Propriedade Intelectual desvalorizada

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Entrevista

Fátima de Sousa jornalista fs@briefing.pt

Portugal possui um bom quadro legislativo em matéria de Propriedade Intelectual. Pena é que esta matéria ainda seja vista como menor. A queixa é de Leonor Chastre, sócia da Gómez-Acebo & Pombo: “Por alguma coisa se chama propriedade… é como as outras propriedades e tem de ser defendida. Mas há uma desvalorização”. A especialista lamenta ainda a falta de meios para combater os crimes contra a propriedade intelectual, bem como a falta de formação específica dos magistrados

Leonor Chastre, sócia da Gómez-Acebo & Pombo

Ramon de Melo

Propriedade Intelectual desvalorizada

Advocatus | Como especialista em Propriedade Intelectual, diria que Portugal tem uma boa legislação nesta matéria? Leonor Chastre | A Propriedade Intelectual é de largo espetro. Engloba a propriedade industrial, os direitos 6

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de autor, a proteção de dados, a publicidade… E, com exceção da legislação dos direitos de autor e direitos conexos, estamos bem servidos. A questão não se prende com a lei em si; temos uma boa legislação, o que não temos, muitas

das vezes, é meios para a tornar exequível. Aliás, estou até particularmente entusiasmada com três novas leis: a nova Lei da Concorrência, que vai ser publicada no final do mês; a que veio decretar a arbitragem necessária na ve-

lha querela entre os medicamentos de referência e os genéricos e que foi publicada em dezembro; e uma legislação que ainda está em discussão e que se prende com a proteção de dados pessoais e privacidade. O agregador da advocacia


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Advocatus | A Concorrência não é propriamente a sua área de prática. De onde vem o entusiasmo pela nova lei? LC | É verdade que não é propriamente a minha área, já estou mais afastada, mas já trabalhei em Concorrência em Espanha. E achava que era uma lei extremamente necessária, desde logo por trazer uma inovação que é a do princípio da legalidade versus o princípio da oportunidade na apreciação das denúncias apresentadas na Autoridade da Concorrência. Dantes todas tinham de ser apreciadas e agora há a possibilidade de fazer uma triagem, de ver qual é a mais oportuna e fazer um escalonamento de propriedades. É muito importante. Advocatus | E quanto à arbitragem no diferendo entre laboratórios? Esta, sim, é uma das suas áreas de intervenção enquanto advogada… LC | Trabalho com laboratórios há 15 anos e entusiasmou-me particularmente esta lei porque tínhamos necessidade de intervenção legislativa. Comecei a trabalhar no Direito farmacêutico em Barcelona e havia uma legislação que ia ao cerne da questão dos medicamentos de referência versus os genéricos. Quando cheguei a Portugal, o quadro era interessantíssimo: havia advogados que optavam pelo tribunal do comércio, outros pelos cíveis e outros ainda pelo administrativo. Instalou-se a confusão durante um largo período de tempo. Além disso, havia uma grande falta de informação sobre a indústria farmacêutica e sobre o Direito farmacêutico. Por isso, confesso que o meu presente de Natal foi essa lei. Se me perguntar se é a lei ideal, não é. Tem muitas lacunas, é uma lei que precisa nitidamente de ser corrigida, mas foi um primeiro passo. Advocatus | A que atribui tanta litigiosidade no sector farmacêutico? Apenas ao fator económico associado à proteção das patentes? LC | Será um dos fatores. Parece-me que os 20 anos de patente na indústria farmacêutica poderão não O agregador da advocacia

