impul-
mãos do Cadete Osborne, que ameaça ex-
so, ele gritou um convite para participar
por sua identidade, e decide fugir. Algum
do filme. Milland aceitou e assim iniciou-
tempo depois, quando Philip vai visitá-la,
se uma parceria que, quatro anos depois,
ela finge ser sua própria mãe e ele vai em-
renderia Oscar tanto para Wilder quanto
bora sem saber a verdade. Ao descobrir
para Milland por Farrapo humano.
172
Foi refilmado em 1955 com o título O me-
um homem das forças armadas.” (Bosley
ninão, uma comédia estrelada pela dupla
Crowther, The New York Times, 1942)
Jerry Lewis e Dean Martin. Naquele filme, o personagem de Lewis é que se disfarça de criança.
“Este
diagrama
(aqui
deliberadamente
simplificado e despojado de muitos recurso cômicos) revela a arte de manter até o
CRÍTICAS:
fim uma proposta absurda, de explorar
“Os dois cavalheiros escreveram – e Mr.
racionalmente até sua conclusão extrema
Wilder dirigiu – uma comédia românti-
as premissas extravagantes. Esta arte é a
ca carregada. E Miss Rogers e Mr. Milland
de um dramaturgo consumado, que sabe
atuam com espírito e bom gosto. Eles não
admiravelmente dosar os tempos fortes e
permitem em momento algum a suges-
as pausas, criar personagens secundários
tão de algo estranho. (...) Miss Rogers faz
que reaparecerão nos momentos mais
uma bela imitação de uma criança prodí-
(in)oportunos, e sobretudo inventar com-
gio. E nos momentos em que o romance
portamentos os mais diversos a partir dos
acende, ela se transforma em uma suave
fatos mais elementares, forçando sua he-
dama. Podemos classificar como uma das
roína a se disfarçar, fingir, mentir e sofrer
melhores caracterizações de sua carreira.
intensamente antes de poder remover sua
Créditos também a Mr. Milland por sua
máscara e se abandonar à verdade de seus
interpretação calorosa e acolhedora de
sentimentos.” (Olivier Eyquem, Positif, 1986)
A incrível Suzana
173
Cinco covas no Egito (Five Graves to Cairo, EUA, 1943, 96 min, p&b, 35mm > Digital)
Estúdio: Paramount Pictures. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e Charles Brackett. Produção: Buddy G. DeSylva. Direção de fotografia: John F. Seitz. Montagem: Doane Harrison. Direção de arte: Hans Dreier e Ernst Fegté. Figurino: Edith Head. Trilha sonora: Miklós Rózsa. Elenco: Franchot Tone (John J. Bramble / Paul Davos), Anne Baxter (Mouche), Akim Tamiroff (Farid), Erich von Stroheim (Erwin Rommel), Peter Van Eyck (Schwegler), Fortunio Bonanova (Sebastiano).
SINOPSE:
Quando retorna ao hotel, sabe da execução
Durante a II Guerra, Bramble, único sobre-
de Mouche, não pelo assassinato, mas por
vivente britânico de uma batalha, chega em
dizer que os britânicos voltariam.
um hotel no deserto. Antes que o proprietário Farid e a ajudante francesa Mouche
PRÊMIOS:
decidissem o que fazer, o alemão Rommel
Oscar: Indicado a montagem, direção de
e sua tropa lá se instalam. O garçom Davos
fotografia em preto e branco e direção de
havia morrido na véspera e Bramble as-
arte em preto e branco.
sume sua identidade, para logo descobrir que ele era espião alemão. Alguns oficiais
CURIOSIDADES:
britânicos capturados são levados para
Primeiro filme em que Billy Wilder dirigiu
almoçar com Rommel e um deles, perce-
Erich von Stroheim, ator e diretor aus-
bendo que Davos fora substituído, ordena
tríaco, e um de seus maiores ídolos. Eles
que Bramble use sua falsa identidade para
voltariam a trabalhar juntos em 1950, em
obter informações. Bramble descobre que
Crepúsculo dos deuses.
Rommel, antes da guerra preparara, cin-
Stroheim exigiu que ele mesmo cuidas-
co locais de depósito, cujas localizações
se do figurino e da maquiagem de seu
descobre. Mouche confraterniza com o
personagem, o que foi autorizado pela
tenente Schwegler visando à libertação
Paramount.
de seu irmão. Schwegler descobre o cadáver de Davos e Bramble o mata. Rommel
CRÍTICA:
acusa Mouche do assassinato e ela não
“Surpreendentemente, para um filme tão
nega. Bramble vai para o Cairo, instruindo
movimentado e dinâmico, há um mínimo
Farid a inocentar Mouche. Suas informa-
de cenas de batalha. O diretor Billy Wilder
ções permitem a explosão dos depósitos.
manipula os variados elementos da his-
174
tória, inúmeros momentos de suspense e
é excelente, assim como o do montador
retratos vívidos de uma forma excelente.
Doane Harrison. O uso de efeitos sonoros,
Em alguns momentos, a ausência da pala-
que demonstra uma captação apurada,
vra falada ou de frases abafadas é substi-
especialmente na cena da batalha com
tuída por hábeis pantomimas e pela ação.
armas, é também de primeira qualidade.”
(...) O trabalho de câmera de John Seitz
(Variety, 1943)
Cinco covas no Egito
175
Pacto de sangue (Double Indemnity, EUA, 1944, 107 min, p&b, 35mm > DCP)
Estúdio: Paramount Pictures. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e Raymond Chandler. Produção: Buddy DeSylva e Joseph Sistrom. Direção de fotografia: John F. Seitz. Montagem: Doane Harrison. Direção de arte: Hans Dreier e Hal Pereira. Figurino: Edith Head. Trilha sonora: Miklós Rózsa. Elenco: Fred MacMurray (Walter Neff), Barbara Stanwyck (Phyllis Dietrichson), Edward G. Robinson (Barton Keyes), Porter Hall (Mr. Jackson), Jean Heather (Lola Dietrichson), Tom Powers (Sr. Dietrichson), Byron Barr (Nino Zachetti), Richard Gaines (Edward S. Norton Jr.), Fortunio Bonanova (Sam Garlopis), John Philliber (Joe Peters).
SINOPSE:
zade com Neff, não consegue enxergar a
O corretor de seguros Walter Neff bate à
verdade. Quando, afinal, descobre sobre o
porta de uma casa para vender uma apóli-
envolvimento dele no crime, cumpre o seu
ce e é recebido por Phyllis. Ao entrar, acaba
dever e o entrega à polícia.
envolvido por sua sensualidade e se apaixona. Phyllis insinua que seu marido é um
PRÊMIOS:
entrave ao romance, sugerindo a necessi-
Oscar: Indicado a filme, diretor, atriz
dade de matá-lo. Inicialmente ele se irrita
(Stanwyck), roteiro, direção de fotografia
com a proposta dela, que aliás ela nunca
em preto e branco e trilha sonora original.
fala diretamente, só sugere. Com a paixão crescente, ele acaba aceitando cometer o
CURIOSIDADES:
assassinato. Claro que não sem antes fazer
A novela original que deu origem ao fil-
o marido assinar um seguro de vida milio-
me, escrita por James M. Cain, foi inspira-
nário. Por conhecer fraudes e atividades
da num célebre caso real, que aconteceu
criminais, Neff pensa em cada detalhe an-
em 1927. Cain era jornalista na época e
tes de executar o plano. Phyllis hesita na
acompanhou o julgamento.
hora de cometer o crime perfeito ao des-
Wilder desenvolveu o roteiro em parce-
cobrir que está apaixonada por Neff, mes-
ria com o escritor Raymond Chandler,
mo com ele não acreditando nela. A dupla
conhecido por suas histórias policiais e
tem de enganar não só a polícia, mas tam-
que já gozava de certo reconhecimento à
bém Keyes, chefe de Walter e investigador
época. No entanto, é sabido que a dupla
de seguros com um faro estupendo para
brigou durante todo o processo de escri-
fraudes. Mas Keyes, envolvido pela ami-
tura do roteiro.
176
Durante os anos 1970, a Paramount deu
como pela emoção de cometê-lo com a
início a um projeto de refilmagem deste
outra pessoa. Amor e dinheiro são pre-
filme, com Robert Redford no papel princi-
textos. A morte do marido acaba por ser o
pal. O filme, no entanto, nunca aconteceu.
seu caso de uma noite.”(Roger Ebert, 1998)
CRÍTICAS:
“Apesar do noir ter raízes em filmes an-
“Pacto de sangue foi um dos primeiros fil-
teriores, muitos consideram a textura
mes noir. A fotografia de John Seitz aju-
visual de Pacto de sangue a marca regis-
dou a desenvolver o estilo de sombras e
trada do gênero. O uso consistente de
planos com extremidades vivas, ângulos
iluminação de fortes contrastes, cenários
estranhos e cenários solitários à Edward
escassamente decorados, feixes de luz
Hopper. É a opção certa para o ambiente
difusa através de persianas ou fumaça
e os diálogos urbanos duros criados por
de cigarro, e uma inclinação geral ao es-
Cain, Chandler e os outros escritores que
curo foi uma mudança drástica do olhar
Edmund Wilson chama de ‘os rapazes da
altamente saturado que caracterizava o
sala dos fundos’. O filme tem um dos te-
crescente número de filmes em cores na
mas mais conhecidos do noir: o herói não
época. A palheta luminosa e monocro-
é um criminoso, mas um homem fraco
mática de Seitz, com uma escala de cinza
que é tentado e sucumbe. Nesta história
quase infinita, se adapta perfeitamente e
“dupla”, a mulher e o homem seduzem
aumenta a tensão da narrativa sombria
um ao outro e não teriam agido sozinhos.
do filme.” (Kenneth Sweeney, American
Ambos são atraídos não tanto pelo crime
Cinematographer, 2007)
Pacto de sangue
177
Farrapo humano (The Lost Weekend, EUA, 1945, 101 min, p&b, 35mm > DCP)
Estúdio: Paramount Pictures. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e Charles Brackett. Produção: Charles Brackett. Direção de fotografia: John F. Seitz. Montagem: Doane Harrison. Direção de arte: Hans Dreier e Earl Hedrick. Figurino: Edith Head. Trilha sonora: Miklós Rózsa. Elenco: Ray Milland (Don Birnam), Jane Wyman (Helen St. James), Phillip Terry (Wick Birnam), Howard Da Silva (Nat), Doris Dowling (Gloria), Frank Faylen (‘Bim’ Nolan), Mary Young (Sra. Deveridge), Anita Bolster (Sra. Foley), Lilian Fontaine (Srta. St. James), Frank Orth (atendente na ópera).
SINOPSE:
a história desses últimos dias terríveis de
Don é um alcoólatra inveterado que passa
degradação e bebedeira. Simbolicamente,
dias desacompanhado na cidade de Nova
em vez de beber um uísque, Don apaga seu
York com o único propósito de beber. Ele
cigarro dentro do copo.
tinha planejado uma viagem com o irmão durante o fim de semana, mas perde o trem
PRÊMIOS:
porque estava ocupado demais debruçado
Oscar: Melhor filme, diretor, ator (Milland)
sobre o balcão de um bar. Esse irmão o sus-
e roteiro. Indicado a montagem, direção de
tenta financeiramente e o vigia para que
fotografia em preto e branco e trilha sono-
fique afastado da bebida. Seu alcoolismo
ra original. Festival de Cannes: Grand Prix1
persiste por seis anos, desde que um blo-
e melhor ator (Milland). Globo de Ouro:
queio não deixou que sua carreira como
Melhor filme de drama, melhor diretor e
escritor deslanchasse. Mas seu vínculo
melhor ator de drama (Milland). Círculo de
com a bebida é mais forte do que qualquer
Críticos de Nova York: Melhor filme, me-
vínculo afetivo. Ele se rebaixa por qualquer
lhor diretor e melhor ator (Milland).
trocado que possa se converter em álcool, e penhora tudo a seu alcance para sustentar
CURIOSIDADES:
o vício. Quando sua namorada Helen tenta
A ideia deste filme surgiu depois da época
ajudá-lo mais uma vez, a campainha toca e
em que Billy Wilder trabalhou com o escri-
sua máquina de escrever, que havia deixa-
tor Raymond Chandler no roteiro de seu fil-
do na casa de uma amiga quando caiu de bêbado, é devolvida. Helen consegue convencê-lo que o Don bêbado e o Don escritor são a mesma pessoa. E ele resolve escrever
178
1 Até 1954, o Grand Prix era o maior prêmio do Festival de Cannes. Em 1955, foi substituído pela Palma de Ouro, ainda hoje o troféu máximo do festival.
me anterior, Pacto de sangue. Chandler, um
que termina em ressaca. Filme de horror
alcoólatra em recuperação, voltou a beber
naturalista, é um olhar de pesadelo sobre
em razão da conturbada relação com Wilder
a vida de um conhecido tipo urbano: o es-
durante a escritura do projeto. Pouco tempo
critor paralisado pelo medo que virou al-
depois, o cineasta encontrou o romance ori-
coólatra. Em alguns aspectos, o filme tra-
ginal de Charles R. Jackson numa livraria de
ta melhor do assunto do que o romance
uma estação de trem e decidiu que aquela
best-seller de Charles Jackson a partir do
história seria seu próximo filme.
qual foi adaptado.” (Time, 1945)
Billy Wilder conta que lobistas da indústria de bebidas ofereceram 5 milhões de
“A estrutura dramática do filme, baseada
dólares à Paramount para não lançar o
na unidade de lugar (Nova York, com parte
filme. Wilder dizia que, se tivessem ofere-
das filmagens na cidade) e tempo (um fim
cido a ele, teria aceitado.
de semana), é conduzida lenta mas segu-
O escritor Stephen King cita este filme em
ramente, de abandono em abandono, até
algumas de suas obras, como o romance O
o ponto de não retorno. É uma construção
iluminado e a novela Rita Hayworth e a re-
extremamente limitada, que se confina
denção de Shawshank. King é um alcoólatra
a um artifício ao concentrar em três dias
em recuperação desde o fim dos anos 1980.
a descrição clínica de uma patologia em eminente evolução ativa, mas que permi-
CRÍTICAS:
te, dessa maneira, aumentar o poder emo-
“Farrapo humano segue seu herói alcoóla-
cional das sequências finais.” (Yves Alix,
tra até o fim de cinco dias de bebedeiras,
Positif, 1989)
Farrapo humano
179
A mundana (A Foreign Affair, EUA, 1948, 116 min, p&b, 35mm)
Estúdio: Paramount Pictures. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder, Charles Brackett e Richard L. Breen. Produção: Charles Brackett. Direção de fotografia: Charles Lang. Montagem: Doane Harrison. Direção de arte: Hans Dreier e Walter H. Tyler. Figurino: Edith Head. Trilha sonora: Friedrich Hollaender. Elenco: Jean Arthur (Phoebe Frost), Marlene Dietrich (Erika von Schluetow), John Lund (Capitão John Pringle), Millard Mitchell (Coronel Rufus J. Plummer), Peter von Zerneck (Hans Otto Birgel), Stanley Prager (Mike), Bill Murphy (Joe), Raymond Bond (Pennecot), Boyd Davis (Giffin), Robert Malcolm (Kramer).
