Ramon de Melo
Passeio Público
Isabel Megre é hoje associada a uma instituição com fins sociais, a Associação Novo Futuro. Mas toda a sua carreira profissional foi construída no mundo da Distribuição. Tudo começou na viagem de finalistas ao Brasil, que lhe abriu as portas para a importação para Portugal do conceito de supermercado tal como hoje o entendemos. Foi funcionária nº 1 do Pão de Açúcar. E é com indisfarçável orgulho e entusiasmo que fala dessa carreira, a começar pela “loucura” que era a inauguração de cada loja…
Uma vida na Distribuição A vida profissional de Isabel Megre confunde-se com a da cadeia de supermercados Pão de Açúcar/ Jumbo. Pode até dizer-se que se confunde com a história da Distribuição Moderna em Portugal. Ou não tivesse integrado desde a primeira hora a equipa que estudou e lançou no País os primeiros supermercados como hoje os conhecemos. Tudo aconteceu por acaso. Tinha 22 anos e frequentava o último ano de Finanças no então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, actual ISEG. 16 Setembro/Outubro de 2012
A habitual viagem de conclusão da licenciatura levou-a ao Brasil, muito distante, nos moldes e nos objectivos, das viagens de finalistas de hoje. Estava-se em 1969, Abril. Financiados por empresas e bancos, o propósito era contactar empresários. E o Brasil foi escolhido precisamente porque um dos patrocinadores tinha interesses comerciais do outro lado do Atlântico. Foram três semanas, de dormidas em hotéis mas também em faculdades, de conferências e visitas a empresas. Não era – recor-
O Pão de Açúcar esteve sempre na vanguarda: “Fomos os primeiros a introduzir o código de barras, o check out electrónico por leitura óptica…”
da Isabel Megre – só lazer, ainda que houvesse algum tempo para desfrutar dos prazeres dos areais brasileiros. Foi em São Paulo que se deu o acontecimento que, na verdade, viria a ditar a carreira profissional da actual presidente da Associação Novo Futuro. Num jantar oferecido aos finalistas, o presidente da colónia portuguesa, Valentim dos Santos Diniz, fundador do grupo Pão de Açúcar, manifestou interesse em expandir a rede de supermercados – então com 58 lojas naquele Estado brasileiro. E STORE MAGAZINE
Portugal, o seu país natal, era o destino de eleição para concretizar o desejo. Um dos colegas de curso de Isabel, João Flores, seria o responsável pela “importação” desse desejo. E logo em Setembro desse mesmo ano se formou a equipa que estudou e planeou a introdução dos supermercados em Portugal. Isabel Megre fez parte desse grupo pioneiro. Foi, aliás, a funcionária nº1 da Companhia Portuguesa de Supermercados – SUPA, a empresa constituída para o efeito. Não havia nada do género em Portugal. Isabel recorda que na Praça do Saldanha, em Lisboa, havia um pequeno supermercado, independente. Passado algum tempo surgiram no Porto alguns Invictus, que viriam a ser, mais tarde, Modelo. Mas uma cadeia de supermercados era totalmente inédito. Não admira, pois, o entusiasmo com que fala desses tempos, do “espírito de equipa fantástico” que vigorava entre os que tomaram a tarefa em mãos. “Fazíamos tudo. Ninguém sabia nada do que era um supermercado. Aprendemos tudo do princípio. Na faculdade ensinava-se apenas que era uma superfície com mais de 250 m2 que vendia bens alimentares e não só”. Foi Abílio Diniz, filho do fundador do grupo, que apoiou a equipa portuguesa, lançando-a numa rota de sucesso que culminou com a abertura de 18 lojas nos três primeiros anos. A primeira localizava-se na Avenida dos Estados Unidos da América, na capital, 1200 m2 divididos por dois pisos. A inauguração foi “uma loucura”: “Quando foi o fenómeno do 1.º de Maio no Pingo Doce só me lembrava das inaugurações do Pão de Açúcar. Eram uma perfeita loucura. As pessoas nunca tinham visto nada assim, atropelavam-se para entrar”. O que também nunca tinham visto era uma campanha de publicidade como a que a empresa lançou para assinalar a inauguração dessa primeira loja. Criada no Brasil, consistia da publicação de um teaser diário na imprensa, culminando com duas STORE MAGAZINE
Foi em São Paulo que se deu o acontecimento que, na verdade, viria a ditar a carreira profissional da actual presidente da Associação Novo Futuro. Num jantar oferecido aos finalistas, o presidente da colónia portuguesa, Valentim dos Santos Diniz, fundador do grupo Pão de Açúcar, manifestou interesse em expandir a rede de supermercados
páginas no dia da abertura. “As pessoas não sabiam o que era, lembro-me perfeitamente”. Consegue igualmente evocar, como se fosse hoje, o conteúdo dessa campanha: a protagonista era uma dona de casa que abria um frigorífico que se ia esvaziando ao longo da semana; à segunda dizia ‘hoje não vou às compras porque não é sexta-feira’ e assim sucessivamente até que na sexta proclamava ‘hoje vou às compras porque é a grande inauguração do Pão de Açúcar’. Uma mensagem reforçada na página seguinte com um anúncio também inovador em Portugal, com produtos e os respectivos preços. Isabel lamenta apenas não ter conseguido preservar esses materiais que, na verdade, fazem parte da história da publicidade no País. E, a propósito de inovação, é com indisfarçável orgulho que afirma que o Pão de Açúcar esteve sempre na vanguarda: “Fomos os primeiros a introduzir o código de barras, o check out electrónico por leitura óptica… os produtos brancos, hoje as chamadas marcas da distribuição. A sensação de que fomos percursores é muito gratificante”. Os preços praticados pelo Pão de Açúcar apresentavam um grande desconto face aos que se praticavam no comércio que hoje se convencionou designar de tradicional. Durante muito tempo, essa prática não teve grande impacto sobre esses pequenos comerciantes, mas, a partir da terceira ou quarta loja, começou a assistir-se ao encerramento de mercearias. Algumas foram, aliás, compradas pela SUPA e transformadas em supermercados. Foi à sétima loja que o Pão de Açúcar chegou ao Porto. Para encerrar a conservadora Avenida da Boavista para uma festa popular, com direito a música, bombos, zés pereiras e cabeçudos. Momentos de festa mas também solenes, com as forças vivas da comunidade, do presidente da câmara ao padre, que benzia as lojas, às vezes ministros. As senhoras sempre “bem vestidas”. “Um sucesso”. Viviam-se os anos imediatamente anteriores ao 25 de Abril.
