Jornal Brasil de Fato Rio Grande do Sul - 17 de março de 2022

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Foto: Ayrton Centeno

RIO GRANDE DO SUL

Foto: Divulgação Prefeitura

CONQUISTA NO PASSADO, ELES ERAM SEM TERRA MAS HOJE INDUSTRIALIZAM UM PRODUTO MUITO ESPECIAL PÁGIN A 4

ANIVERSÁRIO NOVA SANTA RITA CELEBRA 30 ANOS JUNTO COM A FESTA DA COLHEITA PÁGIN A 5

17 de março de 2022 distribuição gratuita brasildefato.com.br

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Ano 3 | Número 33

MAIORES PRODUTORES DE ARROZ ORGÂNICO DA AMÉRICA LATINA, ASSENTADOS GAÚCHOS VÃO COLHER MAIS DE 15 MIL TONELADAS CULTIVADAS SEM ADUBOS QUÍMICOS E SEM AGROTÓXICOS

Foto: Alex Garcia

SEM VENENO


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EDIÇÃO N O 33 - 17 DE MARÇO DE 2022 - W W W.BRASILDEFATORS.COM.BR

CHARGE | Santiago

Opinião

Reforma Agrária Popular, uma grande façanha! LEONARDO MELGAREJO*

Editorial

Os deputados que fazem mal à saúde ▶ Se vivêssemos em mundo melhor, talvez a Câmara dos Deputados não decidisse apressar a nossa morte. Assim aconteceu na votação do PL 6.299/2002. Foram 301 votos favoráveis e 150 contrários aquilo que a gente conhece, no popular, como “Pacote do Veneno”. Se vivêssemos em um mundo melhor, não se aprovaria uma medida abrindo a porteira para pesticidas e herbicidas proibidos em seus países de origem. Sem contar o fato de que o Brasil fechou 2021 com a liberação alucinada de 562 novos venenos agrícolas. Um recorde histórico. Como elemento de comparação, basta dizer que foram autorizados apenas 139 novos produtos em 2015. Sintomaticamente, o ano anterior ao golpe parlamentar. Se vivêssemos em um mundo melhor, não teríamos a bancada federal do Rio Grande do Sul também votando massivamente contra seu eleitor e a favor dos venenos. Foram 19 deputados, entre eles todos os do MDB. Se vivêssemos em um mundo melhor, a Assembleia Legislativa não passaria a boiada do governador Eduardo Leite violentando a Lei dos Agrotóxicos como o fez em 2021. Foram 37 votos que legalizaram aqui venenos banidos nos próprios países que os fabricam. E o MDB, de novo, foi maioria. Por ironia, a lei fora uma batalha do ex-deputado estadual Antenor Ferrari, também do MDB. Que, indignado, chamou a mudança de “atraso para o povo gaúcho” que atenderia apenas “a sanha de lucros de poucos”. Se vivêssemos em um mundo melhor, alguns deputados que concorrem à reeleição neste 2022 deveriam ser identificados e rotulados como os produtos que liberaram. Algo como “Este candidato pode causar câncer, doenças do coração, rins e fígado e malformações fetais”. Além do desenho da caveira e a palavra “Perigo”. Se fosse assim, talvez não os elegêssemos para despejar veneno nos nossos pratos.

▶ Na Festa da Colheita do Arroz Orgânico vale revisar o que esta atividade significa, em seus fundamentos e em sua importância. Não há quem ignore: os agricultores dependem das condições ambientais. Por isso, com as mudanças climáticas aceleradas que o aquecimento global está impondo, os agricultores trabalham, cada vez mais, sob a ameaça de riscos crescentes. E quanto menor o agricultor, maiores as ameaças. E são os pequenos que produzem alimentos, de modo que, na falta deles, afundamos no mapa da fome. Nisso se percebe a importância da soberania alimentar, realidade que não se alcança importando arroz e feijão e destruindo ecossistemas, para colher soja transgênica em territórios sem gente e envenenados por agrotóxicos. A seca que apavora os gaúchos, as cheias que matam pessoas em Minas, no Rio e na Bahia, e as queimadas no Norte e no Centro-Oeste, tudo isso se liga através do pouco caso do governo com nossa necessidade de soberania alimentar. São resultados de políticas

A SECA QUE APAVORA OS GAÚCHOS, AS CHEIAS QUE MATAM PESSOAS EM MINAS, NO RIO E NA BAHIA, E AS QUEIMADAS NO NORTE E NO CENTROOESTE, TUDO ISSO SE LIGA ATRAVÉS DO POUCO CASO DO GOVERNO COM NOSSA NECESSIDADE DE SOBERANIA ALIMENTAR.

