ilustração Bruno Canova
1. Alergia 2014 (Paulo Vieira) Uma pessoa se esbarra em outra voltando pra casa sem rosto, sem fatos, levando sacolas e a preocupação com alguém doente na família
Do jeito que está, nem o sexo nos une Atrás desse plástico, peneira do gozo Sobram dois corpos distantes quilômetros, que insistem em se esbarrar
Que passou o dia sozinho na cama, chorando A porta se abre, ele faz sua melhor cara E se alegra em ter três minutos de companhia
O comercial diz pra eu ser mais pra cima Mas contra essa festa postiça e cívica A maior festa que posso dar agora é a do meu pessimismo
No fundo dos nossos quintais cresce a planta-fera de focinho lilás
No fundo dos nossos quintais cresce a planta-fera de focinho lilás
Eu busco e não vejo ninguém tão contente Mas quem trocaria sua vida por outra? Quem aceitaria dizer que trabalha apenas por ração?
Não vou reclamar dos impostos, da taxa de juros, do câmbio, da falta de infraestrutura Não é para isso que levanto as minhas barricadas
O mundo precisa de tanto trabalho Mas esses empregos só nos atrapalham Etiquetas nos dizem o preço, mas não nos contam o valor
A vida é convulsa, afastemos os móveis A minha alergia é constante e comove Mas deixe-a coçar, eu não posso parar pra tratar dela agora
No fundo dos nossos quintais cresce a planta-fera de focinho lilás
No fundo dos nossos quintais cresce a planta-fera de focinho lilás
Para mim, a melhor, grande letra, pungente, dolorosa, mas lindíssima. Interessante que ela é atual e crítica, mas sem ser panfletária. Fiquei cantarolando por dias! A música também é excelente, alguma coisa perto de Belchior, Bob Dylan, mas a voz do Paulo deixa tudo meio etéreo, Belle and Sebastian, Cat Power, sei lá. Baita música! Juliano Alquati
2. Belchior Cássio Corrêa Toda vez que paro para atravessar a rua Vem um desespero forte E canto uma canção tua, Belchior Toda vez que se livra de trás do prédio a lua Vem uma melancolia E canto uma canção tua, Belchior Quando eu era mais novo, moço, o sol fazia sangrar meu nariz Tanto sol, tanto sangue Tudo isso e todos nós Tem vez até que posso ficar feliz: e imito a tua voz Tem vez até que posso ficar feliz: te imito, Belchior Cada canção que fiz fiz com você, Belchior
“Se você me perguntar por onde andei Os filhos de Bob Dylan Sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no bolso Apenas um rapaz em 73, em 76, em 2003, em 2006 Se quiser me matar agora Eu sou bem moço, e todo esse desgosto Eu sei de cor. É a hora do almoço Comentários a respeito de Jonh A respeito de João A respeito de Belchior Assum preto, black bird Never, raven, never more! O passado nunca mais! (Guarde, guarde, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção)” O limite entre imitação e inspiração não sei onde é que está...
Belchior é uma música extremamente linda, e me trouxe à tona algumas lembranças felizes que passei com vocês. Definitivamente, me sinto parte dessa obra, posso dizer que acompanhei o nascimento dessa canção. Com uma parte instrumental bem elaborada e uma baita letra, Belchior sem dúvidas é uma das minhas canções preferidas do álbum. Com algumas frases marcantes que fixam na cabeça, se torna impossível não cantarolar um lariri...larariri...lararira! Guilherme Lorato “Grande homenagem, muito bonita a sobreposição dos teclados”. Juliano Alquati
ilustração Grazieli Rodrigues
ilustração Grazieli Rodrigues
3. Dia do Alistamento Paulo Vieira Eu temia esse dia como o de uma cirurgia Mãe me acordou da insônia: “Hoje é o dia do alistamento militar obrigatório” Dei um nó de marinheiro no cadarço e nas entranhas e fui Que cabelo é esse o meu? o meu corpo é um buquê de gravetos, é um dublê de cadáver de androides o meu traje todo preto salvo a capa de um Pink Floyd
Pouco disso era meu mais ficção da véspera Minha mesmo era a cárie que fiz dos quinze aos dezoito pra bombar no exame médico Essa cárie era a traição era a deserção que eu cultivei era a lei que eu decretei na falta de uma lei... Eu não sirvo, e sou o rei! De alegre, vou cantar o hino nacional Seguindo a melodia, mas a letra é do The Wall