“Fazíamos tudo. Ninguém sabia nada do que era um supermercado. Aprendemos tudo do princípio. Na faculdade ensinava-se apenas que era uma superfície com mais de 250 m2 que vendia bens alimentares e não só”
MISSÃO
Um novo futuro Desde 2003 que Isabel Megre é voluntária na Associação Novo Futuro, instituição vocacionada para o apoio a crianças privadas de um ambiente familiar estável. Começou por ser “madrinha”, a figura que “dá colo” às crianças acolhidas nos lares da associação. A certa altura foi convidada a integrar a direcção como presidente. Aceitou e hoje aplica na Novo Futuro os conhecimentos de uma vida a gerir o Pão de Açúcar. É nestas funções, aliás, que se tem cruzado com alguns fornecedores da cadeia de hipermercados, parceiros da associação na feira de solidariedade Rastrillo, uma das ferramentas da Novo Futuro para a angariação de fundos.
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Tempos muito remotos no que toca à distribuição: basta lembrar que muitos produtos chegavam ao supermercado a granel, sendo embalados, à noite, pelos próprios funcionários para venda no dia seguinte. E eram quantidades razoáveis, que obrigavam a um acto de compra maior do que na mercearia, portanto, inacessível para muitas pessoas. Com a revolução, abriu-se novo capítulo na história do grupo. A CUF – Companhia União Fabril, que entrara para o capital do Pão de Açúcar no próprio dia da abertura da primeira loja, foi nacionalizada e, através dela, o Estado intervencionou a dona dos supermercados. A ideia era fundar os supermercados do povo. “Foi uma fase complicada”, comenta Isabel Megre para recordar que a 19ª loja foi aberta em 1974 já com uma greve de braços caídos. Uma inauguração que não presenciou pois estava na maternidade a ter a primeira filha (nos dois anos seguintes nasciam-lhe mais dois). Volvidos 30 meses, a intervenção terminou, mas o Estado manteve a quota que correspondia à CUF. Do Brasil chegou novamente uma equipa para reerguer a empresa. Isabel Megre assumiu a direcção comercial e de compras, “outro trabalho fantástico”. Foi preciso negociar a dívida com os fornecedores, recuperar a imagem de preço, que “tinha sido completamente perdida”. Em 1999, cessou a ligação ao Brasil, já com a cadeia detida pela francesa Auchan. Mas Isabel foi “ficando sempre”. Apenas em 2003 abandonou funções executivas. Depois de uma carreira em que desempenhou quase todas as funções de topo. Foi toda a sua vida profissional, que, de certa forma, teve um prolongamento nos dois mandatos em que presidiu à Fundação Pão de Açúcar, uma entidade de cariz social vocacionada para o apoio a colaboradores e famílias. Os laços afectivos, esses, perduram. “Sempre sentimos o grupo como sendo nosso. E ainda hoje digo nós”. E resume: “É uma vida”. 18 Setembro/Outubro de 2012
“Quando foi o fenómeno do 1.º de Maio no Pingo Doce só me lembrava das inaugurações do Pão de Açúcar. Eram uma perfeita loucura. As pessoas nunca tinham visto nada assim, atropelavam-se para entrar”
CONSUMO
O “bichinho” dos supermercados Viviam-se os anos imediatamente anteriores ao 25 de Abril. Tempos muito remotos no que toca à distribuição: basta lembrar que muitos produtos chegavam ao supermercado a granel, sendo embalados, à noite, pelos próprios funcionários para venda no dia seguinte
“O bichinho fica cá dentro”. É assim que Isabel Megre resume a sua predilecção por fazer compras em supermercados. Continua, naturalmente, a preferir o Jumbo, tanto mais que ainda conhece muitos funcionários e porque se identifica com os produtos. Mas também é cliente do Pingo Doce – uma das filhas, aliás, trabalhou na Jerónimo Martins até há um ano – e do Lidl, que possui uma loja perto de sua casa. E é precisamente pela proximidade que elege o Jumbo de Cascais, Mas não só: é que foi directora desta loja. Foi em 1987, quando 18 supermercados da cadeia foram vendidos ao grupo de Soares dos Santos. Houve então necessidade de adop-
tar uma gestão descentralizada para o Pão de Açúcar. Cada director assumiu uma loja, Isabel fez “sua” a de Cascais. “Era como se fosse uma empresa nossa”. Foi aí que a filha foi contagiada pelo gosto pela distribuição, já que ela e os irmãos acompanhavam habitualmente a mãe aos domingos à tarde. Foi mais um sucesso na vida desta mulher de carreira: “Falava com os consumidores, ouvia o que queriam, tentava arranjar os produtos. Mudei a loja toda. Tivemos um crescimento de vendas que foi uma loucura”. Reconhece que os tempos hoje são diferentes e que a distribuição vai ter de reagir, mudar. Talvez voltar a vender à unidade e não ao pack…
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