“Com exceção da legislação dos direitos de autor e direitos conexos, estamos bem servidos. A questão não se prende com a lei em si; temos uma boa legislação, o que não temos, muitas das vezes, é meios para as tornar exequíveis”

ser um prazo de grande retorno efetivo, porque pelo menos 11 são dedicados à Investigação & Desenvolvimento e só a partir daí é que os laboratórios começam a auferir dividendos. É injusto que sejam só 20 anos? Será talvez. Mas isso terá de ser objeto de modificações legislativas específicas. O que não podemos é obviar a direitos de outros. O que os laboratórios de genéricos tentaram fazer foi preparar as Autorizações de Introdução no Mercado para, quando a patente expirasse, colocarem logo o produto no mercado. Parece-me perfeitamente legítimo. Há lugar para todos. Os genéricos têm a seu favor o facto de termos cada vez mais uma população envelhecida e uma população carenciada em termos económicos, com acesso facilitado aos medicamentos graças aos genéricos. Mas temos de ser muito lúcidos: a I&D é fundamental e, se não houver retorno económico, sofremos um retrocesso em Medicina. De qualquer forma penso que a indústria farmacêutica está a seguir aquilo que chamo uma terceira via, que é os laboratórios de referência adquirirem laboratórios de genéricos ou terem um segmento que se dedica aos genéricos. É uma opção muito inteligente.

“Confesso que o meu presente de Natal foi essa lei [da arbitragem necessária nos diferendos entre a indústria farmacêutica]”

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carreira

Um regresso natural Leonor Chastre ingressou na Gómez-Acebo & Pombo em setembro de 2011, depois de três anos e meio na Abreu Advogados. Foi um passo natural, como que um regresso a Espanha, que “faz todo o sentido”, quer pelas raízes familiares – parcialmente catalãs – quer pelos oito anos que já trabalhara num escritório em Barcelona, depois do estágio em Portugal dividido entre a Pena, Machete e Associados e a Cancella de Abreu. Para a sócia portuguesa da Gómez-Acebo, o interesse das sociedades de advogados espanholas por Portugal é perfeitamente natural, decorre da aldeia global e da necessidade de criar siner-

gias em vários pontos do globo. Menos natural é não haver o movimento inverso: “Temos sociedades de grande dimensão e de grande qualidade. Porque não avançam para Espanha? Exponenciava o mercado, que é pequeno, dava oportunidade a muitos jovens advogados”. Leonor tem a resposta à sua própria pergunta: “Temos falta de coragem”. A conquista de novos territórios é secularmente familiar a esta advogada que perpetua o apelido dos fundadores da localidade belga de Chastre. De lá avançaram por França e Espanha e acabaram por chegar a Portugal. Deles fala o site www. chastre.be.

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coisa no código que está desfasada da realidade. Na minha ótica, está demasiado centrado na obra literária e necessita de desenvolver mais as outras vertentes, nomeadamente a obra fotográfica ou a arquitetónica. Há uma necessidade de atualização e, sinceramente, vejo pouco empenho da Sociedade Portuguesa de Autores e de outras entidades congéneres em mudar a lei. Está-se a discutir a lei da cópia privada, mas são baby steps. É preciso ser mais intervencionista e mais rápido senão, quando vier, já vem tarde demais e já precisa de correção. Advocatus | Em matéria de Propriedade Intelectual tem havido um movimento de especialização dos advogados, mas não dos magistrados. De que modo é que isso prejudica o desfecho dos processos? LC | Tem prejudicado, de facto. Até agora os processos eram decididos uns em sede de tribunal do comércio, outros em tribunais criminais e outros ainda nos cíveis. Havia uma grande falta de sensibilidade e formação por parte dos juízes. A culpa não é dos juízes, é de quem não lhes ministra a formação adequada. Entretanto foi criado um tribunal especializado – no outro dia chamei-lhe tribunal fantasma porque está instalado mas ninguém sabe ao certo onde e em que condições. Causa-me estranheza que não exista por parte de quem de direito preocupação em bem formar os juízes em termos técnico-profissionais nestas matérias, porque senão o tribunal só é especializado no nome, as carências são as mesmas. Se tirarmos juízes dos outros tribunais e os pusermos num tribunal especializado eles não passam a ser especialistas na matéria. Aplaudo de pé a criação de um tribunal da Propriedade Intelectual, mas não posso deixar de apontar a falha enorme de não se ter investido na formação específica. Advocatus | Uma das questões associadas à Propriedade Intelectual é a contrafação. Também aqui se coloca a questão da falta de formação e da falta de meios? O agregador da advocacia