SINOPSE:
te. Phoebe, humilhada, vai embora. John é
Em 1947, Phoebe Frost, membro do Comitê
alvo de Birgel no Lorelei, mas é morto por
do Congresso dos EUA, chega na Berlim do
soldados americanos. Erika é presa e con-
pós-guerra para visitar as tropas america-
denada a um campo de trabalho, enquanto
nas estacionadas. Ela ouve boatos que a
Phoebe e John se reconciliam.
cantora do cabaré Lorelei, Erika, suspeita de ser ex-amante de nazistas, está sendo
PRÊMIOS:
protegida por um oficial americano. Pede,
Oscar: Indicado a roteiro e fotografia em
então, que o capitão John a ajude na inves-
preto e branco. Sindicato dos Roteiristas:
tigação, sem saber que ele é o amante de
Indicado a roteiro de comédia.
Erika. Depois de ver Erika com Hitler em um noticiário de guerra, Phoebe pede a
CURIOSIDADES:
John que a leve à sede do exército. A fim
O
de distrair Phoebe, ele a seduz. O coronel
Dietrich quando ela canta “Black Market” é
Plummer sabe de sua relação com Erika e
Friedrich Hollaender, autor da trilha sonora.
pianista
que
acompanha
Marlene
lhe ordena que continue a vê-la na esperança que ela os leve a Birgel, um ex-agen-
CRÍTICAS:
te da gestapo que pode estar escondido
“É de fato Marlene Dietrich que faz o tra-
na zona de ocupação americana. Erika e
balho mais fascinante como a cantora ale-
Phoebe são presas durante uma batida no
mã de um nightclub, e é o charme por ex-
Lorelei. Na delegacia, Erika diz que Phoebe
celência. Na feminilidade inquieta de Miss
é sua prima e obtém sua libertação. Grata,
Dietrich, em suas sugestões sutis de despre-
Phoebe a acompanha ao seu apartamento,
zo zombeteiro e em sua ousadia vanguar-
onde Erika confessa que John é seu aman-
dista cantando ‘Illusions’ e ‘Black Market’,
180
duas canções pungentes, estão centradas
cisaria antes de tudo de comédias. A mun-
não só a essência do fascínio romântico da
dana é, sem dúvida, uma comédia, mas do
imagem, mas também seu cinismo errante
gênero sério. Resultado de um sincretismo
e suas motivações inconfundíveis.” (Bosley
delicado, o filme é, ao mesmo tempo, uma
Crowther, The New York Times, 1948)
comédia e um Trümmerfilm1, uma comédia de ruínas, pode-se dizer, concebida
“Como a comédia, que carrega o estigma
para um público duplo: vencidos e ven-
de um gênero ‘menor’, poderia ser um ato
cedores, alemães e americanos.” (Philippe
de memória, quando trata de testemu-
Despoix, Cinémas, 2004)
nhar a maior catástrofe do século XX? (...) Vienense de origem, Wilder certamente se lembrou das palavras do dramaturgo Hofmannsthal após a I Guerra Mundial, segundo as quais uma nação derrotada pre-
A mundana
1 Trümmerfilm (em alemão) ou Rubber Film (em inglês). Subgênero específico do imediato pós-guerra que se refere a filmes sobre o impacto das destruições nas cidades que foram campo de batalha.
181
A valsa do imperador (The Emperor Waltz, EUA, 1948, 106 min, cor, 35mm > Digital)
Estúdio: Paramount Pictures. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e Charles Brackett. Produção: Charles Brackett. Direção de fotografia: George Barnes. Montagem: Doane Harrison. Direção de arte: Franz Bachelin e Hans Dreier. Figurino: Edith Head e Gile Steele. Trilha sonora: Victor Young. Elenco: Bing Crosby (Virgil Smith), Joan Fontaine (Johanna Augusta Franziska), Roland Culver (barão Holenia), Lucile Watson (princesa Bitotska), Richard Haydn (imperador Franz-Josef), Harold Vermilyea (Chamberlain), Sig Ruman (Dr. Zwieback), Julia Dean (arquiduquesa Stephanie), Bert Prival (motorista), Alma Macrorie (dona da pensão).
SINOPSE:
dizer que nunca deveria ter concordado
Na virada do século 20, Virgil viaja a Viena
em desistir de Johanna, que a tudo escuta.
na esperança de vender um gramofone ao
Johanna diz ao imperador que prefere ter
imperador Franz-Josef. Neste ínterim, a
uma vida feliz com Virgil, obtendo, afinal,
condessa Johanna e seu pai estão levando
seu consentimento para o casamento.
sua poodle para acasalar com o poodle do Imperador. Virgil tem um cachorro cha-
PRÊMIOS:
mado Buttons, e tanto os animais quanto
Oscar: Indicado a figurino em cores e
os seus donos se dão bem. Virgil conven-
trilha sonora de musical. Sindicato dos
ce Johanna que o verdadeiro amor pode
Roteiristas: Indicado a roteiro de musical.
superar as diferenças sociais e pede sua mão ao imperador. Este recusa o pedido e
CURIOSIDADES:
argumenta que ele arruinaria a vida dela,
No final de 1945, Billy Wilder e o roteirista
fazendo Virgil se afastar. Meses depois,
Charles Brackett começaram a desenvolver
quando a poodle dá à luz a uma ninhada
um projeto sobre os problemas do exérci-
de filhotes, fica óbvio que Buttons é o pai.
to americano na Europa no imediato pós-
Temendo a reação do imperador, o barão
guerra. Wilder viajou ao continente a fim
diz que os filhotes nasceram mortos e or-
de conhecer alguns campos de concentra-
dena que sejam afogados. Mas Virgil, que
ção. Mas a experiência mostrou-se tão trau-
se infiltrara no palácio para ver Johanna
mática que ele deixou o assunto de lado e
uma última vez, resgata os filhotes e con-
só voltou a retomá-lo alguns anos depois,
fronta o imperador, por achar que ele enco-
com A mundana. De volta a Hollywood, ele
mendara o afogamento. Furioso, acaba por
decidiu fazer um musical, para se dedicar
182
a uma atmosfera oposta da que presencia-
nora se limita a três números musicais e
ra na Europa. Assim nasceu o projeto de
apenas um deles é desconhecido e novo.
A valsa para o imperador. No entanto, o fil-
Mas mesmo assim Brackett e Wilder se
me passou por inúmeros problemas, em
saíram com descontração e charme – e
especial na pós-produção, devido ao fato
com uma grande dose de humor inteli-
de ser a primeira produção em cores de
gente – para uma ideia mais fraca. E Bing
Wilder. As filmagens se encerraram em se-
Crosby traz a substância que talvez falte
tembro de 1946, mas o filme só estreou em
à bolha farsesca.” (Bosley Crowther, The
1948, coincidentemente, o mesmo ano em
New York Times, 1948)
que foi lançado A mundana. “Um filme de época passado ‘nos dias’ do
CRÍTICAS:
imperador Franz-Josef é levado aos limi-
“Não que haja algo de surpreendente na
tes por Crosby, Joan Fontaine e seu elenco
música ou no enredo desta paródia que
de apoio. O filme tem um ar livre e fácil
Charles Brackett e Billy Wilder produzi-
que combina perfeitamente com o estilo
ram, dirigiram e escreveram. Uma pita-
de comédia natural de Crosby. A coestrela
da de The Prisoner of Zenda [romance de
Joan Fontaine, mais conhecida por papéis
Anthony Hope], um toque da velha ‘ca-
sérios e pesados , demonstra uma capa-
fonice’ vienense e uma abundância de
cidade de adaptação que se encaixa per-
doideiras típicas de um espetáculo iti-
feitamente às demandas mais leves. Ela
nerante, e você tem uma noção do que
definitivamente chega lá com charme e ta-
é a trama. Da mesma forma, a trilha so-
lento, envolvida por Crosby.” (Variety, 1947)
A valsa do imperador
183
Crepúsculo dos deuses (Sunset Blvd., EUA, 1950, 110 min, p&b, 35mm > DCP)
Estúdio: Paramount Pictures. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder, Charles Brackett e D.M. Marshman Jr. Produção: Charles Brackett. Direção de fotografia: John F. Seitz. Montagem: Doane Harrison e Arthur Schmidt. Direção de arte: Hans Dreier e John Meehan. Figurino: Edith Head. Trilha sonora: Franz Waxman. Elenco: William Holden (Joe Gillis), Gloria Swanson (Norma Desmond), Erich von Stroheim (Max von Mayerling), Nancy Olson (Betty Schaefer), Fred Clark (Sheldrake), Lloyd Gough (Morino), Jack Webb (Artie Green), Hedda Hopper (ela mesma), Buster Keaton (ele mesmo), Cecil B. DeMille (ele mesmo).
SINOPSE: O corpo sem vida de Joe Gillis
Quando a polícia chega, ela desce as esca-
flutua na piscina de uma mansão e ele
das da mansão como se estivesse atuando
nos narra os acontecimentos que levaram
em um filme de Cecil B. DeMille.
à sua morte. Seis meses antes, fugindo de cobradores, seu carro fura o pneu em fren-
PRÊMIOS:
te a uma mansão que julgara abandonada.
Oscar: Melhor roteiro, trilha sonora origi-
Ao entrar, conhece a ex-estrela do cinema
nal e direção de arte em preto e branco.
mudo Norma Desmond e seu fiel mordo-
Indicado a filme, diretor, ator (Holden),
mo e admirador, Max. Norma descobre que
atriz (Swanson), ator coadjuvante (von
Joe é roteirista e decide contratá-lo para
Stroheim), atriz coadjuvante (Olson), fo-
melhorar o roteiro de Salomé, sua volta ao
tografia em preto e branco e montagem.
cinema. Joe percebe ser o esconderijo per-
Globo de Ouro: Melhor filme de drama,
feito e, embora odeie ser dependente dela,
diretor, atriz de drama (Swanson) e trilha
aceita a situação e passa a morar na man-
sonora original. Indicado a ator coadju-
são. Ele começa a trabalhar também fora da
vante (Von Stroheim), roteiro e fotogra-
mansão com outra roteirista, Betty. Quando
fia em preto e branco. National Board of
percebe que Norma está apaixonada por
Review: Melhor filme e atriz (Swanson).
ele, Joe se vê em um estranho triângulo
Sindicato dos Diretores: Indicado a dire-
amoroso, pois passa a se interessar por
tor. Sindicato dos Roteiristas: Melhor ro-
Betty. Mas deixa Betty acreditar que é um
teiro de drama.
gigolô, pois não acha que a faria feliz. Ele decide sair da mansão e voltar para Ohio,
CURIOSIDADES:
mas Norma, em um acesso de paixão, atira
Sunset Boulevard, a rua que dá o título ori-
nele, perdendo o contato com a realidade.
ginal do filme, é associada à indústria do
184
cinema desde 1911, quando ali se instalou
CRÍTICA:
o primeiro estúdio de Los Angeles.
“Em uma das maiores performances de
Gloria Swanson, que interpreta Norma
todos os tempos, a Norma Desmond de
Desmond, era uma atriz da época do cine-
Swanson passa perto dos limites da paró-
ma mudo cujo último trabalho havia sido
dia; Swanson se entrega a enormes riscos
lançado em 1941. Antes disso, seu filme
com zombarias teatrais e exageros, segu-
anterior datava de 1934. As fotos que deco-
rando Norma na beira da loucura durante
ram a casa de Norma são da jovem Gloria
todo o filme, antes de deixá-la escapar.
em seus anos áureos.
Nós talvez não a levássemos a sério. É
Buster Keaton, Hedda Hopper e Anna Q.
aí que entra Max. Porque ele acredita,
Nilsson são algumas das estrelas do ci-
porque ele dedicou sua vida ao santuá-
nema mudo que fazem participação es-
rio dela, nós acreditamos. Seu amor nos
pecial no filme.
convence que deve haver algo que vale a
Inicialmente, o filme começava num ne-
pena amar em Norma, o que por sua vez
crotério, aonde o corpo de Joe Gillis che-
ajuda a explicar como Joe consegue acei-
gava para se juntar a dúzias de outros
tá-la.” (Roger Ebert, 1999)
cadáveres. Alguns dos mortos contavam como foram parar lá, até que Joe começa
“Crepúsculo dos deuses desconstrói a
a contar sua própria história. No entanto,
afinidade ‘natural’ entre o que se vê e o
durante sessões testes, o público reagiu à
que se fala, polarizando os dois papéis
cena com risadas. Descontente com a rea-
principais do filme. Joe Gillis, o narrador,
ção, Wilder decidiu refazer o início do fil-
escreve roteiros. Sua tendência para des-
me, filmando assim a cena em que o corpo
crever imagens revela a sua convicção de
de Joe é encontrado na piscina.
que estas enfraquecem a autenticidade
Último trabalho de Wilder em parce-
das palavras. Norma Desmond, sua nê-
ria com o roteirista e produtor Charles
mesis, é uma ex-estrela do cinema mudo
Brackett, depois de 17 filmes juntos.
que acredita que o advento do cinema
Em 1993, uma versão musical do filme es-
falado destruiu sua carreira. Norma des-
treou nos palcos de Londres, com produção
preza palavras, que, ela insiste, viciaram
e música de Andrew Lloyd Webber. No ano
a pureza da imagem visual no cinema. A
seguinte, a peça foi para a Broadway, com
união malfadada entre esses dois perso-
Glenn Close no papel de Norma Desmond,
nagens dramatiza o desastre que resulta
e ganhou o Tony de melhor musical.
quando palavras e imagens se recusam
Em 2005, o American Film Institute lan-
a se complementar, criando uma ruptu-
çou uma lista das 100 melhores frases da
ra na representação quando sinais lu-
história do cinema americano. A fala final
tam por uma existência autônoma pró-
de Norma Desmond – “Certo, Sr. DeMille,
pria.” (Katelin Trowbridge, Literature/Film
estou pronta para meu close-up” – ficou
Quarterly, 2002)
em sétimo lugar.
Crepúsculo dos deuses
185
A montanha dos sete abutres (Ace in the Hole, EUA, 1951, 111 min, p&b, 35mm > DCP)
Estúdio: Paramount Pictures. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder, Lesser Samuels e Walter Newman. Direção de fotografia: Charles Lang. Montagem: Arthur Schmidt e Doane Harrison. Direção de arte: Earl Hedrick e Hal Pereira. Figurino: Edith Head. Trilha sonora: Hugo Friedhofer. Elenco: Kirk Douglas (Chuck Tatum), Jan Sterling (Lorraine Minosa), Bob Arthur (Herbie Cook), Porter Hall (Jacob Q. Boot), Frank Cady (Al Federber), Richard Benedict (Leo Minosa), Ray Teal (Xerife Gus Kretzer), Lewis Martin (McCardle), John Berkes (Papa Minosa), Frances Dominguez (Mama Minosa).