criminosas, contra os agricultores familiares e camponeses e em favor da fome e de um agronegócio que nos envenena. Vejam o Pacote do Veneno (PL6299/2002). Numa tacada, a maioria parlamentar de golpistas, que sustenta o presidente incapaz, criou a figura do risco “aceitável” para consumo de venenos que causam câncer, que provocam alterações reprodutivas e deformações genéticas nos filhos e filhas do Brasil. Retirou o poder dos Ministérios da Saúde e Meio Ambiente sobre o registro de agrotóxicos, e ainda ofende a democracia participativa, impedindo que vereadores, prefeitos, deputados estaduais e mesmo governadores estabeleçam leis mais protetivas à saúde dos seus, entre outros absurdos. Esta é a ideia de “menos Brasília, mais Brasil”, de políticos que além de não ajudar, atrapalham. Estão no poder porque a sociedade, enganada por campanhas mentirosas, não conhece soluções como as evidenciadas aqui, onde o arroz ecológico se apresenta como resultado do trabalho coletivo, com o povo chamado e estimulado a se colocar a serviço da soberania alimentar. Aqui se evidencia a importância da Reforma Agrária Popular, com agregação cooperativa de pequenas lavouras, garantindo soberania alimentar, com saúde humana e ambiental. É esta consciência que nos oferece a festa de partilha comemorada nesta 19ª Festa da Colheita do Arroz Ecológico do MST gaúcho. Aqui há de fato uma grande façanha, um exemplo a ser copiado pelos povos de toda a terra. * Engenheiro agrônomo, integra a coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.

www.brasildefators.com.br (51) 98191 7903 redacaors@brasildefato.com.br /brasildefators @BrasildeFatoRS brasildefato.rs CONSELHO EDITORIAL Saraí Brixner, Sandra Lopes, Enio Santos, Neide Zanon, Ademir Wiederkehr, Luiz Muller, Télia Negrão, Diva da Costa, Grazielli Berticelli, Bernadete Menezes, Gelson José Ferrari, Salete Carollo, Cedenir Oliveira, Vito Giannotti (In memoriam) | EDIÇÃO Ayrton Centeno (DRT3314), Katia Marko (DRT7969) REDAÇÃO NESTA EDIÇÃO Ayrton Centeno, Katia Marko, Marcelo Ferreira, Walmaro Paz e Pedro Neves | DIAGRAMAÇÃO Marcelo Souza | DISTRIBUIÇÃO Ronaldo Schaefer e Saraí Brixner | IMPRESSÃO Gazeta do Sul | TIRAGEM 25 mil exemplares.


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Fotos: Alexandre Garcia

Agroecologia

Assentamentos gaúchos projetam colher mais de 15 mil toneladas de arroz orgânico A safra 2021/2022 deve render cerca de 310 mil sacas de 50 quilos. Serão 15,5 mil toneladas, um avanço de 29% sobre a colheita de 2021, que atingiu 12 mil toneladas. KATIA MARKO PORTO ALEGRE

▶ Entre as conquistas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está o título de maior produtor latino-americano de arroz orgânico. No Rio Grande do Sul, são cinco mil hectares de área cultivadas com arroz no sistema agroecológico. Deste total, quatro mil hectares estão em áreas de assentamentos da reforma agrária. São quase 300 famílias produzindo arroz sem veneno. Estão distribuídas por 14

assentamentos situados em 11 municípios das regiões Metropolitana, Sul, Centro Sul e Fronteira Oeste. Neste ano, a colheita começou em 1º de fevereiro no assentamento 30 de Maio em Charqueadas, distante 91 km da capital gaúcha. Já o assentamento que tem a maior área plantada é o Filhos de Sepé, de Viamão, na Grande Porto Alegre. Lá, a safra deve render cerca de 124 mil sacas. O cultivo principal é de arroz orgânico nas variedades agulhinha e cateto.

Na safra, a lida da colheitadeira vai do sol à lua alta

O arroz orgânico Terra Livre – uma das marcas do MST – é semeado com base na agroecologia. É uma lavoura sem sementes transgênicas, sem adubo químico e sem agrotóxicos. Segundo o agrônomo Edson Cadore, o sistema agroecológico pode ser favorável para enfrentar eventos climáticos extremos como a seca deste início de ano no Sul do Brasil.