“Com exceção da legislação dos direitos de autor e direitos conexos, estamos bem servidos. A questão não se prende com a lei em si; temos uma boa legislação, o que não temos, muitas das vezes, é meios para as tornar exequíveis”

LC | Temos um bom Código da Propriedade Industrial, mas há a questão da aplicabilidade. Os juízes não têm preparação, os processos por crime de contrafação demoram imenso, a ASAE, que é a entidade fiscalizadora, não tem meios, desencadeia aquelas operações mais mediáticas, que têm a sua componente de espetáculo mas também passam uma mensagem: tirando o aparato podem ser pedagógicas. Quando se fala em contrafação associa-se ao vestuário, às malas e sapatos, mas vai muito para além disso e tem implicações verdadeiramente terríveis. Veja-se as consequências da falsificação de medicamentos e de peças automóvel… A verdade é que há muita falta de informação nesta matéria, não só de formação. Advocatus | Falta de informação a que nível? LC | Mesmo a nível das empresas há pouca consciencialização de que a marca é um dos seus principais ativos financeiros, quando não é o principal. Anda tudo à volta da marca e do branding. Uma marca não vende só o produto, vende um estilo de vida. Ate há pouco tempo era difícil encontrar entidades credenciadas para avaliar uma marca, sinal de que a Propriedade Intelectual ainda não está valorizada, como devia estar. Anda não é vista como uma componente económica extremamente valiosa, quer para particulares, quer para empresas. Por alguma coisa se chama propriedade… é como as outras propriedades e tem de ser defendida. Mas há uma desvalorização, é vista como uma matéria menor. Há muito trabalho a fazer.

“Causa-me estranheza que não exista por parte de quem de direito preocupação em bem formar os juízes em termos técnico-profissionais nestas matérias, porque senão o tribunal só é especializado no nome, as carências são as mesmas”

Advocatus | Mas não houve avanços? LC | Houve. Há 10 ou 12 anos, a Propriedade Intelectual era quase uma ciência esotérica em Portugal, tínhamos um atraso de 20 anos face a Espanha. A minha especialização foi praticamente toda feita no estrangeiro. Quando cheguei a Portugal, a Propriedade Industrial era confundida com a propriedade horizontal nas livrarias… Isto diz tudo. Ultimamente desenvolveu-se mui-

“A contrafação já existia antes da crise, é uma questão cultural. Tem muito a ver com o querermos coisas para as quais não temos poder económico, mas também a ver com a educação”

to o gosto por estas matérias, mas não é suficiente. Ontem [26 de abril] foi o Dia da Propriedade Intelectual e não se fez nada, tirando iniciativas pontuais e pouco divulgadas. Talvez em França fosse abertura de telejornal. Os franceses estão muito avançados, desenvolveram uma cultura de comprar o verdadeiro em vez do falso. Advocatus | Mas comprar verdadeiro e não falso não é mais expectável numa sociedade com maior poder de compra? Afinal, estamos em crise… LC | A contrafação já existia antes da crise, é uma questão cultural. Tem muito a ver com o querermos coisas para as quais não temos poder económico, mas também tem a ver com a educação. Eu fui educada para não exceder a minha capacidade económica. A quem é que estamos a enganar quando compramos contrafação? Estamos a enganar-nos a nós próprios. Quem é entendido na matéria vê logo que é contrafação e quem compra contrafação também identifica. Maio de 2012

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Entrevista

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Advocatus | Que benefícios encontra na arbitragem como solução para este confronto? LC | Até agora os processos corriam em tribunais não especializados. Ora, esta matéria é muito sensível e carece de um conhecimento muito específico sobre a indústria farmacêutica. A arbitragem vai possibilitar decisões mais rápidas e, sobretudo, decisões mais informadas e decisões mais justas. Os árbitros serão, em termos ideais, pessoas que têm perfeito conhecimento da matéria, o que não existia nos tribunais. Não se pode exigir a um juiz que tenha um conhecimento de todas as matérias e sobretudo de matérias tão específicas como estas. “A nossa privacidade é um bem precioso e as pessoas não têm consciência, dão informação em excesso sobre elas próprias de uma forma completamente inconsequente”