SINOPSE:
so em uma mina durante sete dias para
O jornalista Chuck Tatum perde seu em-
capitalizar perversamente o seu furo jor-
prego por ter uma conduta pouco ética.
nalístico, não resiste à culpa. Anuncia à
Só consegue trabalho em um pequeno
multidão a morte do homem e desiste de
jornal de uma província do Novo México.
escrever a matéria que o devolveria à elite
Acostumado com Nova York, sente-se
jornalística.
rebaixado, mas, sem opção, se mantém no jornal, esperando uma oportunida-
PRÊMIOS:
de para ser catapultado de volta à elite
Oscar: Indicado a roteiro. Festival de
da imprensa americana. Este dia chega
Veneza: Prêmio Internacional e melhor
quando descobre um homem soterrado
trilha sonora. National Board of Review:
em uma antiga mina. Manipulando o ho-
Melhor atriz (Sterling).
mem e sua família, faz tudo que está ao seu alcance para ficar na linha de frente
CURIOSIDADES:
daquela cobertura, inclusive mantendo a
O filme é parcialmente inspirado em dois
vítima do incidente desnecessariamente
casos reais que tiveram bastante reper-
soterrada por mais alguns dias. Os curio-
cussão jornalística nos EUA: o de um ho-
sos começam a chegar ao local, assim
mem preso numa caverna em 1925 e o de
como a imprensa de Nova York. Como um
uma menina presa num poço em 1949.
abutre, planeja a melhor forma de desfru-
Em ambos os casos as vítimas faleceram
tar desse acontecimento. O homem soter-
antes de serem resgatadas.
rado não resiste e morre, e Tatum cai em
À época de seu lançamento, recebeu críti-
si. Ele, que fora capaz de enganar tantas
cas negativas e fracassou nas bilheterias.
pessoas e que mantivera um homem pre-
Assim, pouco tempo depois, a Paramount
186
decidiu relançá-lo com um novo título,
sonagens principais tão monstruosas em
The Big Carnival (A grande feira). A estra-
seu mútuo – e mutuamente desprezível –
tégia, no entanto, não deu certo.
egoísmo e chega a ser surpreendente até mesmo que o filme tenha sido lançado.”
CRÍTICAS:
(Molly Haskell, Criterion, 2007)
“O filme aponta direções que o cinema
noir seguiria nos anos 1950, escondendo-
“Billy Wilder sendo amargo sem ser en-
se em plena luz do dia nos filmes de Alfred
graçado. Este filme (...) é frio, lúgubre e
Hitchcock, Nicholas Ray, Douglas Sirk. (...)
fascinante, impulsionado pela mesma
Raramente, ou nunca, existiram protago-
combinação de indignação moral e sorra-
nistas tão brutalmente antipáticos em um
teira admiração que anima os romances
filme mainstream como o repórter “arran-
de Jim Thompson e James M. Cain. Kirk
je-um-furo-ou-morra” de Kirk Douglas, e
Douglas estrela, e seu charme psicóti-
a esposa incrivelmente insensível de Jan
co é perfeito para o papel; Jan Sterling é
Sterling. Ainda que Wilder tenha uma vi-
inesquecível como a esposa durona da ví-
são profética da imprensa e de um públi-
tima, que está disposta a colaborar com
co ávido por comoção, esta questão acaba
as maquinações de Douglas.” (Dave Kehr,
parecendo quase periférica para dois per-
Chicago Reader)
A montanha dos sete abutres
187
Inferno nº17 (Stalag 17, EUA, 1953, 120 min, p&b, 35mm > DCP)
Estúdio: Paramount Pictures. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e Edwin Blum. Direção de fotografia: Ernest Laszlo. Montagem: George Tomasini. Direção de arte: Franz Bachelin e Hal Pereira. Figurino: Allan Sloane. Trilha sonora: Franz Waxman. Elenco: William Holden (Sargento J. J. Sefton), Don Taylor (Tenente James Dunbar), Otto Preminger (Oberst von Scherbach), Robert Strauss (Sargento Stanislaus “Animal” Kuzawa), Harvey Lembeck (Sargento Harry Shapiro), Richard Erdman (Sargento “Hoffy”Hoffman), Peter Graves (Sargento Price), Neville Brand (Duke), Sig Ruman (Sargento Johann Sebastian Schulz), Gil Stratton (Sargento Clarence Harvey “Cookie” Cook).
SINOPSE:
tramar uma armadilha para o espião. Na
Em um campo de prisioneiros da II Guerra,
noite da fuga, amarram latas às pernas de
os presos de um galpão organizam a fuga
Price e o lançam no pátio. Enquanto ele
de dois deles por um túnel. O Sargento
é morto pelos alemães, Sefton e Dunbar
Sefton aposta: não passariam à floresta.
conseguem fugir.
Todos o detestam e desprezam seu talento para negócios. Ao saírem do túnel, os fu-
PRÊMIOS:
gitivos são executados pelos nazistas, que
Oscar: Melhor ator (Holden). Indicado
sabiam da fuga. Eles desconfiam haver um
a diretor e ator coadjuvante (Strauss).
traidor entre eles, e a suspeita cai sobre
Sindicato dos Diretores: Indicado a dire-
Sefton. Quando ele consegue autorização
tor. Sindicato dos Roteiristas: Indicado a
para visitar a seção feminina do campo,
roteiro de comédia.
as suspeitas aumentam. Neste ínterim, chega Dunbar, que havia explodido um
CURIOSIDADES:
trem de munição alemão, e todos temem
De olho no mercado alemão, um execu-
que Sefton o delate. Ele decide descobrir
tivo da Paramount sugeriu a Wilder que
quem é o real delator e limpar seu nome.
mexesse na história, apagando um perso-
Descobre ser Price, que talvez nem seja
nagem nazista, para que o filme fosse mais
um traidor, e sim um espião alemão. Mas
palatável ao público do país. “Respondi a
desmascará-lo só provocaria sua remoção
ele”, conta o diretor, “que os nazistas ha-
para outro campo. Ao saber que Dunbar
viam matado minha mãe, minha avó e
seria levado para interrogatório, Sefton
meu padrasto em Auschwitz, e que não
propõe tirá-lo pessoalmente do campo e
trairia meu filme diante da perspectiva
188
de ganhar uns reles dólares na Alemanha.
“O personagem que Mr. Holden interpreta
Aliás, nunca mais trabalharia para a
– o de um inteligente ‘operador’ – torna-
Paramount se Weltner (Georg Weltner, o
se uma força positiva. Aqui, ele não é um
executivo responsável pela distribuição dos
homem agradável, ele pensa estritamente
filmes do estúdio fora dos Estados Unidos)
no seu próprio bem-estar. Ele fuma charu-
não se desculpasse pela sugestão que me
tos, acende fósforos na roupa dos outros
fez. Nunca me pediram desculpas. De mi-
e é ganancioso até o fim. Ele faz apostas
nha parte, jamais voltei a fazer um filme
contra seus próprios companheiros e ope-
para a Paramount. De repente, um trabalho
ra uma pista de corrida improvisada. Mas
conjunto de 20 anos chegava ao fim.”
ele tem coragem, criatividade e certo valor. Mr. Holden interpreta-o muitíssimo bem.
CRÍTICAS:
De fato, como consequência desse perso-
“O produtor e diretor Billy Wilder (...) usa
nagem, surge algo neste filme que refor-
uma abordagem de suspense com muito
ça consideravelmente sua dramaturgia. É
humor dúbio surgido do confinamento
uma espécie de cínica demonstração de
de jovens homens saudáveis. No cerne
eficácia, dentro do funcionamento de um
da trama está a descoberta de um infor-
grupo, de uma filosofia egoísta. Não é boni-
mante entre os soldados em um campo de
to, mas é realista – outro comentário sobre
prisioneiros, e há muita tensão até o mo-
as vergonhas da guerra.” (Bosley Crowther,
mento em que sua identidade é revelada.”
The New York Times, 1953)
(Variety, 1942)
Inferno nº17
189
Sabrina (Sabrina, EUA, 1954, 113 min, p&b, 35mm > DCP)
Estúdio: Paramount Pictures. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder, Samuel A. Taylor e Ernest Lehman. Direção de fotografia: Charles Lang. Montagem: Arthur P. Schmidt. Direção de arte: Hal Pereira e Walter H. Tyler. Figurino: Edith Head. Trilha sonora: Frederick Hollander. Elenco: Humphrey Bogart (Linus Larrabee), Audrey Hepburn (Sabrina Fairchild), William Holden (David Larrabee), Walter Hampden (Oliver Larrabee), John Williams (Thomas Fairchild), Martha Hyer (Elizabeth Tyson), Joan Vohs (Gretchen Van Horn), Marcel Dalio (Barão St. Fontanel), Marcel Hillaire (o professor), Nella Walker (Maude Larrabee).
SINOPSE:
mas se constata que David não embar-
Sabrina é a jovem filha do chofer da famí-
cou no navio e que pretende se casar com
lia Larrabee, e sempre foi apaixonada por
Elizabeth. Linus se dá conta que é apaixo-
David Larrabee. Ele é um playboy ocioso,
nado por Sabrina e é ele quem se junta a
louco por mulheres, que nunca a notou –
ela rumo a Paris.
para seu desgosto e dos empregados da casa. Sabrina resolve fazer um curso de
PRÊMIOS:
culinária em Paris e retorna uma mulher
Oscar: Melhor figurino em preto e branco.
atraente e sofisticada. David a princípio
Indicado a diretor, roteiro, atriz (Hepburn),
não a reconhece, mas logo se sente atraí-
fotografia em preto e branco e direção de
do por ela. O irmão dele, Linus, que admi-
arte em preto e branco. Globo de Ouro:
nistra os negócios da família, percebe esta
Melhor roteiro. BAFTA: Indicado a atriz
atração e teme que isto atrapalhe a união
britânica
iminente de David com a rica Elizabeth.
of
Se o casamento fosse cancelado, a fusão
(Williams), por seu trabalho nesse filme e
corporativa com a família da moça estaria
em Disque M para matar, do mesmo ano.
em risco. Assim, Linus tenta desencorajar
Sindicato dos Diretores: Indicado a diretor.
Sabrina e acaba por induzi-la a regressar
Sindicato dos Roteiristas: Melhor roteiro
a Paris, para uma ida sem volta. No dia
de comédia.
(Hepburn).
Review:
Melhor
National ator
Board
coadjuvante
seguinte, se arrepende. Tenta dissuadir David de se casar e lhe diz para se juntar à
CURIOSIDADES:
Sabrina no navio. Ele convoca uma reunião
A figurinista Edith Head, colaboradora
de diretoria para anunciar esta decisão,
frequente de Billy Wilder, assina os figuri-
190
nos de Sabrina. No entanto, há rumores de
en Rose’. Pelo menos assim acontecia nas
que os vestidos da personagem principal
proximidades do Criterion Theatre, onde
teriam sido desenhados pelo célebre esti-
Sabrina, de Billy Wilder, foi posto em exibi-
lista francês Hubert de Givenchy. Head ga-
ção pública, com a doçura encantadora de
nhou o Oscar por seu trabalho no figurino
Aubrey Hepburn e Humphrey Bogart nos
do filme (cujo principal destaque são exa-
papéis principais. E uma vez que a causa
tamente os vestidos icônicos de Sabrina)
desse fenômeno não está sujeita a mudan-
e dizia ter se inspirado em criações de
ças inesperadas, verão e sol são prováveis
Givenchy, que Audrey Hepburn admirava.
de se manter entre nós por algum tempo.
O estilista, por sua vez, confirma que o fi-
Porque Sabrina – é melhor dizermos para
gurino foi todo produzido nos estúdios da
acabar logo com isso – é, em nossa ansiosa
Paramount. No entanto, afirma que foram
opinião, a mais deliciosa comédia român-
todos desenhados por ele.
tica em anos.” (Bosley Crowther, The New
Foi refilmado em 1995 pelo diretor Sidney
York Times, 1954)
Pollack, com Julia Ormond, Harrison Ford e Greg Kinnear nos papéis de Hepburn,
“Sabrina se fixa em seu personagem-título
Bogart e Holden.
como uma imigrante europeia (literalmen-
Linus e Sabrina vão ao teatro assistir à
te, já que a sua estrela, Audrey Hepburn,
peça The Seven Year Itch. O filme seguinte
era uma refugiada belga da II Guerra
de Billy Wilder, O pecado mora ao lado, é a
Mundial) e em sua capacidade de exportar
versão desse texto para o cinema.
e ensinar as lições oferecidas pela Europa.
Humprhey Bogart não se deu bem com
Assim, culinária, poesia, moda, romance e
William Holden e Audrey Hepburn durante
estilo franceses tornam-se o antídoto do
as filmagens. Os dois, pelo contrário, tive-
filme para a cultura de compra e venda
ram um famoso caso de amor à época.
dos Estados Unidos. A França do pós-guerra é uma ingênua glamourosa esperando
CRÍTICAS:
para ser consumida, seu capital cultural
“Ainda que o outono esteja programado
vital à hegemonia cultural emergente dos
para chegar às 9h56 de hoje e o tema mu-
Estados Unidos do pós-guerra. (...) Sabrina
sical do momento seja ‘September Song’,
retorna à mansão do patrão de seu pai, em
os raios de sol de verão estavam derrama-
Long Island, como uma pessoa ‘deslocada’.
dos sobre a Broadway ontem e o ar estava
Ela é uma Cinderela em busca de um bai-
cheio das doces e mágicas notas de ’La Vie
le.” (Dina M. Smith, Cinema Journal, 2002)
Sabrina
191
O pecado mora ao lado (The Seven Year Itch, EUA, 1955, 105 min, cor, 35mm)
Estúdio: Twentieth Century Fox. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e George Axelrod. Produção: Billy Wilder e Charles K. Feldman. Direção de fotografia: Milton Krasner. Montagem: Hugh S. Fowler. Direção de arte: George W. Davis e Lyle Wheeler. Figurino: Travilla. Trilha sonora: Alfred Newman. Elenco: Marilyn Monroe (A Garota), Tommy Ewell (Richard Sherman), Evelyn Keyes (Helen Sherman), Sonny Tufts (Tom MacKenzie), Robert Strauss (Sr. Kruhulik), Oscar Homolka (Dr. Brubaker), Marguerite Chapman (Srta. Morris), Victor Moore (bombeiro), Dolores Rosedale (Elaine), Donald MacBride (Sr. Brady).
SINOPSE:
recorrera quanto ao remo. Richard, remo
Richard é um editor de Nova York em crise
na mão, diz à jovem para ficar em seu
de meia-idade. Sua esposa Helen e o filho
apartamento; e corre para pegar o primei-
viajam para passar o verão no Maine. Na
ro trem para o Maine.
volta para casa, com o remo do caiaque que o filho esquecera, conhece a jovem
PRÊMIOS:
atriz que alugara o apartamento no an-
Globo de Ouro: Melhor ator de comédia
dar de cima. No livro em que trabalha, um
(Ewell). BAFTA: Indicado a atriz estran-
psiquiatra afirma que grande parte dos
geira (Monroe). Sindicato dos Diretores:
homens são infiéis no sétimo ano de casa-
Indicado a diretor. Sindicato dos Rotei-
mento, e ele fantasia que é irresistível para
ristas: Indicado a roteiro de comédia.
as mulheres. Então, quando um vaso de tomates cai por acidente da casa da vizinha,
CURIOSIDADES:
Richard a convida para uma bebida. Ele
Uma das cenas mais icônicas do cinema
mente sobre ser casado. Ela vê sua alian-
e da carreira de Billy Wilder está nesse
ça e lhe é indiferente, pois seu interesse é
filme, quando a garota, personagem de
apenas o ar-condicionado dele. Continuam
Marylin Monroe, para sobre a grela do me-
se vendo, embora ela seja imune aos seus
trô e seu vestido branco voa.
encantos imaginados. Helen não se can-
A PCA – Production Code Administration,
sa de pedir o envio do remo, mas Richard
que controlava a censura dos filmes na
anda distraído. Imagina a garota dizendo
época – supervisionou o roteiro deste fil-
a um encanador que ele é “a criatura da
me com mãos de ferro para que não se
Lagoa Negra”. Com ciúme e culpa, imagina
tornasse o que eles classificavam como
Helen com McKenzie, o vizinho a quem ela
indecente. Wilder e o roteirista George
192
Axelrod, também autor da peça original,
George Axelrod. A adaptação para as telas
tiveram de fazer várias mudanças. A prin-
se limita apenas às fantasias, e omite os
cipal delas foi que, no original, Richard e a
atos, do solteiro-de-verão, que permanece
garota terminavam por fazer amor. No fil-
totalmente – ainda que inacreditavelmen-
me, no entanto, a traição está só na ima-
te – casto. A moralidade ganha onde a ho-
ginação do protagonista.
nestidade se perde. Mas não vamos entrar
Os créditos iniciais do filme foram criados
nisso. O que conta é que as risadas vêm
por Saul Bass, um dos nomes mais impor-
retumbantes e rápidas e que o entreteni-
tantes no ramo, tendo em seu currículo
mento é leve e alegre.” (Variety, 1954)
uma sólida parceria com Alfred Hitchcock. Walter Matthau foi um dos atores a ser
“A cena do metrô, do lado de fora do Teatro
testado para o papel principal e era a
Trans-Lux, é tratada com decoro no fil-
escolha inicial de Wilder. No entanto, a
me. Quando Monroe, no papel da garota,
Fox não queria um iniciante como pro-
está sobre a grelha do metrô esperando o
tagonista. Wilder acabou escalando Tom
primeiro trem e, em seguida, o expresso,
Ewell, que ganhara um Tony por interpre-
a câmera corta para se concentrar sobre
tar o papel no teatro. O diretor viria a tra-
seu vestido e pernas. Quando a corrente
balhar com Matthau no futuro, em filmes
de ar do metrô levanta a saia de Monroe,
como A primeira página e Uma loura por
suas pernas estão na verdade destacadas
um milhão, entre outros.
de sua pessoa e tornam-se abstratas e sem um corpo. Mais importante ainda, as calci-
CRÍTICAS:
nhas de Monroe não são mostradas. Como
“A versão cinematográfica de O pecado
resultado, o caráter abertamente sexual
mora ao lado tem apenas uma semelhan-
das fotos de divulgação é neutralizado.”
