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Entrevista
Fátima de Sousa jornalista fs@briefing.pt
“Esta integração tem funcionado muito bem e a nossa perspectiva é de que continue assim, sem qualquer tipo de complexos por sermos mais pequenos. Não há qualquer subordinação”, afirma Maria João Ricou, 52 anos, assim definindo a Cuatrecasas, Gonçalves Pereira, a sociedade de advogados ibérica de que é managing partner desde Janeiro último
Maria João Ricou, managing partner da Cuatrecasas, Gonçalves Pereira
Ramon de Melo
Não há subordinação a Madrid
Advocatus | O dia 14 de Janeiro de 2011 marcou uma mudança na gestão da Cuatrecasas, Gonçalves Pereira. O que conduziu a essa mudança? Maria João Ricou | Até então, o modelo de gestão da sociedade era, de facto, outro, era uma gestão centralizada, formal e materialmente. O que nos conduziu a um 6
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modelo bicéfalo foi essencialmente a saída do Manuel Castelo Branco (anterior managing partner) que, não obstante não ter sido uma surpresa, acabou por se produzir de uma forma bastante repentina. Não havia uma sucessão pensada e, no espaço de poucos dias, os sócios tiveram de tomar uma decisão sobre a gestão da sociedade. Qual-
quer que fosse a pessoa escolhida, teria de deixar a sua área profissional. E nenhum de nós – falo por mim, que coordeno a área financeira e de mercado de capitais, e pelo Diogo Perestrelo, o outro managing partner, que coordena um grupo de societário - estava preparado para uma alteração tão radical. Além de que todos os sócios viram com
bons olhos a mudança para uma gestão mais partilhada. Advocatus | Como se reflecte o novo modelo na governação da sociedade? MJR | O modelo de governance que temos implementado é um modelo de partilha efectiva, não só entre nós, como entre todos os sócios. O agregador da advocacia
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Tentamos que haja maior descentralização, através da criação de comissões que têm competências específicas e responsabilidades próprias. É um modelo que obriga claramente a uma maior ponderação e um maior amadurecimento do processo decisório. Nenhum de nós toma uma decisão isoladamente. E qualquer decisão tomada representa uma posição comum, o que, no geral, implica maior ponderação. Mesmo que estejamos de acordo, quando conversamos há sempre tendência para se pensar mais no assunto, o que é positivo. É claro que este modelo só funciona se as duas pessoas que partilham a gestão forem compatíveis. Se estiverem sistematicamente em desacordo ou o modelo não sobrevive ou é preciso substituir os protagonistas rapidamente. Mas ambos começámos na Gonçalves Pereira como advogados estagiários, fizemos aqui o nosso percurso profissional, pelo que conhecemos muito bem a sociedade e conhecemo-nos um ao outro, o que ajuda ao funcionamento deste modelo de direcção-geral. Ao longo dos tempos, fomos falando sobre vários assuntos internos e já sabíamos que tínhamos uma posição comum quanto a questões estratégicas e matérias de fundo. E os outros sócios também tinham a percepção de que dificilmente entraríamos em rota de colisão. Advocatus| Que balanço faz da experiência destes oito meses? MJR | Este modelo foi, indiscutivelmente, uma boa decisão nesta fase da vida de um escritório que tem mais de 80 anos e que evoluiu muito em termos de dimensão. Quando entrei para fazer o estágio, a Gonçalves Pereira tinha apenas cinco advogados, neste momento somos cerca de 140 só em Portugal e cerca de mil worldwide. Advocatus | Ser managing partner da maior sociedade ibérica coloca desafios particulares? MJR | É uma responsabilidade muito acrescida, mas o facto de ser partilhada ajuda. É claro que a nossa vida agora tem um nível de exigência muito maior, pois acumulamos as
