Three Gorges surpreendeu

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Dossiê

“Havia a ideia de que as empresas chinesas têm um processo burocrático muito complicado, mas todos os prazos do concurso foram superados. Julgo que a forma como a Three Gorges se empenhou neste concurso surpreendeu as autoridades portuguesas”. Quem o afirma é Luís Miguel Cortes Martins, 49 anos, sócio da Serra Lopes, Cortes Martins, e líder da equipa de assessoria jurídica à empresa chinesa na privatização de 21,35 por cento da EDP

Luís Miguel Cortes Martins, sócio da Serra Lopes, Cortes Martins

Ramon de Melo

Three Gorges surpreendeu

Advocatus | Como surgiu a oportunidade de assessorar a China Three Gorges na privatização da EDP? Luís Miguel Cortes Martins | A oportunidade de apresentarmos uma proposta surgiu por via da Skadden Arps, que é uma sociedade americana sediada também na China com a qual já havíamos tido outras operações e que nos referenciou em Portugal. A China Three Gorges fez o contacto, tivemos algumas reuniões em que abordámos o modo 30

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como víamos a EDP e a privatização, no fundo, para perceberem se estavam confortáveis connosco antes de avançarem para a contratação. Devo dizer que o cliente fez o trabalho de casa, olhou para outras sociedades de advogados, mas decidiu ficar connosco, o que nos orgulhou. Advocatus | Foi uma operação com um timing muito exigente. Isso aumentou a pressão? LMCM | Para os padrões portugueses, foi de facto uma operação

relativamente rápida. A China Three Gorges já estava atenta à EDP e ainda antes do lançamento do processo já estudava a empresa, dado que a privatização constava no memorando de entendimento que definia como limite o final do ano. Começámos a trabalhar em meados de agosto, mas já tinham estado em Lisboa antes, ainda sem advogados envolvidos. Quando o processo começou formalmente já estavam muito bem preparados. Obviamente que foi um processo

exigente. E para um escritório é sempre emblemático, pois foi a maior privatização em volume feita em Portugal. Foi extremamente interessante do ponto de vista profissional pelo trabalho jurídico que implicou. Devo dizer também que foi extremamente bem conduzido pelo Estado e pelos seus assessores. Sabíamos que estávamos em competição, o que é um fator extra de adrenalina. Com o desafio adicional de estarmos a trabalhar com uma entidade chinesa, com uma cultura O agregador da advocacia


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totalmente diferente, com barreiras várias a começar pela língua. Em poucas semanas tivemos de nos adaptar, de compreender os receios iniciais, de ganhar uma esteira de confiança. Outro desafio forte foram os timings, muito exigentes. Havia a ideia de que as empresas chinesas têm um processo burocrático muito complicado e há de facto alguns constrangimentos nos processos decisórios, mas todos os prazos do concurso foram superados. Julgo que a forma como a Three Gorges se empenhou neste concurso surpreendeu as autoridades portuguesas. Advocatus | Ter sido a maior privatização em volume feita em Portugal aumentou a complexidade da assessoria? LMCM | Colocou desafios interessantes, na medida em que tínhamos em simultâneo questões típicas de um processo de aquisição de ações, questões de corporate governance e questões regulatórias. No fundo, obrigou o escritório a alocar ao processo uma equipa multidisciplinar para que o cliente estivesse absolutamente seguro em todos os aspetos da operação. Acompanhámos a negociação da chamada parceria estratégica: a EDP fez com cada um dos quatro candidatos uma negociação como se fosse para fechar contrato e estava preparada para assinar com qualquer um deles quando o governo decidisse. Houve um trabalho muito profissional por parte da EDP, pois as propostas não foram apenas princípios, mas acordos acabados. Só isso permitiu que o governo decidisse a 22 de dezembro e no dia 30 se tivesse assinado o contrato e feito o primeiro pagamento de 600 milhões de euros. Advocatus | Estiveram em concorrência com sociedades de maior dimensão. O facto de terem ganho que significado tem? LMCM | A advocacia é provavelmente dos setores em Portugal com maior concorrência. O que faz com que os escritórios de topo em Portugal estejam ao nível dos melhores da Europa e do mundo. Os advogados portugueses estão muito abertos O agregador da advocacia

