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“O nosso processo não é ágil, é labiríntico, complicado, às vezes ridículo, ditador e, portanto, enquanto esse paradigma não for alterado, nada mudará na Justiça”, afirma Rogério Alves, 49 anos, ex-bastonário e sportinguista notório, que acusa os megaprocessos de fazerem mal à saúde da Justiça
Rogério Alves, ex-bastonário
Ramon de Melo
“O nosso processo é labiríntico”
Advocatus I Como ex-bastonário, qual é a sua principal preocupação face à Ordem dos Advogados? Rogério Alves I A conflituosidade interna. Apesar de estar convencido que esse fenómeno irá diminuir neste 2.º mandato de Marinho e Pinto, que se afigura bastante mais pacífico e tranquilo. Mas preocupa-me 6
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o facto dessa conflituosidade poder ser aproveitada pelos adversários da Ordem para procurarem pôr em causa o seu poder regulador. Advocatus I Quando fala em adversários da Ordem refere-se concretamente a quê ou a quem? RA I Não vou dizer nomes, mas sei que há alguns políticos, pensado-
res, ideólogos que defendem uma hetero-regulação, com intervenção por entidades externas à Ordem e aos advogados. Sei também que há uma tendência forte, alegadamente em defesa dos consumidores, para combater a auto-regulação da advocacia dizendo que este figurino de Ordem não serve, e é preciso que entidades externas venham in-
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tervir em matéria de formação profissional, controlo deontológico e disciplinar dos advogados. Eu não concordo. É fundamental termos uma Ordem forte e reguladora. E para que a Ordem seja reguladora tem de ser forte e por isso tudo aquilo que a enfraquece e que a divide, tudo aquilo que abra brechas e a faça dar algum espectáculo público, é algo a prescrever.
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“Acredito que o Dr. Marinho e Pinto interiorizou que não é bom ter um 2.º mandato de guerras com os conselhos distritais por causa dos orçamentos”
Advocatus I Como analisa a reeleição do bastonário Marinho e Pinto? RA I Eu não apoiei o Dr. Marinho e Pinto, mas vamos distinguir os planos das coisas em pessoal, institucional, eleitoral e pós-eleitoral. No plano pessoal, tenho uma relação excelente com o Dr. Marinho e Pinto. Temos amizade, frontalidade, e franqueza, uma relação muito boa. Do ponto de vista eleitoral, eu apoiei o Dr. Luís Filipe Carvalho, fui seu mandatário nacional e votei nele por razões que tinham a ver com um certo posicionamento face à Ordem. Os resultados eleitorais estiveram aí, temos o plano institucional – ganhou o Dr. Marinho e Pinto, passo a aceitá-lo e a respeitá-lo como bastonário, e estou disponível para lhe dar o meu conselho quando ele pede e, naturalmente, para apoiar a Ordem naquilo que considero que são “os bons compadres”. A minha opção eleitoral era uma, o resultado foi outro, mas vivo perfeitamente com o facto de o Dr. António Marinho e Pinto ser o bastonário. Espero que ele tenha um excelente mandato, melhor que o anterior, e que seja frutuosa a sua passagem pela Ordem. Advocatus I Acha que depois de um primeiro mandato turbulento, o bastonário vai conseguir apaziguar as várias facções? RA I Acredito na conversão das pessoas, na conversão dos métodos e na conversão dos comportamentos. As pessoas aprendem com o passado. Acredito que o Dr. Marinho e Pinto interiorizou que não é bom ter um 2.º mandato de guerras com os conselhos distritais por causa dos orçamentos, bem como da dialéctica que mantinha com
“O que o bastonário diz é que a habilitação suficiente não deve ser só a licenciatura. Concordo. Só não concordei com a criação de um exame de admissão porque isso é ilegal e a Ordem tem de cumprir a lei”