“O modelo de governance que temos implementado é um modelo de partilha efectiva, não só entre nós, como entre todos os sócios. É um modelo que obriga claramente a uma maior ponderação e um maior amadurecimento do processo decisório”
“Temos desenvolvido uma relação mais fácil com Espanha. Houve uma evolução positiva, a nossa relação com os sócios espanhóis é francamente boa, não há qualquer tipo de tentativa de se imporem como casa-mãe”
duas vertentes, a profissional e a de administração. Pela dimensão do escritório, a responsabilidade é ainda maior, mas temos uma organização que funciona muito bem, funciona por si. Hoje há muitas tarefas que já não são advogados que fazem, só em Portugal temos 80 pessoas na estrutura de apoio. Há uma nova filosofia, de empresarialização, que mudou a forma como se trabalha numa sociedade de advogados. Advocatus | Houve alterações na relação com a casa-mãe, em Madrid? MJR | Não lhe chamaria casa-mãe, antes casa-irmã. Não obstante este projecto ibérico ter nascido com a anterior gestão, a verdade é que, quer eu, quer o Diogo Perestrelo – e isto corresponde à posição comum dos outros sócios – temos desenvolvido uma relação mais fácil com Espanha. Houve uma evolução positiva, a nossa relação com os sócios espanhóis é francamente boa, não há qualquer tipo de tentativa de se imporem como casa-mãe. O conceito de casa-mãe dá uma imagem que não é verdadeira. Seria diferente se fôssemos uma sucursal, mas não somos, somos um escritório com mais de 80 anos que, em determinada altura, assinou um acordo de fusão com um escritório espanhol. Foi uma relação que começou em 1996 e foi evoluindo de forma muito gradual e muito ponderada. Só em 2003 formalizámos a integração. Integrámos dois grandes escritórios numa estrutura ibérica, não houve absorção de um escritório pelo outro. E o que reflecte isso é o facto de termos um nome espanhol e português em todo o mundo – somos Cuatrecasas, Gonçalves Pereira em Lisboa, em Madrid, em Xangai e em Nova Iorque. É o retrato do que somos – casas-irmãs. Obviamente que há dimensões diferentes, mas também somos dois países diferentes. Até agora, esta integração tem funcionado muito bem e a nossa perspectiva é de que continue assim, sem qualquer tipo de complexos por sermos mais pequenos. Não há qualquer subordinação.
“Ambos começámos na Gonçalves Pereira como advogados estagiários, fizemos aqui o nosso percurso profissional, pelo que conhecemos muito bem a sociedade e conhecemo-nos um ao outro”
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“Penso que o modo como os investidores reagirem às privatizações vai ser um teste. Poderá ter algum efeito catalisador, na medida em que ajudará um clima de confiança”
Advocatus | É possível manter a independência num acordo de integração? MJR | Quando negociámos o acordo de integração, acautelámos algumas regras de protecção, as chamadas regras de protecção das minorias. Além disso, depende muito das pessoas: há que fazer um esforço para se chegar a posições comuns sem entrar em conflito. Do nosso lado, existe essa perspectiva e do lado espanhol, onde talvez fosse mais fácil perder-se devido à dimensão, tem existido também. Nestes oitos meses, não temos registo de nenhuma iniciativa espanhola tendente a demonstrar uma posição de força. Temos sempre gerido os assuntos importantes pela via do diálogo. Advocatus | A um novo modelo de gestão corresponde uma nova estratégia? MJR | Houve uma alteração no modelo, mas com alguma continuidade na estratégia. Não houve ruptura, antes uma aposta no sentido de a estrutura ibérica ser um projecto a potencializar pois acreditamos que pode continuar a ter grandes