Livro Ecos da Ocas"

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ecos da ocas


Organização Márcio Seidenberg, Ricardo Senra, Roberto Guimarães e Rosi Rico Edição Rosi Rico Projeto gráfico Ana Starling Capa Brunna Mancuso e Roberto Guimarães Diagramação Brunna Mancuso e Fabio Kato Preparação Bárbara Borges Revisão Ana Ligia Scachetti e Maurício Katayama Fotografias Alderon Costa (orelha e pp. 27, 38, 42, 45 e 71), Antonio Brasiliano (p. 289), Arquivo INSP (p. 20), Arquivo OCAS (pp. 47, 52 e 257), Fabio Kato (pp. 279, 282 e 285) e Rodrigo Tomita (p. 66) Tratamento de imagens Fabio Kato Produção gráfica Tatiana Josefovich CTP, impressão e acabamento Prol Editora Gráfica Ltda. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE E22 Ecos da Ocas”: a história da revista que promove transformação social / organização Márcio Seidenberg... [et al.]. – São Paulo: Bizu, 2013. 296 p. Outros organizadores: Ricardo Senra, Roberto Guimarães, Rosi Rico. ISBN 978-85-66888-00-3 1. Periódicos brasileiros – História. 2. Ocas” (Revista) – História. 3. Ocas” (Revista) – Artigos jornalísticos. I. Seidenberg, Márcio. II. Senra, Ricardo. III. Guimarães, Roberto. IV. Rico, Rosi. CDD 050.981 Catalogação elaborada por Antonia Pereira CRB-8/4905

© Organização Civil de Ação Social (OCAS), 2002-2013 © BIZU, 2013

R. Carlos Comenale, 263, 3o andar 01332-030 – São Paulo – SP 55 11 3284-6989 www.bizu.bz info@bizu.bz

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ecos da ocas a história da revista que promove transformação social


A revista Ocas” só existe graças ao trabalho voluntário realizado por centenas de pessoas, ao longo de mais de uma década. Com dedicação e suor, cidadãos com formação profissional em diversas áreas – não apenas jornalistas, designers, ilustradores e fotógrafos, que são responsáveis pelo lado mais visível porém não necessariamente mais árduo do trabalho – contribuíram e seguem contribuindo para oferecer uma alternativa de renda para pessoas em situação de risco social. A trajetória da revista é, acima de tudo, fruto de criação coletiva. Com este livro, não poderia ser diferente. O projeto – idealizado pela OCAS, e que chegou a mim por iniciativa do jornalista Ricardo Senra, colaborador da revista que então trabalhava na BIZU – também foi pensado e executado coletivamente, de forma voluntária, por diversas pessoas – muitas participaram de aspectos não editoriais da publicação. E, a exemplo do que acontece com a revista, o lucro gerado pela venda dos exemplares também será integralmente revertido ao projeto. Ao contrário do que ocorre com a maioria dos livros, Ecos da Ocas” não teve um único editor, mas sim um colegiado de organizadores-editores. Rosi Rico ficou responsável pela primeira parte, da história; eu, Roberto, me dediquei à seleção e edição das entrevistas; e Márcio Seidenberg fez a curadoria da terceira e última parte, com textos dos vendedores. Como editora da revista Ocas” desde 2009, coube a Rosi acumular o papel de “editora-chefe”, em

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especial na fase de finalização do livro. O projeto gráfico foi criado por Ana Starling e seu desenvolvimento ficou a cargo de Brunna Mancuso, também responsável pela capa – como de hábito, eu acompanhei toda a concepção visual bem de perto. Por fim, não poderia deixar de destacar a participação mais que especial de Fabio Kato: sempre atento aos detalhes, o editor de arte de Ocas” esteve presente em todas as etapas do desenvolvimento do projeto, desde sua concepção editorial até o fechamento dos arquivos para a gráfica. Como leitor e admirador de Ocas” desde seu lançamento, no já distante ano de 2002, só tenho a agradecer pela confiança depositada na BIZU para liderar este projeto. Ao abraçar com entusiasmo a ideia de produzir um livro com a história da revista e uma seleção de textos nela publicados, meu desejo sempre foi que sua publicação contribua para levar a Organização Civil de Ação Social (OCAS) mais longe, trazendo recursos financeiros e novos colaboradores. Isso permitirá que, nos próximos dez anos, a revista Ocas” mantenha sua relevância editorial e, acima de tudo, ajude a transformar a vida de centenas de pessoas, não apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro mas, se possível, também em outras cidades brasileiras. Sem dúvida, este é o mais desejável eco do livro que você tem em mãos.

Roberto Guimarães Editor da BIZU

Introdução

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Sumรกrio


10 Dez anos de histórias

72 Por dentro da revista

13  No exterior

86 Entrevistas

21  Ecos no Brasil

88 Ferréz

28  E nasce uma revista

98 Chico Buarque

33  Apoio para começar

120 Jamelão

35  As primeiras edições

132 Rita Cadillac

40  Para além da Ocas”

146 Seu Jorge

48  Sempre na corda bamba

160 Zé do Caixão

56  Uma rede que não para   de crescer

168 Miriam Chnaiderman

60  Rua: esse mistério 62  Ocas” para todos 65  Caminho possível 70 Futuro

180 Drauzio Varella 192 Criolo 206 Ariano Suassuna 224 Wagner Moura

236 Cabeça sem teto 247 Monólogo interior 256 Tempo de passagem 267 A arte de vender cultura 276 Escola da rua: ensinando e aprendendo 283 Antes que o frio doa 290 Sabedoria das ruas


Dez anos de hist贸rias


Aquele cara que morava na Armênia [região central de São Paulo] e pegava restos nos restaurantes hoje se senta em um deles, come e paga a quantia que for pedida. Estou em uma casa que tem fogão, geladeira, minha cama e tudo isso proporcionado pela Ocas”. Jesoel Araújo

A mudança em meu esquema de trabalho foi drástica, radical. Passei a ser responsável por meu horário e meus ganhos. Vendendo a Ocas” nesse tempo todo na rua eu conheci artistas, atores, cantores e muita gente bacana. A gente vai se aproximando. Mostro meus poemas. Muitas vezes eu ganho ingressos para shows, convites para peças de teatro. Vou assistir de graça. Eu me alimento de tudo isso, cada dia mais. Tula Pilar Ferreira

Recomendo para o cara que tem coragem, que quer dar a volta, que quer subir, que quer ser ele: Ocas”. Brian Smith


É para poder promover transformações como as ocorridas com Jesoel, Pilar e Brian, vendedores da revista Ocas”, que a Organização Civil de Ação Social (OCAS), que a publica, foi criada em 21 de abril de 2001. E é por causa dessas pes­ soas, os beneficiários, que o projeto continua, driblando muitas dificuldades e lutando para crescer. Em 6 de julho de 2002, a revista ganhou as ruas em São Paulo; no Rio de Janeiro, dois dias depois. Desde então a Ocas” circulou sem interrupções, graças ao trabalho volun­ tário de centenas de pessoas. Foram publicadas 86 edições até dezembro de 2012. Este livro reúne algumas das principais entrevistas e re­ portagens que contribuíram para consolidar a Ocas” como um veículo relevante não apenas por seu projeto socialmente transformador, mas também pela qualidade editorial que há dez anos seduziu e segue seduzindo leitores. A revista continua a ser vendida por pessoas em situa­ ção de risco social. Esses homens e mulheres que adquirem exemplares da revista por um real e os revendem a quatro – ficando com a diferença, sem interme­diários – são agentes de sua transformação. Durante os primeiros dez anos, o projeto cadastrou mais de 2 mil pessoas e colocou em cir­ culação cerca de 520 mil exemplares da revista, o que re­ presenta mais de 900 mil reais transferidos diretamente à equipe de vendedores.

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A Ocas” entende que trabalho digno é o melhor comba­ te à fome e à miséria porque pode ser uma possibilidade concreta de transformação. Possibilitar que os vendedores recuperem a dignidade por meio de seu próprio trabalho, reintegrando-se à sociedade e possibilitando que se reco­ nheçam e sejam reconhecidos como indivíduos: esse é o principal eco da Ocas”.