ça passageira com a peça da Broadway, de
(Graham Smith, Cinémas, 2004)
O pecado mora ao lado
193
Testemunha de acusação (Witness for the Prosecution, EUA, 1957, 116 min, p&b, 35mm)
Estúdio: Theme Pictures. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder, Harry Kurnitz e Larry Marcus. Produção: Arthur Hornblow Jr. Direção de fotografia: Russell Harlan. Montagem: Daniel Mandell. Direção de arte: Alexandre Trauner. Figurino: Edith Head, Joe King e Adele Parmenter. Trilha sonora: Matty Malneck Elenco: Tyrone Power (Leonard Vole), Marlene Dietrich (Christine Helm), Charles Laughton (Sir Wilfrid Robarts), Elsa Lanchester (Srta. Plimsoll), John Williams (Brogan-Moore), Henry Daniell (Mayhew), Ian Wolfe (Carter), Torin Thatcher (Sr. Myers), Norma Varden (Emily French), Una O’Connor (Janet McKenzie).
SINOPSE:
para inocentar o marido. Porém, quando
Quando Leonard Vole é preso sob a acusa-
Leonard revela que irá embora do país com
ção de ter assassinado uma rica viúva, Sir
outra mulher, Christine, num surto, o mata.
Wilfrid Robarts, um veterano advogado,
Sir Wilfrid decide então cancelar suas fé-
concorda em defendê-lo. Sir Wilfrid está
rias, pois não resistirá à chance de defender
se recuperando de um ataque do coração
Christine em seu julgamento.
e não poderia se envolver em casos complicados, mas sua atração pelas cortes cri-
PRÊMIOS:
minais é forte. O único álibi de Leonard é
Oscar: Indicado a filme, diretor, ator
Christine, sua esposa, uma alemã que, após
(Laughton), atriz coadjuvante (Lanchester),
o fim da guerra, vivia em penúria cantan-
montagem e captção de som. Globo de
do. Foi aí que conheceu Leonard, sargento
Ouro: Melhor atriz coajuvante (Lanchester).
do exército britânico. A tarefa de Sir Wilfrid
Indicado a filme de drama, diretor, ator
se complica quando Christine concorda
de drama (Laughton) e atriz de drama
em ser testemunha, não da defesa, mas da
(Dietrich). BAFTA: Indicado a ator estran-
acusação. Em seu depoimento, ela conta
geiro (Laughton). Sindicato dos Diretores:
com frieza que Leonard lhe confessou o as-
Indicado a diretor.
sassinato. Mas logo Sir Wilfrid é abordado por uma mulher misteriosa que lhe entrega
CURIOSIDADES:
cartas de Christine a um amante, motivo
Na época de seu lançamento, ao fim de
suficiente para que tenha mentido con-
cada sessão, um aviso pedia que os espec-
tra o marido. Assim, Leonard é absolvido.
tadores não revelassem a ninguém como
No entanto, Sir Wilfrid descobre que tudo
a história termina. Esse procedimento fez
não passou de uma estratégia de Christine
parte da estratégia da distribuidora United
194
Artists para manter o mistério quanto ao
CRÍTICAS:
fim do filme. Dizem ainda que essa estra-
“Melhorando a peça de Christie, Wilder
tégia acabou custando a Marlene Dietrich
esvaziou Testemunha de acusação de gran-
uma indicação ao Oscar, já que sua cam-
de parte das habituais cenas estáticas de
panha por uma indicação não pôde se
tribunal e encheu o filme com um visual
utilizar do fato de ela também interpre-
ativo e excitante. Quer seja pela fluidez da
tar a mulher misteriosa e o público não
câmera, pelo uso de ocasionais flashbacks
desconfiar disso até os momentos finais.
ou pelo constante desvio de atenção para
Dietrich contava com a indicação e ficou
a saúde de Robarts, Wilder consegue en-
arrasada quando ela não se concretizou.
contrar uma maneira de aliviar o tédio
Ela foi indicada apenas uma vez ao prê-
que normalmente acompanha os tribu-
mio, em 1930, por Marrocos.
nais.” (TV Guide)
Charles Laughton (Sir Wilfrid) e Elsa Lanchester (Srta. Plimsoll, a enfermeira),
“Para um melodrama de tribunal atrelado
eram casados na vida real. As cenas entre
a um único truque de enredo – um dispo-
os dois personagens não existiam nem no
sitivo que, é claro, todo mundo promete
conto nem na peça de Agatha Christie e
não revelar –, esta produção cinemato-
foram criadas com o casal de atores em
gráfica da peça de Agatha Christie se sai
mente. O resultado rendeu a ambos indi-
extraordinariamente bem. Isso se deve
cações ao Oscar.
principalmente à esplêndida realização
Considerado por fãs de Agatha Christie
de Billy Wilder em algumas cenas de tri-
como a melhor adaptação de uma de suas
bunal estilhaçantes e a uma performance
obras, ainda que tenha tomado grandes li-
teatral de primeira linha apresentada por
berdades em expandir a história para fora
Charles Laughton no papel do advogado
do tribunal, o único cenário tanto do conto
de defesa.” (Bosley Crowther, The New York
quanto da peça originais.
Times, 1958)
Testemunha de acusação
195
Um amor na tarde (Love in the Afternoon, EUA, 1957, 130 min, p&b, 35mm)
Estúdio: Allied Artists Pictures. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I. A. L. Diamond. Direção de fotografia: William C. Mellor. Montagem: Léonide Azar. Direção de arte: Alexandre Trauner. Figurino: Jay A. Morley Jr. Trilha sonora: Franz Waxman. Elenco: Gary Cooper (Frank Flannagan), Audrey Hepburn (Ariane Chavasse), Maurice Chevalier (Claude Chavasse), John McGiver (Sr. X), Van Doude (Michel), Lise Bourdin (Sra. X), Olga Valéry (hóspede com cachorro).
SINOPSE:
Quando está de partida na estação de trem,
Em Paris, o detetive particular Claude
ela corre ao seu encontro, ele a pega em
Chavasse é contratado para confirmar a in-
seus braços e partem juntos.
fidelidade da esposa de um cliente. O marido traído planeja matar o amante, Frank
PRÊMIOS:
Flannagan. Ariane, a filha do detetive e uma
Globo de Ouro: Indicado a filme de comé-
jovem órfã de mãe, foi criada pelo pai, que
dia, ator de comédia (Chevalier) e atriz de
sempre a manteve afastada de seus casos.
comédia (Hepburn). Sindicato dos Direto-
Mas Ariane mexe nos arquivos do pai en-
res: Indicado a melhor diretor. Sindicato
quanto faz a faxina na casa e, ao encon-
dos Roteiristas: Melhor roteiro de comédia.
trar a foto de Frank, se apaixona. Ela avisa Frank a tempo sobre o marido enciumado,
CURIOSIDADES:
e assim começa a ter um relacionamento
O filme marca a primeira colabora-
com ele – um milionário solteirão cuja vida
ção entre Wilder e o roteirista I. A..L.
é sair viajando e conquistando mulheres.
Diamond, que viria a se tornar seu par-
Muitos de seus casos amorosos foram in-
ceiro constante.
vestigados por Chavasse e, por isso, Ariane
O fracasso do filme, tanto de público
tem muitas informações a seu respeito,
quanto de crítica, foi atribuído ao fato de
criando uma personagem que atraia Frank,
Gary Cooper, então com 55 anos, ser con-
uma mulher fatal. Ela só pode se encontrar
siderado velho demais para fazer par com
com ele no período da tarde, até sua partida
Audrey Hepburn, que tinha 28 anos.
em mais uma de suas viagens. Um ano depois, ele volta a Paris e eles se reencontram
CRÍTICA:
por acaso. Ela continua no jogo de mulher
“O pedestal no qual a reputação de Ernst
fatal, e Frank, já apaixonado, desiste dela.
Lubitsch descansa durante todos esses
196
anos terá de ser levemente realocado para
atrevidas. (...) Mas com o seu mais recente
dar lugar a outro. Neste, colocaremos Billy
romance, que estreou ontem nos cinemas
Wilder. Motivo: Um amor na tarde. Não
Paramount e Plaza, ele não precisa mais
que o nosso amigo Mr. Wilder ainda não
compartilhar o poleiro de seu velho cama-
tivesse se mostrado um provável suces-
rada. Ele agora tem seu próprio pedestal!”
sor de Lubitsch como criador de comédias
(Bosley Crowther, The New York Times, 1957)
Um amor na tarde
197
Águia solitária (The Spirit of St. Louis, EUA, 1957, 135 min, cor, 35mm)
Estúdio: Warner Bros. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder, Wendell Mayes e Charles Lederer. Produção: Leland Hayward. Direção de fotografia: Robert Burks e J. Peverell Marley. Montagem: Arthur P. Schmidt. Direção de arte: Art Loel. Figurino: Jane Leonard e Vic Vallejo. Trilha sonora: Franz Waxman. Elenco: James Stewart (Charles Augustus ‘Slim’ Lindbergh), Murray Hamilton (Bud Gurney), Patricia Smith (garota do espelho), Bartlett Robinson (Benjamin Frank Mahoney), Marc Connelly (Padre Hussman), Arthur Space (Donald Hall), Charles Watts (O. W. Schultz).
SINOPSE: Biografia
e demora a perceber que a movimentaCharles
ção abaixo dele é de uma multidão que o
Lindbergh, o piloto de avião alçado à ca-
romanceada
de
aguarda. Mas uma turba ainda maior, de
tegoria de herói depois de fazer a primeira
4 milhões de pessoas, o receberia em sua
travessia transatlântica sem escalas. Seu
volta a Nova York.
voo, entre Nova York e Paris, se deu em 20 e 21 de maio de 1927, em pouco mais
PRÊMIOS:
de 33 horas, quando o piloto tinha ape-
Oscar: Indicado a efeitos especiais.
nas 25 anos. Enquanto acompanhamos a travessia dentro da cabine do monomotor
CURIOSIDADES:
Spirit of St. Louis, são intercalados mo-
James Stewart tinha 47 anos quando in-
mentos marcantes de sua vida em flashba-
terpretou Charles Lindbergh, que, no fil-
ck. Depois dos vários problemas que tem
me, tem 25 anos. Stewart fez lobby com a
que solucionar, em um voo que outros seis
Warner Bros por mais de dois anos para
pilotos haviam tentado fazer e que lhes
conseguir o papel. Ele era aficionado pela
custara a vida, ele afinal vê uma gaivota e
história de Lindbergh e pelo voo transa-
percebe que está perto da terra, concluin-
tlântico de 1927.
do estar na Irlanda. Cruza o canal inglês e
O filme acabou custando duas vezes seu
se dirige à costa da França. Ainda enfrenta
orçamento original, finalizando em US$ 6
mais um problema quando o motor para
milhões (um orçamento caríssimo para a
por falta de combustível, mas consegue
época). Quando estreou, foi um fracasso
resolver mais este desafio. Já é noite quan-
tanto de crítica quanto de público. O prin-
do Lindbergh vê as luzes de Paris, mas
cipal motivo apontado foi exatamente a es-
se confunde com as luzes dos holofotes
calação de Stewart para o papel principal.
198
CRÍTICA:
é basicamente o mesmo herói desajeita-
“As contundentes decepções desse filme
do e adorável que vemos em um sem-nú-
são a maneira conhecida e superficial que
mero de filmes. (...) Isso é uma pena, pois
o passado de Lindbergh é apresentado e
depois de todos esses anos de espera, se-
o modo abrupto como o drama termina.
ria interessante se pudéssemos ver o que
Nas cenas de flashback, que são inseridas
esse rapaz tinha de único que o destinou
enquanto o piloto aguarda a decolagem
a seu conhecido papel histórico.” (Bosley
em seu hotel e enquanto ele voa sobre o
Crowther, The New York Times, 1957)
Atlântico, o jovem que nos é apresentado
Águia solitária
199
Quanto mais quente melhor (Some Like It Hot, EUA, 1959, 120 min, p&b, 35mm > DCP)
Estúdio: Mirisch Company. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I.A.L. Diamond. Direção de fotografia: Charles Lang Jr. Montagem: Arthur P. Schmidt. Direção de arte: Ted Haworth. Figurino: Orry-Kelly. Trilha sonora: Adolph Deutsch. Elenco: Marilyn Monroe (Sugar Kane Kowalczyk), Tony Curtis (Joe/Josephine), Jack Lemmon (Jerry/Daphne), George Raft (Spats Colombo), Pat O’Brien (Det. Mulligan), Joe E. Brown (Osgood Fielding III), Nehemiah Persoff (Little Bonaparte), Joan Shawlee (Sweet Sue), Billy Gray (Sig Poliakoff), George E. Stone (Toothpick Charlie).
SINOPSE:
uma vez correr por suas vidas. Joe, Sugar,
É fevereiro de 1929 e a cidade de Chicago
Jerry e Osborne fogem numa lancha em di-
vive os primeiros dias da Lei Seca. Os
reção ao iate do milionário, formando-se
músicos Joe e Jerry testemunham aci-
assim dois inusitados novos casais.
dentalmente um massacre pelas mãos de bandidos da máfia. Quando o líder do
PRÊMIOS:
grupo percebe sua presença, eles preci-
Oscar: Melhor figurino em preto e branco.
sam fugir para se salvar. Sem dinheiro e
Indicado a diretor, ator (Lemmon), roteiro
com pressa para sair da cidade, aceitam
adaptado, direção de fotografia em preto e
um emprego em uma banda feminina a
branco e direção de arte em preto e branco.
caminho de Miami. No entanto, eles pre-
Globo de Ouro: Melhor filme de comédia,
cisam se disfarçar de mulheres e passam
melhor ator em comédia (Lemmon) e me-
a se chamar Josephine e Daphne. Eles se
lhor atriz em comédia (Monroe). Sindicato
encantam com Sugar Kane, a vocalista do
dos Diretores: Indicado a melhor diretor.
grupo. Quando chegam a Miami, Joe assu-
Sindicato dos Roteiristas: Melhor roteiro
me uma segunda identidade, do rico Junior,
adaptado. BAFTA: Melhor ator estrangeiro
para conquistá-la. Enquanto isso, Osgood
(Lemmon). Indicado a melhor filme.
