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Tomando a casa branca: capa da obra-prima de Kendrick Lamar • Créditos: Denis Rouvre/ Roberto “Retone” Reyes/ Diego Cambiaso
O VOO DA BORBOLETA NEGRA Em seu novo álbum, o rapper Kendrick Lamar foge do óbvio ao se aprofundar em suas raízes negras e na crítica social Nilo Vieira e João Pedro Fávero
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ançado no último mês de março, To Pimp a Butterfly é o terceiro registro em estúdio de Kendrick Lamar. Sucessor do elogiado Good Kid, M.A.A.D City, seu novo álbum só recebeu elogios desde que foi oficialmente lançado, tanto por parte da arrogante crítica especializada como do público de hip hop. Além disso, rappers renomados teceram comentários positivos nas redes sociais: “Sua mensagem é um presente para o mundo”, tuitou Kanye West. Diante de tanta aclamação, é difícil não ficar desconfiado com o hype. Porém, algumas ouvidas cuidadosas revelam que todos os louros são mais que merecidos. Em um período violento e de debates cada vez mais intensos sobre a situação dos negros na América, Kendrick usa de sua posição privilegiada como pessoa pública para questionar estruturas e vocalizar problemas - e o faz de maneira sublime Logo na faixa de abertura, o rapper faz referência à prisão do ator Wesley Snipes por evasão de impostos federais para denunciar que a sociedade norte-americana não ensina negros a administrarem seu dinheiro, assim, facilitando ainda mais que o fruto de seu trabalho seja tomado. Essa relação conturbada da população negra com o dinheiro continua sendo discutida ao longo do disco, com a realidade cruel despejada no ouvinte sem dó: passam a vida toda privados de oportunidades, e quando porventura sua situação econômica melhora, pouco muda de forma positiva. A indústria que incita o culto ao capital é a mesma que fomenta o preconceito e a marginalização do afrodescendente, como bem ilustra o seguinte verso da música ‘Alright’: “E quando acordo/ Reconheço que você está me procurando pelo lucro/ Mas o departamento de homi-
cídios só me olha abaixo da cara.” Para mostrar que a injustiça contra o negro é histórica e institucionalizada, figuras simbólicas da resistência negra - tais como os líderes políticos Martin Luther King, Nelson Mandela, Malcolm X e o escravo rebelde Kunta Kinte - são evocadas nos versos de Lamar. Ao trazer tais raízes à tona, o rapper convoca os jovens negros de seu público a não se esquecerem de suas origens e lutarem contra a opressão, além de questionar como os próprios rappers podem mudar essa história. Global, mas sem esquecer das origens
Vinte anos se passaram desde que o rapper Tupac Shakur bradou pela última vez o orgulho de ser de Compton, cidade localizada em Los Angeles, conhecida pela violência das gangues compostas por negros e hispânicos. Desde então, os temas abordados pelos artistas do circuito de rap local foram se distanciando da realidade brutal da cidade, com rimas sobre mulheres, carros e dinheiro praticamente virando regra. Era necessário que novos nomes trouxessem o ativismo social de 2Pac e a atitude confrontadora do grupo N.W.A. de volta aos holofotes - e isso aconteceu graças à Kendrick Lamar.