No exterior A Ocas’’ não está sozinha; integra uma rede de publicações de rua presente em mais de quarenta países. Esses jornais e revistas não falam necessariamente sobre as ruas, mas foram feitos para elas e ali circulam todos os dias. Os street papers foram propostos para as cidades com base em uma lógica bastante simples: pode se tornar vendedora qualquer pessoa que esteja dormindo nas ruas ou em albergues de acolhimento e queira sair da situação de vulnerabilidade por seu esforço pessoal. Pioneiro na Europa, o projeto inglês The Big Issue tinha como principal porta-voz a revista homônima, que ganhou as ruas em setembro de 1991. Além do conteúdo, o maior diferencial da publicação estava justamente em quem a vendia: um número cada vez maior de londrinos e imigran­ tes que acabava nas ruas por causa do desemprego e das recorrentes altas nos preços dos aluguéis. Como ponto de

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partida, a organização cedia as dez primeiras revistas gra­ tuitamente aos novos colaboradores, ajudando os novos vendedores a conquistar uma quantia inicial para a compra de mais edições. Os cadastrados compravam cada revista por 25 centavos de libra e a vendiam nas ruas a cinquenta centavos de libra. A diferença significava seu lucro, utilizado na maior parte das vezes para honrar o aluguel de quartos ou de pequenos apartamentos. Como ponto de passagem e não um fim, a experiência com a venda da revista The Big Issue proporcionava aos vendedores o retorno ao convívio e a interação com diferentes pessoas, abrindo caminho tam­ bém para conquistas como empregos com carteira assinada e a volta aos estudos. Em sua primeira edição mensal, a revista inglesa cir­ culou com uma tiragem de 30 mil cópias e a adesão vo­ luntária de cerca de cinquenta vendedores. O formato foi bem-aceito pelo público e, um ano depois, a tiragem quase dobrou, chegando a 50 mil exemplares, a partir de então quinzenais. A revista The Big Issue se tornou conhecida pela maneira com que mescla temas sociais com reporta­ gens sobre cultura, comportamento, humor e política. Em junho de 1993, o projeto ganhou mais fôlego, passou a cir­ cular semanalmente e registrou um novo recorde de tira­ gem: 80 mil cópias. Seu auge de popularidade foi entre os anos de 1997 e 1998, quando alcançou vendas de 280 mil

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cópias por semana e liderou o ranking de revistas em circu­ lação no Reino Unido. A publicação inglesa, entretanto, não foi a pioneira en­ tre as publicações de rua. Alguns anos antes, em outubro de 1989, surgia o jornal norte-americano Street News, cria­ do pelo músico Hutchinson Persons, em Nova York. Principal inspiração da The Big Issue, o Street News é descrito como um fenômeno de rápida popularidade no metrô da cidade, seu principal ponto de venda e divulgação, chegando a regis­ trar 2 mil vendedores cadastrados e uma circulação mensal em torno de 200 mil exemplares. O jornal ganhou notorieda­ de por não permitir anúncios publicitários e mesclar artigos, escritos por celebridades como Liza Minnelli e Paul Newman, a contos e poemas assinados por seus próprios vendedores. Em 1992, os editores do Street News decidiram mudar os rumos da publicação e o jornal tornou-se uma organiza­ ção com fins lucrativos. Ao abrir espaço para anúncios com o intuito de aumentar sua receita, porém, o Street News não obteve o sucesso esperado. A repercussão negativa da mudança e subsequentes trocas no comando do projeto fi­ zeram que o periódico logo enfrentasse dificuldades finan­ ceiras. Boa parte dos colaboradores migrou para a criação de uma nova revista no mesmo formato, a Crossroads Magazine, que resistiu por apenas alguns meses nas ruas de Nova York e desapareceu.

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Persons abandonou o jornal e foi substituído pelo edi­ tor Sam Chen, que precisou enfrentar a recém-inaugurada política de “tolerância zero” na cidade de Nova York, con­ duzida pelo novo prefeito, o administrador de empresas e advogado republicano Rudolph Giuliani, eleito em 1993. A nova ordem era reprimir crimes de pequena escala e tam­ bém comportamentos antissociais, como atravessar a rua fora da faixa de pedestres, circular embriagado, vender bugigangas no metrô etc. As remoções compulsórias, somadas à “limpeza do metrô”, com a proibição de comércio nas ruas e apreensões dos ma­ teriais vendidos, aprofundaram as dificuldades enfrentadas pelos vendedores do Street News na cidade. Com cada vez me­ nos liberdade para ir e vir, o número de jornais vendidos caiu drasticamente. Os vendedores começaram a se afastar, vol­ tando às ruas ou buscando outras atividades profissionais. A taxa de renovação caía e novos vendedores eram cada vez mais raros. A transformação na cidade culminou na interrup­ ção da distribuição regular do Street News. A circulação do periódico tornou-se, desde então, apenas esporádica. Entretanto, o conceito inaugurado pelo Street News via­ jou para o outro lado do oceano Atlântico. The Big Issue se espalhou pelo continente europeu em pouco tempo, com a criação de redações independentes em cada cidade ou país. Além de outra publicação inglesa, a The Big Issue in

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the North, surgiram pares na Escócia e no País de Gales, em 1993, e na Irlanda, em 1994. Na metade da década de 1990, os países da União Europeia contavam com uma po­ pulação de 340 milhões de pessoas, das quais 1,1 milhão literalmente não possuía casa. De perto os números eram mais graves: 5 milhões de pessoas foram consideradas em recorrente situação de rua e 15 milhões em severe housing stress, isto é, condições inóspitas de moradia1. A estratégia de atuação das publicações passou a variar de acordo com as diferentes realidades locais. Ao contrário da The Big Issue, vendida exclusivamente por pessoas que já es­ tiveram ou estavam em situação de rua, os países com maior presença de imigrantes, como Grécia, Espanha e Itália, tam­ bém convidavam refugiados e desempregados a se tornarem vendedores. As vendas da portuguesa Cais, por exemplo, são abertas a qualquer pessoa em situação de pobreza. Dez anos após sua fundação, a revista contabilizava cerca de duzentos vendedores atuantes, 42 deles imigrantes em situação ilegal. Os street papers chegaram ao Leste Europeu pela cidade russa de São Petersburgo, com a NadNe (As profundezas), rebatizada nove anos depois como PutDomoi (O caminho

Dragana Avramov, Homelessness in the European Union: Social and legal context of housing exclusion in the 1990s; fouth research report of the European Observatory on Homelessness. Bruxelas, European Federation of National Organizations Working with the Homeless (Feantsa), 1995.

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para casa), que por sua vez originou publicações também na Sibéria e na Ucrânia. Na África, a pioneira Cidade do Cabo, na África do Sul, ganhou a Homeless Talk. Depois, também lançaram suas edições locais: Lagos, na Nigéria; Bujumbura, no Burundi; Nairóbi, no Quênia; Blantyre, em Malawi; e Lusaka, na Zâmbia. A Oceania recebeu uma ver­ são australiana da The Big Issue. Na Ásia, Coreia do Sul, Taiwan, Japão e Filipinas criaram novas revistas e jornais. A diversidade crescente de publicações foi o estopim para a criação de uma rede internacional de publicações de rua igualmente sem fins lucrativos, a International Network of Street Papers (INSP), fundada em julho de 1994, com sede em Glasgow, na Escócia. Sua primeira conferência anual reuniu representantes de dezesseis publicações. Coordena­ da por três anos pelo departamento internacional da The Big Issue inglesa, a INSP tornou-se uma entidade independente que se concentra, desde sua fundação, em oferecer consul­ toria, contatos e círculos de comunicação para a criação de novas publicações de rua e interação entre as já existentes. Alguns projetos evoluíram e passaram a incorporar ati­ vidades além da venda de publicações na rua. Vendido na Holanda, o jornal Straatnieuws criou também um programa que organiza passeios turísticos pela cidade holandesa de Utrecht, conduzidos pelos próprios vendedores, nesse caso guias. A mesma iniciativa foi adotada pela Biss, na cidade

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de Munique, na Alemanha. Ex-vendedores também eram convidados a apresentar seminários sobre moradia digna em escolas e outras instituições. Em Praga, na República Tcheca, a INSP apoiou o street paper semanal NovyProstor (Novo espaço) na criação de um círculo permanente de discussões entre vendedores e ex-vendedores, que ganham a chance de compartilhar pro­ gressos em relação à conquista de empregos com carteira assinada e alternativas de moradia. A rede inaugurou também o Street News Service (depois renomeado para INSP News Service), uma agência interna­ cional de notícias dedicada a oferecer conteúdo exclusivo para os jornais e revistas de rua. O portal, que reúne ar­ tigos, reportagens e análises publicados em street papers de todo o mundo, oferece o material a todos os editores de jornais e revistas de rua cadastrados na rede, com tradução gratuita. Esses projetos podem então contar com um am­ plo histórico de notícias para abastecer suas publicações, sempre que necessário, além de poder conhecer, publicar e interagir com realidades distantes. Desde 1995, a Conferência Anual da INSP convoca re­ presentantes de todos os veículos para a discussão de políti­ cas, iniciativas e novas ideias para o ano seguinte. Trata-se de uma oportunidade para que os responsáveis pelas publi­ cações se conheçam pessoalmente e troquem experiências.