Fielding III, um milionário real, tenta sua sorte com Jerry/Daphne, que o rejeita. Mas
CURIOSIDADES:
Joe e Jerry percebem que devem deixar o
Marylin Monroe queria que o filme fosse
hotel quando mafiosos chegam para uma
feito em cores. Mas Billy Wilder a con-
conferência em homenagem aos Amigos
venceu a aceitar o preto e branco quando
da Ópera Italiana. Eles são perseguidos pe-
testes de maquiagem feminina em Tony
los bandidos de Chicago, tendo que mais
Curtis e Jack Lemmon revelaram que seus
200
rostos ficariam esverdeados.
souros mais duradouros do cinema, um fil-
O mafioso que persegue Joe e Jerry foi ins-
me de inspiração e habilidade meticulosa,
pirado em Al Capone, inclusive o massa-
que é sobre nada além de sexo, mas que
cre de uma gangue rival, perpetrado pelo
finge ser sobre crime e ganância. É reche-
bandido em 1929.
ada com o alegre cinismo de Wilder, para
O título original, Some Like It Hot (Alguns
que não se perca tempo com sentimen-
preferem quente), faz alusão a uma fala
talismo e todos se comportem de acordo
de Junior para Sugar, quando ele diz que
com as leis básicas de Darwin. Quando a
prefere música clássica ao “jazz quen-
emoção sincera atinge esses personagens,
te”. Antes de receber esse título, o proje-
ela os cega: Curtis acha que só quer sexo,
to chegou a ser chamado de Fanfares of
Monroe acha que só quer dinheiro; e eles
Love (Fanfarras do amor) e Not Tonight,
acabam tão surpresos quanto encantados
Josephine (Essa noite não, Josephine).
ao descobrir que querem apenas um ao
Durante uma sessão-teste, o público riu tão
outro.” (Roger Ebert, 2000)
alto na cena em que Jerry anuncia seu casamento com Osgood que Wilder resolveu
“Nenhuma outra comédia é mais bem ser-
refilmá-la com pausas entre as falas para
vida pelo fato de diretor e equipe terem
que não se perdesse nada dos diálogos.
anteriormente feito filmes noir. A nova có-
Reprovado pela Liga da Decência, o grupo
pia tem melhorias perceptíveis, mas nem
que ditava a censura dos filmes na épo-
tanto em relação a outras já existentes. (...)
ca, foi lançado sem seu selo de aprova-
A melhoria mais notável são os contrastes
ção e, ao lado de Psicose (1960), de Alfred
e tons muito mais ricos de preto e branco
Hitchcock, ajudou a mudar o conserva-
na fotografia de Charles Lang Jr., indicada
dor sistema de classificação etária nos
ao Oscar. Em particular nas quase sem-
Estados Unidos.
pre esquecidas sequências iniciais nas
Em 2000, foi escolhido pelo American Film
quais os pobres músicos Joe e Jerry aci-
Institute como a melhor comédia ameri-
dentalmente testemunham uma carnifici-
cana de todos os tempos.
na. Wilder e Lang se voltaram aos filmes
noir para criar sua enérgica visão de ganCRÍTICAS:
gues da Chicago nos anos 1920.” (Robert
“Essa comédia de Billy Wilder é um dos te-
Koehler, Variety, 2001)
Quanto mais quente melhor
201
Se meu apartamento falasse (The Apartment, EUA, 1960, 125 min, p&b, 35mm > DCP)
Estúdio: The Mirisch Company. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I. A. L. Diamond. Direção de fotografia: Joseph LaShelle. Montagem: Daniel Mandell. Direção de arte: Alexandre Trauner. Figurino: Forrest T. Butler e Irene Caine. Trilha sonora: Adolph Deutsch. Elenco: Jack Lemmon (C. C. Baxter), Shirley MacLaine (Fran Kubelik), Fred MacMurray (Jeff D. Sheldrake), Ray Walston (Joe Dobisch), Jack Kruschen (Dr. Dreyfuss), David Lewis (Al Kirkeby), Hope Holiday (Srta. Margie MacDougall), Joan Shawlee (Sylvia), Naomi Stevens (Srta. Mildred Dreyfuss), Johnny Seven (Karl Matuschka).
SINOPSE:
à sua esposa, que o abandona. Sheldrake
C. C. Baxter quer crescer no emprego, en-
pede o apartamento de Baxter na véspera
tão permite que quatro gerentes de sua
do Ano Novo, que recusa e sai da empresa.
empresa usem seu apartamento para ca-
Quando Sheldrake conta a Fran, ela perce-
sos extraconjugais em troca de relatórios
be que ama Baxter e corre ao seu encontro.
elogiosos para o diretor de pessoal, Jeff Sheldrake. Este o chama e diz ter desco-
PRÊMIOS:
berto tudo e, por privilégios exclusivos no
Oscar: Melhor filme, diretor, roteiro origi-
empréstimo do apartamento, o promove.
nal, montagem e direção de arte em pre-
Baxter está de olho em Fran Kubelik, a
to e branco. Indicado a ator (Lemmon),
ascensorista, e eles combinam de se en-
atriz (MacLaine), ator coadjuvante (Jack
contrar após ela tomar um drinque com
Kruschen), direção de fotografia em preto e
um ex-caso. O homem é Sheldrake, que
branco e som. Globo de Ouro: Melhor filme
a convence de seu divórcio e a leva para
de comédia, ator de comédia (Lemmon) e
o apartamento de Baxter, mas a espera
atriz de comédia (MacLaine). Indicado a
em vão. Na festa de Natal da empresa, a
diretor. Festival de Veneza: Melhor atriz
secretária de Sheldrake, bêbada, revela a
(MacLaine). BAFTA: Melhor filme, ator
Fran o quanto ele é mulherengo. No apar-
estrangeiro (Lemmon) e atriz estran-
tamento, Fran confronta Sheldrake. Baxter
geira (MacLaine). Círculo de Críticos de
encontra Fran inconsciente em sua cama
Nova York: Melhor filme, diretor e roteiro.
por uma overdose de pílulas. Ela passa
Sindicato dos Diretores: Melhor diretor.
vários dias se recuperando lá, enquanto
Sindicato dos Roteiristas: Melhor roteiro
Baxter tenta distraí-la. Sheldrake despede
de comédia. Grammy: Indicado a álbum
a secretária – que revida contando tudo
de trilha sonora.
202
CURIOSIDADES:
escritório, algumas pessoas vão encontrar
Wilder desenvolveu o ponto de partida do
suas famílias e outras vão para seus apar-
filme a partir de um pensamento que tive-
tamentos onde nem sequer se preocupa-
ra ao assistir a Desencanto (1945), de David
ram em colocar uma planta. Na véspera
Lean. Ele tentou imaginar como seria a
de Natal, mais do em que qualquer outra
vida de um personagem que não existia
noite do ano, uma pessoa solitária se sen-
naquele filme: o dono do apartamento que
te roubada de algo que tinha na infância e
o casal usa para cometer adultério.
não tem mais.” (Roger Ebert, 2001)
O dramaturgo Neil Simon adaptou Se meu apartamento falasse para a Broadway,
“Parte da diversão de ser um fã de Billy
como o musical Promises, Promises. Uma
Wilder é que seu filme favorito muda ao
das canções da peça era a hoje clássi-
longo dos anos. Para mim, às vezes é Um
ca “I’ll Never Fall in Love Again”, de Burt
amor na tarde; outras vezes é A munda-
Bacharach e Hal David.
na. Mas geralmente eu me volto para Se
Foi o último filme em preto e branco a ga-
meu apartamento falasse. Os personagens,
nhar o Oscar de melhor filme até O artista
a trilha, a melancolia e a perfeição do
(2011). A lista de Schindler (1993), também
roteiro e das atuações... É difícil superar,
ganhador do prêmio, tem algumas poucas
embora a efervescência cômica de Quanto
intervenções de cor na fotografia.
mais quente melhor certamente seja uma concorrência forte. Em minha experiên-
CRÍTICAS:
cia ao entrevistá-lo, Wilder normalmente
“Existe um abismo de melancolia, duran-
escolhia Quanto mais quente melhor ou Se
te as festas de fim de ano, entre aqueles
meu apartamento falasse como o seu fa-
que têm um lugar para ir e aqueles que
vorito. Suas razões, segundo ele, eram em
não têm. Se meu apartamento falasse nos
sua maioria ligadas ao roteiro. Ele sim-
afeta, em parte, por esse motivo escondi-
plesmente amava a estrutura e a colabo-
do: se passa nos dias mais curtos do ano,
ração de sucesso com o seu parceiro de
quando o crepúsculo chega rapidamente e
escrita Izzy Diamond.” (Cameron Crowe,
as ruas são frias; quando, após a festa do
Sight & Sound, 2005)
Se meu apartamento falasse
203
Cupido não tem bandeira (One, Two, Three, EUA, 1961, 115 min, p&b, 35mm)
Estúdio: The Mirisch Corporation, Pyramid Productions e Bavaria Film. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I. A. L. Diamond. Direção de fotografia: Daniel L. Fapp. Montagem: Daniel Mandell. Direção de arte: Alexandre Trauner. Trilha sonora: André Previn. Elenco: James Cagney (C. R. MacNamara), Horst Buchholz (Otto Ludwig Piffl), Pamela Tiffin (Scarlett Hazeltine), Arlene Francis (Phyllis MacNamara), Howard St. John (Wendell P. Hazeltine), Hanns Lothar (Schlemmer), Leon Askin (Peripetchikoff), Ralf Wolter (Borodenko), Karl Lieffen (Fritz), Hubert von Meyerinck (Conde von Droste Schattenburg).
SINOPSE:
Atlanta e corre ao encontro de sua família,
C. R. “Mac” MacNamara é um alto executi-
que estava no aeroporto voltando aos EUA.
vo da Coca-Cola em Berlim Ocidental que
Para comemorar, compra Coca-Cola para
almeja ser chefe de operações europeias
todos, mas percebe que a garrafa que pe-
do Ocidente, em Londres. Mac recebe um
gou para si é uma Pepsi.
telefonema de seu chefe em Atlanta, W. P. Hazeltine: Scarlett, sua filha de 17 anos,
PRÊMIOS:
iria para Berlim por duas semanas – que
Oscar: Indicado a direção de fotografia em
acabam virando dois meses. Mac desco-
preto e branco. Globo de Ouro: Indicado
bre que Scarlett se casara com Otto Piffl,
a filme de comédia e atriz coadjuvante
um comunista da Alemanha Oriental.
(Tiffin). Sindicato dos Roteiristas: Indicado
Horrorizado, e ao saber que Hazeltine e es-
a roteiro de comédia.
posa viriam a Berlim no dia seguinte, Mac arranja um jeito de Otto ser preso e assim
CURIOSIDADES:
afastá-lo de Scarlett. Pressionado pela de-
As filmagens tiveram que ser transferi-
saprovação de sua esposa (que pressiona
das de Berlim para Munique por terem
também para voltar para os EUA), e com a
sido interrompidas pelo início da cons-
revelação de que Scarlett está grávida, Mac
trução do Muro de Berlim.
traz Otto de volta e muda de estratégia:
O pôster do filme foi criado pelo designer
tenta fazer com que pareça um bom parti-
Saul Bass, que, seis anos antes, desenha-
do de família aristocrática. Otto é aprova-
ra a abertura de O pecado mora ao lado.
do pelo sogro e Mac descobre que ele será
O pôster original criado por Bass e que
nomeado para o cargo em Londres. Mas
Billy Wilder adorava não pôde ser usado.
Mac é promovido a vice-presidente em
Tratava-se uma bandeira dos EUA saindo
204
de dentro de uma garrafa de Coca-Cola.
dos empregados é intensificado ao serem
A empresa de refrigerantes, no entanto,
filmados sempre do mesmo ângulo, du-
ameaçou processar os produtores do fil-
rante os acontecimentos mais absurdos.”
me por violação de copyright.
(Gérard Legrand, Positif, 1978)
Joan Crawford, integrante do quadro de diretores da Pepsi, ligou para Wilder du-
“O roteiro, baseado em uma peça em um
rante as filmagens reclamando do fato
ato de Ferenc Molnar, é excelente. Ele não
dele estar fazendo um filme sobre a Coca-
faz rodeios e acerta alguns ponteiros po-
Cola. Foi assim que o diretor teve a ideia
líticos e ideológicos em ambos os lados
para a cena final.
do Portão de Brandemburgo. Cagney se mostra um exímio farsista com uma ca-
CRÍTICAS:
racterização direta e carregada. (...) Outro
“Sem que o espaço imponha aqui sua pre-
fator importante nessa comédia é a tri-
sença obsessiva, como em Se meu aparta-
lha sonora de André Previn, que incorpo-
mento falasse, Wilder conseguiu conectar a
ra temas pop e semiclássicos do período
topografia da sede da Coca-Cola aos acon-
(como a ‘Dance Saber’ e ‘Yes, We Have No
tecimentos que se desdobram, de uma
Bananas’) trazendo grande vantagem para
maneira ao mesmo tempo clássica e caó-
o filme.” (Variety, 1960)
tica. O efeito cômico dos planos de reação
Cupido não tem bandeira
205
Irma la Douce (Irma la Douce, EUA, 1963, 147 min, cor, 35mm > DCP)
Estúdio: The Mirisch Corporation. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I. A. L. Diamond. Produção: Billy Wilder, Edward L. Alperson e Alexandre Trauner. Direção de fotografia: Joseph LaShelle. Montagem: Daniel Mandell. Direção de arte: Alexandre Trauner. Figurino: Orry-Kelly. Trilha sonora: André Previn. Elenco: Jack Lemmon (Nestor Patou / Lorde X), Shirley MacLaine (Irma la Douce), Lou Jacobi (Moustache), Bruce Yarnell (Hippolyte), Herschel Bernardi (Inspetor Lefevre), Hope Holiday (Lolita), Joan Shawlee (Amazon Annie), Grace Lee Whitney (Kiki the Cossack), Paul Dubov (Andre), Howard McNear (porteiro).
SINOPSE:
ra que não ocorreu, Nestor corre para se
Nestor, um policial honesto de Paris, é
casar com Irma. E o bebê nasce ainda na
transferido para uma rua cheia de prosti-
igreja. Moustache percebe um dos convi-
tutas. Ele promove uma batida, mas, como
dados sentado só na primeira fila, e ele é
muitos figurões utilizam o serviço delas,
ninguém menos que o Lorde X!
acaba expulso da polícia. Ele é atraído pelo local e vai ao Chez Moustache, ponto de
PRÊMIOS:
encontro de prostitutas. Ao defender a po-
Oscar: Melhor trilha sonora adaptada.
pular Irma la Douce de seu cafetão, acaba
Indicado a atriz (MacLaine) e direção de
se tornando seu novo cafetão. Ciumento
fotografia em cores. Globo de Ouro: Melhor
do pensamento de Irma com outros ho-
atriz de comédia (MacLaine). Indicado
mens, inventa um alter ego: o inglês Lorde
a filme de comédia e ator de comédia
X, que se torna seu único cliente. Para po-
(Lemmon). BAFTA: Indicado a atriz estran-
der pagá-la, trabalha dia e noite. Quando
geira (MacLaine, também por seu trabalho
Irma decide deixar Paris com o Lorde X, ele
em A senhora e seus maridos). Sindicato dos
decide acabar com a farsa. É seguido pelo
Roteiristas: Indicado a roteiro de comédia.
ex-cafetão de Irma quando joga seu disfarce no rio Sena, e este conclui que Nestor
CURIOSIDADES:
matou o Lorde. Nestor é preso. Quando
Apesar dos problemas durante as filma-
descobre que Irma está grávida, escapa da
gens de Quanto mais quente melhor, Billy
prisão e inventa uma maneira de a polícia
Wilder queria voltar a trabalhar com
procurá-lo no Sena. Vestido como Lorde X,
Marylin Monroe, pois acreditava que ela
emerge do rio. Sabendo que não pode ser
seria perfeita para o papel de Irma. No en-
preso por um crime que a polícia sabe ago-
tanto, a atriz morreu quando o filme ainda
206
estava em pré-produção. O
mesmo
aconteceu
dentro do rio, Jack Lemmon teve de tomar com
Charles
uma série de vacinas como precaução.