PE SQUIS A A JUDA A MELHOR A R O GR ÃO

"Os sistemas produtivos de base ecológica estão mais

próximos das leis da natureza e seguem princípios com maior sustentabilidade em períodos climáticos extremos cada vez mais frequentes”, explica. “Esses sistemas – prossegue – estão mais de acordo com o ciclo das águas e a manutenção da fertilidade do solo”. A principal diferença entre o arroz convencional e o orgânico é que esse último devolve à sociedade um alimento saudável, além dos benefícios sociais, ambientais e econômicos. O agrônomo repara que os assentados investem em pesquisas para melhoria no manejo do grão agroecológico através de parcerias com entidades técnicas, como o Instituto Riograndense do Arroz, o

IRGA, a Emater/RS, universidades e institutos federais. “A agroecologia – diz ele – já apresenta na sua matriz tecnológica a produtividade e o ma­nejo necessários para a produção de alimentos de qualidade que precisam ser estudados e pesquisados cada vez mais para aumentar a escala de oferta”.

Na mão das crianças, a bandeira que abriu o caminho para a terra prometida. Alegria com o prenúncio de boa colheita

PRODUÇÃO COOPERATIVADA ▶ A primeira experiência do MST na produção de arroz de base agroecológica já completou 20 anos. Aconteceu em pequenas áreas no entorno da capital e de forma cooperada. As famílias se organizaram inicialmente por meio da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap), no assentamento Integração Gaúcha, de Eldorado do Sul; da Cooperativa de

Produção Agropecuária dos Assentados de Tapes (Coopat), no assentamento Lagoa do Junco, em Tapes; e da Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita (Coopan), no assentamento Capela, em Nova Santa Rita. O debate sobre a construção de uma nova sociedade e a conscientização sobre os impactos dos modelos de agricultura na saúde e no meio ambiente fizeram

com que centenas de outras famílias de assentados, motivadas pelas experiências da Cootap, Coopan e Coopat, adotassem também o cultivo. O processo se fortaleceu por meio de intercâmbios e estudos sobre rizipiscicultura – mescla de lavoura de arroz com criação de peixes – arroz pré-germinado, secagem, armazenagem, beneficiamento, processamento e formas de comercialização.

CERTIFICAÇÃO GARANTE A QUALIDADE ▶ Hoje, o MST possui unidades próprias de agroindústria para recebimento, secagem, armazenagem e embalagem de arroz, além de unidade de beneficiamento de sementes (UBS). As sementes são produzidas em sete assentamentos nos municípios de Eldorado do Sul, Viamão, Nova Santa Rita, Tapes e Guaíba. O arroz orgânico é certificado desde 2004, em todas as etapas da produção, com base em normas nacionais e internacionais, por meio da certificação participativa (OPAC – Coceargs) e de auditoria (IMO – Ceres).


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Assentados

A jornada da lona preta até a produçã sem veneno e de alta qualidade

Saga de uma família gaúcha resume o longo caminho dos sem terra para vencer o preconceito e mostrar a asc AYRTON CENTENO E KATIA MARKO

▶ “Eu digo que o arroz são dois, são duas partes. Uma é da lavoura, o preparo de solo, semear, a germinação, o crescimento, a água. A outra é o recebimento e o beneficiamento. A gente faz a cadeia toda até a comercialização”. Quem fala assim, com seu jeitão despachado e domínio do assunto, é o Everaldo. Parece até mentira que, tempos atrás, arroz era um negócio estranho para ele. Não sabia nada do grão. Everaldo era da soja, do milho e do feijão. Mas não tinha onde semear. Aos 17 anos, sabedor que os 15 hectares do pai em Ronda Alta, Norte gaúcho, era pouco chão para repartir entre ele e os quatro irmãos, tocou-se para debaixo da lona preta. Gastou cinco anos penando de acampamento em acampamento. Passou por Bagé, Cruz Alta e outros municípios. Teve bastante tropelias com a Brigada Militar. E o que ouviu de muita gente na época? - Quando viam um sem terra chamavam a gente de vagabundo. E diziam que vagabundo tinha que apanhar da polícia. Muito preconceito. Mas provamos o contrário. Que os vagabundos que eles falavam hoje tem a sua própria produção e vivem da sua produção. Ele não tem dúvidas: va-

leu a pena. Conquistou enfim seu lote no Assentamento Capela, em Nova Santa Rita, município da região Metropolitana de Porto Alegre. Ali, pisando na primeira terra que podia chamar de sua, começou a cultivar arroz sem veneno. - Destas 29 famílias que estão na cooperativa, ninguém plantava arroz. Ninguém conhecia, ninguém sabia. Então, a gente foi buscando conhecimento técnico. Ano após ano, fomos evoluindo até a gente dominar toda a cadeia do arroz.