“O quadro de pressão que tivemos de viver não foi diferente do de outras operações. Estamos muito preparados para responder em tempo útil, com qualidade, rigor e conhecimento técnico. E isso foi reconhecido pelas empresas internacionais que connosco trabalharam”

à concorrência, o que levou a um enorme progresso, uma enorme sofisticação sobretudo nos últimos dez anos. O quadro de pressão que tivemos de viver não foi diferente do de outras operações. Estamos muito preparados para responder em tempo útil, com qualidade, rigor e conhecimento técnico. E isso foi reconhecido pelas empresas internacionais que connosco trabalharam. Advocatus | Sendo o povo chinês conhecido pelo low profile, como é que a China Three Gorges recebeu a polémica em torno das nomeações para a EDP? LMCM | Sem querer entrar muito na polémica, houve um processo de construção das listas que foi fundamentalmente liderado pelos outros acionistas privados da EDP. A Three Gorges apenas indicou, como previsto, quatro representantes para o Conselho Geral de Supervisão. Devo dizer, no entanto, que estão muito confortáveis com a escolha de Eduardo Catroga para presidente do conselho, pois tem um currículo que fala por si e está há seis anos na empresa, conhece-a perfeitamente. Penso que é preciso pôr as coisas em perspetiva: estamos a falar de três ou quatro nomes mais polémicos num conselho com 23 pessoas.

“Houve um trabalho muito profissional por parte da EDP, pois as propostas não foram apenas princípios, mas acordos acabados. Só isso permitiu que o governo decidisse a 22 de dezembro e no dia 30 se tivesse assinado o contrato”

PERFIL

A caminho da China Nascido em Santarém, há 49 anos, Luís Miguel Cortes Martins está à beira de fazer uma viagem que há muito lhe despertava a curiosidade mas que nunca tinha tido oportunidade de concretizar – uma viagem à China. A privatização da EDP, em que assessorou a Three Gorges, permite-lhe agora juntar este desejado carimbo aos que já tem no passaporte. Um país que cresce tão depressa com uma cultura tão antiga e costumes tão diferentes – são estes os aliciantes para uma viagem que se iniciará logo após os festejos do Ano do Dragão. Sócio mais antigo da Serra Lopes, Cortes Martins – excetuando os fundadores, claro – foi nesta

sociedade que fez toda a sua carreira, desde o estágio pós-licenciatura na Católica de Lisboa, em 1985. Na universidade em que se formou teve a possibilidade de enveredar pela docência, mas não teve dúvidas ao escolher a advocacia: “É uma paixão, não é só uma forma de ganhar dinheiro”, explica. Gosta, porém, de dar aulas, pelo que ministra alguns seminários na instituição que fica a umas centenas de metros do escritório. “Ainda é um bocadinho, mas vou a pé”, conta. É um defensor convicto da arbitragem, mas não necessariamente um advogado de bastidores: “Vou à barra com muito gosto. Sempre foi o que fiz, embora agora já não tanto”.

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“Foi um processo exigente. E para um escritório é sempre emblemático, pois foi a maior privatização em volume feita em Portugal”

Advocatus | O facto de terem conseguido a EDP dá-lhes confiança para investirem mais em Portugal? LMCM | Este é um investimento de longo prazo. Algumas das condições de financiamento que foram pré-acordadas com a EDP são linhas de muito longo prazo, prazos que na Europa ocidental nem sequer estamos habituados a considerar. Há um período de lock up de quatro anos em que, por força da lei, não podem vender nem comprar qualquer outra participação, mas não os vejo minimamente preocupados com isso. Olham para a EDP como uma empresa muito internacionalizada que lhes dá acesso a mercados muito importantes como o Brasil e os Estados Unidos. Se a EDP não fosse uma excelente empresa, excelentemente gerida, não teria atraído este investimento. No meio da mais profunda crise, ver quatro candidatos baterem-se por uma empresa portuguesa é o reconhecimento da qualidade das empresas portuguesas. Faz bem ao ego nacional. Advocatus | Que mais-valias traz para a sociedade ter assessorado o vencedor? LMCM | Significa muito pela visibilidade e pelo reconhecimento que nos traz em termos de mercado. A história das empresas e também das sociedades de advogados é muito a história do que fazem, das oportunidades que têm e da forma como as aproveitam. Tínhamos já estado presentes noutras privatizações, de menor dimensão mas algumas, se calhar, até juridicamente mais complexas, pelo que temos um bom track record. E não sendo, de facto, uma das grandes sociedades em número, temos a ambição de estar na primeira liga em termos de know how. Esta foi uma oportunidade de ouro para podermos demonstrar o que valemos. Advocatus | O ano de 2011 encerrou com chave de ouro. E 2012? LMCM | Obviamente que estamos preocupados com a crise em que vivemos, mas as indicações que temos são até mais positivas do que as que existiam no início de 2011.