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Representantes de várias publicações em conferência na Austrália, em 2010

Em complemento à iniciativa, o International Street Paper Awards foi criado em 2008 para premiar, a cada dois anos, os melhores trabalhos publicados por veículos que com­ põem a rede. Uma de suas categorias destaca textos escri­ tos pelos próprios vendedores. A América Latina foi a última a desenvolver representan­ tes locais dos street papers. A primeira revista, La Luciérnaga, foi criada em 1995, na cidade argentina de Córdoba. Na mes­ ma década, o país passou a contar com as revistas Al Margen, em Bariloche, e Hecho en Buenos Aires, na capital argentina. A Hecho en Buenos Aires, que foi lançada com uma ti­ ragem inicial de 5 mil exemplares em 2000, aumentou seu

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número de exemplares mensais em onze vezes até julho de 2002. Os principais veículos de imprensa locais, como os jornais La Nación, Clarín e Página 12 e os canais 7 e 13 da televisão aberta, publicaram reportagens sobre o projeto, ampliando e fortalecendo sua atuação nas ruas e seu co­ nhecimento pela sociedade portenha. Também em 2000, chegava às ruas de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, o jornal Boca de Rua. Editado pela ONG Alice, é feito e vendido por pessoas em situação de rua. Tex­ tos, imagens e ilustrações são produzidas durante oficinas coordenadas por jornalistas. Sete anos depois, surgiram as revistas La Calle, em Bogotá, na Colômbia, e La Callejera, em Montevidéu, no Uruguai. Nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, os reflexos desse movimento surgiram an­ tes, mais precisamente em 2002.

Ecos no Brasil A história da Ocas” começa com um tradutor em viagem a Londres, na Inglaterra, mas ganha força na confluência en­ tre seu caminho, o de um fotógrafo com anos de experiência no trabalho com pessoas em situação de rua e o de uma jovem jornalista. Em 1999, durante um curso de especialização em co­ municação e imagem na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Luciano Rocco apresentou

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Por dentro da revista

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Uma década, e um consistente mosaico social e cultural amarrado por entrevistas inéditas sobre artes, direitos humanos e entretenimento. Da literatura, passaram pelas capas de Ocas” e também pelas demais seções ícones como Ariano Suassuna e João Ubaldo Ribeiro, além de Pedro Juan Gutiérrez, Ziraldo, Mauricio de Sousa, Marçal Aquino, Fernando Bonassi, Marcelo Rubens Paiva, Lourenço Mutarelli, Jocenir Prado, Drauzio Varella, Ferréz, Haifa Zangana e Marcos Aguinis. Chico Buarque e Jamelão, assim como Maria Rita, Marcelo D2, Los Hermanos, Tom Zé, MV Bill, Seu Jorge, Ná Ozzetti, Zizi Possi, Milton Nascimento, Roberta Sá, Fabiana Cozza, Tulipa Ruiz, Céu, Lenine, Nega Gizza, Marcelo Yuka, José Miguel Wisnik, Lobão, Bruna Caram e Zé Geraldo, foram alguns dos representantes da música. De televisão, cinema, teatro e dança, Walter Salles e Rita Cadillac dividiram espaço com João Moreira Salles, Eduardo Coutinho, Fernando Meirelles, Hugo Possolo, Grupo Galpão, Caio Blat, Selton Mello, João Miguel, Wagner Moura, Lázaro Ramos, Zé do Caixão, Paulo Betti, Denise Fraga, Marcelo Tas, Ugo Giorgetti, Evaldo Mocarzel, Ivaldo Bertazzo e Marco Nanini. Representando os esportes e seu poder de transformação social, além da ginasta Daiane dos Santos, a Ocas” trouxe uma longa entrevista com as jogadoras da seleção

Ferréz  Outubro de 2003

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brasileira de futebol feminino pouco depois da conquista da primeira medalha olímpica do país na categoria, período em que muitas batalhavam por um clube para defender. Os atletas paraolímpicos Lucas Prado e Daniel Dias, do atletismo e da natação, respectivamente, também ganharam destaque nas páginas da revista. Sem perder a vocação de investigação, denúncia e defesa do direito à cidadania, a Ocas” mesclou ao cardápio de entrevistados centenas de reportagens e artigos especiais que consolidaram sua relevância nas ruas como produto editorial – para além da responsabilidade social. Em agosto de 2003, ano em que a Bélgica se tornava o segundo país a reconhecer a união civil entre casais homossexuais, a Ocas” trouxe a reportagem “Teste de paternidade” – aproveitando o período de comemoração do Dia dos Pais – na capa da edição 13. “Opção sexual não impede que pais mantenham com seus filhos relacionamentos sustentados por respeito, sinceridade e afeto”, dizia o texto de abertura, em destaque. O texto apresentava “famílias alternativas”, mostrando com delicadeza diferentes maneiras pelas quais a homossexualidade dos pais pode se tornar assunto dentro de casa. Homens, seus cônjuges e filhos foram entrevistados e explicaram como mantêm um cotidiano familiar harmônico. Muito antes das redes sociais e do ciberativismo em prol

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da causa homossexual, temas como homofobia, casamento entre pessoas do mesmo sexo e adoção foram abordados em nome de uma sociedade mais tolerante às diferenças. O compromisso com a representatividade de grupos marginalizados também se refletiu em conjuntos de reportagens, como quando, na edição 38, de setembro de 2005, a Ocas” mergulhou no universo dos catadores de materiais recicláveis em catorze de suas 32 páginas. A matéria principal se concentrava nos possíveis impactos do fechamento do aterro sanitário de Gramacho, em Duque de Caxias, no estado do Rio de Janeiro, onde trabalhavam mais de 5 mil catadores, que na época movimentavam 1,5 milhão de reais por mês. Os textos mostraram como se criaram e a que se propunham os grupos organizados por esses trabalhadores, como o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). A entidade até hoje resiste com firmeza nas principais capitais lutando por autogestão, independência e solidariedade entre classes, democracia direta e apoio mútuo. José Carlos Bahia Lopes, que assinou o artigo “Dia de Zumbi”, descreveu sua nauseante rotina, que começa cedo: “Acordei às 4h, como de costume, e fui para o barraco. Ao atravessar a portaria do lixão, já tinha alguns catadores. Caminhão sobe, caminhão desce, e assim vai [...]. Chego de manhã e só vou embora à noite”.

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Em “A arte que emerge do lixo”, publicada na edição 64, de março-abril de 2009, Gramacho voltou às páginas da revista por meio da exposição Lixo, do artista Vik Muniz, cujas obras foram criadas com material recolhido no aterro sanitário. Os textos mostraram o processo de transformação pelo qual os elementos descartados podem passar até se tornarem, por exemplo, objetos de arte cobiçados em todo o mundo. “Em Gramacho, comecei a me tocar que a coisa mais especial daquele local era o fator humano; o fato de 5 mil pessoas tirarem seu sustento daquilo que a outra parte do mundo considera inútil”, disse o artista. Um grupo de catadores também contou como foi participar da confecção das obras, que chegaram a ter peças leiloadas em Londres, na Inglaterra, e transformaram-se no premiado documentário Lixo extraordinário, lançado em 2010. Além dessas reportagens, tantas outras foram publicadas sobre temas como erradicação da pobreza, atividades do Fórum Social Mundial (FSM), consumo consciente, saúde mental, internações compulsórias e ocupações em edifícios públicos abandonados nas grandes cidades. As chamadas do dossiê “Escravidão agrária e sexual”, na edição 45, de maio de 2006, eram fortes: “Procura-se homem analfabeto e sem documentos: exploração para início imediato”; “Precisa-se de jovem brasileira e pobre: oferecemos 241 destinos”.