PRODUZINDO UMA “BÓIA DE QUALIDADE”

Hoje, Everaldo Luiz Balbinot fica de olho no processamento. É ele quem comanda o processo de recepção do arroz agroecológico – sem adubos químicos, sem veneno e cultivado com cuidado com o meio-ambiente – que chega através das 29 famílias cooperadas ao engenho do assentamento e sai de lá industrializado, empacotado e popularizando Brasil afora a marca que leva nas embalagens. - A gente trabalha feliz, fazendo aquilo que gosta. Se conquistamos a terra, tem que se fazer ela produzir. E a gente produzindo – e isso é outro passo – tem que produzir uma bóia de qualidade. A bóia de qualidade só se

Everaldo

consegue trabalhando duro. “Tem que se cuidar do grão, desde que entra no engenho, até que se faz a classificação, bota no pacote e entrega”, resume, apontando para esteira onde correm as embalaFoto: Ayrton Centeno

Na parede do ginásio de esportes, a presença da sabedoria popular

gens do arroz sem agrotóxicos da Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita, a Coopan. - Cada equipe tem uma especialidade. Aqui dominamos o beneficiamento e o empacotamento. O pessoal da lavoura domina o processo de preparo do solo, plantio, até a colheita.

N A MORO E CA SÓRIO NO A S SENTA MENTO

Rosane e suas cinco irmãs, mais o pai, Alfredo, o avô e todos os tios passaram pelo calvário dos acampamentos. Não tinha seis anos quando enfrentou o primeiro deles. Depois foram muitos, tantos que não consegue recordar por quantos passou ao longo de cinco anos nas barracas. - O que eu me lembro mais é o de Bagé, depois o de Não-Me-Toque e mais o do Pinheirinho. E, agora aqui.

Everaldo no engenho: “a g

Aqui é também o assentamento Capela, o mesmo de Everaldo. Na verdade, a história dos dois é bem parecida. Tão parecida que até se casaram. - Ele me conhecia do tempo do acampamento, mas eu não


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Aniversário

ão do arroz

Nova Santa Rita faz 30 anos com novos programas para a agricultura familiar

censão social que a reforma agrária produz

REDAÇÃO Incentivar a criação de hortas escolares, plantar árvores, melhorar a qualidade de vida dos jovens e mulheres rurais, introduzir a nota rural premiada e aprimorar o melhoramento genético dos rebanhos. São os novos programas da Prefeitura de Nova Santa Rita para este ano quando o município festeja – neste 20 de março – 30 anos de sua emancipação de Canoas. O aniversário vai ser celebrado junto com a Festa da Colheita do Arroz Agroecológico neste 18 de março Desde então o antigo subdistrito prosperou. Com 30,5 mil habitantes, segundo o IBGE, distante 21 km de Porto Alegre, tornou-se conhecido nacionalmente por abrigar assentamentos da reforma agrária que se afirmaram não só na agricultura e pecuária, mas também na agroindústria.

e a família: uma longa caminhada do acampamento ao assentamento

“Somos a segunda cidade

Foto: Divulgação

Foto: Ayrton Centeno

Município entra em 2022 apostando em hortas escolares e na melhoria da qualidade de vida de jovens e mulheres rurais.

O prefeito Rodrigo Battistella apresenta as propostas de investimentos nos 30 anos de Nova Santa Rita

que mais cresce em nível populacional no estado”, enfatiza o prefeito Rodrigo Battistella (PT). Ele nota que Nova Santa Rita, além de polo logístico, “é uma grande produtora de alimentos orgânicos”. Contando-se com os novos e os projetos já implantados, são 23 os programas municipais dirigidos ao campo. Entre os 17 em andamento destacam-se, por exem-

plo, os de fruticultura, apicultura, piscicultura, plasticultura, a distribuição de mudas de hortaliças orgânicas, a patrulha agrícola, o enfrentamento da deriva dos agrotóxicos, a piscicultura, a melhoria dos acessos rurais. “Temos um investimento, somente neste ano, de mais de R$ 6 milhões na agricultura, principalmente para os pequenos”, diz o prefeito.

Foto: Katia Marko

ceram no assentamento. Ambas trabalham na cooperativa, Andressa no silo e Julia, no manejo de suínos. Rosane não teve condições de estudar, mas Andressa faz faculdade de Fisioterapia e Júlia, no último ano do colégio, prepara também o caminho para a universidade.