Laughton, com quem Wilder queria voltar a trabalhar depois da bem-sucedida
CRÍTICA:
parceria em Testemunha de acusação. O
“[Em Se meu apartamento falasse] certa-
ator estava contratado para interpretar
mente há também medo, desejo reprimi-
Moustache, mas faleceu antes das filma-
do e uma centena de outras coisas... mas
gens começarem.
sobretudo ciúme. Nesse sentido, Irma la
Depois das láureas que Se meu apartamen-
Douce é exemplar ao nos mostrar Lemmon
to falasse trouxeram, Shirley MacLaine as-
com ciúmes do duplo que ele imaginou,
sinou contrato para este filme antes mes-
criou, encarnou – e que termina por li-
mo de ler o roteiro, afirmando confiança
teralmente escapar-lhe, como um gêmeo
total em Wilder e seu parceiro de cena Jack
siamês separado (ver a aparição final do
Lemmon. No entanto, ela não ficou satisfei-
Lorde X). (...) Eu diria ainda que, em Wilder,
ta com o resultado final e se surpreendeu
o ciúme aparece quase que necessaria-
até mesmo com sua indicação ao Oscar.
mente ligado ao disfarce e/ou a mal-en-
Apesar de ser baseado em um musical da
tendidos e que os personagens criam sem-
Broadway, a adaptação para as telas cortou
pre clones de si mesmos. Nestor então se
as cenas em que os personagens cantavam.
vestia com trapos somente para depois
À época das filmagens, o rio Sena, em
poder dizer: ‘Não, ele não é eu. Veja essa
Paris, estava severamente poluído. Para
figura, eu me pareço com isso?’” (Yves Alix,
rodar as cenas em que o Lorde X sai de
Positif, 1989)
Irma la Douce
207
Beija-me, idiota (Kiss Me, Stupid, EUA, 1964, 125 min, p&b, 35mm)
Estúdio: The Mirisch Corporation. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I. A. L. Diamond. Direção de fotografia: Joseph LaShelle. Montagem: Daniel Mandell. Direção de arte: Robert Luthardt. Figurino: Irene Caine, Wesley Jeffries e Bill Thomas. Trilha sonora: André Previn. Elenco: Dean Martin (Dino), Kim Novak (Polly the Pistol), Ray Walston (Orville), Felicia Farr (Zelda), Cliff Osmond (Barney), Barbara Pepper (Big Bertha), James Ward (leiteiro), Doro Merande (Sra. Pettibone), Bobo Lewis (garçonete), Tommy Nolan (Johnnie Mulligan).
SINOPSE:
ce a gravar uma música do marido. Noites
Barney trabalha num posto de gasolina e
depois, com o casamento abalado, Orville
Orville dá aulas de piano. Nas horas vagas,
ouve Dino cantando uma de suas músicas
eles compõem canções. Orville é casado
em rede nacional e faz as pazes com Zelda.
com Zelda, de quem morre de ciúme. Por um problema na estrada principal, en-
CURIOSIDADES:
tra na cidade deles o famoso cantor Dino.
O papel de Orville demorou a chegar às
Barney tem uma ideia: mexer numa válvu-
mãos de Ray Walston. Inicialmente, Billy
la do caro de Dino e levá-lo para descansar
Wilder queria voltar a trabalhar com Jack
na casa de Orville, enquanto “conserta” o
Lemmon, depois da parceria de sucesso
carro. Assim, eles teriam a chance de mos-
em Quanto mais quente melhor, Se meu
trar suas composições para um cantor de
apartamento falasse e Irma la Douce. No
sucesso, que também é um conquistador.
entanto, o ator já havia assinado contra-
Para proteger sua esposa, Orville força
to para fazer outro filme e teve de decli-
uma briga e a manda para a casa da sogra.
nar o convite. Wilder chamou então Peter
Contrata a prostituta Polly para se passar
Sellers para o papel e com ele chegou a
por sua esposa e tentar conquistar Dino, fa-
filmar por seis semanas. Até que o come-
zendo com que ele compre alguma canção
diante sofreu uma série de 13 enfartes e,
da dupla. Mas, envolvido pelo clima fami-
por ordens médicas, voltou para o Reino
liar, Orville expulsa Dino e acaba passando
Unido, sua terra natal, para repouso.
a noite com Polly. Já Zelda afoga suas mágo-
Wilder decidiu não esperar sua recupe-
as em um bar e acaba por dormir no trailer
ração para retomar o filme e, agora com
de Polly. Dino, a tomando por Polly, acaba
Walston contratado, refilmou todas as ce-
passando a noite com ela, que o conven-
nas que já havia filmado com Sellers.
208
Wilder convidou seu amigo Ira Gershwin
lhor, estão, infelizmente, ausentes neste
para compor as canções de Barney e
exercício pungente. Em vez disso, temos
Orville. Ira se propôs a criar letras para
uma vulgaridade que não vai chocar ne-
três melodias compostas por seu falecido
nhum adulto. No entanto, essa pesada
irmão George. Assim, três novas canções
fábula sexual exige uma abordagem leve,
dos irmãos Gershwin entraram para a tri-
sutil, que raramente se faz presente.” (A. H.
lha deste filme: “Sophia”, “I’m a Poached
Weiler, The New York Times, 1964)
Egg” e “All the Livelong Day”. Durante as filmagens, Kim Novak costu-
“Alguns dizem que Beija-me, idiota é um
mava preparar sanduíches e biscoitos ca-
filme à frente de seu tempo. Na verdade, a
seiros para o elenco e a equipe.
vulgaridade supostamente sofisticada do
Wilder pouco se referia a este filme depois
filme está firmemente enraizada no êxtase
de lançá-lo. No livro On Sunset Boulevard:
presunçoso da era Kennedy. A sequência de
The Life and Times of Billy Wilder, biogra-
abertura é um clássico do Rat Pack1, com
fia escrita por Ed Sikov, no entanto, ele diz
Dean Martin no palco do Sands rodeado
o seguinte: “Eu não sei por que esse filme
por um inexpressivo harém de garotas es-
chocou tanta gente. É o filme mais burguês
culturais enquanto cantarola ‘S’Wonderful’.
que existe. Um homem quer uma carreira
Não menos do que Gloria Swanson em
e a pessoa que quer ajudá-lo quer dormir
Crepúsculo dos deuses, Martin corajosa-
com sua esposa. Ele substitui sua esposa
mente interpreta uma versão cômica de si
por outra, mas quando está próximo do
mesmo, bem como uma estrela genérica.”
sucesso, se recusa e manda o cara embo-
(J. Hoberman, The Village Voice, 2002)
ra... O público aceitou isso melhor em Se
meu apartamento falasse porque, naquele filme, isso foi mais bem concebido, mais bem escrito, estava mais lubrificado.”
CRÍTICAS: “A finesse, velocidade, talento e imaginação de, digamos, Quanto mais quente me-
Beija-me, idiota
1 Como era conhecido um grupo de artistas boêmios dos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 60, do qual faziam parte, além de Dean Martin, Frank Sinatra, Sammy Davis Jr., Shirley MacLaine e Lauren Bacall, entre outros.
209
Uma loura por um milhão (The Fortune Cookie, EUA, 1966, 125 min, p&b, 35mm)
Estúdio: The Mirisch Corporation e Phalanx-Jalem. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I. A. L. Diamond. Direção de fotografia: Joseph LaShelle. Montagem: Daniel Mandell. Direção de arte: Robert Luthardt. Figurino: Chuck Arrico e Paula Giokaris. Trilha sonora: André Previn. Elenco: Jack Lemmon (Harry Hinkle), Walter Matthau (Willie Gingrich), Ron Rich (Luther “Boom Boom” Jackson), Judi West (Sandy Hinkle), Cliff Osmond (Purkey), Lurene Tuttle (Mamãe Hinkle), Harry Holcombe (O’Brien), Les Tremayne (Thompson), Lauren Gilbert (Kincaid), Marge Redmond (Charlotte Gingrich).
SINOPSE:
Sandy está de volta estritamente por ga-
Harry Hinkle, cinegrafista da CBS, fica leve-
nância, decide revelar a verdade, arrui-
mente ferido quando um imenso atacante
nando assim os planos de enriquecimento
de futebol americano tromba com ele du-
rápido de Willie.
rante a cobertura de um jogo. Mas Harry é convencido por seu cunhado, Whiplash
PRÊMIOS:
Willie, um advogado salafrário, a fingir
Oscar: Melhor ator coadjuvante (Matthau).
uma gravidade que não houve do choque
Indicado a roteiro original, direção de foto-
para poder exigir um milhão de indeni-
grafia em preto e branco e direção de arte
zação. Quando sabe do caso, a mulher de
em preto e branco. Globo de Ouro: Indicado
Harry – que fugira com outro – retorna ao
a ator de comédia (Matthau). Sindicato dos
lar afável e arrependida, pois tem espe-
Roteiristas: Indicado a roteiro de comédia.
rança de abocanhar uma parte da grana. Harry reluta sobre o golpe, mas, por ain-
CURIOSIDADES:
da ser apaixonado pela esposa, aceita o
O título original, The fortune cookie, signi-
esquema por achar que com isto a recon-
fica “O biscoito da sorte”. É uma referên-
quistaria. A companhia de seguros adia o
cia à cena em que Harry, no hospital, rece-
pagamento o quanto pode, desconfiando
be um desses biscoitos, com a mensagem
da veracidade das lesões e procurando
“Você não pode enganar todo mundo ao
descobrir uma falha no esquema, inclusi-
mesmo tempo”.
ve até filmando o interior do apartamento
É o primeiro filme estrelado pela célebre
de Harry por uma janela. Começa um jogo
dupla Jack Lemmon e Walter Matthau, que
de gato e rato entre o investigador, Chester
viria a trabalhar junta em mais dez filmes,
Purkey e Willie. Afinal, como Harry vê que
numa parceria que durou 32 anos. Já era a
210
quarta vez que Lemmon trabalhava com o
último filme de Mr. Wilder e uma comédia
diretor Billy Wilder, mas a primeira vez de
de vulgaridade latente, mas tem estilo e
Matthau. Wilder queria ter trabalhado com
bom gosto. É também um explosivamente
o ator anteriormente, em O pecado mora ao
engraçado cartoon de carne e osso sobre
lado (1955), mas o estúdio por trás daquele
trambiqueiros mesquinhos que veem o
filme tinha reservas quanto à escalação de
sistema econômico como uma gigantes-
um novato.
ca máquina de pinball, pronta para pagar
As filmagens tiveram de ser interrompidas
a quem incliná-la corretamente.” (Vincent
por algumas semanas quando Matthau so-
Canby, The New York Times, 1966)
freu um enfarte. “A primeira hora de Uma loura por um mi-
CRÍTICAS:
lhão é mais corrosiva do que todo A mon-
“Billy Wilder é um tanto quanto louco,
tanha dos sete abutres. Wilder e Diamond
talvez até mesmo perigoso. Quando digo
partem para a jugular em um ataque sem
isso, quero dizer que ele é um moralista
concessões à rapacidade e à corrupção
degenerado cuja última visão do sonho
humanas. A ferocidade do humor, num
americano, intitulada Uma loura por um
primeiro momento, sugere que a dupla
milhão, é uma bela alucinação, sombria e
de colaboradores correu por abrigo após
cheia de gags, povoada por abandonados
o fracasso de Beija-me, idiota. Partes deste
da Grande Sociedade. Estreou por aqui on-
filme levam a quase uma autocondenação
tem, nos cinemas Astor, Trans-Lux East e
das acusações de cinismo direcionadas a
Murray Hill. Uma loura por um milhão não
Wilder ao longo dos anos.” (Gary Morris,
é mais ensolarado – e, se possível, ainda
Film Comment, 1979)
menos romântico – do que Beija-me, idiota,
Uma loura por um milhão
211
A vida íntima de Sherlock Holmes (The Private Life of Sherlock Holmes, Reino Unido, 1970, 125 min, cor, 35mm)
Estúdio: The Mirisch Production Company. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I. A. L. Diamond. Direção de fotografia: Christopher Challis. Montagem: Ernest Walter. Direção de arte: Tony Inglis. Figurino: Julie Harris. Trilha sonora: Miklós Rózsa. Elenco: Robert Stephens (Sherlock Holmes), Colin Blakely (Dr. Watson), Geneviève Page (Gabrielle Valladon), Christopher Lee (Mycroft Holmes), Tamara Toumanova (Madame Petrova), Clive Revill (Rogozhin), Irene Handl (Srta. Hudson), Mollie Maureen (Rainha Vitória), Stanley Holloway (coveiro), Catherine Lacey (mulher na cadeira de rodas).
SINOPSE:
pois, Sherlock recebe uma mensagem de
Filme composto por duas histórias. Na pri-
Mycroft dizendo que Von Hoffmanstal fora
meira, Sherlock Holmes recebe a proposta
presa no Japão e executada. Triste, vai para
de uma bailarina russa, Madame Petrova,
seu quarto em busca de consolo em drogas
para que concebam um filho juntos, que
e no violino.
herdaria os atributos físicos dela e o intelecto dele. Holmes alega que Watson é
PRÊMIOS:
seu amante e acrescenta: “E se a criança
Sindicato dos Roteiristas: Indicado a rotei-
herdasse a minha beleza e o seu cérebro?”.
ro de comédia
Na outra, Gabrielle Valladon é pescada do rio Tâmisa e levada a Holmes, a quem im-
CURIOSIDADES:
plora que encontre o marido desaparecido.
O filme era, inicialmente, um projeto bem
A investigação leva à Escócia. O irmão de
mais ambicioso, contando com um total de
Sherlock, Mycroft, está envolvido na cons-
quatro episódios e um flashback de Holmes
trução de um submarino para a marinha
nos tempos da faculdade. Tanto que o pri-
britânica, com a ajuda do Sr. Valladon.
meiro corte fechou em 200 minutos. No en-
Mycroft informa que Gabrielle é na verda-
tanto, a United Artists, que distribuiu o fil-
de uma espiã alemã, Ilse von Hoffmanstal,
me, vinha de uma série de fracassos e exigiu
enviada para roubar o submersível. A rai-
que Billy Wilder diminuísse a duração para
nha Vitória chega para inspecionar a nova
algo em torno de 120 minutos. Atualmente,
arma, mas objeta à sua natureza anti-
acredita-se que não exista mais nenhuma
desportiva, ordenando que seja destruí-
cópia do corte original, ainda que o mate-
da. A espiã acaba sendo presa, para troca
rial filmado possa um dia ser restaurado e
com a contraparte britânica. Meses de-
montado como Wilder gostaria.