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08

capa

texto: Alan de Faria

foto: Divulgação

Cena de “Meu Tio Matou um Cara”, de Jorge Furtado

ó

Pluralidade pode ser uma boa palavra para descrever o ator Lázaro Ramos. Afinal de contas, desde o momento em que apareceu para o grande público, por meio do longa “Madame Satã”, no qual interpretou o personagem-título do filme, Lázaro já foi bandido encarcerado no Carandiru, rapaz trabalhador de uma fotocopiadora, dono de uma produtora cinematográfica e candidato a vereador, só para listar alguns papéis interpretados por ele. Engatando um trabalho no outro, o ator, que terminou de

A cada trabalho, Lázaro Ramos demonstra a capacidade de se renovar. Seja no cinema, no teatro ou na televisão, tudo o que o ator, e agora diretor, quer é reeducar o seu olhar para novos universos

L á Z a R o,

gravar a novela “Duas Caras” em maio, está na Bahia para fazer a série “Ó Paí, Ó”, adaptação televisiva do filme homônimo, dirigido por Monique Gardenberg e lançado no ano passado. No seriado, que acompanhará a vida de moradores de um cortiço do Pelourinho, em Salvador, Lázaro interpreta o aspirante a cantor Roque. O programa deve ser exibido até o final do ano na Rede Globo. A respeito do que o leva a escolher determinados papéis, o ator de 29 anos (faz 30 em novembro) disse à Ocas” que leva em conta a história do personagem e quem participará do projeto ao seu lado. Lázaro também continua a gravar o programa do Canal Brasil “Espelho”, do qual é apresentador e diretor. A atração, que em seus dois primeiros anos focou a questão do negro na sociedade brasileira, passou a abordar outros assuntos, como tecnologia, saúde e trabalho infantil, na terceira temporada, que teve início em maio. “[Este trabalho

na televisão] tem sido muito importante, pois me permite experimentar, aprender e entender melhor o que eu quero falar como diretor”, disse Lázaro, que prepara a sua estréia na direção cinematográfica por meio do curta “Um Real”. Como ator, ele deve estar no elenco de “Identidade”, de Tadeu Jungle, que será rodado somente em 2009. Em entrevista por telefone à Ocas”, Lázaro Ramos, revelado no Bando de Teatro Olodum, falou sobre o povo baiano, seus projetos futuros, política e a questão do negro na sociedade brasileira. Ocas” – Você começou a gravar em junho a série para a Rede Globo “Ó

Paí, Ó”, que mostra vários aspectos do povo da Bahia por meio de diferentes personagens que moram no Pelourinho, em Salvador (BA). O que o povo baiano tem? Lázaro Ramos – Uma coisa bacana da série “Ó Paí, Ó”, inclusive, é falar justamente sobre o que o povo baiano tem, que é algo mais diverso do que geralmente é mostrado ou falado. Tanto é que eu considero o filme, em um primeiro momento, uma amostragem de todos os clichês do baiano: aquela pessoa muito alegre, comunicativa, que está sem-

ó

pre fazendo festa. O baiano realmente tem tudo isso, mas é também um povo trabalhador, lutador, residente de uma cidade repleta de problemas culturais e sociais. Ainda há bastante desemprego, falta de estrutura e racismo, por exemplo. Mas, ao mesmo tempo, a Bahia encontrou algumas armas de convivência que eu acho lindas. Como, por exemplo, a auto-estima: é importante você se gostar do jeito que você é. Pelo menos é essa a Bahia em que eu vivi. Ocas” – À época do lançamento do filme, houve quem o considerasse, por tratar alguns personagens de maneira superficial, um fomentador de alguns estereótipos da sociedade

Edição premiada pelo design no International Street Paper Awards de 2009

16 ! capa

texto: Rosi Rico e fotos: Antonio Brasiliano

O gigante em seu jardim Há 23 anos no universo do Hip Hop, Criolo enCara suCesso de seu segundo disCo, “nó na orelHa”, Com os pés finCados no CHão.

E leva a Ocas” para conhecer o Grajaú, bairro da periferia paulistana onde foi criado

“Ô povo lindo,

ô povo maravilhoso, especial, nossa senhora. É de explodir o coração falar do meu bairro, falar da zona sul...”. De repente, no meio da calçada em uma das ruas do Grajaú, na zona sul de São Paulo, um garoto desce com sua bicicleta e vai traçando um caminho de curvas, com agilidade para se desviar dos pedestres que sobem na direção contrária. O rapper Criolo observa e diz: “O Grajaú é isto aqui. Você viu? Ele já resolveu e ainda tirou uma onda [ri, faz uma pausa e depois desata a falar]. Quem vai bater de frente com um moleque deste numa dinâmica para emprego se ele tiver numa escola igual para todos? Se ele tiver com uma alimentação que seja igual para todos? Porque ele já tem a ginga, já tá aqui [mostra as veias do braço], já é dele. Porque toda criança tem, mas uns têm medo que seus filhos vão quebrar no meio. E eu também respeito porque, no mundo que a gente vive, é difícil mesmo. Mas, rapaz, você tá com medo de seu filho quebrar no meio e quebra o meu? E quebra o meu? [sobe o tom de voz]. Isso é injusto. E se a gente for falar de Justiça aqui, minha irmã, vamos fazer um especial.” A conversa com Criolo flui assim, em uma alternância entre calmaria e agitação. Com o olhar fixo em quem escuta, ele fala pausadamente, às vezes até rimando, criando frases de efeito, para logo em seguida subir o tom e mostrar sua indignação, seja contra uma situação, seja contra estereótipos. Parece o tempo inteiro querer desconstruir imagens preconcebidas, tanto em relação à sua música e ao momento em que vive quanto sobre sua vida em um dos bairros mais pobres de São Paulo.

“Di Cavalcanti, Oiticica, Frida Kahlo/tem o mesmo valor que a benzedeira do bairro” (Sucrilhos)

Aos 35 anos, Kleber Cavalcante Gomes, o rapper Criolo, lançou seu segundo disco, “Nó na Orelha”, no final de abril, ao colocar todas as músicas na internet para download gratuito. Em três dias, foram 25 mil arquivos baixados e, em dois meses, o número superava 80 mil. Depois disso seguiram-se entrevistas para os principais jornais e revistas do país, convites para participar em diversos festivais e uma agenda de shows que começa a se multiplicar. Há até uma

Em julho de 2011, a revista foi apresentada com novo projeto gráfico

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Entrevistas

Dar voz às pessoas que têm algo relevante a dizer, sejam elas famosas ou não, é um dos alicerces do projeto editorial da revista. Não é por outro motivo que as entrevistas com personalidades aparecem com destaque em Ocas”, em geral na capa das edições. Nesses mais de dez anos, o leitor teve a oportunidade de ouvir conversas especiais com centenas de homens e mulheres que, de uma forma ou de outra, pensam o Brasil. Em seu conjunto, essas entrevistas oferecem um olhar privilegiado não apenas sobre temas relevantes do período como também permitem refletir sobre aspectos atemporais, ligados à história do país e, no limite, à configuração da sociedade capitalista ocidental. Selecionar apenas algumas dessas entrevistas para o livro foi uma tarefa deliciosamente ingrata. Revisitar o material publicado renovou nossa convicção de ter realizado um trabalho editorial consistente, que, salvo


exceções, não perdeu interesse com a passagem do tempo. Mais complexo foi chegar a um recorte consistente, capaz de gerar interesse a um amplo leque de leitores. Embora, como qualquer seleção, esta também evidencie gostos pessoais, procuramos observar alguns critérios objetivos para escolher as entrevistas que você lerá nas próximas páginas, sendo o mais importante a qualidade, relevância ou originalidade de cada conversa. Para além de uma bem-vinda diversidade, digamos, “funcional” – a qual nos levou a incluir escritores, atores, cineastas e músicos no time de entrevistados –, optamos por privilegiar temas socialmente relevantes que, direta ou indiretamente, ecoam o DNA da revista e sua própria razão de existir. Por fim, cabe acrescentar que as entrevistas foram editadas, a partir dos textos publicados na Ocas”, com o objetivo de tornar a leitura mais fluida e prazerosa neste livro.


Chico Buarque

Francisco Buarque de Hollanda nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1944. Poeta de reconhecido talento, é um dos principais compositores da história da música popular brasileira. Também escritor, publicou os romances Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003) e Leite derramado (2009), que foram traduzidos para vários idiomas.