os media, onde ele é o poder, pois manda na Ordem, mas depois é uma voz crítica, às vezes, até contra ela própria. Creio que esta fase se terá esgotado no primeiro mandato. Ele próprio agora está mais amadurecido e melhor conhecedor do seu papel. Advocatus I Como vê a medida do bastonário em querer as mesmas condições de acesso à Ordem que são requeridas para a entrada no Centro de Estudos Judiciários (CEJ)? RA I Quando era bastonário deixei um projecto no Governo propondo uma coisa muito simples que, inexplicavelmente, ainda não foi legislada. Primeiro, que só fossem admitidos ao estágio da Ordem os alunos que tivessem concluído, após a reforma de Bolonha, a parte lectiva do mestrado e com aproveitamento. O nosso estatuto diz que têm acesso ao estágio os licenciados em Direito, mas o conceito de licenciado aplicava-se a uma realidade e começou a aplicar-se a outra, portanto, naturalmente a lei teria de ser readaptada à circunstância. É uma coisa que toda a gente entende, mas que o Governo não promoveu, o Ministério da Justiça também não e a Assembleia da República não alterou o estatuto da Ordem e, portanto, ficou esta desordem. O que o bastonário diz é que a habilitação suficiente não deve ser só a licenciatura. Concordo. Só não concordei com a criação de um exame de admissão porque isso é ilegal e a Ordem tem de cumprir a lei. Depois há outra questão, que é a de saber se existem numerus clausus como há no CEJ, e aí não concordo que a Ordem estabeleça numerus clausus. Sempre disse que a advocacia tem de ser uma profissão de acesso livre, não pode ser uma profissão de acesso fácil. Portanto, vamos criar uma formação exigente, que seleccione os que têm aptidão científica e deontológica para a profissão e exclua os demais. Se a maioria tiver aptidão, então deverá entrar. Que o Estado apoie a formação ministrada na Ordem, nomeadamente, no plano financeiro, claro que concordo.
“A advocacia tem de ser uma profissão de acesso livre, não pode ser uma profissão de acesso fácil”
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“Os advogados são livres de debater todas as matérias, que às vezes nascem de processos concretos, sem qualquer constrangimento e sem pedir autorização a ninguém”
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Advocatus I E quanto à lei da rolha pretendida pelo actual presidente do CDL, que fez um apelo aos advogados para não se pronunciarem sobre casos mediáticos. Isto faz algum sentido? RA I O advogado está adstrito à lei e aos bons princípios. Fui presidente do CDL e fazia cumprir a lei. Este comunicado não veicula a posição da Ordem nem a posição do bastonário que, tanto quanto sei, vai exactamente no sentido contrário. Agora, face ao teor do comunicado, este é uma verdadeira macedónia, pois confunde o que não deve confundir, mistura o que não deve misturar e unifica o que não pode unificar. Temos situações distintas que, naturalmente, não podem nunca ser condensadas. Primeira situação: o advogado está obrigado ao segredo profissional, o que significa que não deve revelar perante terceiros o teor do seu contacto com os clientes. Há uma situação em que o pode fazer, quando é autorizado pelo Conselho Distrital com recurso para o bastonário. Isso ocorre quando a lei diz, e a lei é muito clara. Segunda questão, completamente diferente, são comentários pontuais que são feitos à saída ou à entrada de uma audiência, e que não têm nada a ver com a revelação de matérias em segredo nem com a discussão pública dos casos. São os tais pequenos comentários avulsos, pois a Comunicação Social está presente à saída da audiência, que são da absoluta liberdade e disponibilidade do advogado e não têm nada a ver com a discussão pública do caso. Terceira questão é saber se os advogados podem participar no debate público sobre aspectos de Justiça, o que é absolutamente indiscutível. Os advogados são livres de debater todas as matérias, que às vezes nascem de processos concretos, sem qualquer constrangimento nem pedir autorização a ninguém. Para mim, o quadro intelectual e legal está fixado. Há colegas que escrevem em jornais e que vão à televisão, somos todos livres de o fazer, desde que respeitemos o segredo profissional e não interfiramos nos processos dos colegas nem transportemos para o espaço
“As leis processuais obrigam-nos algumas vezes a fazer até figuras tristes e deprimentes, recuando quando deveríamos avançar, regredindo quando devíamos progredir em cada processo, cumprindo rituais em que todos seremos inúteis”
“Quem assista a um julgamento em Portugal não acreditará que estamos com atrasos na Justiça, porque cada passo é tão lento que até parece que temos tempo a mais”