212
A primeira e mais curta história do filme
“A vida íntima de Sherlock Holmes é o ápi-
é inspirada no acontecido entre o drama-
ce da carreira de Billy Wilder. Seu fracasso
turgo George Bernard Shaw e a bailarina
inicial foi um golpe devastador para ele,
Isadora Duncan, em que ele deu exata-
que tinha cuidado e nutrido este projeto
mente a mesma resposta à proposta dela:
por 15 anos de falsos começos, tratamen-
“E se a criança herdasse a minha beleza e
tos de roteiro e mudanças no elenco. Além
o seu cérebro?”.
disso, já tinha sido forçado a cortar uma hora do filme. Confrontada com uma me-
CRÍTICAS:
ditação sobre melancolia e perda, de três
“O personagem de Holmes, andando por
horas e 15 minutos de duração, a United
aí com a sua lupa e identificando um as-
Artists entrou em pânico e mandou Wilder
sassino pelo grau em que a salsa tinha
de volta para a mesa de edição. Assim
afundado na manteiga em um dia quen-
como Soberba, de Orson Welles, e Nasce
te de verão, é um assunto promissor para
uma estrela, de George Cukor, A vida íntima
o tipo de olhar satírico que esperamos de
de Sherlock Holmes é uma das maiores ofe-
Wilder e seu frequente colaborador, I. A. L.
rendas que os estúdios de Hollywood sa-
Diamond. Mas eles deixam passar a chan-
crificaram ao deus Mamon1.” (Gary Morris,
ce e nos entediam. (...) Holmes leva cerca
Film Comment, 1979)
de meia hora a mais para resolver o caso do que nós, e o pobre Watson nunca o alcança.” (Roger Ebert, 1971)
A vida íntima de Sherlock Holmes
1 Derivado da Bíblia, é o deus da ganância e da avareza. Do hebraico Mamom ()ןֹומָמ, que significa, literalmente, dinheiro.
213
Avanti... Amantes à italiana (Avanti!, EUA/Itália, 1972, 140 min, cor, 35mm)
Estúdio: The Mirisch Corporation, Jalem Productions, Phalanx Productions e Produzioni Europee Associati. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I. A. L. Diamond. Direção de fotografia: Luigi Kuveiller. Montagem: Ralph E. Winters. Direção de arte: Ferdinando Scarfiotti. Figurino: Annalisa Nasalli-Rocca. Trilha sonora: Carlo Rustichelli. Elenco: Jack Lemmon (Wendell Armbruster Jr.), Juliet Mills (Pamela Piggott), Clive Revill (Carlo Carlucci), Edward Andrews (J. J. Blodgett), Gianfranco Barra (Bruno), Franco Angrisano (Arnold Trotta), Pippo Franco (Mattarazzo), Franco Acampora (Armando Trotta), Giselda Castrini (Anna), Raffaele Mottola (guarda).
SINOPSE:
locais e da burocracia, Wendell e Pamela
Nos últimos dez anos, o industrial ameri-
começam a se apaixonar, com a ajuda do
cano Wendell Armbruster passa o mês de
gerente Carlo Carlucci e do resto dos fun-
agosto no Grand Hotel Excelsior, em Ísquia,
cionários do hotel, todos determinados a
na Itália, supostamente pelos banhos de
fazer com que o casal siga o caminho ro-
lama terapêuticos. Quando ele morre em
mântico de seus pais.
um acidente de carro, seu filho Wendell Armbruster Jr. viaja para lá. Após sua che-
PRÊMIOS:
gada, ele descobre que seu pai não estava
Globo de Ouro: Melhor ator de comédia
sozinho enquanto dirigia, com ele estava
(Lemmon). Indicado a filme de comédia,
sua amante britânica, cuja filha, Pamela
diretor, atriz de comédia (Mills), ator co-
Piggott, claramente já sabia do romance
adjuvante (Revill) e roteiro. Sindicato dos
clandestino de seus pais. Complicações
Roteiristas: Indicado a roteiro adaptado de
surgem quando a família Trotta, cujo vi-
comédia.
nhedo foi danificado pelo carro, rouba os corpos do necrotério e pede um resgate
CURIOSIDADES:
de dois milhões de liras. Tentando ajudar
O filme é baseado numa peça da Broadway,
está o embaixador dos Estados Unidos, J.
de autoria de Samuel Taylor. O espetáculo,
J. Blodgett, que espera nomear o falecido
que estreou em 1968, foi um fracasso e
para um posto de embaixada postuma-
teve apenas 21 apresentações.
mente para que o governo possa se en-
Há algum tempo Billy Wilder vinha se
volver na recuperação de seu corpo. Na
mostrando insatisfeito com o resultado
escalada dos problemas com os costumes
final de seus filmes, como Beija-me, idio-
214
ta e A vida íntima de Sherlock Holmes (que
ao confronto ambíguo entre a sofisticação
a United Artists transformou num filme
europeia e a inocência americana. Avanti...
totalmente diferente do seu projeto origi-
Amantes à italiana é algo reminiscente
nal). Com Avanti... Amantes à italiana não
de A mundana, em que uma congressis-
foi diferente. No livro Nobody’s Perfect: Billy
ta americana descobre a decadência da
Wilder, A Personal Biography, Charlotte
Berlim do pós-guerra. Mas naquele filme
Chandler reproduz a seguinte fala do dire-
Wilder amenizava seu duro retrato da
tor: “Talvez tenhamos exagerado com al-
autojustiça americana. Avanti, pelo con-
guns alívios cômicos, porque Avanti não é
trário, é uma de suas mais diretas sátiras
uma comédia. Se este filme tivesse funcio-
antiamericanistas.” (Stephen Farber, Film
nado da maneira que queríamos, ele teria
Quarterly, 1973)
mais a cara de Se meu apartamento falasse. Eu sempre fico triste pela decepção dos
“Avanti... Amantes à italiana é comovente.
atores, e de todos os meus queridos técni-
Cada imagem sugere que Billy Wilder está
cos que fazem tanto, quando o filme não
contemplando a sua própria mortalida-
resulta da maneira que esperavam... Eu fui
de. Ele não perdeu o sua antiga ironia. Há
muito mais longe com temas proibidos do
uma abundância de farpas pesadas volta-
que com Beija-me, idiota, mas ninguém se
das ao americano no exterior e à maneira
importou. O público achou muito longo e
como os nativos exploram os turistas. (...)
sem graça. Acho que teriam gostado mais
Mas as piadas são secundárias ao lado
se o pai estivesse tendo um caso com um
das profundas emoções que estão sen-
dos carregadores de mala do hotel.”
do expressadas. Em Avanti, Wilder aceita com serenidade a chegada da idade e a
CRÍTICAS:
possibilidade real de felicidade entre um
“Vários dos filmes de Wilder giram em tor-
homem e uma mulher. É seu filme mais
no do tema de um cidadão norte-ameri-
esperançoso e positivo.” (Gary Morris, Film
cano na Europa. Ele volta com frequência
Comment, 1979)
Avanti... Amantes à italiana
215
A primeira página (The Front Page, EUA, 1974, 105 min, cor, 35mm > DCP)
Estúdio: Universal Pictures. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I. A. L. Diamond. Produção: Paul Monash. Direção de fotografia: Jordan Cronenweth. Montagem: Ralph E. Winters. Direção de arte: Henry Bumstead. Figurino: Burton Miller. Trilha sonora: Billy May. Elenco: Jack Lemmon (Hildy Johnson), Walter Matthau (Walter Burns), Susan Sarandon (Peggy Grant), Carol Burnett (Mollie Malloy), Austin Pendleton (Earl Williams), Vincent Gardenia (xerife), David Wayne (Bensinger), Allen Garfield (Kruger), Charles Durning (Murphy), Herbert Edelman (Schwartz).
SINOPSE:
roviária seguinte alertando que o homem
Hildebrand “Hildy” Johnson, repórter do
que roubou seu relógio está no trem e que
Chicago Examiner, decide sair do emprego
deve ser preso pela polícia.
e partir da cidade para se casar com Peggy Grant quando Earl Williams escapa do cor-
PRÊMIOS:
redor da morte pouco antes de sua exe-
Globo de Ouro: Indicado a filme de co-
cução. Earl é um desajeitado esquerdista,
média e duplamente a ator de comé-
mas a imprensa marrom o pintou como
dia (Lemmon e Matthau). Sindicato dos
uma ameaça perigosa de Moscou. Mollie
Roteiristas: Indicado a roteiro adaptado de
Malloy, uma prostituta, fez amizade com
comédia.
Earl e revela seu esconderijo a Hildy, que é incapaz de resistir à tentação do que pode-
CURIOSIDADES:
ria ser o maior furo de sua carreira. O im-
Billy Wilder era contra a ideia de refilma-
placável editor, Walter Burns, o incentiva
gens. Ele costumava dizer que, se um fil-
a ficar e cobrir a história. Quando Earl afi-
me era bom, não deveria ser refeito. Se era
nal é pego, Hildy e Walter são presos como
ruim, menos ainda. No entanto, acabou
cúmplices, mas liberados quando se des-
aceitando a ideia de refilmar A primeira
cobre que o prefeito e o xerife conspira-
página (dirigido por Lewis Milestone em
ram para manter em segredo o perdão de
1931), que já havia sido refeito em 1940
última hora do governador a Earl. Walter
por Howard Hawks, com o título Jejum de
finge aceitar estar perdendo o repórter e o
amor. Como vinha acontecendo com seus
presenteia com um relógio como símbolo
últimos filmes, Wilder não ficou satisfeito
de seu apreço. Hildy e Peggy afinal pegam
com o resultado final, chegando a declarar
o trem. Walter telegrafa para a estação fer-
que deveria ter seguido seus instintos e
216
não aceitado fazer o filme.
algum lugar entre esses dois extremos.
A atriz Carol Burnett não ficou satisfeita
Ainda que a mecânica e as demandas da
com seu trabalho no filme. Ela costuma
produção de um filme tenham diminuído
contar a história de quando estava em um
a velocidade do que deveria ser um ritmo
voo em que foi exibido A primeira página.
furioso, este filme exibe uma amargura
Ao final do filme, ela se levantou e pediu
rara em qualquer filme, exceto os de Mr.
desculpas aos outros passageiros pelo que
Wilder. É também, na maior parte do tem-
tinham acabado de assistir.
po, extremamente engraçado.” (Vincent Canby, The New York Times, 1974)
CRÍTICAS: “O ponto de partida é algo natural para Mr.
“Como A vida íntima de Sherlock Holmes,
Wilder e seu roteirista e colaborador I. A.
este é um filme de memória, rico em deta-
L. Diamond, que, apesar de todos os seus
lhes de época (Chicago, 1929) e visto atra-
sucessos comparativamente mais “bon-
vés de um brilho âmbar. Também nos dá
zinhos” (Um amor na tarde, Quanto mais
uma rara oportunidade de observar o tra-
quente melhor, Se meu apartamento falasse
tamento do mesmo material pelas mãos
e A vida íntima de Sherlock Holmes), tem
de dois grandes diretores. O ritmo de fa-
um especial (e, para mim, muito atraente)
las acelerado como uma metralhadora de
apreço por vulgares e brilhantes vigaristas
Hawks em Jejum de amor é substituído por
de uma cafonice monumental. Esse apre-
um mais controlado, mais deliberado na
ço resultou em pelo menos um filme que,
versão de Wilder. As pessoas esperavam
de tanto mau gosto, suas piadas definiram
ver A primeira página se desenvolver em
um novo estilo espalhafatoso (Beija-me,
um ritmo acelerado, mas Wilder ocasio-
idiota), e em outro filme que está entre os
nalmente salta uma batida, criando um
seus melhores (Uma loura por um milhão).
humor pensativo e melancólico que lem-
A primeira página, que estreou ontem nos
bra Avanti... Amantes à italiana.” (Gary
cinemas Coronet e Little Carnegie, fica em
Morris, Film Comment, 1979)
A primeira página
217
Fedora (Fedora, França/Alemanha, 1978, 116 min, cor, 35mm > DCP)
Estúdio: Bavaria Atelier, Lorimar, NF Geria Filmgesellshaft GmbH e Société Française de Production. Direção e produção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I. A. L. Diamond. Direção de fotografia: Gerry Fisher. Montagem: Stefan Arnsten e Fredric Steinkamp. Direção de arte: Robert André. Figurino: Charlotte Flemming. Trilha sonora: Miklós Rózsa. Elenco: William Holden (Barry “Dutch” Detweiler), Marthe Keller (Fedora / Antonia Sobryanski), Hildegard Knef (Condessa Fedora Sobryanski), José Ferrer (Dr. Vando), Frances Sternhagen (Srta. Balfour), Mario Adorf (gerente do hotel em Corfu), Stephen Collins (jovem Barry), Henry Fonda (ele mesmo), Michael York (ele mesmo), Hans Jaray (Conde Sobryanski).
SINOPSE:
um tratamento a desfigurou. A fim de ga-
Fedora, uma das maiores estrelas de cine-
rantir o silêncio de Antonia, ela foi manti-
ma do século, vive agora reclusa e inexpli-
da em cativeiro. Dutch se despede e seis
cavelmente manteve sua beleza juvenil,
semanas depois ela também morre.
apesar de sua idade avançada. Ela comete suicídio, e entre os que choram em
CURIOSIDADES:
seu funeral está o produtor Barry “Dutch”
Billy Wilder teve dificuldades para con-
Detweiler, com quem teve um breve ro-
seguir financiar e, posteriormente, lan-
mance. Ele relembra sua visita a Fedora
çar o filme. A princípio, nenhum estúdio
duas semanas antes, para convencê-la a
americano quis patrocinar o projeto e o
estrelar uma nova adaptação cinemato-
diretor teve que conseguir dinheiro na
gráfica de Anna Karenina. Ela se diz prisio-
Europa. Quando o filme ficou pronto, a
neira em seu retiro remoto, mantida em
Allied Artists, que iria distribuí-lo, vol-
cativeiro pela condessa Sobryanski e pelo
tou atrás depois de uma sessão teste de
Dr. Vando, aparentemente o responsável
péssima repercussão. A United Artists
pela juventude da estrela. Então Dutch é
acabou assumindo o lançamento, que
nocauteado e só acorda quase uma sema-
aconteceu no Festival de Cannes, dentro
na mais tarde, quando sabe que Fedora se
de uma retrospectiva do diretor, e, pos-
matou. No funeral, Dutch acusa Vando e
teriormente, em algumas poucas cidades
a condessa de levarem Fedora à morte. A
dos EUA e da Europa.
condessa revela que ela é Fedora e a mu-
Fedora tem relações diretas com Crepúsculo
lher que morreu era sua filha Antonia, que
dos deuses, feito 28 anos antes: ambos são
a personificou durante anos depois que
estrelados por William Holden no papel de
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um homem tendo que lidar com uma atriz
lamúria contra os novos garotos da cida-
de Hollywood aposentada e vivendo isola-
de). Mas os anacronismos deliberados e
da. Além disso, os dois filmes são narrados
por vezes desanimadores são sinais de
pelos personagens de Holden.
um profundo e inabalável compromisso com sua estética pessoal, um compromis-
CRÍTICAS:
so que às vezes é mais comovente do que
“A intolerância de Billy Wilder para com a
qualquer coisa no próprio filme.” (Dave
fragilidade humana há muito vem mas-
Kehr, Chicago Reader)
carando sua fundamental simpatia para com os seres humanos frágeis. Num dos
“Se Crepúsculo dos deuses era uma mansão
pontos finais de sua carreira, Wilder es-
gótica caindo em ruínas, Fedora é um labi-
tava deixando a máscara cair. Este filme
rinto bizantino, um edifício rangendo com
(adaptado, talvez demasiado fielmente,
elaborados enigmas e pesadas explicações.
do romance de Tom Tryon) é uma medita-
O enigma central – a identidade de Fedora
ção sobre a celebridade, a vaidade da arte
– é esclarecido com cerca de dois terços
e a aproximação da idade. Há mais amor
do filme, dando lugar a um segundo enig-
neste trabalho estruturalmente confuso
ma, de natureza mais psicológica: como
do que em qualquer romance convencio-
Antonia – a verdadeira filha de Fedora, cha-
nal patético. Seu esparso estilo clássico,
mada a tomar o lugar de sua mãe que enve-
seu senso de personagens e seus ocasio-
lhece – vai lidar com a natureza opressiva
nais excessos românticos são muito ‘old
do papel que foi chamada a desempenhar.”