“Era necessário que novos nomes trouxessem o ativismo social de volta ao rap – e isso aconteceu com Kendrick Lamar”
Descoberto pelo renomado produtor Dr. Dre (ex-membro do N.W.A.), Kendrick sempre prezou que o discurso exposto em seus álbuns dialogasse diretamente com o povo suburbano de Compton. Em To Pimp A Butterfly, essa característica está mais intimista com a música ‘Momma’ sendo um bom exemplo: “Obrigado a Deus pelo rap, que me garantiu um disco de platina/ Mas, melhor que isso? / O fato de me trazer de volta pra casa.” Porém, é no single ‘The Blacker The Berry’ onde o estilo típico de Compton surge com força total. Em quase cinco minutos e meio, Kendrick engata uma sequência de versos agressivos com um tom raivoso digno dos melhores momentos do ex-N.W.A. Ice Cube. Lançada um dia após a cerimônia do Grammy deste ano - onde Kendrick Lamar ganhou dois prêmios -, a música dispara ataques diretos contra a opressão branca, responsável por injetar pensamentos racistas até mesmo entre a comunidade negra. Pesadíssima, é um dos pontos mais altos do novo álbum. Na canção final do disco, ‘Mortal Man’, a ligação com o pensamento dos conterrâneos do passado é realçada de forma espetacular: o rapper utiliza de pedaços de uma entrevista de Tupac Shakur para simular um diálogo entre os dois - e a conclusão de Kendrick é que ele deve continuar a repassar a mensagem social que aprendeu em Compton, independente de quanto sucesso esteja fazendo. QUEBRANDO BARREIRAS E RECORDES
Embora a boa recepção dos discos anteriores fosse um indicativo, o sucesso comercial de To Pimp A Butterfly não deixa de ser surpreendente. Lançado acidentalmente uma semana antes da data
MÚSICA prevista, o álbum teve suas faixas executadas 9,6 milhões de vezes na plataforma de streaming Spotify logo no primeiro dia, batendo um recorde no site. Já o CD em formato físico vendeu 324.000 cópias somente na primeira semana, número considerável para tempos onde os arquivos de música em formato digital reinam soberanos. Esse sucesso tem ainda mais relevância do ponto de vista social. Em tempos onde negros morrem ou são presos em maior escala do que na época onde a escravidão era legalizada nos Estados Unidos, ter a mensagem contra o preconceito amplamente divulgada é crucial - ainda mais quando ela é recheada com boa música. PESADO COMO O GROOVE DO FUNK Em um disco completamente dedicado à história negra, não faria sentido que as bases rítmicas não fossem derivadas de estilos tipicamente afro americanos. Desse modo, Kendrick investiu em uma produção mais orgânica, na veia de seus ídolos musicais dos mais diversos gêneros. Ao longo dos quase oitenta minutos distribuídos em dezesseis faixas, um leque abrangente de música negra acompanha o ouvinte. Há o R&B dançante dos The Isley Brothers, sampleado na música ‘i’, o jazz frenético na melhor veia de John Coltrane em ‘For Free?’, os grooves de baixo à la James Brown em ‘King Kunta’, além das batidas pesadas, típicas do hip hop da Costa Oeste dos EUA, em ‘The Blacker the Berry’. Artistas do quilate de George Clinton (líder de importantes grupos de funk Funkadelic e Parliament) e o rapper Snoop Dogg marcam presença no álbum, tornando a experiência ainda mais autêntica. Para contrabalancear passado e presente, To Pimp A Butterfly também conta com músicas produzidas por importantes produtores negros da atualidade. Pharrell, figura constante na música
A borboleta envenenada: rapper se questiona como usar a indústria da música a seu favor Créditos: Dave Free / Roberto “Retone” Reyes
negra mainstream dos últimos anos, assina a faixa ‘Alright’, ao passo que Steven Ellison - mais conhecido por Flying Lotus - deixa a marca de sua música eletrônica viajante em ‘Wesley’s Theory’. Novos talentos ganharam espaço no álbum, com a participação da rapper Rapsody roubando a cena em ‘Complexion (A Zena)’ e o baixista Thundercat sendo responsável pelos tons graves de boa parte das canções. Há ainda espaço para samples do compositor indie Sufjan Stevens e do cantor jamaicano Bob Gardiner, que abre o disco bradando: todo negro é uma estrela. Ao encerrar a audição de To Pimp A Butterfly, não sobram dúvidas quanto a veracidade dessa frase. Resta agora acompanhar os voos - com a expectativa de serem cada vez mais altos - de Kendrick Lamar.
To Pimp A Butterfly (2015, TopDawg/ Aftermath) 1 - Wesley’s Theory 2 - For Free? 3 - King Kunta 4 - Instituitionalized 5 - These Walls 6-u 7 - Alright 8 - For Sale? 9 - Momma 10 - Hood Politics 11 - How Much a Dollar Cost 12 - Complexion (A Zulu Love) 13 - The Blacker The Berry 14 - You 15 - i 16 - Mortal Man