Entrevista com Boaventura de Sousa Santos

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Entrevista

“Precisamos de um pacto de cidadania para a criação de uma agenda estratégica de transformação da justiça”. Só assim, defende Boaventura de Sousa Santos, 70 anos, coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça, será possível reformar um sector que devia estar ao serviço da democracia e do desenvolvimento económico mas que tem vivido de contradições e desperdícios

Boaventura de Sousa Santos, coordenador do Observatório da Justiça

Ramon de Melo

Precisamos de um pacto nacional

Advocatus | Defende que a Justiça deve estar ao serviço da democracia. É assim em Portugal? Boaventura de Sousa Santos | A justiça é uma das áreas da governação que melhor reflecte a qualidade da democracia e que mais pode contribuir para o aprofundamento dessa qualidade, dada a sua função instrumental de mobilização e de efectivação de direitos 6

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humanos, sociais e económicos. O acesso, a qualidade e a eficiência da justiça são variáveis centrais para avaliar essa condição, testada, em especial, em momentos de crise social e política. Uma justiça eficiente, de qualidade, consciente do seu mandato constitucional e atenta aos direitos humanos e de cidadania pode contribuir, de forma decisiva, para densificar junto

de cidadãos frustrados, vulnerabilizados e empobrecidos o valor efectivo dos direitos e da democracia. Quem conhece minimamente o desempenho funcional da justiça portuguesa facilmente conclui que Portugal tem ainda um longo caminho a percorrer. Tenho defendido uma revolução democrática da justiça se queremos uma democracia de alta intensidade.

Advocatus | Em 37 anos de democracia, que balanço faz do sistema judicial? BSS | É difícil fazer um balanço histórico sobre a justiça no Portugal democrático sem analisar as contradições de um processo que articula mudanças com muitas continuidades. Por exemplo, se olharmos para a justiça de família e menores, tanto identificamos mudanças qualitativas O agregador da advocacia


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muito significativas nas leis substantivas e da organização do sistema, como atavismos vários na cultura e práticas judiciárias, o que leva a que reformas qualitativas acabem por ter um potencial reduzido de mudança na resposta efectiva do sistema de justiça. Várias políticas da justiça tiveram trajectórias contraditórias que é fundamental analisar. Por exemplo, a criação do Centro de Estudos Judiciários introduziu uma mudança muito positiva no recrutamento e formação das magistraturas. Mas, manteve-se a convergência com as políticas mais progressistas nesta matéria? Conseguiu-se efectivamente mudar a cultura judiciária no sentido de colocar os tribunais ao serviço da cidadania? As respostas são negativas. Uma medida de enorme potencial transformador não foi capaz de mudar a face da justiça. O mesmo acontece com outras políticas, como o acesso à justiça. Apesar de a democracia ter ampliado a possibilidade de mobilização dos tribunais pelos cidadãos, as políticas restritivas mais recentes (aumento dos custos da justiça e alteração dos critérios de apoio judiciário) e a qualidade de resposta do patrocínio oficioso assinalam uma política com muitas deficiências. Contudo, penso que deve ser assinalado o facto de a democracia ter permitido uma maior mobilização dos tribunais por parte dos cidadãos e uma maior proximidade. Os cidadãos têm mais consciência dos seus direitos, mais vontade de os mobilizar e defender e menos receio dos tribunais e estes são ganhos enormes a assinalar. Mas, estas expectativas positivas aumentam a frustração sempre que não são satisfeitas. A morosidade e a ineficiência da justiça são os principais factores negativos do sistema judicial. O sistema judicial não conseguiu responder satisfatoriamente à pressão da sociedade, elevando as percepções negativas a seu respeito. Advocatus | Justiça tardia é justiça negada? BSS | Uma justiça atrasada é uma justiça negada, sem dúvida. Mas também é importante ressalvar que a justiça tem de ter um tempo pró-

“Uma justiça eficiente, de qualidade, consciente do seu mandato constitucional e atenta aos direitos humanos e de cidadania pode contribuir, de forma decisiva, para densificar junto de cidadãos frustrados, vulnerabilizados e empobrecidos o valor efectivo dos direitos e da democracia”

“Sempre que o judiciário levou a cabo o combate à corrupção foi posto perante uma situação quase dilemática: se, por um lado, esse combate contribuiu para a maior legitimidade social dos tribunais, por outro, aumentou exponencialmente a controvérsia política à volta deles”

prio, que não corresponde ao da comunicação social ou mesmo das expectativas pessoais dos cidadãos. O tempo dos procedimentos necessários funciona como importante garantia das partes. O que é importante é que se consiga um equilíbrio óptimo entre essas garantias processuais e a eficácia do sistema. Se é verdade que nem sempre a justiça muito célere é melhor justiça, é igualmente verdade que muitas vezes a justiça quando chega, chega tarde demais. O sistema de justiça tende a ser rotineiro, indiferente às urgências sociais. As vítimas são sobretudo os cidadãos desprovidos de recursos económicos, institucionais e jurídicos, pelo que a morosidade na justiça é também um espelho da desigualdade social. É muito importante inverter esse processo e pensar a justiça na óptica dos cidadãos e da sua função primacial.

