Revista Gosto - Edição Florianópolis

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Esp eci al F lor ian óp oli s

Vitor Gomes

COMER BEM NÃO FAZ MAL A NINGUÉM

A cultura da cozinha do mar viaja da Europa para Florianópolis

Sotaque baiano

Madá abre as portas de casa e presenteia os manés com o melhor da Bahia

Ostras de grife Como Florianópolis se transformou no referencial brasileiro no cultivo do molusco

Tabletes Dalva

O doce de coco que nasceu na capital catarinense arrebata fãs pelo Brasil afora

Ostras in natura depuradas do Restaurante Ostradamus F L O R I A N Ó P O L I S

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SUMÁRIO

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6 ENTREVISTA 12 BOX 32

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Vitor Gomes resgata a sua trajetória e analisa a profissionalização da gastronomia em Florianópolis

O boteco do Mercado Público se transformou ao longo de 21 anos e hoje atrai gente do mundo todo

14 VADINHO

O restaurante de beira de praia oferece a típica cozinha açoriana, com cardápio democrático e fixo

15 GOSTO DE LER

Dicas de livros que trazem ao leitor o melhor da cozinha de Santa Catarina

16 OSTRA DE FLORIPA A história do molusco que colocou a Ilha na rota da gastronomia brasileira 24 ENSAIO

A sequência de camarão e a lógica da quantidade em detrimento da qualidade

26 PERFIL DE CHEF

A baiana que conquistou o paladar dos florianopolitanos conta o segredo do seu acarajé

30 RECEITA DE FAMÍLIA

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Foto da capa: Divulgação

O doce de coco mais famoso de Florianópolis comemora 68 anos de tradição

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Ementa

Descobrindo Florianópolis Florianópolis Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Comunicação e Expressão Departamento de Jornalismo Curso de Jornalismo Trabalho de Conclusão de Curso

ÍNDICE DE RECEITAS

Acadêmica Bruna Vieira de Paula Orientadora Gislene Silva

Designer Ayami Tanaka Projeto Gráfico Ken Tanaka Texto e diagramação Bruna de Paula Fotografia Arquivo/Madá, Bruna de Paula, Divulgação/Box 32, Divulgação/Ostradamus, Geison Werner, Phillippe Arruda, Ronaldo Lima/Foto Arena, Sérgio Vignes/Abrasel SC Ilustração Tarik Assis Tratamento de Imagens Bruna de Paula e Geison Werner

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Impressão Expert Gráfica Florianópolis, junho de 2010

22 RISOTO DE OSTRA 23 ESTROGONOFE DE OSTRA 29 ACARAJÉ DA MADÁ

Aos meus pais Dilceu e Sandra, ao meu irmão Sandro, ao meu namorado Geison, à minha amiga e orientadora Gislene. Aos profissionais da Revista Gosto, especialmente a J.A. Dias Lopes, Ayami Tanaka, Ken Tanaka e Regiane Valente. A todos os entrevistados que tornaram possível a produção desse trabalho.

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Esta edição especial da revista GOSTO é um convite a conhecer um pouco do cenário gastronômico em Florianópolis. “Um pouco”, porque seria pretensioso demais falar em um mapa da gastronomia de uma cidade com mais de 100 praias, além da região continental. O mar, aliado à forte colonização açoriana, é quem dá o tom do que se vê pelas mesas de restaurantes e bares da capital catarinense. Foi graças a essa relação com o mar que Florianópolis se tornou a referência nacional no cultivo de ostras. São mais de duas toneladas do molusco produzidas por ano, que abastecem o mercado nacional. As barreiras sanitárias são o próximo degrau a ser superado para que as ostras cruzem o oceano e alcancem o mercado internacional. Quem conhece bem essa travessia é Vitor Gomes, chef e sócio do Café Riso & Etc., o premiado restaurante que toma a frente do movimento de profissionalização da gastronomia na Ilha de Santa Catarina. Vitor trouxe na bagagem da estadia na Europa as melhores referências da cozinha do mar, aprendidas com ninguém menos que Jacques Le Divellec. Da entrevista com o chef mais renomado de Florianópolis a histórias como a da baiana Madá e da fábrica familiar de doce de coco em tabletes, esta edição pretende trazer ao leitor nomes reconhecidos e preciosidades ainda não descobertas por turistas e locais. O pedacinho de terra perdido no mar, de Zininho, grande poeta mané e compositor do Rancho de Amor à Ilha, cresce e se profissionaliza para encontrar espaço no roteiro gastronômico do Brasil e do mundo. Aos leitores, desejo uma boa viagem e uma ótima leitura! Bruna de Paula

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Entrevista Vitor Gomes

A cara do Riso O chef florianopolitano leva às panelas de seu restaurante as referências da cozinha da mãe F O T O S

P H I L L I P P E

A R R U D A

S

e o nome do restaurante tivesse apenas um sentido – o da alegria – já bastaria para dizer da personalidade do chef Vitor Gomes, à frente das panelas e sócio do Café Riso & Etc. e do Café Riso Plage. Riso é também uma alusão a um dos destaques do menu, o risoto. Aos 37 anos, Gomes é referência em Santa Catarina, premiado por duas vezes seguidas como o melhor chef de Florianópolis, pela revista Veja Santa Catarina - O Melhor da Cidade. A trajetória de trabalho precoce, com uma pausa de dois anos para estudos na França foi recompensada pelo reconhecimento no retorno à Ilha. O desafio de crescer dentro do mercado de Florianópolis, que tem custos de operação próximos a São Paulo, mas uma possibilidade muito menor de retorno, é um dos desafios levantados pelo chef nesta entrevista. Quando você começou a encarar a gastronomia como profissão?