CHEGA NDO SÓ COM A CA M A E O FOGÃO

gente buscou conhecimento técnico”

lembrava dele porque eu era muito criança. Aí viemos pra cá e daí nos encontramos aqui. Se os avôs, tios e pais de Everaldo e Rosane encararam a dura vida de acampados, as filhas do casal, Andressa, de 23 anos, e Julia, de 18, já nas-

- É o que eu sempre digo pras minhas filhas: tenham orgulho do que vocês têm hoje. Quando chegamos aqui, nós tinha só uma casinha e mais nada. Chegamos, bem dizer, com uma cama e um fogão. E hoje ter uma estrutura como a que temos é uma coisa muito gratificante pra gente. E qual foi a pior lembrança do tempo de acampada? - O mais pesado foi uma ocupação, acho que na (fazenda) Bom Retiro. A gente nunca ia junto. Ia só o pai. Mas, crian-

ça, queria participar. Aí, o pai disse: ´Então, vamos! Tinha muita polícia. Foi o que me marcou mais. Rosane também trabalha. É na padaria do assentamento que faz pão, cuca e bolacha e vende, principalmente, para as escolas da região. - Agora, com a pandemia, demos uma baixada. Quando a gente tinha bastante pedidos eram mais de quatro mil quilos por mês.

da ali em Santa Rita de Cássia. A do meio tá morando junto com o pai e a mãe. Quando a gente pergunta para Rosane o que considera

uma vida digna, a resposta é pronta. - É a vida que eu tenho hoje. Meu trabalho, minha família, minha casa. Pra mim é isso. Fotos: Ayrton Centeno

CA S A , TR A BA LHO E FA MÍLI A

A conquista da terra definiu a vida tanto da família de Everaldo quanto a de Rosane. O pai e a mãe de Rosane também moram no assentamento como produtores individuais. Das suas quatro irmãs, apenas uma escolheu a vida da cidade. As demais são assentadas. - Tenho uma aqui, também é da cooperativa, casada com um daqui. Tem outra assenta-

Na esteira, empacotado, o arroz orgânico ruma às prateleiras


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EDIÇÃO N O 33 - 17 DE MARÇO DE 2022 - W W W.BRASILDEFATORS.COM.BR Foto: Maiara Rauber (MST)

Perigo no prato

“Pacote do Veneno” é mais uma consequência de desmonte da segurança alimentar no Brasil Em Nova Santa Rita, agricultores ecológicos tiveram suas lavouras borrifadas com agrotóxicos lançados por avião mesmo após a Justiça proibir a prática FABIANA REINHOLZ PORTO ALEGRE

▶ Em 2011, o cineasta Sílvio Tendler lançou o documentário “O veneno está na mesa”, onde aborda a contaminação ambiental e os danos à saúde pública provocados pelo uso indiscriminado de agrotóxicos nas lavouras. Mais de 10 anos depois a realidade piorou. Evidência disso foi a aprovação do Pacote do Veneno (PL 6299/2002), pela Câmara dos Deputados (301x150 votos), em fevereiro. O projeto flexibiliza ainda mais o uso de venenos agrícolas no país e substitui o atual marco legal

(Lei 7.802), vigente desde 1989. No Rio Grande do Sul, em junho do ano passado, o plenário da Assembleia Legislativa aprovou o PL 260 2020, que altera a Lei nº 7.747, de 22 de dezembro de 1982, liberando o uso no território gaúcho de agrotóxicos proibidos nos países em que são fabricados.

ATAQUE S CONTINUA R A M A PE S A R DA PROIBIÇÃO DA JUS TIÇA

Uma das localidades mais afetadas pelo uso indiscriminado de agrotóxicos é o assentamento Nova Santa Rita de Cássia II, no municí-

Produções agroecológicas de assentamentos do MST em Nova Santa Rita (RS) foram prejudicadas por deriva de agrotóxico

pio de Nova Santa Rita, distante 27 km de Porto Alegre. Com 1.667 hectares, o assentamento abriga mais de 100 famílias. Em novembro de 2020, seus moradores foram atingidos pela pulverização através de avião que despejou agrotóxico em lavouras vizinhas de arroz. O veneno acabou afetando hortas, pomares, vegetação nativa e açudes das casas dos produtores agroecológicos. Um ano depois, mesmo com decisão judicial suspendendo a prática, ocorreu nova pulverização. Há denúncias de episódios semelhantes desde 2017. No laudo produzido pelos assentados,

só na primeira deriva, estima-se perdas de R$ 1 milhão. Além dos prejuízos econômicos causados à agricultura orgânica, o despejo de agrotóxicos fez com que várias famílias procurassem atendimento médico devido a enjoo, dores de cabeça, febre e náuseas. Em Nova Santa Rita foram despejados Loyant, Bifentrina e 2,4-D, glufosinato, venenos que - indica a Fiocruz - podem causar câncer e mutações. A presença dos assentados da reforma agrária, assinala o MST, produzindo em pequenas e médias áreas de terra e sem o uso de agrotóxicos, confronta diretamente o agronegócio da região. Fotos: Divulgação MST/RS

