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Entrevista
“Para ultrapassar esta crise, além de trabalho e organização, será necessária a compreensão dos portugueses, o que só se consegue com honestidade e informação”. É o que sustenta António Barreto, sociólogo e presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que lamenta a ausência de debate em Portugal. A culpa? É de uma sociedade civil fraca e do hábitos dos políticos de mascararem a verdade
António Barreto, presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos
Crise carece de debate sério Store | A crise que o País atravessa parece ter um carácter mais permanente do que se poderia supor. Que repercussões poderá ter na sociedade portuguesa? António Barreto | Os primeiros efeitos serão muito difíceis. Representarão seguramente uma baixa dos níveis de rendimento, assim como mais dificuldades 32
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para as famílias e seus projectos, designadamente de educação dos filhos e de melhoramento da habitação, sem falar no mais óbvio, a redução do consumo. Se conseguirmos retirar lições desta crise, talvez seja possível, com muito trabalho e organização, recuperar alguma energia para o desenvolvimento, fazer as reformas necessárias e não voltar a
“Será preciso não pensar de novo que o crédito e a dívida são solução e modo de vida”
cair nos mesmos erros. Em particular, será preciso não pensar de novo que o crédito e a dívida são solução e modo de vida. Store | A sociedade está suficientemente alertada para o estado do País? AB | Não. Ainda não. Só nestes últimos meses é que a população começou a perceber que, realSTORE MAGAZINE
mente, as dificuldades são enormes. Os dirigentes fizeram tudo o que puderam para escamotear a situação e suas causas. A discussão que se conhece é de enorme opacidade, poucos percebem os aspectos técnicos da finança e da moeda. Nem as origens da crise interna nem as implicações europeias são suficientemente conhecidas de modo acessível. Não tenhamos dúvidas: para ultrapassar esta crise, além de trabalho e organização, será necessária a compreensão dos portugueses, o que só se consegue com honestidade e informação. Mais do que nunca, às autoridades compete dar o exemplo. Store | Comparando com o 25 de Abril, diria que hoje há mais ou menos debate? AB | As situações não são comparáveis. Naquele tempo, a discussão propriamente política invadia a nossa vida quotidiana. Questões mais complexas, de carácter económico e financeiro, eram esquecidas e afastadas. De tal modo que se cometeram erros graves. De qualquer maneira, era muito difícil fundar uma democracia e um novo regime político. Hoje, fala-se muito, mas, sobretudo, das consequências da crise e dos efeitos nas vidas das pessoas. Era importante que os dirigentes políticos e económicos, assim como os universitários, tivessem mais preocupação em debater publicamente com toda a gente. Falar não chega: é preciso debater com verdade e informar com sinceridade. A saída da crise não depende apenas das direcções políticas e empresariais, depende de todos nós. Ora, só informada é que a população é capaz de participar. Store | O que está a travar esse debate? AB | A fraqueza da sociedade civil não ajuda. Os hábitos políticos de guardar segredo e de mascarar a verdade são um forte contributo para a ausência de debate. Quem tem algum poder acredita piamente que a informação e o conhecimento constituem factores de preservação dos seus privilégios. Os partidos estão mais volSTORE MAGAZINE
“Não tenhamos dúvidas: para ultrapassar esta crise, além de trabalho e organização, será necessária a compreensão dos portugueses, o que só se consegue com honestidade e informação”
“Falar não chega: é preciso debater com verdade e informar com sinceridade. A saída da crise não depende apenas das direcções políticas e empresariais, depende de todos nós”
tados para a tarefa de convencimento do que de esclarecimento. Os únicos antídotos conhecidos são a liberdade de expressão e a opinião pública, e é muito importante que ninguém tenha receio de se exprimir, de dizer o que pensa. Store | Estarão a desaparecer os fóruns de debate e reflexão? AB | Não se pode dizer desaparecer, dado que nunca houve muitos. Nunca o hábito foi grande e enraizado. Mais uma razão para o seu desenvolvimento hoje. O problema é que se faz tudo para evitar uma participação activa e empenhada. Não será possível recuperar a economia, desenvolver a sociedade e encontrar novas energias na população sem que esta esteja mais bem preparada e mais informada. O tempo do comício fácil, da palavra de ordem e do slogan eleitoral já passou. Store | As universidades poderão desempenhar esse papel? AB | No antigo regime, não o eram. Depois de fundada a democracia, havia esperança em que as universidades desempenhassem o seu papel social e tivessem influência na reflexão e no debate, assim como no estudo das realidades. Infelizmente, não foi esse o desenvolvimento. As universidades tentam cumprir alguns deveres, nomeadamente o de ensinar, mas encontram-se muito condicionadas pelas carreiras e pelas ambições pessoais de muitos docentes. Há discussões nas universidades, com certeza; há, aqui e ali, debate científico de elevado nível; como há um esforço renovado na investigação. Mas o interesse pela realidade nacional (social, financeira, económica, cultural...) é muito reduzido. Ora, as universidades têm uma dívida perante o povo: é este que as paga e mantém. Aquelas têm de devolver à população o que dela recebem.