Outra paulada, muito autobiográfica, acho que toca todo mundo. Música linda, sobe de uma forma muito bonita, e acaba com aquela flauta (?) que soa como um suspiro no fim... Juliano Alquati
4. A Menina e o Menino Paulo Vieira Hoje vi passar por mim em um camburão Um menino, quinze anos ou menos Me espantei, porque o seu rosto não levava aquela tarja esfumaçada da televisão Hoje vi uma menina inconformada Pregava raiva contra as cotas e a escória Raiva adulta que devia ser imposta por seus pais Não se tem raiva assim antes da menstruação Tenho de adulto a idade que eles têm de vida O que não fiz para que isso fosse assim? Por que não leram Morte e Vida Severina? Tanto mal é o abandono quanto um pai ser dono de um guri Depois disso, num segundo a menina e o menino trocaram olhares E pensaram que a vida é tão forte que podia trocar seus lugares
ilustração Bruno Canova
A menina e o menino: Título que traz uma expectativa de ser canção sobre amorzinho juvenil, ou paquera inocente. Ao começar a música, parece que o ritmo condiz com essa espera. Mas letra não. Histórias tensas e tortas, que se entrelaçam, mas não necessariamente se tocam. E é assim nosso mundo. Vida fora da televisão não vem com a tarja preta... “O que não fiz para que isso fosse assim? Lígia Batista
Letra lindíssima, também parece biográfica. Tem uma levada mais pesada, muito bacana, e fica legal a parte que Cássio canta também. Gostei. Juliano Alquati
5. Caco de Vidro Cássio Corrêa Os olhos derretendo com o gás Mas a gente enxerga mais Eu não preciso de gás para chorar, seu guarda A lua está tão linda, a rua está tão cheia Que meus olhos são meus rios
ilustração Samanta Tavares
Essa alergia que me enfia pela goela Lava a cara que mostro com orgulho. Já você esconde em capacete e escudo Esse seu rosto, tão seco, sujo, duro. Tão seco dessa carapuça Duro, que precisa irrigar.
As bombas zunem pelas orelhas. As balas acertando quem passar. Os helicópteros berram lá em cima. E os paus batem: toma! toma! toma e toma! No meio da correria toda, uma garota pequena se abaixa e tira um caco de vidro do chão. “Imagina se alguém pisa”, “Imagina se alguém pisa”, seus olhos me sussurram
ilustração Samanta Tavares
6. Cético Demais Paulo Vieira
Não existe Natureza como uma força autônoma por trás de um fenômeno qualquer A repórter não agiu como urubu, sequer houve morto algum, é uma correta mulher E o policial é mesmo educado, gente boa, pedagogo graduado
Ressaca desmatando as sandálias e sugando a canudinho objetos pela praia Destrói nossas pinturas, é um gozo prematuro ou queimadura de primeiro grau na cara Do tecido social que imaginava que podia adestrar e fazer lazer com o sol
Mas nisso eu concordo com você: que se dane a exceção, odeio a instituição Eu ando meio cético demais, mas que a ressaca arrebente o pudor nos sutiãs Eu ando meio cético demais, mas que a ressaca roube o Bartolomeu
Aglutina-se o povo, lamentando e adorando ter vivido aquele acontecimento A imprensa vem antes do urubu, e vendo a imprensa ali já chega também correndo A polícia, muito rápida e educada, como aquelas polícias do cinema europeu
Eu ando meio cético demais, mas que a ressaca venha dissolver os piores jornais Eu ando meio cético demais, mas que a ressaca lance vômito sobre os policiais Eu ando meio cético demais, mas que a ressaca mande o ceticismo às algas
Guardando para que nenhum José recupere como seu algo do Bartolomeu De top-less, a moça é autorizada a roubar alguma coisa, uma folha de maçã por sutiã E no meio da montanha de detritos há o carro destruído do querido Raulzito
E que o último prédio devorado seja o da nossa palavra
Ele diz que a ressaca está certa, que o erro é do homem de ali se fixar E que em breve chegará a vez dos prédios arrastados e a cidade toda, isso será épico Raulzito, me permita discordar, é que o tempo agora é cético demais!
É possível mesmo fazer lazer com o sol? Mas que natureza se rebela? A ressaca? Mas então, seria ressaca demais, não cético demais. Ressaca do mal-estar, da natureza que se rebela contra a euforia.