Além da produção, muitas pessoas passaram mal devido a pulverização ter passado em casas dos assentados

Agricultores agroecológicos foram afetados com a pulverização aérea de veneno sob as produções e casas sobrevoadas

A fragilidade da alimentação saudável frente ao agronegócio ▶ “O povo não terá alimentação saudável enquanto a produção for para gerar lucro ao agronegócio e às redes dos grandes mercados”, avisa Letícia Chimini, doutora em Serviço Social e integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). A vice-presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Ana Carolina Mattos, destaca que, a partir de 2014, cresceu muito a liberação de agrotóxicos no país. “O que faz do

Brasil um dos países com maior uso de químicos prejudiciais à saúde nos alimentos.” Também nutricionista, acrescenta que a aprovação do Pacote do Veneno “é mais um resultado do processo de intensificação de desmonte no campo da segurança alimentar”.

É PRECISO GA R A NTIR A SOBER A NI A A LIMENTA R

Ela chama a atenção para a importância da soberania alimentar.

Cita a necessidade de condições materiais para garantir alimentação de qualidade, mas também de “matrizes energéticas sustentáveis”. Nisso inclui a recuperação de nascentes dos rios, o acesso à água, a proteção às sementes e mudas, à terra, além de políticas públicas de apoio à produção agroecológica. “Sem garantir a produção de alimentos, não se garante autonomia para a soberania nacional”, diz. Para Letícia, a soberania alimentar deveria ser o grande guar-

Os assentados estão realizando varias denúncias e solicitando ações do poder público

da-chuva dessa nação. “Sem garantir a produção de alimentos, não se garante autonomia para a sua soberania nacional. Para materializar a soberania alimentar são necessárias condições materiais que fomentem formas autônomas de produção que garantam o alimento para o povo brasileiro, mas também matrizes energéticas sustentáveis, com a recuperação de nascentes dos rios, com acesso à água em todos os lares e roças, as sementes e mudas, à terra para produzir alimentos, políticas públicas que garantam recursos de fomento à produção agroecológica e fomento para a circulação desses alimentos com a regulação dos estoques de comida nesse país.”


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Agricultura familiar

Uma batalha contra a seca e o descaso dos governos Fotos: Maiara Rauber (MST)

Quando uma das mais longas e severas estiagens dos últimos anos castiga o Rio Grande, agricultores e camponeses enfrentam a falta de apoio dos governos estadual e federal

Produções agroecológicas de assentamentos do MST em Nova Santa Rita (RS) foram prejudicadas por deriva de agrotóxico

MARCELO FERREIRA PORTO ALEGRE

▶ Movimentos sociais, entidades e sindicatos do campo travam luta para abrir um diálogo com o governador Eduardo Leite (PSDB), enquanto reivindicam também solução junto a Brasília. Neste momento, cerca de 400 dos 497 municípios gaúchos já decretaram situação de emergência. Em dezembro de 2021 foi protocolada a pauta de reivindicações junto à Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural do RS, que foi discutida em reunião com o governador Eduardo Leite (PSDB), em 10 de janeiro. No dia 16 de fevereiro

Mais de 200 agricultoras ocuparam o pátio da Secretaria Estadual de Agricultura

foi reforçada, após um protesto que reuniu 1,3 mil pessoas diante da Secretaria e garantiu uma reunião com o secretário-chefe da Casa Civil, Artur Lemos, e o secretário adjunto da Agricultura, Luís Fernando Rodrigues Jr. No dia 8 de março, foi a vez de mais de 200 agricultoras ocuparem o pátio da Secretaria, dentro das mobilizações do Dia Internacional das Mulheres. Uma

Agricultores se reúnem com a Secretaria da Agricultura em busca de ações para minimizar os impactos da estiagem

comitiva foi recebida no outro dia pela secretária Silvana Covatti. “É um pedido de mãe, de mulher, daquela que vê quase faltar o feijão no prato do filho porque faltou chuva. E não é porque não queremos trabalhar, mas porque estamos enfrentando muitas dificuldades por conta da estiagem”, destacou a integrante da direção estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais do RS (MST) Sílvia Marques, no encontro com a secretária. Após o final da reunião, a secretária disse que uma resposta será dada nos próximos dias. Ela também apresentou um estudo para beneficiar 137 mil famílias, através do auxílio emergencial e do crédito emergencial com juros zero. Essas minutas já estão com o governador e dependem da aprovação da Secretaria da Fazenda.