“Se é verdade que nem sempre a justiça muito célere é melhor justiça, é igualmente verdade que muitas vezes a justiça quando chega, chega tarde demais”

Advocatus | A justiça também deve estar ao serviço do desenvolvimento económico. Está? BSS | Deve estar ao serviço do desenvolvimento económico, tal como ao serviço da cidadania. O desenvolvimento económico não pode desligar-se da justiça na economia e da democracia na justiça. A necessidade de um forte combate à corrupção é disso exemplo: favorece a transparência e o equilíbrio na concorrência empresarial e dá cumprimento aos princípios democráticos. Todos os estudos e indicadores mostram que há ainda muito por fazer, neste campo, em Portugal. A morosidade da justiça está a desviar, cada vez mais, os litígios empresariais dos tribunais judiciais para outros meios de resolução de conflitos, em especial a arbitragem, deixando àqueles a cobrança de dívidas. Mas, a ineficiência da acção executiva e dos tribunais que lidam com litígios societários tem reflexos muito negativos nas dinâmicas empresariais, como, aliás, foi evidenciado pela troika. Advocatus | A ineficiência da justiça fomenta a corrupção? BSS | O combate à corrupção não passa apenas por medidas no âmbito do judiciário. Exige um forte compromisso dos poderes político >>>

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“Os tribunais não foram feitos para julgar para cima, mas sim para julgar os de baixo”

e judicial e da sociedade na definição e execução de políticas fortes, tanto de prevenção, como de perseguição judicial. Por exemplo, tanto as parcerias público-privadas como as privatizações são negócios, consensualmente reconhecidos, com alto potencial de práticas corruptivas, exigindo medidas que evitem que tal ocorra. Mas, ainda que haja medidas fortes de prevenção, não evitarão muitos casos de corrupção. Ora, quando tal ocorre, a eficiência da acção judicial é crucial. E, em Portugal, não apenas a economia, mas, sobretudo, a qualidade da democracia têm sido fortemente desafiadas pela criminalidade económica – corrupção, tráfico de influências e abuso de poder –, que encontra na ineficiência dos tribunais um auxílio objectivo para a sua perpetuação. A verdade é que sempre que o judiciário levou a cabo o combate à corrupção foi posto perante uma situação quase dilemática: se, por um lado, esse combate contribuiu para a maior legitimidade social dos tribunais, por outro, aumentou exponencialmente a controvérsia política à volta deles. Porquê? Porque os tribunais não foram feitos para julgar para cima, mas sim para julgar os de baixo. É crucial alterar o papel dos tribunais enquanto agentes activos de combate à corrupção, o que requer que a definição clara desse combate seja uma das grandes prioridades da justiça criminal. Os poderes, político e judicial, devem tomar a justiça como um dos grandes pilares da democracia e do desenvolvimento social e económico. Não foi ainda possível criar na sociedade portuguesa um pacto político mais amplo que permita reformas estruturais e eficazes do sistema judicial. Esse pacto é essencial para a definição de políticas consequentes e eficazes no combate à corrupção. Advocatus | Que papel está reservado à justiça no actual momento de crise económica? BSS | Convivemos, cada vez mais, no interior de Estados democráticos, com dinâmicas de desenvolvimento assentes em gritantes situações de vulnerabilidade, risco e exclusão social. O neoliberalismo revelou as suas

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“É fundamental que se combata o desperdício de reformas sobre reformas. Precisamos de orientação estratégica, de planificação (…), de recusar reformas avulsas. Sem que seja assumida esta cultura reformista, não conseguimos ultrapassar a percepção de que, depois de tantas reformas, tudo está por fazer”

“É sobretudo num contexto de grave crise económica e social que os tribunais devem constituir uma reserva de confiança material e simbólica dos cidadãos. (…) É crucial o seu papel e a sua eficácia enquanto instrumentos de correcção das desigualdades e das injustiças sociais”

debilidades. Não garantiu o crescimento, aumentou tremendamente as desigualdades, a insegurança e a incerteza na vida das classes médias e populares, para além de fomentar uma cultura de fatalidade perante as medidas de austeridade, sem questionarmos as opções políticas, a repartição dos sacrifícios e as determinações sistémicas. É sobretudo num contexto de grave crise económica e social que os tribunais devem constituir uma reserva de confiança material e simbólica dos cidadãos. Se o seu contributo é fundamental para a segurança dos investimentos, melhorando as condições para o crescimento económico, é também crucial o seu papel e a sua eficácia enquanto instrumentos de correcção das desigualdades e das injustiças sociais. Se não estiverem atentos à relevância e à centralidade deste seu papel, correm um forte risco de caírem numa profunda crise de legitimação. Advocatus | Temos um novo governo. Acredita que as reformas irão para além da legislatura? BSS | A prevalência da ideia de crise da justiça empurrou o poder político para uma situação de permanente reforma, muitas vezes com sentidos divergentes e impulsionada por diferentes diagnósticos. Mais do que reclamar reformas na justiça que perdurem para além de uma legislatura, é necessário reclamar do poder político e judicial uma política pública de justiça consequente. É fundamental que se combata o desperdício de reformas sobre reformas. Precisamos de orientação estratégica, de planificação das reformas e da sua execução, de recusar reformas avulsas, sem uma perspectiva integrada de todo o campo ao qual se dirigem. Sem que seja assumida esta cultura reformista, não conseguimos ultrapassar a percepção de que, depois de tantas reformas, tudo está por fazer, o que leva a que a força política que chega ao poder, confrontada com a ineficiência das reformas anteriores, queira desenvolver a sua própria agenda. É um problema complexo, que não é de agora, e cuja responsabilidade não pode ser assacada apenas ao poder O agregador da advocacia