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“No meio da mais profunda crise, ver quatro candidatos baterem-se por uma empresa portuguesa é o reconhecimento da qualidade das empresas portuguesas. Faz bem ao ego nacional”

O trabalho gerado por estes investimentos tem algum efeito sinérgico na economia e na nossa atividade. Mas também há um trabalho diferente em áreas como as restruturações, as insolvências e o contencioso, que em tempo de crise se inflacionam. Uma área em que também investimos bastante é a arbitragem, que consideramos uma alternativa válida ao tradicional contencioso e cuja lei entra em vigor em março. Para 2012 estou bastante confiante, lúcido e prudente mas confiante. O trabalho será mais duro, com margens mais estreitas, mas continuo a detetar oportunidades. Advocatus | A pressão sobre o preço continuará? LMCM | Há alguma pressão sobre o preço, mas temos conseguido resistir porque entendemos que, a partir de um determinado nível, se entra numa canibalização de preços que não é benéfica para ninguém e preferimos não entrar por aí. A questão é que a realidade com a qual os advogados lidam é mais antipática: é mais antipático tratar de insolvências do que fazer aquisições, despedir do que contratar. Era preferível que não fosse assim, mas não é só viver as épocas áureas dos clientes, temos de apoiá-los nas fases difíceis. E isso é o que nos distingue: para nós, a advocacia não é só um negócio; é evidente que sem remuneração a atividade não é sustentável mas a advocacia é muito mais, serve para ajudar as pessoas, para se fazer jus-

tiça. Há uma dimensão humana e social de que não abdicamos. Advocatus | Isso é uma crítica à profissão? LMCM | A concorrência, a partir de determinado momento, torna-se perversa, sobretudo quando as pessoas têm uma noção menos ética na profissão. Vemos verdadeiramente a caça ao cliente, quando, nos estatutos da Ordem, está expresso que não podemos angariar clientes. Admito que, hoje em dia, seja uma necessidade, mas usarem-se os mais sofisticados esquemas para desviar clientes é algo que me faz muita confusão, disputam-se os clientes como se fossem uma mercadoria e isso desqualifica a advocacia. A seguir vem o resto, os honorários, a ideia de somos todos iguais e só queremos é faturar. O mercado precisa de se ajustar, mas isso tem de ser feito sem violação das regras elementares, preservando o mais sagrado da profissão. Advocatus | Há aí também uma crítica à Ordem? LMCM | A Ordem dos Advogados não está a cumprir bem o seu papel. Não é atacando a ministra ou espingardeando contra tudo e contra todos que se resolvem os problemas. A Ordem devia ter uma função reguladora e disciplinadora que não a vejo exercer. Neste momento olho para a Ordem e só vejo o bastonário. Um bastonário com um excesso e uma ânsia de protagonismo como raramente vi e pouca preocupação em resolver os problemas concretos dos advogados. A amplificação do discurso de que o sistema não funciona não serve a ninguém e a Ordem acaba por não cumprir o seu papel de contribuir para o Estado de Direito. E ninguém lhe reconhece o papel de interlocutor. Ora os advogados são atores essenciais do sistema de justiça e quem achar que assim não é está a fazer uma má reforma, seja ela qual for. A última coisa que a Ordem devia fazer era colocar-se fora do sistema. Não é com gestos grandiloquentes que se reformam instituições. A justiça é um assunto demasiado sério. O agregador da advocacia


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