vantagens para o escritório. Vamos igualmente prosseguir a aposta na internacionalização, que era uma estratégia que já estava razoavelmente definida. Advocatus | Na internacionalização, quais são os mercados-alvo? MJR | A internacionalização é um projecto global, mas que acaba por ter duas vertentes próprias, uma portuguesa e outra espanhola. O interesse português está naturalmente mais orientado para a África lusófona e para o Brasil. Aliás, o nosso escritório em Moçambique é muito anterior à fusão, abriu em 1998. Já temos também presença em Angola e um escritório em São Paulo. São as zonas que consideramos chave e onde pretendemos desenvolver a nossa presença. Espanha tem obviamente uma área própria, que é a América Latina e que é aquela em que se prevê que haja desenvolvimentos a mais breve trecho. No fundo, complementamo-
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“O conceito de casa-mãe dá uma imagem que não é verdadeira. Seria diferente se fôssemos uma sucursal, mas não somos, somos um escritório com mais de 80 anos que, em determinada altura, assinou um acordo de fusão com um escritório espanhol”
“Antes da crise, os clientes olhavam para a qualidade do nosso trabalho e para a relação de confiança com a sociedade, mas, hoje em dia, o custo é um factor ponderado em termos no mínimo paritários”
-nos, porque adquirimos uma cobertura geográfica que, sozinhos, dificilmente conseguiríamos, quer nós, quer eles. Advocatus | Embora seja anterior à crise, a internacionalização é mais importante na actual conjuntura nacional? MJR | É uma aposta independente da conjuntura até porque, de facto, foi feita num tempo em que vivíamos anos de crescimento confortável. Não foi, pois, uma decisão condicionada pela conjuntura nem uma medida reactiva. Mas, se me pergunta se é uma área para a qual olhamos com particular atenção e se sentimos agrado por termos investido com a devida antecedência, obviamente que sim. A internacionalização tem ganho valor acrescido, na medida em que nos permite ajustar aos tempos que vivemos. Advocatus | Qual o impacto da conjuntura na actividade da sociedade? MJR | Tem impacto, embora não tanto em termos de quantidade de trabalho – volume de horas – mas na qualidade do trabalho, além de que estamos sujeitos a uma pressão dos preços que não acontecia antes. Os clientes fazem mais consulta ao mercado e a concorrência é mais acesa. E mesmo os clientes que não fazem essa consulta, por não estarem obrigados ou por terem connosco uma relação antiga, nos pressionam à partida. Se não formos flexíveis e solidários tanto quanto podemos ser os clientes são livres de fazer outra escolha. Antes da crise, os clientes olhavam para a qualidade do nosso trabalho e para a relação de confiança com a sociedade, mas, hoje em dia, o custo é um factor ponderado em termos no mínimo paritários. Isto quando não se sobrepõe aos outros factores que pesam na decisão. Advocatus | A que se refere quando diz que a qualidade do trabalho se alterou? MJR | O escritório cobre todas as áreas jurídicas - tanto fazemos grandes operações como damos apoio corrente às empresas - mas está mais vocacionado para M&A O agregador da advocacia
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(fusões e aquisições), para grandes operações de bolsa, neste momento praticamente inexistentes. O ano passado ainda tivemos a operação da Telefonica, que assessorámos, mas foi contra a corrente. O que assistimos agora é a uma transferência muito grande para áreas como o laboral, o contencioso e as restruturações. São áreas que estão a trabalhar em pleno. Não estamos propriamente em crescimento, mas o número de horas de trabalho mantém-se. É a vantagem de termos uma estrutura desta dimensão.