Mas em meio a uma ordem sensacionalmente insossa, a saída possível talvez seja mesmo o ceticismo exagerado, que já perdeu a medida. Potiguara Lima (Campinas) Música declamada, ao melhor estilo do homenageado Raulzito, com letra arrastada e sensacional, cheia de sentidos. Juliano Alquati
7. Syd Barret Cássio Corrêa Quando foi que desistiram de você, Syd Barrett? Quando foi que foi mexer no jardim? Quando foi que deixou de poder, Syd Barrett? Quando foi que virou uma coisa pra trás? Quando foi que se abandonou, Syd Barrett? Quando foi que viu que não adiantava mais? Quantas estrelas comeu, Syd Barrett? Quantos espinafres em dó maior? Quando foi que trocou, Syd Barrett, a espaçonave pelo moletom? Olha agora na TV, Syd Barrett: A moça parece estar muito feliz. A câmera deu um close nos olhos dela
ilustração Samanta Tavares
Por que só a gente viu que ela ia chorar?
A caneta arriscou fugir do banal, e as vozes puseram palavras e letras a dançarem entendimentos com a mesma coragem que se sabia nas bandas nascidas em fitas cassete sem capa. Luiz Henrique Magnani
ilustração Grazieli Rodrigues
Caminhos: Talvez venha sempre mesmo no plural... Porque, afinal, mesmo quando decidimos, ou mesmo quando já foi percorrido, nem sempre a gente tem certeza de pra onde vai... Sempre pode haver uma próxima estação. Há uma casa... Se chega! Ao menos na realidade das palavras... mesmo que com cola fraca. A gaita, que tinha sumido pra agitação da guitarra entrar, retorna e acompanha o percurso final nostalgicamente, ao fundo... Nessa melodia que não é exatamente triste... E se chega. Melodicamente, foi das que mais gostei. Apesar do tom meio “salmo” de algumas partes...
Lígia Balista
8. Caminhos Cássio Corrêa Na fila da estação do trem Cantarolando Us and them Nem sempre a gente tem Certeza de pra onde vai. Não sabe nem o que faz primeiro: nas escadas da estação Pinheiros como uma cena de Blade Runner que você nem viu inteiro. Como o apocalipse do seu João: começou em bom dia a cavalo e hoje joga dama com os cavaleiros.
Na teletela, o código assusta: não force, não tente, não pense não sente, não cante, não possa e, se possível, não fique perto da porta Da janela acesa do vagão Só posso imaginar a dor do prisioneiro. Mas ele sabe que eu tenho a próxima estação. E, nela, uma legião de humanos sem sono se arrasta na praça de chão sem grama. Um batalhão de franciscanos lhes conta uma história pra dormir. Há uma casa e chego. Há uma realidade em palavras que falo. Entre elas, como cola fraca que se solta, as partes de todo mundo em volta.
Uma das melhores letras, para mim remete bastante ao som do The Wall. Juliano Alquati
Suas músicas são a realidade urbana exposta, sendo que a melodia não esconde nenhuma ferida, não há escaramuça. Debaixo dos escombros, alguns mitos do passado (velhos cavaleiros do apocalipse). A solidão é o empreendedor do dia-a-dia. Mundo sem eco e de respostas vazias. É o que ouvi e o que aprendi de suas músicas. Mas é melhor assim: ficar com o eco, pois o poeta não pode mais fingir.
Getúlio Cardozo “Caminhos” é uma canção que mexe bastante com as emoções, por a parte instrumental começar tranquila, com a gaita “chorando” como um lamento ao fundo, e vir crescendo - e em alguns momentos ela ganha peso, como se fosse um desabafo. Junto com a letra, torna-se uma canção bastante marcante e forte. Com toda certeza encerra esse grande álbum com chave de ouro..
Guilherme Lorato
“Que ainda acredite nisso” concentra, em função poética e apelativa, um painel conciso de oito baladas contemporâneas. Baladas porque desfiam enredos, com uma pungência que salta aos ouvidos e à mente como releituras particulares de Sérgio Sampaio ou Belchior (este, uma referência direta e marcante em todo o disco). Contemporâneas porque o espaço físico e sentimental que cobrem é o mesmo de nossas atuais alergias e incômodos, guerras declaradas e fingidas, espaço onde uma voz cansada informa a “seu guarda” não ser preciso “gás para chorar” (“Caco de vidro”) e onde, rendidos pelos afazeres e céticos demais, trocamos “a espaçonave pelo moletom” (“Syd Barrett”). O universo floydiano, aliás, é uma obsessão constante – trilha sonora para o “Dia do alistamento”, quando o coro irrefletido de “The Wall” ilustra a deserção juvenil, que é outro caco de vidro em nossas distopias; universo constante, ainda, na separação entre nós e os outros (“Us and them”), na distopia nebulosa mal imaginada pelo sombrio evangelista, por ora renomeado como coloquial “seu João” (“Caminhos”). Não temos aqui, pois, um disco de infantilidades, de riso fácil, nem de entretenimento. Seus diálogos imediatos nem de longe
lembram a paródia, tampouco a reverência – são como consultas ao oráculo moral dos desistentes, dos derrotados, dos céticos: um Belchior sem glória, um Syd Barrett em ruínas. Entretanto, cada composição (embora céticas demais, como não é difícil perceber) se alinha numa coerência tão sutil quanto intensa, como se vê na canção-síntese “A menina e o menino”; nesta, como nas demais, explode um conflito, necessário a qualquer enredo que se preze: “a menina e o menino trocaram olhares / E pensaram que a vida é tão forte / que podia trocar seus lugares”. Explode em conflito o que talvez fosse, longe da insana distopia de nossa realidade, tema de uma convencional balada de amor. Um amor simples e juvenil, infelizmente mais raro que um rosto adolescente “em um camburão” ou que a “raiva contra as cotas e a escória”.