Hollywood’ (e Wilder chega a incluir uma
(Robert Stam, Cineaste, 1979)
Fedora
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Amigos, amigos, negócios à parte (Buddy Buddy, EUA, 1981, 96 min, cor, 35mm)
Estúdio: Metro-Goldwyn-Mayer. Direção: Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder e I. A. L. Diamond. Produção: Jay Weston. Direção de fotografia: Harry Stradling Jr. Montagem: Argyle Nelson. Direção de arte: Daniel A. Lomino. Figurino: John A. Anderson e Agnes G. Henry. Trilha sonora: Lalo Schifrin. Elenco: Jack Lemmon (Victor Clooney), Walter Matthau (Trabucco), Paula Prentiss (Celia Clooney), Klaus Kinski (Dr. Hugo Zuckerbrot), Dana Elcar (Capitão Hubris), Miles Chapin (Eddie), Michael Ensign (assistente do gerente), Joan Shawlee (recepcionista), Fil Formicola (Rudy “Disco” Gambola), C. J. Hunt (Kowalski).
SINOPSE:
Zuckerbrot. Desesperado para se livrar de
Em um hotel, Victor Clooney tenta se suici-
Victor, Trabucco sugere ao atendente na-
dar por ter sido abandonado pela mulher e
tivo que restabeleça o antigo costume de
acaba atrapalhando os planos de Trabucco,
sacrifícios humanos para o vulcão local.
um assassino profissional, no quarto ao lado, com um contrato para eliminar um
CURIOSIDADES:
mafioso que testemunharia contra seus
Vindo de uma série de fracassos comer-
companheiros. Trabucco convence Victor
ciais e de filmes que ele mesmo conside-
a não pular da janela e o leva ao Instituto
rava mais fracos, Billy Wilder aceitou fazer
de Satisfação Sexual, onde a esposa dele,
a versão americana da produção franco-
Celia, está coletando informações para o
-italiana Fuja enquanto é tempo (1973). Já
programa televisivo 60 Minutes. Na clíni-
durante as filmagens, no entanto, ele se
ca, Victor descobre que Celia se apaixonou
sentia inseguro com o roteiro e com o fato
pelo Dr. Zuckerbrot, que se preocupa que
de ter escalado dois comediantes para tra-
o marido suicida atrapalhe sua carreira.
balharem juntos. Ele se arrependia de não
Injetam por acidente em Trabucco um
ter convidado um ator de filmes de ação,
tranquilizante destinado a Victor, que se
como Clint Eastwood, para o papel de
voluntaria para cumprir o contrato do as-
Trabucco. Jack Lemmon, no livro Nobody’s
sassino quando a visão da Trabucco é pre-
Perfect: Billy Wilder, A Personal Biography,
judicada. Victor completa a tarefa e espera
de Charlotte Chandler, relembra esse perí-
que continuem parceiros. Trabucco foge
odo: “Billy parecia mais tenso [do que nos
dele e vai para uma ilha tropical, onde
filmes anteriores]. Ele parecia estar se for-
inesperadamente Victor aparece depois
çando, insistindo demais. Era algo que eu
de Celia fugir com a recepcionista do Dr.
não podia definir exatamente. Ele sempre
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esteve aberto a sugestões que eu tivesse
intimidado por ele. O filme não tenta te ti-
para o meu papel, mas desta vez, eu não
rar o chão com cenários gigantescos, adere-
me senti tão bem recebido com minhas
ços e cenas de multidão que fazem de far-
ideias, então não disse nada. Quem sou eu
sas como 1941 – Uma guerra muito louca e
para dizer a Billy Wilder o que fazer?”. O
Os irmãos cara de pau filmes tão opressivos.
filme resultou em mais um fracasso de pú-
Esse filme viaja sem bagagem, livre de efei-
blico e crítica à época e, ansioso para deixar
tos especiais caros, alimentado apenas pelo
a má fase para traz, Wilder e o roteirista I.
talento de seus atores e pelo irreprimível
A. L. Diamond investiram em uma série de
senso do ridículo de seu diretor.” (Vincent
outras ideias que tinham para novos pro-
Canby, The New York Times, 1981)
jetos. Ainda que a dupla tenha trabalho ativamente até 1988, quando Diamond fa-
“Wilder, Lemmon, Matthau. Eles nos deram
leceu, Amigos, amigos, negócios à parte foi o
momentos maravilhosos em comédias.
último filme dirigido por Wilder, que viria
Seus créditos juntos incluem Uma loura
a falecer em 2002, aos 95 anos.
por um milhão e A primeira página. Wilder também dirigiu Lemmon em Se meu apar-
CRÍTICAS:
tamento falasse, Quanto mais quente melhor
“Há algo de muito interessante na simpli-
e Avanti... Amantes à italiana. Alguns desses
cidade da produção física e no pequeno
títulos são grandes filmes. Alguns, como
elenco. Eu suspeito que uma das razões
Avanti, foram decepcionantes. Amigos, ami-
pela qual Amigos, amigos, negócios à parte é
gos, negócios à parte é incompetente. E essa
tão agradável, mesmo quando a piada não
é a palavra mais triste que eu posso ima-
atinge o seu alvo, é que você nunca se sente
ginar para descrevê-lo.” (Roger Ebert, 1981)
Amigos, amigos, negócios à parte
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Os autores
Anna Dzenis Formou-se com honras pela Escola de Humanas e Ciências Sociais da La Trobe University, em Melbourne, Austrália, onde leciona atualmente no departamento de Estudos do Cinema. Edita também um jornal online da universidade, o Screening the Past (www.latrobe.edu.au/ screeningthepast). Atua como crítica de cinema, com foco em cinema francês. Daniël Biltereyst Professor de Cinema e Mídia no departamento de Comunicação da Universidade de Ghent, na Bélgica. É ainda chefe do departamento e diretor do Centro de Cinema e Estudos da Mídia. Seu trabalho foca na relação entre a mídia e as esferas públicas, mais especificamente no cinema e no audiovisual como centros de controvérsia, debates públicos e pânico na mídia. É autor de mais de 200 artigos publicados em volumes e jornais, incluindo Cultural Studies; European Journal of Cultural Studies; European Journal of Communication; Historical Journal of Film, Radio and Television; New Media & Society; Screen; Studies in French Cinema e Television & New Media. Fábio Andrade Formado em Jornalismo e Cinema pela PUC-Rio e com extensão em roteiro cinematográfico pela School of Visual Arts de Nova York, é crítico de cinema, roteirista, montador e tem o projeto musical Driving Music. Desde 2007, escreve na revista Cinética, assumindo sua editoria em 2010. Já teve textos publicados em revistas como a Filme Cultura e em livros e catálogos de mostras e festivais no Brasil e exterior, como o do Festival de Berlim e o livro comemorativo dos 45 anos do Festival de Brasília. No cinema, tem trabalhos com os diretores Paula Gaitán, Eryk Rocha, Geraldo Sarno e Bruno Safadi. Gilberto Silva Jr. Graduado em Jornalismo pela UERJ em 1992. Crítico de cinema, atuou entre 2002 e 2010 na revista eletrônica Contracampo. Colabora atualmente com a revista Interlúdio (www.revistainterludio.com.br). Jack Ferdman Tem extensa formação em cinema, tendo cursado Teoria do Cinema na York University e Estudos da Cena na Ryerson University, ambas em Toronto, Canadá. Cursou ainda Teatro pela Leah Posluns Theatre e o curso de improvisação da Second City. É crítico de cinema e teatro. Produz e apresenta o programa online ENT World, cobre o Festival Internacional de Toronto e contribui para publicações como Mirror, The Liberal, Friday Night Magazine e Parvati Magazine. www.jackferdman.com | twitter: Oscarnut14 | themovieman@rogers.com
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Jonathan Rosenbaum Um dos mais importantes jornalistas e críticos dos Estados Unidos, foi o principal nome do jornal Chicago Reader de 1987 a 2008. Autor de mais de 8 mil artigos e críticas, escreve atualmente para seu portal jonathanrosenbaum.com. Já contribuiu para publicações como a Cahiers du Cinéma e Film Comment e é autor de Film: The Front Line 1983, Placing Movies: The Practice of Film Criticism e Essential Cinema: On the Necessity of Film Canons, entre outros. Citado por Jean-Luc Godard como um dos melhores críticos de cinema da atualidade. Joseph McBride Historiador, biógrafo e roteirista, é professor do departamento de Cinema da San Francisco State University. Publicou 16 livros desde 1968, incluindo biografias de Steven Spielberg, Frank Capra e John Ford. Entre seus créditos de roteirista estão Blood & Guts (1978) e Rock ‘n’ Roll High School (1979), além de documentários sobre cinema para a televisão, como The American Film Institute Salute to John Huston (1983), pelo qual ganhou o prêmio do Sindicato dos Roteiristas. Pat Kirkham PhD em História pela Universidade de Londres, dedica-se a estudar a relação entre design e cinema nos Estados Unidos. É professora de História do Design na Bard Graduate Center, em Nova York. Publicou estudos como Morale and the Home Front: Fashion, Femininity, and Propaganda in World War II Britain e Saul Bass: A Life in Design and Film, entre outros. Pedro Maciel Guimarães É professor, pesquisador em Estética e História do Cinema, doutor em Cinema e Audiovisual pela Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3) e autor de Créer ensemble, la poétique de la collaboration dans le cinéma de Manoel de Oliveira (Sarrebruck: EUE, 2010). É programador e selecionador da Mostra de Cinema de Tiradentes, da CineOP e do CineBH, além de curador da mostra Douglas Sirk, o príncipe do melodrama (CCBB, 2012). Atualmente, é pós-doutorando da ECA-USP com trabalho sobre a estética dos atores de cinema. Sander Lee PhD em Filosofia pela Georgetown University, é professor de Filosofia no Keene State College, New Hampshire, EUA. Autor de Eighteen Woody Allen Films Analyzed: Anguish, God and Existentialism, tem como foco de pesquisa ética, Holocausto e genocídio, e filosofia das religiões, entre outros, aplicados no cinema e audiovisual. Todd McCarthy Jornalista e crítico de cinema, esteve à frente da revista Variety por 31 anos. Atualmente, é o chefe da seção de cinema da The Hollywood Reporter. Dirigiu quatro documentários, dentre eles Forever Hollywood (1999) e Man of Cinema: Pierre Rissient (2007). É autor de Howard Hawks: the Grey Fox of Hollywood, entre outras obras críticas sobre a história do cinema.
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SESC – SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
MOSTRA BILLY WILDER
Administração Regional no Estado de São Paulo
ORGANIZAÇÃO
Bubbles Project e Zipper Produções
PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL
Abram Szajman
CURADORIA
Fábio Savino
DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL
Danilo Santos de Miranda
PRODUÇÃO EXECUTIVA
Arndt Roskens
SUPERINTENDENTES
Técnico-Social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Paulo Giannini Administração Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sérgio José Battistelli
PRODUÇÃO
Christiane Igreja e Fábio Savino ASSISTENTE DE PRODUÇÃO
Daniel Araújo
GERENTES
LEGENDAGEM ELETRÔNICA
Ação Cultural Rosana Paulo da Cunha
Casarini Produções
Adjunta Flávia Carvalho Assistente Melina Izar Marson Artes Gráficas Hélcio
DESIGN GRÁFICO
Magalhães Adjunta Karina C. L. Musumeci
BIZU Design
Assistente Lourdes Teixeira Benedan Estudos e Desenvolvimento Marta Colabone Adjunta Andréa de Araújo Nogueira CINESESC
Gerente Gilson Packer Adjunta Simone Yunes Programação Adolfo Mazzarini, Christine Villa, Kátia Caliendo e Marcela Medina Comunicação Renata Wagner, Amanda Zacarkim e Viviane Cardoso
VINHETA
Anna Azevedo e Barbara Moraes COORDENAÇÃO EDITORIAL
Fábio Savino e João Cândido Zacharias TRADUÇÃO Ismar Tirelli Neto, Luis Fernando Furtado e Tiago Jonas REVISÃO DE TEXTOS
Rachel Ades
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AGRADECIMENTOS
CRÉDITOS FOTOS
Andrew Youdel (BFI), Edu Ferrer (Classic
IRMA LA DOUCE © 1963 METRO-GOLDWYN-MAYER
Films), Luke Brawley (Hollywood Classics),
STUDIOS INC.. All Rights Reserved
Maria Chiba (Lobster Films), Mônica de
KISS ME, STUPID © 1964 METRO-GOLDWYN-MAYER
Castro Reinach, Nicholas Varley (Park
STUDIOS INC. AND PHALANX PRODUCTIONS, INC..
Circus), Peter Langs (Universal), Sébastien
All Rights Reserved
Tiveyrat (Swashbuckler Films), Vincent
FORTUNE COOKIE, THE © 1966 METRO-GOLDWYN-
Dupré (Thêatre du Temple), Wilson Savino
MAYER STUDIOS INC.. All Rights Reserved
Autores Anna Dzenis, Daniël Biltereyst, Fábio Andrade, Gilberto Silva Jr., Jack Ferdman, Jonathan Rosenbaum, Joseph McBride, Pat Kirkham, Pedro Maciel Guimarães, Sander Lee, Todd McCarthy
PRIVATE LIFE OF SHERLOCK HOLMES, THE © 1970 METRO-GOLDWYN-MAYER STUDIOS INC. AND PHALANX PRODUCTIONS, INC.. All Rights Reserved AVANTI! © 1972 ESTATE OF BILLY WILDER, JALEM PRODUCTIONS AND MIRISCH CORPORATION OF CALIFORNIA. All Rights Reserved SOME LIKE IT HOT © 1959 METRO-GOLDWYN-MAYER STUDIOS INC.. All Rights Reserved APARTMENT, THE © 1960 METRO-GOLDWYN-MAYER STUDIOS INC.. All Rights Reserved ONE, TWO, THREE © 1961 METRO-GOLDWYN-MAYER STUDIOS INC.. All Rights Reserved WITNESS FOR THE PROSECUTION (FEATURE) © 1957 METRO-GOLDWYN-MAYER STUDIOS INC.. All Rights Reserved LOVE IN THE AFTERNOON © 1957 METRO-GOLDWYNMAYER STUDIOS INC. AND WARNER BROS., INC.. All Rights Reserved SUNSET BOULEVARD Images © Paramount ACE IN THE HOLE Images © Paramount STALAG 17 Images © Paramount THE SPIRIT OF ST LOUIS Images © Warner Bros.
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Lecus non et delessequi audae coriore
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