PREJUÍZO VAI ULTRAPASSAR 40% NAS L AVOURAS DE VERÃO O maior tombo ocorrerá na lavoura de milho, que colherá 55% a menos do previsto. E a soja vem em segundo lugar com perdas de 52% WALMARO PAZ PORTO ALEGRE Haverá uma perda de 41,9% na produção média estadual dos principais grãos de verão, o que inclui soja, milho e feijão. O último levantamento de fevereiro feito pela Emater/RS indica prejuízos consideráveis. O Rio Grande do Sul deveria colher 33,6 milhões

de toneladas, mas a safra encolherá para 19,5 milhões. As quedas serão de 55,1% no milho, 52,1% na soja; 36% no feijão da primeira safra; 10,7% no feijão da segunda safra e 4,5% no arroz. Em relação à colheita passada, de 33,1 milhões de toneladas, a perda média estadual de todos os

grãos deverá chegar a 41,1%. A queda mais expressiva será a da soja (53,3%), seguida pelo milho (37,5%), feijão (27% no feijão da primeira safra e 13,5% no da segunda safra) e 13,1% no arroz. Na conta não estão incluídas as perdas dos setores leiteiro, de hortifrutigranjeiros, entre outros segmentos.

Uma pausa na luta para embalar o bebê

AS REIVINDICAÇÕES DO POVO DO CAMPO ▶ Junto ao governo estadual: 1 - Decreto de Emergência para o estado do RS por conta da estiagem 2 - Instalar o Comitê Estadual da Estiagem 3 - Agilizar a aprovação do Crédito Emergencial Rural, por meio do PL 115/2021 4 - Anistia das parcelas do FEAPER e FUNTERRA que vencem em 2022, bem como as parcelas de 2021 não incluídas na resolução (FEAPER 008/2021) 5 - Operacionalização imediata dos R$ 23 milhões do BNDES referentes ao Programa Camponês 6 - Liberação de um crédito alimentar no valor de R$ 3 mil por família; 7 - Agilizar a liberação do Programa de Sementes Forrageiras 8 - Retomar política consistente e permanente de armazenamento de água e irrigação 9 – Abertura, por parte do governo estadual, de mesa de diálogo com o governo federal ▶ Junto ao governo federal: 1 - Garantia no abastecimento de milho via Conab 2 - Compra de leite em pó com o objetivo de retirar estoque do mercado 3 - Crédito emergencial de R$20 mil por agricultor 4 - Repactuação de todas as dívidas com 95 % de descontos 5 - Regulamentação imediata da Lei Assis Carvalho 6 - Manutenção do PROAGRO e PGPAF públicos 7 - Ampliação do prazo de zoneamento agrícola – Ceres).


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Foto: Bruno Torturra

Capitalismo e a crise ambiental DOUGLAS FILGUEIRAS*

Movimentos realizam campanha "Bolsocaro", em alusão ao aumento crescente do custo de vida, o que aumenta a fome e dificuldades econômicas da população

Prato mais vazio

A comida tá cara! Mas o que o governo Bolsonaro tem a ver com isso?

Inflação decolando, estoque escasso de alimentos e descaso com a agricultura familiar ajudam a explicar o problema que chegou na mesa dos brasileiros

▶ O preço dos alimentos não para de subir. É uma situação que assusta as famílias e faz doer o bolso dos trabalhadores. Boa parte dessa responsabilidade é do governo federal, que poderia ajudar a segurar esses preços, mas não faz isso. Listamos aqui três motivos – entre muitos – para você entender como o governo não está cumprindo o seu papel para impedir que a comida fique tão cara e nossos pratos mais vazios:

o governo federal quem fixa o valor do salário mínimo. Se o salário cresce menos do que a inflação, nosso rendimento é abocanhado pela elevação dos preços Nesse ponto, outro quesito é muito importante: a decolagem no preço dos combustíveis. Devido a uma decisão política, a Petrobras pratica uma política de dolarização dos preços, chamada de Preço de Paridade Internacional (PPI). Ou seja, utilizamos o dólar para calcular o valor da gasolina, enquanto nosso povo ganha em reais.