André de Freitas Barbosa
Tem cara de disco conceito. Talvez não seja a intenção, mas é que o titulo diz, ué! É um disco que não leva o título de nenhuma música. É ingenuidade a gente escrever que é, mas é também dizer que não. Porque uma coisa muito forte nos aproxima de Belchior e faz a gente querer entender Syd Barrett; nos faz também sentir intolerante com uma cidade tão cheia de intolerância. O disco é carregado disso, e por que a gente mesmo chama isso de utopia? Ele te convida, pois embora você não tenha cultivado uma cárie, talvez tenha justificado a sua baixa estatura, a sua perna manca, caganeira constante ou intestino constipado. E eu não terminei de ver o Blade Runner e vi o 2001 picado. No fim das contas, um convite à auto-compreensão, o tecladinho esperto que entra no meio das músicas confirma o sentimento. E, na verdade, são tantos anos de convívio esporádico e da comunhão em se auto-declarar rabugento e um monte de outras coisas, são tantas e tantas auto-referências que atingem tanta gente que eu não consegui pensar outra coisa. Um disco bem bonito.
Caio Alquati
Andar pela cidade faz falta. Dirigir pela cidade a torna, a meus olhos, uma cidade-limbo, cheia de fantasmas sem história e concreto sem vida. Do banco da moto, tudo que vejo é a multidão vista pela vitrine. “Que ainda acredite nisso” reforça essa saudade, pois ele mostra o que a rua tem de viva, mostra as pessoas que dão sentido à rua e fazem com que ela seja uma via de mãos múltiplas, bem diferente daquela imagem utilitária da rua sem rosto, da ruapassagem que me bombardeia a 60 km/h.
Nestor Tsu
Achei bacana a unidade que o disco tem, todas as músicas têm um fio condutor, tanto na música quanto nas letras. O disco está todo lindo, letras excelentes, biográficas, duras e, mais importante, fluidas no canto.
Juliano Alquati
É interessante que Belchior seja uma referência bastante presente neste trabalho, porque acho que, por muitas vezes, se avança quando a referência retrocede. Calma, isso não é um simples elogio nem um elogio simples. O ouvinte inevitavelmente formado na e pela indústria cultural vai estranhar algumas palavras, formas, timbres e mesmo afinações aqui e ali. Acho que a possível primeira resposta deste ouvinte será: ‘não gostei”. Eu, que debato tudo isso há algum tempo, me entusiasmo muito! As canções me parecem não empacotar a mensagem ou a beleza para que eu a consuma rapidamente. Ela não esconde “os andaimes do edifício”, para citar um poema clássico. Não sei, sinceramente, se, nessas canções, se conseguiu a melhor maneira de fazer isso, mas sei que já me soa muito mais interessante do que quase todas as coisas lançadas, que, com mais ou menos sofisticação, escoram-se num formato fechado de canção, ao passo que as canções conversam comigo de igual para igual, ora me convencem, ora são convencidas por mim. Não tem panfleto, não tem catarse, não tem facilidades de consumo. Fico de ouvido ligado.
Não é apenas música, é antes de tudo poesia. Preste atenção no que se diz. Vale a pena ouvir cada palavra, cada sussurro dos olhos de menina, cada tributo nas palavras, mas também no violão e nas linhas de baixo, no órgão estridente e nas melodias vocais. Os nossos tempos difíceis ressoam nessas canções de forma sensível, apesar da dureza dos temas. Não se deve ouvir apenas uma vez. Não. É preciso acostumar os ouvidos e o coração a cada passo das canções, escutar com a alma e prender o fôlego.
Guto Leite
Geraldo Witeze Jr.
CO MEN TÁ RI OS
Para Rodrigo Damasceno
ilustração Vicente Magalhães