“Nós sabemos que os indivíduos só se moralizam através de penas de prisão e as pessoas coletivas através da penalização económica. Esta nova regulamentação incide nisso: quando houver violação de dados pessoais pode ser aplicada uma coima até dois por cento do valor do negócio. Imagine isto numa multinacional”

Advocatus | Mas não chegou tarde demais? LC | Gostaria que tivesse sido três anos mais cedo, para ser modesta no pedido. Era uma solução mais do que necessária, uma solução que interessava a todas as partes. Agora há, de facto, uma baixa na litigiosidade, mas ela continua e a realidade é que termos a possibilidade de recorrer aos centros de arbitragem e à arbitragem ad hoc é extremamente importante.

PERFIL

Advogada out of the box Direito foi aquilo que Leonor Chastre classifica como “uma escolha esclarecida”. Prefere não lhe chamar segunda escolha, ainda que admita ter pensado primeiro em Medicina. “Desde logo vi que faltavam em mim qualidades que me permitissem ser uma boa médica”, recorda, aludindo à capacidade para lidar com o sofrimento humano. Da Medicina ficou-lhe o gosto pelos medicamentos, não para os tomar, mas para os estudar… No Direito, Leonor identificou a possibilidade de, de certa forma, resgatar o lado criativo de uma família onde as artes são uma tradição. Ela própria se interessa por fotografia, pintura, música. Está, aliás, a aprender a tocar bateria, o único instrumento que achava que tinha a ver consigo: “Ainda não estou preparada para enfrentar

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as multidões, mas acho que vai de vento em popa…”. Na verdade o Direito fazia todo o sentido para quem sempre foi “a justiceira da casa”: “Tive sempre olho clínico para detetar a justiça e a injustiça. O meu avô dizia muitas vezes para perder a conceção maniqueísta da vida porque de um lado não estão os bons e do outro os maus. Era um homem cosmopolita”. E escolheu Direito para “lutar contra as injustiças, por acreditar na justiça, nos bons”. Mas nunca se esqueceu dos conselhos do avô. Lembrou-se deles quando, prestes a terminar o curso, equacionou a magistratura: “Um juiz tem de ser imparcial e eu não consigo. Perdi a conceção maniqueísta mas continuo a tomar partido”.

Advocatus | Há uma terceira lei que aguarda com expectativa, que é a da proteção de dados. Porque é tão importante? LC | Sou uma acérrima defensora da privacidade e, sempre que posso, alerto os utilizadores das redes sociais. Não é que queira queimar as redes sociais na fogueira, mas o que pretendo é que as pessoas se exponham com cuidado. A nossa privacidade é um bem precioso e as pessoas não têm consciência, dão informação em excesso sobre elas próprias de uma forma completamente inconsequente. Eu não estou em rede social nenhuma, acho que já existe suficiente informação sobre mim a nível corporativo. E as coisas pessoais são isso mesmo, pessoais. Por isso, fiquei muito contente quando surgiu o projeto de regulamentação comunitária que está agora em discussão e que prevê a obrigação do consentimento expresso, por escrito, para utilização dos dados pessoais. E prevê também o direito ao anonimato, que é uma garantia importante. Na maioria das vezes, as pessoas desconhecem que os dados ficam em arquivo na internet e daqui a 10 anos, por exemplo, são pessoas diferentes e aquilo que colocam hoje nas redes sociais podem não querer que estejam disponíveis daqui a 10 anos e têm esse direito. Só que não estão informadas. E há ainda aquilo que eu considero o grande aspeto moralizador. Nós sabemos que os indivíduos só se moralizam através de penas de prisão e as pessoas coletivas através da penalização económica. Esta nova regulamentação incide nisso: quando houver violação de dados pessoais pode ser aplicada uma coima até dois por cento do valor do negócio. Imagine isto numa multinacional. É violentíssimo… Advocatus | Disse que, no geral, temos boas leis, exceto no que se refere aos direitos de autor e direitos conexos. O que falha? LC | O código tem de ser profundamente revisto, principalmente a nível dos direitos conexos, que têm a ver com os fonogramas, com a pirataria informática, por exemplo. Há muita O agregador da advocacia


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