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O dono dos olhos azuis mais famosos do Brasil recebeu a Ocas” em uma tarde de sábado, depois de jogar futebol, poucos dias após completar sessenta anos de idade. Com fama de ser avesso a entrevistas, ele foi generoso e intenso. Em duas horas de conversa, refletiu com bom humor sobre as diferenças entre fazer literatura e música, relatou experiências pessoais, e falou sobre política e sua relação com a imprensa. Ocas” 24, julho de 2004 99


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Entrevista: Marcella Franco Foto: Andrea Capella

Você está envolvido com as traduções de seu romance Budapeste. Como é esse processo? Quando conheço o idioma, eu acompanho, dou palpites, interfiro. Leio tudo. Às vezes percebo erros evidentes de tradução ou compreensão, e fico em dúvida se é realmente aquilo que a pessoa quer dizer. Nessa situação sugiro: “Não seria isso? Não seria aquilo?”. Depois o sujeito manda de volta. Às vezes, rebate; às vezes, concorda. Fica uma conversa assim, e é bom. Às vezes essas dúvidas levantam a discussão com o tradutor, querendo saber: “Mas você quis dizer exatamente o que com isso, com essa palavra?” Como já passou um bom tempo, você mesmo fica se perguntando: “Mas o que será que eu quis dizer com essa palavra?”. É um pouquinho cansativo, mas por outro lado não é. Lembro no primeiro livro, Estorvo, de eu, no meio da tradução, resolver criar outras coisas. O sujeito traduziu, e eu corrigi. O cara até vinha e dizia: “Mas não foi isso que você escreveu”. Eu respondia: “Eu sei, mas agora eu quero que seja assim” [risos]. Uma coisinha ou outra você mexe, você tem o direito de mexer.

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Você sente vontade de fazer retoques também em sua música? Sim. Na música já senti muito isso, porque tem um momento em que você entrega e pronto, tem que largar. Mas já me aconteceu, por exemplo, de eu fazer uma música e uma letra e, quando eu vou gravar, quando sou eu o cantor, quase sempre na hora de cantar, no estúdio e tal, eu tenho uma outra ideia e mudo uma coisinha ou outra. Já me aconteceu uma vez de gravar, o disco ficar pronto, a capa ficar pronta com as letras impressas e eu, meio dormindo, ter um estalo: “Pá! A palavra não é essa, tem que ser outra!”. Aí acordei gente, o disco já estava realmente na prensa, e eu: “Para! para! para!”. No final das contas, deu mais ou menos tempo de parar a prensa, mas com a música foi complicadíssimo porque era a época de cortar fita com lâmina. Estava tudo pronto, com arranjos e mixado, e era uma palavra só, mas eu tinha que trocar. Fui para o estúdio, gravei a palavra nova, eles cortaram a fita e enfiaram a palavra nova, sem alterar a música. Fiz por cima, e foi bastante complicado porque a música é toda corridinha, picadinha, e o técnico teve um trabalho cirúrgico. Então acontece isso sempre. Depois não dá mais para mexer. Aí quando você vai, lá adiante, regravar uma música, dá vontade de mudar.

E mudar a letra pode? Pode, se for outra gravação, outro arranjo. Até porque não faz sentido gravar igual. Você pode

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mudar andamento, arranjo, levada, harmonia, por que não letra? Volta e meia mudo uma coisinha. Agora, é claro que sempre a versão que fica é a da primeira gravação. É ela que fica registrada, que vai para os songbooks e tal.

Você já disse não gostar de se escutar. É por isso, pela vontade de mexer? É um pouco isso. Mas na verdade eu não escuto muita música. E escutar a mim mesmo, só se for para fazer alguma coisa, um arranjo novo. Ficar escutando por escutar eu não gosto. O que às vezes é uma vantagem. Em primeiro lugar, porque é curioso ouvir coisas que hoje faria diferente, mas também porque você esquece, e pode acontecer de ter uma surpresa boa. Às vezes você ouve uma música sua que lembra vagamente. Porque faz vinte, trinta anos que você não mexeu mais naquilo. Aí, de repente você ouve e acha interessante. E isso só acontece por acaso mesmo, porque alguém regravou uma música sua. Agora mesmo passei por isso, arrumando a casa, as minhas fitas. Tinha uma porção de coisas que eu queria jogar fora, pegava e colocava para tocar querendo saber que música era aquela e, de repente, pá!, tinha a surpresa, essa música é minha. Esse cara que está cantando sou eu... É bacana você ficar ouvindo e pensando: “Para onde é que ela vai agora?”. Isso quando a música é boa. Porque, você sabe, tem algumas que são boas, né? [risos].

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Alguns compositores dizem que, ao criar uma canção, sentem que a métrica e a rima formam uma espécie de prisão, sem possibilidade de expansão, com limites bem traçados. A literatura parece não ter isso. Essa foi uma das razões de você ter escapado para a literatura, para ter uma coisa mais ampla? Talvez a parte literária da composição seja um bom exercício para, depois, na hora de desamarrar, você se sentir mais solto. Talvez tenha, sim, um prazer nessa liberdade. Mas, por outro lado, existe um prazer muito grande em fazer letra. Muitas vezes faço música em parceria, faço letra para canções prontas. Quando sou eu compondo, nunca faço a letra antes. Mas a música vai puxando a letra e pode ir se moldando, posso ir modificando a música conforme a necessidade da letra, porque ela é mais maleável. Quando eu pego uma música pronta e vou letrar, essa música para mim é intocável, é quase uma questão de honra não mexer, não acrescentar uma sílaba. E isso vira uma espécie de desafio. Então, fazer letra de música, para além do valor que elas possam ter, para mim deve ter servido como um exercício, eu devo ter ficado mais forte para poder escrever livremente depois de ter passado por isso. Realmente são dois trabalhos muito diferentes, e, se por um lado é um alívio você não ter mais aquele constrangimento da métrica, por outro lado é um pouco assustador você ter essa liberdade toda, poder es-

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crever uma frase de cinquenta linhas, sem pontuação, com as palavras que quiser, já que não tem que rimar com nada. E tenho a impressão de que existe um certo ritmo na literatura para quem está habituado a trabalhar com música que é peculiar. Existe, mesmo sem querer, um ritmo próprio de quem está acostumado a trabalhar com literatura oral. São palavras que foram escritas para serem ditas. Não é que eu saia lendo meu livro em voz alta, mas é que em algum pedaço da cabeça procuro um ritmo. Porque acho que, se não houver esse ritmo, vou rejeitar aquela frase, vai parecer que ela não está correta, que está manca.

Quanto tempo Budapeste levou para ser escrito? Dois anos.

Jogou muita coisa fora? Ah, bastante. Principalmente por eu ter uma certa inexperiência. Acontece muito de, no meio do livro, quando você está seguindo por um caminho, lá adiante, depois de um mês de trabalho, você começa a se desgostar, lê e aquele negócio não está legal. Aí é difícil, por ser uma hora em que é obrigado a renunciar a meses de trabalho porque uma coisa saiu errada. E muitas vezes você nem sabe o que é. Lendo, você diz: “Não é isso, não está bom, a história não está boa, o personagem seguiu um caminho errado”. Você percebe isso pela inconsistência das

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frases, começa a não acreditar no que está escrito, acha que está mecânico. Então é isso: jogar fora – o tempo todo.

Todo escritor passa por isso, na sua opinião? Não, acho que alguns têm uma facilidade maior para escrever. Mas eu não sou esse escritor. Eu, aliás, não sou um escri­ tor, sou um homem de música que escreve textos. Es­ critores geralmente não me consideram escritor, também. E eles têm razão. Até porque eu não faço questão de me considerar escritor. Quando viajo, chego ao hotel e tenho que escrever minha profissão, escrevo sempre “músico”. Mesmo quando vou a festivais de livros, lançamentos, é sempre músico. Sendo que os músicos também não me consideram músico... [ri muito]. Os músicos vivem dizendo: “Mas ele é um poeta”. Porque quando os músicos não gostam da música do sujeito, dizem que ele é poeta. Já conheço essa gracinha e, quando eles falam que eu sou poeta, olho feio. Agora mais recentemente é que os músicos estão me redimindo... Mas, se você for perguntar para um spalla da orquestra sinfônica se eu sou músico, ele vai ficar ofendido. Ele não me considera um de seus pares. Assim é também com a grande maioria dos nossos literatos [risos].