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executivo. A governação do sistema de justiça, em graus e responsabilidades diferentes, depende do poder político (executivo e legislativo) e do judicial. Precisamos de um pacto de cidadania para a criação de uma agenda estratégica de transformação da justiça. Os compromissos assumidos com a troika e um novo ciclo político podem constituir novos contextos propícios a esse entendimento. Advocatus | O que falta para uma justiça que sirva os cidadãos? BSS | Em época de grave crise financeira e económica, a justiça é certamente um dos sectores atingidos. Mas, este momento pode também ser visto como uma oportunidade de racionalização. Os nossos estudos mostram que há muitos desperdícios. Por exemplo, não podemos continuar a fazer uma subutilização dos procedimentos rápidos para o tratamento das pequenas infracções, que mobilizam, proporcionalmente, cada vez mais recursos. Serve os interesses da justiça e da cidadania que um processo de condução com excesso de álcool, um furto de reduzido valor, umas ofensas corporais leves, uma dívida de poucas centenas de euros, litigação que constitui a grande maioria dos processos que entram nos tribunais portugueses, ocupe largos meses, e mesmo anos, recursos humanos altamente qualificados (polícias, funcionários judiciais, magistrados do Ministério Público, juízes da primeira instância e dos tribunais da relação, além de outros técnicos fora do sistema de justiça)? A resposta só pode ser não. Advocatus | Qual é a causa desse desperdício? BSS | Prevalece no sistema de justiça, apesar das muitas reformas, uma cultura burocrática, em que todos os agentes “colaboram”, que não permite que inovações com alto potencial frutifiquem. Podemos transformar este tempo de crise num tempo de oportunidades, de combate às muitas ineficiências. Para tal, é necessário, em primeiro lugar, uma nova cultura jurídica, não tecnocrática, orientada para a cidadania, para O agregador da advocacia

“Não podemos continuar a fazer uma subutilização dos procedimentos rápidos para o tratamento das pequenas infracções, das pequenas causas, que mobilizam, proporcionalmente, cada vez mais recursos”

“Uma das maiores debilidades do sistema judicial sempre foi a sua incapacidade de encontrar um meio autónomo e eficaz de comunicação com o público, o que coloca em evidência tanto a sua vulnerabilidade como a sua dependência face à comunicação social”

a eficiência e qualidade da justiça e para melhor servir os cidadãos. É preciso também acabar com o desperdício das experiências adquiridas. O conhecimento adquirido não pode ser sucessivamente desvalorizado, como se o sistema judicial não tivesse história. Por outro lado, temos um claro problema de organização e gestão, de desperdício de espaço, de tempo e de meios. As deficiências de organização e gestão dos tribunais são responsáveis por grande parte da sua ineficiência. É fundamental investir nas reformas gestionárias da justiça. A reforma do mapa judiciário tem, nesta matéria, um claro objectivo estratégico com a previsão de um novo modelo de gestão dos tribunais, que é necessário desenvolver e aprofundar. Advocatus | A justiça é cada vez mais mediatizada. É positivo ou negativo? BSS | A justiça tornou-se num conteúdo apetecível: os casos da justiça, as reformas, os problemas, os seus agentes fazem parte do quotidiano mediático. A comunicação social teve, assim, um papel fundamental na visibilidade social dos tribunais e, de certa forma, na sua aproximação social. Mas, essa visibilidade tem vários perigos. Em primeiro lugar, é selectiva. Ocorre sobretudo no âmbito de determinados processos, o que significa uma pequeníssima parte do trabalho jurídico. Tende, por isso, a ocultar todo o resto. Em segundo lugar, acentua a morosidade da justiça. A lógica da acção mediática e a da acção judicial são muito distintas. Esta última exige a verificação de procedimentos rigorosos para a decisão final, mais morosos. Os tempos e as retóricas discursivas da comunicação social e dos tribunais estão em diametral oposição e esta disjunção ajuda a acentuar as percepções negativas a respeito da ineficiência funcional dos tribunais. Uma das maiores debilidades do sistema judicial sempre foi a sua incapacidade de encontrar um meio autónomo e eficaz de comunicação com o público, o que coloca em evidência tanto a sua vulnerabilidade como a sua dependência face à comunicação social.

“O sistema judicial não conseguiu responder satisfatoriamente à pressão da sociedade, elevando as percepções negativas a seu respeito”

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