público o que deve ser discutido no tribunal. Advocatus I Qual é o grande problema do sistema de Justiça português? RA I Isolar um problema é um erro, mas o nó fundamental da Justiça é a lentidão, que nasce de duas questões fulcrais. A primeira são as leis processuais, o nosso processo não é ágil, é labiríntico, complicado, às vezes ridículo, ditador e, portanto, enquanto esse paradigma não for alterado, nada mudará na Justiça. Não havendo uma lei processual capaz, a Justiça em Portugal não vai mudar, não vale a pena continuarmos a fazer debates. As leis processuais obrigam-nos algumas vezes a fazer até figuras tristes e deprimentes, recuando quando deveríamos avançar, regredindo quando devíamos progredir em cada processo, cumprindo rituais em que todos seremos inúteis e que são capazes de envolver dezenas de advogados, três juízes, um procurador e uma diligência inútil, porque a prova se perde em 30 dias e todos temos de fazer uma romaria a um determinado local. O segundo grande problema é o nosso enorme conservadorismo – em Portugal, criticamos violentamente determinados diplomas, leis e normas. A norma é revogada, e passamos todos a dizer mal da norma que entra em vigor e a ter saudades da anterior. Se se quer ouvir elogiar uma norma basta revogá-la, porque nós somos muito conservadores e habituámo-nos ao ritual, à lentidão, ao procedimento tal como ele está instalado. O juiz às vezes é um pouco como o polícia sinaleiro: as suas indicações para desmobilizar o trânsito prevalecem sob a sinalização luminosa. O processo só tem garantir plenitude na produção da prova, igualdade no tratamento das partes, contraditório sem margem para dúvidas e direito ao recurso. Parece simples dito assim. Mas há actos processuais que não têm nenhuma destas utilidades, só servem para perder tempo, e habituámo-nos O novo agregador da advocacia
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a isso. Quem assista a um julgamento em Portugal não acreditará que estamos com atrasos na Justiça, porque cada passo é tão lento que até parece que temos tempo a mais. Enquanto o processo não for alterado e o maior poder do juiz de regular do processo não for francamente posto ao serviço da Justiça, as coisas continuarão assim, a lentidão atrai lentidão. Advocatus I Megaprocessos como BPP, BPN ou Casa Pia também não contribuem para descredibilizar a justiça portuguesa, por arrastarem os processos em tribunal? RA I Naturalmente que sim, os casos tornam-se menos manuseáveis, menos praticáveis. Concordo com a tendência de se acabar com os mega processos, que são para os cidadãos um sinal exterior de lentidão. Mas não é só lentidão, há inoperacionalidade em aceder aos documentos, muita dificuldade nas diligências, uma enorme quantidade de testemunhas. Os mega processos fazem mal à saúde da Justiça. Em geral, a justiça portuguesa é lenta, muitas vezes por culpa da lei processual, da orgânica e de opções legislativas erradas. A lentidão é um estigma muito comum na nossa justiça e esse é um estigma fundamental. Temos juízes de qualidade, não temos grandes problemas no direito substantivo, nem no Código Civil, nem no Código Penal. Poderemos até ter alguns problemas pontuais, mas a marcha da Justiça é que é lenta - a orgânica é complicada, o parque desactualizado, as estruturas ainda algo insuficientes. Advocatus I O Público noticiou recentemente que o Campus de Justiça custa mais de 10 milhões de euros e não dá para grandes julgamentos. É um problema grave? RA I Isso não comento, mas deveríamos distinguir o que é a Justiça e a orgânica da Justiça. O Campus de Justiça obedece a um bom princípio que é criar O novo agregador da advocacia