possível o debate público e divulgar a informação e o conhecimento. Fazer isso em larga escala exige a utilização de todos os meios à nossa disposição, incluindo a televisão, a rádio e a internet. Não faria sentido, para esta fundação e dada a sua Carta de Princípios, restringir ou limitar a informação e o debate a alguns meios tradicionais e aos circuitos académicos ou especializados. Esta fundação tem como destinatários do seu trabalho todos os Portugueses, qualquer que seja a idade ou a condição. Ora, por exemplo, sabemos hoje que a maior parte dos jovens recorre à internet, sob todas as formas, para se informar e discutir, mais do que aos jornais ou mesmo à televisão. Store | Há lugar para as empresas nesse debate? AB | As empresas são mais do que meras organizações económicas e produtivas. São, em conformidade com a sua dimensão, organizações humanas importantes para fornecer a todos os bens necessários à vida, mas essenciais para a vida quotidiana de muita gente, de milhões de trabalhadores, técnicos e quadros. Uma parte importante da vida de muitas pessoas passa-se dentro da empresa, em contacto permanente entre os trabalhadores e com os clientes e fornecedores. Uma empresa é sempre uma organização humana essencial. A tradição política e cultural portuguesa não é muito favorável à ideia e à organização de empresa. Mas essa é uma mudança essencial… Vai demorar tempo, mas é necessário que as empresas mais bem preparadas, e que já compreenderam qual é e qual pode ser o seu papel, assumam uma função pioneira de participação.
Store | É esse espaço que a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) se propõe ocupar? AB | Queremos alargar o mais Março/Abril de 2012
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Projecto
Traçar um retrato o mais actual e pormenorizado possível da realidade sócio-económica do país – é esta a ambição do site “Conhecer a Crise” (www.ffms.pt/conheceracrise) o mais recente projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Eis tudo o que precisa de saber sobre o projecto
A receita de Barreto para conhecer a crise Qual a génese desta base de dados? Não há dúvida de que Portugal está hoje em crise. E há muitas estatísticas que vão sendo divulgadas ou trabalhadas, tentando responder à preocupação de perceber como estamos a evoluir - na economia, no emprego, nas condições de vida... Havendo tantos dados e sendo eles comunicados de forma tão dispersa, é difícil conseguir ter um retrato completo e ao mesmo tempo sintético da evolução do “bem-estar da sociedade”. E não são só as estatísticas oficiais que nos relatam a evolução sócio-económica do país. Dados sobre a solidariedade social ou padrões de consumo permitem que nos aproximemos do que de facto se está a passar na casa das pessoas e como a crise está a afectar o seu dia-a-dia. E nesse sentido surge este projecto, uma forma de tornar esta informação acessível e junta num mesmo espaço, para que as pessoas possam olhar factualmente para o que se está a passar na sociedade e discutir essa mesma informação. Será complementar à PORDATA? Quais são as principais diferenças? A PORDATA tem já uma base de dados alargada sobre a sociedade portuguesa; no entanto, disponibiliza dados anuais que são necessariamente apurados com algum distanciamento do presente. Se quisermos olhar para as evoluções mensais, ou mesmo trimestrais, a PORDATA não nos 34
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consegue dar esse retrato mais “imediato” e “frequente”. E são estes momentos mais fraccionados que têm servido na análise ou percepção de como estamos a reagir à crise, não descurando alguns dados macro que só são apurados numa base anual. Além disso, a PORDATA só utiliza dados de fontes estatísticas que sejam organismos oficiais com responsabilidade na produção de informação nas suas respectivas áreas. O “Conhecer a crise”, no âmbito da sua filosofia, considera fontes de informação como a Unicre, Nielsen ou Banco Alimentar que, não
“Temos um site, com um objectivo muito concreto, que complementa a informação da PORDATA”
sendo organismos oficiais com responsabilidade nas suas áreas de informação, nos dão dados credíveis sobre o comportamento das famílias e indivíduos e a sua alteração ou não no passado recente. Por último, este novo site inclui dados de percepção, como é o caso dos inquéritos de opinião do Eurobarómetro, informação que a PORDATA não considera na sua base de dados. No final temos um site, com um objectivo muito concreto, que complementa a informação da PORDATA, uma base de dados anual mas mais abrangente em STORE MAGAZINE