Você está num limbo, então. É, moro no limbo.

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Você trocou a música pela literatura? Por dois anos, eu simplesmente só escrevi. Meu violão ficou desafinado. Não é que eu não tocava violão, eu não tocava no violão. Porque eu não consigo misturar as duas coisas. E agora estou penando para voltar para a música, existe essa dificuldade. Parece coisa fácil, as pessoas acham que é um pouco isso, mas não é. Do tipo, deu na veneta escrever um livro, pronto, vou lá e escrevo um livro. Deu na veneta fazer música... Não é assim, é custoso. Começar a escrever um livro demora muito, você tem que escrever todo dia, aquela coisa. Eu, por exemplo, quando cheguei ao terceiro capítulo, falei: “Caceta, esse cara não é um arquiteto, a profissão dele não é essa”. Aí volta tudo. Quer dizer, não foram dois anos escrevendo um livro de 170 páginas. Foram dois anos escrevendo vários livros que joguei fora. Todo mundo sabe que é assim, mas é mais do que as pessoas imaginam. E não ache que eu estou me queixando, pelo contrário, foram dois anos maravilhosos. Tive momentos muito difíceis, em que tinha que jogar fora coisas de que eu gostava. Ficava uns dois dias até conseguir tomar a decisão. Quando conseguia, me sentia muito bem, como se eu largasse um vício, uma coisa que me fazia mal. Depois, na hora de retomar, dá medo de entrar no caminho errado de novo, de trabalhar mais um mês e ter que jogar fora. Em muitos momentos, dá uma grande agonia. Você

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não sabe onde está o final, quando tem que acabar, se vai ficar bom, se vai interessar a alguém. Mas dá muito prazer conseguir, antes de dormir, imprimir o que você escreveu naqueles dias, ler e gostar daquilo que escreveu. Porque o escritor tem que gostar de ler aquilo que, por um acaso, foi ele quem escreveu.

Você se impõe uma rotina para escrever? A rotina da literatura não existe, porque você fica o dia inteiro pensando nisso. Claro que dá tempo de jogar bola, andar na praia, mas você está com aquilo na cabeça o tempo todo. Durante esses dois anos era um pouco difícil para mim ir ao cinema, me entregar inteiramente a um filme a que eu fosse assistir. Você fica muito autocentrado, girando naquele mundo que você criou, que ainda está em gestação. Tudo o que você vê e lê de certa forma acha interessante, acha que pode de alguma forma te sugerir coisas. Não imediatamente, porque isso não existe. Um jornal que você lê não traz uma notícia que vai te servir ao livro. Ao mesmo tempo teu livro é contemporâneo àqueles acontecimentos. De certa forma, uma coisa acaba sendo filtrada pela outra.

E para compor, como é o seu processo? O trabalho com música é mais disperso. Geralmente, música é mais dispersiva. Disciplina não existe nenhuma, porque você

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não consegue fazer nada em trabalhos com arte sem prazer. Se você não tiver prazer naquela escrita, quando começa a não sentir mais isso, é porque alguma coisa está errada. Você pega o violão, começa a tocar, tem uma ideia, vem uma sequência harmônica interessante, e é capaz de ficar oito horas repetindo aquilo, não almoçar, não jantar. Agora, se você tentar perseguir aquilo e aquilo não vem, e você passa meia hora com o violão, buscando, e aquilo não chega, você tem mais é que sair e tomar um sorvete. Porque não adianta, aquilo vai te deixar doente. A busca do prazer não funciona dessa maneira. Ele está ali ou não está. Não adianta forçar. Então, no caso da música, você faz uma coisa aqui, burila, burila, termina a música, vem um hiato até aparecer outra música. O que significa que durante um ano eu posso compor as canções de um disco, dez músicas e não mais que isso. Porque tem essa história de os tempos de criação começarem a ficar mais largos. E o tempo de vida vai ficando mais estreito [risos]. Por isso é que às vezes eu penso que vai chegar uma hora em que eu vou ter que parar com essa brincadeira, porque não vai mais dar tempo... Por exemplo, para eu fazer um disco, tenho que me livrar do livro, e isso leva alguns meses. No último disco, levei um ano compondo as músicas, o que quer dizer que no próximo vou levar dois anos. Então, para me livrar de um livro, em vez de um ano, vou precisar de dois também. Depois de dois anos vou

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começar a compor esse disco, e só daqui a quatro anos vou ter terminado de gravá-lo. Aí o pessoal vai dizer: “Vamos fazer show, vamos fazer show”. E lá vou eu fazer show. E isso vai ser daqui a cinco anos. Em seis anos, vou escrever outro livro. Então, mais um ano aí na conta para eu começar a escrever de verdade esse livro. Daí para o próximo livro são três anos, o que significa que, pela minha matemática, o próximo livro ficaria pronto daqui a onze anos. Aí eu vou estar com mais de setenta anos [ri muito]. E, se eu ainda decidir nessa época fazer música de novo, esses prazos todos vão crescer, e em progressão geométrica! Mas, falando sério, tem uma hora que você, evidentemente, quer fazer uma coisa só. Pode ser que daqui a um ano eu pare e veja que não estou mais conseguindo fazer música. Aí a única solução é fazer música no tempo de [Dorival] Caymmi: faço uma canção, descanso, espero, faço outra... É uma ideia, também. E, ao invés dos pincéis dele, posso talvez me dedicar à literatura. Mas, mesmo assim, daqui a uns vinte anos, não tendo mais escrito nenhuma música, e tendo feito uns dois livros, quando eu for me registrar no hotel vou colocar: “profissão: músico”.

Ainda sente prazer em fazer shows? Sinto saudades do clima de show, do clima de camaradagem com os músicos, estarmos juntos. Depois do show, é ótimo sempre, jo-

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gar futebol, jantar, tomar um vinho. Ter essa família, como dizia o Vinicius [de Moraes]. Gosto desse clima de encontrar as pessoas no avião, no ensaio, no restaurante, no camarim. Adoro ter essa trupe viajante, gosto muito do clima entre os músicos. Porque depois vou me trancar, escrever ou compor, e isso é uma solidão danada. A música é gregária, não só a parte de show como também estúdio e gravações. Gosto de ir para o estúdio com as músicas, conversar sobre os arranjos, ouvir palpites, mudar aqui e ali, brincar. Isso é muito bom.

A ideia, quando você começa a compor, é que isso sempre desemboque em um show? Não é obrigatório. Já gravei discos sem fazer show. O que acho um pouco difícil, mas que também pode acontecer, é fazer um show sem o disco. Já fiz isso, é uma variação da mesma história. Quando eu terminei de escrever Estorvo passei por esse mau bocado por um tempo. Pensava que não conseguia mais fazer música. E o interessante nessa dificuldade era que a dificuldade não estava em fazer música, e sim em fazer letra. Eu lembro que falei meio brincando na época que eu estava fazendo várias músicas e que precisava de um letrista. E apareceram tantos candidatos a letrista que tive que avisar para as pessoas que era mentira. Porque eu não sei fazer isso, fazer música e dar para outra pessoa fa-

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zer letra. Morreria de ciúmes. Sei fazer o contrário, pegar a música de outro e botar letra. E, se o sujeito não gostar, peço desculpas. Acho que não gostaria de alguém colocando letra nas minhas músicas porque tenho uma ideia de letra que não consigo realizar. Geralmente o músico entrega para um letrista porque ele não tem ideias para a letra, não está acostumado a escrever. Quando o cara ainda faz um pouquinho de letra, cria-se um pouco de atrito, como era o caso do Tom [Jobim]. Tivemos vários atritos amigáveis, porque ele entregava a música para eu colocar a letra e depois ficava querendo mexer na minha letra... A gente discutia e tal. Mas não é isso que acontece na maioria das vezes. Quase sempre o cara só tem, no máximo, o título da canção. É engraçado isso, sair da literatura e ir para a música. Porque é quase como se a música estivesse te chamando, você está carente dela. Você quer tocar violão. E parece o tempo todo que você está escrevendo, que tem uma música tocando lá no fundo da sua cabeça. Ela fica ali no teu pé, te marcando. Talvez querendo se vingar, acho. Aí o problema é que você não sabe mais o que fazer com as palavras, porque elas não estão mais habituadas a sair assim, em forma de música, se agrupar daquela maneira. É impressionante a incapacidade que sinto nessas ocasiões em juntar palavras em forma de música. Agora estou mexendo no que seria a primeira

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música que vou fazer depois desse tempo todo. A música está legal, estou gostando, a letra está quase pronta. Mas a dificuldade de dizer as coisas é absurda. É quase como se a cabeça não obedecesse.