infra-estruturas adequadas para que os cidadãos se possam deslocar com mais facilidade, mas é visível que há insuficiências inexplicáveis. Algumas têm sido apontadas por quem lá trabalha, como a exiguidade das salas, a ausência de infra-estruturas capazes para a instalação de magistrados, mas também de advogados e testemunhas, ou a dificuldade de coexistir no mesmo prédio os vários intervenientes processuais. Há aqui um planeamento que deveria ser confiado a quem perceba de estrutura judiciária. Deixo um pequeno recado ao poder político: não encontro nenhuma razão para que os partidos, salientando PS e PSD, não tenham uma convergência quase absoluta sobre administração da Justiça. Não vejo que, ideologicamente, haja separação significativa entre os dois partidos, aliás, posso dizer que não vejo diferença nenhuma. E, portanto, deveria haver um enorme sentido de Estado em tratar estas questões quase independentemente do governo que esteja em funções. Advocatus I A própria relação entre o poder político e a Justiça, nomeadamente entre os magistrados, também precisaria de limar as suas arestas... RA I Entre políticos e magistrados não tem havido suficiente respeito mútuo. Se já é habitual haver algum despeito face aos políticos, também é verdade que os políticos não mostram muito respeito pelas magistraturas e têm uma certa tentação de conflito que me parece perigosa. Vivemos num mundo onde as pessoas se afirmam pelo espalhafato, pelo bombástico e pelas críticas violentas. As pessoas são muito mais demagógicas do que pedagógicas. E isso tem uma certa influência nos agentes políticos, que querem ganhar notoriedade à custa daquilo que, mesmo que seja banal, é jornalisticamente vendável. Não podemos estar constantemente a criticar os juízes, esse é um exercício perigo-
so para o regime democrático. Todos nós já discordámos, e às vezes com veemência, com decisões judiciais. Muitas vezes já utilizámos os recursos para criticar e tentar alterar aquilo que julgámos que foi mal decidido. Agora, uma
coisa diferente é estar sistematicamente a desacreditar o poder judicial perante os cidadãos, com críticas abrasivas, violentas, sem nunca guardar um cantinho para dizer que os juízes trabalham em circunstâncias muito difíceis.
PERFIL
Mãe era dona de casa, pai era polícia Licenciado em Direito pela Católica (1984), Rogério tem 49 anos, é casado e tem dois filhos, uma rapariga de 15 anos e um rapaz de 13. “Não faço questão de que algum dos meus filhos me siga as pegadas [na advocacia]; se gostarem terei gosto em ajudá-los numa iniciação, mas não farei nada para que isso seja assim”, assegura. “A mais velha tem uma inclinação completamente oposta ao Direito. O mais novo talvez sim, todos dizem que ele é parecido comigo, que deveria ser advogado, mas faço questão de não ter nenhuma influência nesse sentido”, comenta. Natural de Lisboa, dos Olivais Norte, estudou em Chelas, no liceu D. Dinis, onde passou anos extremamente atribulados” por terem coincidido com a Revolução dos Cravos. “Após o 25 de Abril, passava o ano em reuniões, pois era membro do parlamento associativo, era delegado de turma, responsável disto e daquilo… Por tudo e por nada fazíamos comícios, reuniões, votações, excursões, incursões, debates, estudar é que nem por isso”, graceja. Até que, “num determinado momento, tive de fazer a minha opção”. Filho de uma dona de casa e de um polícia, cresceu ao ar livre com os vizinhos da sua idade, num bairro que “criou gente muito gregária”. Advogado de causas, muito mais do que de entidades ou empresas, os que o rodeavam sempre lhe deram pistas que apontassem para a sua vocação. “Não era refilão, mas assumia posições, respondia por este e por aquele, era delegado de turma, tinha aquela intervenção mais preponderante e uma certa capacidade de falar de forma desenrascada, explícita, rápida, clara e cativante. Nunca me vocacionei para a carreira académica e tenho alguma pena, porque gosto de explicar e de ensinar”, afirma. Nos tempos livres, que são muito poucos, gosta de ler “compulsivamente”. Romance histórico e as biografias são os seus géneros preferidos. Deep Purple, Clash, ou Pink Floid são algumas das bandas que constam da jukebox pessoal deste advogado que se auto denomina de melómano. Procurando, com uma “infidelidade irritante”, ir ao ginásio, a prática de exercício físico também é um dos seus prazeres. “O que sinto que gosto verdadeiramente de fazer e que tenho menos tempo, é de viajar. Há dois sítios que adoraria conhecer que é a Austrália e a Nova Zelândia – associo países grandes a pessoas grandes, com horizontes vastos, paisagens bonitas e um mundo um pouco diferente”, conclui.
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