“O que assistimos agora é uma transferência muito grande para áreas como o laboral, o contencioso e as restruturações. São áreas que estão a trabalhar em pleno. Não estamos propriamente em crescimento, mas o número de horas de trabalho mantém-se”
Advocatus | As privatizações anunciadas poderão animar o mercado? MJR | Criam, pelo menos, a expectativa de que haja um incremento da actividade, pois são operações que requerem assessoria jurídica. Além disso, penso que vão ser também um teste à nossa capacidade de atrair investimento estrangeiro. Apesar de tudo, temos a percepção de haver interesse de alguns fundos de capital em investir em empresas portuguesas. O facto de os preços tenderem a baixar torna o mercado mais atractivo. Advocatus | Mesmo com a má cotação das agências de rating? MJR | Neste momento, esse problema já alastrou de tal maneira à Europa que os alvos já são outros e bem maiores e mais preocupantes no quadro geral do que Portugal. Mas, vivemos realmente um período de incerteza. Espero que o bom senso impere e que acabe por se encontrar um caminho que leve à estabilidade portuguesa e europeia. Mais uma vez, penso que o modo como os investidores reagirem às privatizações vai ser um teste. Poderá ter algum efeito catalisador, na medida em que ajudará um clima de confiança. O efeito psicológico é importante para a economia. Advocatus | Outra das consequências da conjuntura foi a suspensão e até cancelamento das grandes obras. As privatizações poderão contrabalançar o efeito negativo destas medidas? MJR | É difícil dizer. Essas obras O agregador da advocacia
foram canceladas e não se vislumbram novos projectos de investimento público nos próximos tempos. Foi um modelo que deixou de funcionar. Não há grandes operações de fusões nem aquisições, não há entradas em bolsa, não há OPA nem OPV, na área da dívida o mercado também mexe muito pouco. Sem as privatizações, teríamos quase um deserto de grandes operações. Advocatus | Como é que a sociedade contorna essa escassez de operações financeiras? MJR | Há claramente um abrandamento nessas áreas específicas. Tem havido alguma transferência do trabalho para áreas que têm mais a ver com a conjuntura, como restruturações financeiras e refinanciamentos. No fundo, a actividade de um escritório como este não depende de a economia estar florescente, uma economia em situação complicada como a nossa também necessita de apoio jurídico, só que em moldes e condições diferentes.
Advocatus | Assumiu a direcção-geral em tempos de crise numa sociedade que já viveu anos de ouro. É uma coincidência que aumenta o desafio e a responsabilidade? MJR | Eu e o Diogo Perestrelo já comentámos vários vezes o timing… Entre 2002 e 2007, viveu-se, de facto, uma época de ouro, com um crescimento de dois dígitos. Criou-se uma convicção generalizada de que era normal e de que ia continuar assim. Mas em 2008 houve uma confrontação com uma realidade de que não estávamos à espera. O crescimento desacelerou entre cinco a dez por cento. Não estamos a diminuir a nossa actividade globalmente, mas temos de fazer um esforço de contenção e até mesmo redução dos custos. Somos mais rigorosos no controlo dos custos. Temos feito um esforço, que não é ilimitado mas que esperamos poder manter. Mas, olhando pela perspectiva mais positiva, o desafio de estarmos na direcção-geral agora é maior. Recebemos uma instituição com uma grande qualidade de organização e de recursos humanos.
PERFIL
Uma vida, uma carreira
“Não há grandes operações de fusões nem aquisições, não há entradas em bolsa, não há OPA nem OPV, na área da dívida o mercado também mexe muito pouco. Sem as privatizações, teríamos quase um deserto de grandes operações”
Maria João Ricou é managing partner da Cuatrecasas, Gonçalves Pereira desde Janeiro último. O último degrau de uma carreira toda ela construída na sociedade, para onde entrou como advogada estagiária, ainda na década de 80. Chegou a sócia aos 30 anos, muito cedo para o habitual. “Os tempos eram outros e a dimensão também era outra”. Hoje, na sociedade que administra com Diogo Perestrelo, o plano de carreira prevê 12 níveis, cada um idealmente correspondendo a um ano. Se se cumprisse a norma, mesmo sem sobressaltos, não seria sócia antes dos 35. Soma-se ainda um grau híbrido de sócio profissional, até se chegar, finalmente, a sócio de capital. Especializou-se em financeiro e mercado de capitais, áreas com as quais tomou contacto desde muito cedo pelo facto de a então Gonçalves Pereira ser um escritório de referência para os investidores estrangeiros, em particular bancos. Nunca, nestes anos todos, teve vontade de sair. Porque teve sempre “projectos muito estimulantes”: “Acompanhei toda a fase de crescimento deste escritório. Tem-me realizado bastante”.
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