Você disse que acompanha de perto as traduções do livro. E as adaptações para cinema, você participa do processo? Não, nesse caso você entrega e seja o que Deus quiser. Até porque não quero me meter no trabalho das pessoas. Não entendo disso, não sei mexer em cinema. Sei menos cinema do que sei língua estrangeira. E não é que eu saiba muito, mas posso dar algum palpite quando se trata de outro idioma. O [cineasta] Ruy Guerra, por exemplo, me mostrou só o primeiro tratamento de Estorvo, me perguntou o que eu achava, eu falei, e depois disso ele mexeu em muita coisa, mas nem me perguntou mais nada. Nem eu quis que perguntasse. A Monique [Gardenberg, diretora de Benjamim] me mostrou um pouco mais, me perguntou, pediu opinião. Discordei de algumas coisas; algumas ela acatou, outras não.

Você tem fama de ser recluso. Tem saído mais depois que terminou o livro? Não, mas, quando estou escrevendo, aí é que eu saio menos ainda. É difícil ficar o dia inteiro, dia após dia, pensando numa coisa, e depois ir

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assistir a um filme. Sua cabeça não vai acompanhar. Então fico mais recluso. Não gosto de lugares com muita gente. As pessoas falam em timidez, mas não tem timidez nenhuma. Eu não sou uma pessoa tímida. Acontece que, se eu estiver numa mesa com até quatro pessoas, acho bom. Se tem cinco, a quinta pessoa já atrapalha um pouquinho, porque parece que a conversa vai ficar cruzada. É como música em restaurante: sempre peço para tirar a música, pelo amor de Deus! A música começa a perturbar meu pensamento, eu começo a prestar atenção só na música, a pessoa fica falando comigo e eu não consigo fazer tudo ao mesmo tempo. Porque eu quero falar com aquela pessoa.

E com música ao fundo, não consegue conversar. Por exemplo, se eu estiver numa mesa falando com você, e tiver duas pessoas ali ao lado falando também, vou querer ouvir o que você está dizendo, mas vou querer saber também o que os outros dois estão falando. Ou como quando você chega nessas festas com música tocando alto, você não entende nada do que as pessoas estão falando, aquilo me deixa um pouco incomodado. Alguns me dizem: “Então vai dançar”, mas eu não sou bom dançarino. Então é isso. Não é vontade de reclusão. Gosto de uma boa conversa, sair com os amigos, caminhar na praia; converso com o porteiro, o carteiro.

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Quando alguém te reconhece na rua, você responde, atende quando te chamam? Como assim? Quer saber se viro a cara?

Você conversa com fãs na rua? Claro, eu sou muito educado [risos].

A imprensa, à época do lançamento de Raízes do Brasil, filme sobre seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, publicou fotos e entrevistas com sua mãe. Como é sua relação com ela? Bom, minha mãe, por exemplo, odeia Dia das Mães. Como ela não gosta de dias em geral, tipo Dia da Secretária, essas coisas. Porque a cada ano parece que tem um dia novo, né? A Câmara dos vereadores está sempre aprovando alguma coisa assim, Dia do Marido. E minha mãe é antiga, ela viu quando essa história de Dia das Mães começou, os americanos trazendo essa tradição para cá. Então ela não acha graça, mesmo. E eu era garoto, um dia chegaram as preparações para o tal dia, e a professora de português resolveu fazer um concurso de redações. Quem ganhasse, ganhava uma caixa de bombons e um buquê de flores para dar para a mãe. Eu fiz um soneto e com esse soneto ganhei a competição. Ah, e tem também outra coisa: minha mãe era também a mais velha entre as mães dos outros garotos, porque minha

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mãe, quando eu nasci, ela já tinha mais de trinta anos. Os meninos falavam para mim: “Pô, sua mãe é velha, hein?”. Enfim, aí ganhei esse concurso e cheguei em casa feliz da vida. Minha mãe gritou: “O que é isso? Que bobagem de Dia das Mães! Como é que você ganhou essas flores?”. E eu respondi: “Com esse soneto que eu fiz para você”. Aí ela leu o soneto, ficou ofendidíssima e jogou fora. Ela não quis entender como uma peça de ficção dirigida a uma mãe fictícia, ela levou para o lado pessoal [risos]. Mas a verdade é que lá em casa éramos muitos filhos, e nunca fui paparicado. Só minha babá me paparicava.

Uma parte de seu cancioneiro tem a presença da pobreza. Você é uma pessoa que nasceu na elite, mas seu cancioneiro reflete esse outro lado. Em primeiro lugar, acho que temos que deixar claro que não fui criado como um filho da elite. Não nasci no morro, não passei fome, mas também não tinha tantas facilidades. Eu vi a pobreza se agravar ao longo dos tempos. Por exemplo, agora já não são mais crianças que vão morar na rua, são crianças parindo outras crianças na rua. O lado mais miserável da pobreza, por acaso, eu tive contato com ele, por algum tipo de preocupação social de gente que me criou e me acompanhou desde a minha primeira juventude. Sem contar que meu pai era professor, não era um banqueiro.

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E eu convivia na rua com gente pobre. Não conheci muito essa miséria associada à violência porque ela ainda não existia. Vou contar uma história para você entender melhor. Fui preso, com dezessete anos, pela minha brincadeira de playboy, aquela história de roubar carros, pegar o carro do sujeito, andar até acabar a gasolina, largar o carro na puta que pariu e voltar para casa a pé. E, quando fui pego, apanhei um bocado. Tem gente que fala que foi o golpe militar que piorou a situação nas delegacias de polícia, mas porrada em preso já existia. Isso é uma instituição nacional e secular. Depois de tomar porrada de todos os guardas, do ascensorista, do delegado, ser ameaçado de tortura, finalmente consegui convencer aqueles caras de que eu era menor de idade e fui transferido para o que seria hoje uma Febem [atual Fundação Casa]. Passei uma noite lá; meu colega de cela estava preso porque tinha roubado uma mula... Quer dizer, não existiam drogas, essa loucura toda que é hoje em dia. Há pouco tempo fui jogar futebol com uns artistas contra meninos de uma espécie de Febem dessas, de Niterói, para dar uma alegria para a garotada. Só que, chegando lá, eu falei que não sabia se deveria jogar no time dos artistas ou dos menores infratores [risos]. Quando era pequeno, eu briguei muito, quebrei dedo, mas nunca ouvi falar de ninguém perto de mim que tivesse puxado uma arma. Não existia essa possibilidade. Era fora

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de propósito a ideia de um garoto, mesmo pobre, mesmo fodido, fazer esse tipo de coisa. Não acredito que o fato de ter sido bem criado e ter frequentado boas escolas me faça sentir um estranho perto do mundo da pobreza, da miséria e da violência que têm acompanhado a gente no dia a dia. Tenho visto isso o tempo todo, cada dia crescendo mais. Se eu pegar a minha música, não vejo essa coisa mitificada. O que eu vejo, por exemplo, é que canções falando sobre esse tema compostas nos anos 1970 são quase ingênuas se trazidas para hoje.

De que maneira a situação de violência no Rio te afetou? A mim, pessoalmente, muito pouco. Na semana passada, roubaram a bicicleta da minha filha, por exemplo, na Lagoa [Rodrigo de Feitas]. Todas as minhas meninas já foram assaltadas mais de uma vez, mas eu nunca fui. Nunca andei de relógio, anel, corrente, até para evitar isso, para não ter muito o que levarem. Então, desses pequenos crimes ando mais ou menos a salvo. Mas isso não quer dizer nada. Essa confusão não me afeta fisicamente, mas de resto afeta tudo. É ruim estar nessa loucura. Não vivo com paranoias, não tenho essa preocupação. Já passei por climas parecidos, mas que eram mais fáceis de lidar. Por exemplo, no tempo da repressão, sendo realmente amea­çado de ser morto, sofrer acidentes, eu convivia com isso. Não era pa-

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ranoia de repente chegar uma caixa na minha casa e eu ter que atirar longe para ver se explodia. Mas o que acontece hoje é que você vive com esse clima, e o que te ameaça não vem do inimigo. Esses caras que estão fazendo isso, eu provavelmente dou razão a eles. Se o cara quiser entrar aqui em casa e levar essa porra toda, me dar porrada, eu vou ficar muito puto, não vou gostar de apanhar, mas no fim das contas vou pensar que, se eu estivesse no lugar dele, faria a mesma coisa. Às vezes as pessoas jogam pedras do mirante aqui na minha piscina, e eu penso que, se eu estivesse lá em cima, também jogaria, entende? Estou lá, vendo isso tudo, estou sem um puto, eu não vou virar evangélico, não vou ler a Bíblia, talvez tente trabalhar e não consiga nada e aí, ainda mais, eu vou querer aquela bicicleta daquela garota que está passeando na Lagoa.