INF L AÇ ÃO EM A LTA + S A L Á RIO S EM B A I X A

E S TOQUE DE A L IMEN TO S NO ZERO

PEDRO NEVES PORTO ALEGRE - RS

Outro recurso que o governo federal pode usar para regular e segurar os preços dos alimentos são os estoques da Companhia Nacional de Abastecimento, a Conab. A empresa pública possui silos e armazéns e uma rede de compras capazes de guardar e distribuir milhões de toneladas de grãos, mas não está fazendo isso. Ao contrário: hoje esses estoques estão quase zerados. Segundo Silvio Porto, ex-dire-

Foto: Ubirajara Machado

O IBGE segue notando que os preços não param de aumentar. De acordo com o DIEESE, um trabalhador que recebe o salário-mínimo gasta mais da metade do que ganha a cada mês (R$ 1.212) para comprar uma cesta básica. Somado ao aumento generalizado do custo de vida, estamos numa situação em que as famílias precisam deixar de comer certos produtos para pagar as contas. Lembrando sempre que é

Agricultura familiar gera empregos e produz alimentos com preços acessíveis, mas não recebe ajuda do governo federal

tor da Conab, quanto maior o volume desse estoque público, mais é possível conter a alta dos preços. É como se o governo enviasse um “sinal de alerta” ao mercado, avisando que se os preços subirem muito, esses alimentos podem ser comercializados diretamente aos consumidores por preços mais baixos e até mesmo serem distribuídos, através de escolas e instituições públicas.

FA LTA DE A P OIO À AGRICULT UR A FA MIL I A R

Voltadas para o mercado interno, são as cadeias de produção com base na agricultura familiar que produzem a maior parte dos alimentos que chega à mesa da família brasileira. O agronegócio, ao contrário, produz grãos – especialmente soja – para a exportação e paga pouquíssimos impostos, como aponta o site O Joio e o Trigo. Assim, atitudes do governo federal só dificultaram a vida dos pequenos agricultores. Bolsonaro, por exemplo, rejeitou o Projeto de Lei (PL) 823/2021, a Lei Assis Carvalho II, que daria uma ajuda emergencial aos agricultores atingidos pela pandemia. Como se não bastasse, excluiu essa categoria do Auxílio Emergencial e extinguiu o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que permitia a venda dos alimentos diretamente ao governo federal. O resultado dessas políticas é que, hoje, as áreas plantadas com feijão, arroz e mandioca são as menores desde 1976, o que também puxa os preços para cima. A agricultura familiar, que é uma força econômica do país, poderia ser mais uma alternativa para o Brasil enfrentar o avanço da fome, mas parece que isso não está nos planos de Brasília.

O advento da globalização com o avanço das indústrias e sua expansão de capital, produziu transformações que afetaram de forma direta e indireta a vida como um todo. As disputas por território, por controle de mercado de capital necessitaram nessa nova etapa expansionista (imperialismo) uma mudança de comportamento. Para sustentar estas mudanças, foi necessário que novas elaborações fossem desenhadas, mantendo a mesma essência. Desta maneira as velhas ideologias receberam uma nova maquiagem, agora com a alcunha de “NEW”. Tais mudanças afetam nosso comportamento, a maneira como vemos o mundo. Nossas necessidades básicas passam a ser contempladas em sua maioria por supérfluos, as etiquetas, os rótulos, propagandas muito bem-produzidas irão nos apontar o caminho para o “El Dorado”, trazendo um sentimento de felicidade plena. O ponto nevrálgico deste comportamento está na velocidade que os produtos são descartados, pois neles são aplicados o conceito de “Obsolescência Programada” e a felicidade que era plena, acaba por ser momentânea. Decorrentes a esta “Felicidade Programada” em seu desmedido consumo, os danos ambientais decorrentes de todas as fases das diversas “cadeias produtivas” têm produzido danos irreversíveis. Conforme Global Footprint Network, entidade responsável pelos cálculos de sobrecarga da Terra desde 1970, precisaríamos de 1,7 planeta para manter nossos padrões de consumo. É comum que em um primeiro momento, quando paramos para observar o tamanho do problema, suas causas e efeitos, promovidos pelo “sistema capitalista” tenhamos como impossível desconstruir as engrenagens muito bem lubrificadas deste modelo econômico, onde os Estados Nacionais, o mercado financeiro e as (NEW) políticas clássicas estão operando a todo vapor. Mas nossas irmãs e irmãos originários desta terra têm resistido historicamente aos brutais ataques de seus colonizadores, pagando com a própria vida. Nossa história presente tem demonstrado que as relações comunitárias com a natureza são capazes de restaurar os ciclos produtivos da terra e produzir alimentos de forma justa, garantindo vida plena sem que haja excedentes. Mais que possível é necessário (Re)construir as bases de produção deste sistema que oprime, segrega, violenta e mata, não como projeto de futuro, mas como forma de garantir nossa existência!

* Assessor de Projetos da Associação do Voluntariado e da Solidariedade- AVESOL


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