termos de áreas temáticas de informação. Quando se fala de crise pensa-se habitualmente em indicadores económicos e do emprego e não, por exemplo, nos donativos a instituições sociais. Falta a perspectiva humana na análise da crise? A crise tem muitas caras. E é esse sentido humano, dos indivíduos e famílias, que queremos abarcar com o projecto “Conhecer a crise”. É importante as pessoas sentirem que elas estão por detrás destes números e que os números mudam com os seus comportamentos e decisões. Actualmente vai aparecendo mais informação sistematizada nessa área, porque começa também a haver uma maior sensibilização e procura de dados sobre estes temas. O nosso projecto pretende juntá-los num mesmo site, apresentando-os em simultâneo com os números que estamos mais habituados a acompanhar ou ouvir falar (desemprego, dívida pública, subsídios). Quais os critérios para a escolha dos indicadores a disponibilizar? A fundação procura disponibilizar uma selecção de indicadores que permita retratar a evolução das condições de vida e dos comportamentos dos portugueses, ao nível do indivíduo, família, empresas e Estado. Esta lista é dinâmica no sentido em que, havendo novos indicadores que sejam credíveis e que respondam ao objectivo do projecto, eles serão adicionados no site, dentro dos temas já existentes ou criando um novo tema, se necessário. O site “Conhecer a crise” pretende ser uma base de dados que oferece um olhar independente e factual sobre os efeitos da crise. Qual o contributo do site para o debate entre a sociedade civil? A fundação procura disponibilizar informação pertinente sobre a sociedade portuguesa e, não menos importante, sensibilizar as pessoas para a importância de compreenderem a realidade e de a discutirem de forma fundamentada. É fundaSTORE MAGAZINE
mental que as pessoas se sintam como parte integrante da sociedade, sendo por isso motor de construção e desenvolvimento do País. Por outro lado, os números afastam naturalmente muitas pessoas, pois são vistos como “entidades” complexas, difíceis e, por isso mesmo, distantes. Nesse sentido, o site foi concebido para exibir os números de uma forma gráfica simples e apelativa, que aproxime as pessoas dos dados e as convide a conhecer mais. Cada indicador, além de uma representação gráfica, tem sempre associada uma tabela de dados mensais ou trimestrais e uma tabela de dados anuais, para que se
perceba o que se está a passar no mais curto prazo, não perdendo o contexto dos últimos anos. E, para que não haja dúvidas, existe sempre uma definição do indicador, escrita de uma forma clara, para não especialistas. A par desta preocupação na apresentação dos factos, todo o site foi construído a pensar na partilha e divulgação da informação, num convite ao debate fundamentado. Cada indicador, individualmente, ou todos os indicadores de um determinado tema podem ser partilhados por mail ou nas redes sociais e podem ser impressos no formato PDF para levar para casa ou usar numa reunião.
Além disso, o site possibilita que cada pessoa possa fazer a sua selecção de indicadores, do conjunto total existente (cerca de 120), tendo assim uma página sua – a crise como eu a vejo – com os dados que mais lhe interessam, todos juntos num único espaço. Uma outra funcionalidade de destaque refere-se à actualização de informação. Não só o próprio site destaca os indicadores que foram actualizados desde a última visita de cada utilizador à base de dados, como cada pessoa pode seleccionar os indicadores para os quais gostaria de receber um alerta por mail, sempre que os mesmos forem actualizados.
ESTATÍSTICAS
Sabia que... Em 2011, os portugueses alteraram o padrão de consumo em relação à carne – menos carne de vaca e mais carne de porco e aves.
Em 2011, os portugueses gastaram menos em vestuário e calçado e continuaram a gastar menos em Janeiro e Fevereiro de 2012.
• Variação da despesa com carne, em hiper e supermercados (2011 vs 2010): Total carne: +5.3%; Suíno: +12,1%; Aves +10,4%; Bovino -0,7%
• Variação das despesas feitas com cartão em vestuário e calçado: 2011 vs 2010: - 9,1% Jan 2012 vs Jan 2011: - 13,1% Fev 2012 vs Fev 2010: - 9,7% Fonte: Unicre
Fonte: Nielsen
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