Qual é sua relação com a imprensa atualmente? Fico um pouco desgostoso quando sou obrigado a falar. Porque, quando sai publicado, não gosto da maneira que saiu. Mesmo que sejam as palavras que eu disse. Porque as pessoas que ouviram minhas palavras escreveram aquilo, e elas já não são mais as que eu disse. Aí prefiro não falar, para não me aborrecer. Porque acabo sempre me aborrecendo. Se eu puder evitar, é melhor.

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Cabeça sem teto

Ouvir uma parcela bastante notável da sociedade brasileira que sistematicamente não só é colocada à margem, como é deixada sem voz e sem direitos. E, mais do que ouvir, ser um meio de expressão para anseios, problemas e notícias que afetam diretamente quem não tem ou vive em condições precárias de moradia. Este sempre foi um dos objetivos da Ocas”, para além de ser um instrumento de geração de renda. Para atingi-lo, a revista mantém desde seu lançamento a seção “Cabeça sem teto”, espaço para publicação de reportagens sobre este universo, mas também de relatos, poesias e fotografias


de quem experimenta diariamente essas dificuldades, como os vendedores da Ocas”. Nas próximas páginas, está o histórico desta seção especial – que diferencia e reforça a postura social da revista – e alguns dos trabalhos desenvolvidos nas oficinas de criação de textos, em que os integrantes constroem coletivamente ideias, textos e atividades, visando promover a cidadania, diminuir o preconceito, fortalecer a união do grupo e aprimorar o canal de comunicação com leitores da revista e da sociedade. Também há trabalhos preparados em conjunto com grupos externos à instituição.


Esta rua pode ser comparada a uma profissional do sexo. Ora lembra a decadência de uma cafetina em fim de carreira, ora a vivacidade de uma moça que se submeteu a essa vida na flor da idade. Aliás, a prostituição é uma das facetas da região. Muitas de suas casas antigas viraram bordéis. No sábado de manhã você ainda poderá sentir no ar a ressaca da noite anterior. Porém, nem só do sexo vive esta rua. Durante o dia, pessoas passam por ela a caminho do trabalho e ajudam a movimentar seu comércio, para lá de diversificado. Alfaiates, lojas de chapéus artesanais e restaurantes tradicionais; lojas de botas e roupas para prostitutas, sex shops, um cabeleireiro cuja maior clientela é a de travestis, além de muitos sebos. Sem esquecer do teatro, cinemas e um centro de cultura islâmica. Esta rua também tem um quê de contradição, já que hotéis de três a cinco estrelas dividem a mesma calçada com cortiços. Sua primeira travessa, a partir do centro, chama-se João Guimarães Rosa e, nela, podemos ver vários Diadorins – meninas que parecem meninos, como no antológico Grande sertão: veredas – caminhando em direção a baladas de rock alternativo, além de pessoas extremamente tatuadas e de idosos conservadores que ainda moram ali. Mais adiante, há um cinema que possui programação voltada para filmes não comerciais e para mostras. Desde

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sua inauguração, foi adotado pelos paulistanos como um espaço de convivência e ponto de encontro. Seus frequentadores vêm de todas as regiões de São Paulo, do interior e até de outros países, e possuem as mais diversas cores, crenças e orientações sexuais. No entorno, há vários bares e botecos que oferecem uma bela loura gelada. É o local ideal para trocar ideias sobre o filme a que assistiu, sobre aquela aula da faculdade etc. Enfim, esta rua é a cara de Sampa. Talvez não em sua mais perfeita tradução, mas certamente como um local de resistência à deterioração urbana. Que rua é esta? José Fernandes Junior

Uma sociedade revelada A rua – a mesma que estraçalha a dignidade – tem também sua “alma encantadora”, como definiu o escritor João do Rio (1881-1921). É dessa porção pulsante da paulistana rua Augusta que escreve o Zeca – ou José Fernandes Junior, hoje educador social radicado na cidade capixaba de Vitória, por muitos anos vendedor da Ocas’’ – em um de seus diversos textos publicados na revista. É pelo eco, é pela voz de quem conhece e vivencia a rua em suas múltiplas perspectivas e dimensões que uma sociedade por muitos de nós desconhecida começa a ser apresentada a seguir...

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Um dia encontrei um homem negro, sujo, descalço, rosto enrugado, dentes brancos que brilhavam. Era um homem de 40 anos, que estava morando ali, no final de um viaduto. Sei que isso não é surpresa nenhuma. Hoje, são mais de 14 mil pessoas adultas que se escondem pelas marquises, ruas, viadutos da grande metrópole que é São Paulo1. A novidade que me fez parar, olhar, ou melhor, ouvir, sentir e depois aplaudir foi que aquele “maluco” cantava, tocava e compunha belas letras musicais. Até seu nome se tornou uma dessas poesias: Benedito Sai do Lixo.

Histórias como a de Benedito, publicada na primeira edição da Ocas’’, e de tantos outros anônimos cruzam-se nas páginas da seção fixa “Cabeça sem teto”. A intenção é apresentar cidadãos tão desconhecidos quanto facilmente rotulados como “loucos”, “pedintes”, “desestruturados”. Uma visão distorcida que leva à desumanização de quem está nas ruas e só faz acentuar o preconceito. Um dos fundadores da OCAS, Alderon Costa explica: Quem está na rua hoje? Pessoas, seres humanos. João Francisco da Silva tem nome, sobrenome, data de nascimento e uma vida. O que aconteceu com ele? O que pode acontecer 1  A pesquisa do censo da população em situação de rua de São Paulo indicou no ano de 2011 um total de 14 478 indivíduos.

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Ecos da Ocas”


Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Augusto, Dario, Eduardo, Jorge, Jesoel, Marcos, Maria Ruth e Sérgio, alguns dos vendedores durante preparação de trabalho sobre aniversários

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Desde sua criação, a OCAS vem sendo desenvolvida por um trabalho coletivo, marcado pela cooperação, solidariedade e multiplicidade de opiniões de um grupo formado por centenas de pessoas. E, por isso, há muitos a agradecer. Aos fundadores, que acreditaram na possibilidade de criar no Brasil um projeto que visa à transformação social, não apenas dos vendedores – beneficiários diretos –, mas de todos os envolvidos. Aos muitos colaboradores que trabalharam de forma voluntária para produzir textos e imagens que garantem a qualidade editorial da Ocas” e que, em parte, estão reproduzidos neste livro. A todos que fizeram, e ainda fazem, parte da equipe fixa da redação – um grupo que conseguiu manter a revista circulando ininterruptamente desde seu lançamento. Aos retratados, famosos ou não, nas edições da revista, que contaram suas histórias e cederam seu tempo. Ao imprescindível time que, ao longo dos anos, cuidou, e cuida, do atendimento aos vendedores, incluindo todas as atividades de apoio a eles, bem como da parte administrativa da instituição, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Aos muitos parceiros e apoiadores que, por saber da seriedade do trabalho da OCAS, ajudaram, e continuam a contribuir, para manter o projeto. Aos leitores da revista, que se deixaram seduzir por uma publicação independente, que mescla cultura, política e comportamento ao debate de questões sociais. E aos vendedores – pessoas que confiaram na proposta da OCAS e agarraram a chance de mudar suas vidas, proporcionando uma convivência de aprendizado mútuo. Sem a adesão de todos, nem o projeto, nem o livro existiriam. A todos, muito obrigado. OCAS

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Este livro foi composto com as famílias tipográficas ITC Bookman Std e Dax e teve sua impressão realizada em outubro de 2013, com tiragem de 2 100 exemplares.



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