Foi um processo muito natural. Meu pai morreu quando eu tinha dois meses, então a minha mãe sempre teve que

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trabalhar fora. Eu e os meus irmãos tínhamos que tomar conta da casa e eu acabei ficando mais na cozinha. Aos 16 eu tinha um bar no Campeche com alguns amigos, onde a gente fazia mais festa que trabalhava. Na sequência, eu abri a Pão Família, que deu origem ao que hoje é o Emporium Bocaiúva, um divisor de águas na gastronomia de Florianópolis. O Emporium entrou em funcionamento no início da década de 90, quando o Brasil estava se abrindo aos importados e a proposta deu muito certo. Como foi decidir abandonar um negócio consolidado para estudar e viajar?

Eu via meus amigos fazendo intercâmbio, falando outra língua de forma perfeita, cultivando amizades à distância e eu não tinha me dado a esse luxo. Com 16 eu tinha meu próprio negócio, com 17 eu tinha uma padaria com 12 funcionários e a viagem sempre foi ficando pra trás. Com 32 anos eu estava um pouco cansado e resolvi dar uma de adolescente e viajar, mas com uma mentalidade mais madura e com um certo dinheiro.

E como foi a experiência na França?

Foi ímpar, porque eu nem mesmo conhecia a Europa. Sempre falei da Europa, sempre li sobre a Europa, sempre vendi produtos europeus, mas nunca tinha estado lá. Foi bom conhecer Paris, ver a importância que o francês dá ao ato de comer. Morei um tempo na escola (no Lycée Hôtelier, em Yvelines), outro em La Rochelle, depois em Paris. Em Paris, eu tive a oportunidade de trabalhar com o chef Jacques Le Divellec, o que foi uma experiência incrível. A cozinha era absolutamente rigorosa, trabalhávamos com ingredientes primorosos, produtos muito frescos. Recebíamos praticamente todo dia camarões, lagostas e peixes vivos. Qual foi a importância de, na volta ao Brasil, trabalhar com o chef mais renomado do país, no D.O.M.?

Voltei um pouco atordoado, porque no exterior existem várias facilidades que no Brasil ainda não chegaram. Quando cheguei aqui fui a São Paulo, jantei no D.O.M. e o Alex (Atala) me convidou para trabalhar lá, justamente pra

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Entrevista Vitor Gomes

fazer essa readaptação. Foi muito bom, o Alex é um ícone da cozinha brasileira, uma pessoa absolutamente acessível, que não tem nenhum tipo de senão na hora de te mostrar o caminho, de ensinar. Fiquei cerca de três meses, fiz eventos, trabalhei na cozinha, trabalhei no pré-preparo. Isso sem dúvida me ajudou muito a ver em que patamar a cozinha do Brasil estava operando naquele momento. Também aprendi coisas importantes, como a adaptação de várias receitas clássicas francesas e italianas a ingredientes brasileiros. Se temos um produto tão bom como a castanha-dopará, que dá um resultado final

nenhuma, a decisão de voltar a Florianópolis. Inclusive para dar respostas a alguns amigos que não entenderam muito a minha saída. É difícil entender que um cara com um negócio consolidado pare tudo e comece de novo, trabalhando 18 horas por dia. Na volta, trabalhei uma temporada no Taikô de Jurerê Internacional, tive uma breve passagem pela cozinha do Sofitel e comecei a fazer eventos. Foi nessa época que começou a pensar na idéia do Café Riso & Etc.?

Exatamente. Encontrei um amigo, cliente de longa data,

“Com o Alex Atala, aprendi a adaptar várias receitas clássicas francesas e italianas a ingredientes brasileiros” interessante e custa um terço de uma amêndoa, que vem de longe, que gasta combustível pra chegar aqui, que é importada, por que não usá-la? Esse é o conceito de sustentabilidade que o Alex prega. Depois de acumular tanta bagagem, viajar, a intenção era voltar à Florianópolis?

A idéia sempre foi viajar e voltar para Floripa. Minha casa estava aqui, minha família, meus cachorros. Eu até tive oportunidade de ficar mais tempo em São Paulo, mas se fosse pra ficar longe de casa, em uma metrópole, eu teria ficado em Paris. A decisão de voltar ao Brasil era, sem dúvida

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que se predispôs a ser investidor e a participar do projeto. Foram consumidos nove meses em função da reforma. Durante esse tempo foi feita a montagem de toda a brigada, menu, decoração, enxoval. Sem dúvida nenhuma foi absolutamente árduo, porque a própria concepção era completamente diferente de qualquer coisa que existia em Florianópolis. O lugar é um café e um restaurante, com abertura ininterrupta. Depois desses meses de trabalho, abrimos em 17 de outubro de 2008. A promoção de eventos é um diferencial?

Sem dúvida. Tentamos

buscar eventos internos que brindem a nossa clientela com a possibilidade de ter acesso a coisas que Florianópolis nunca teve. Acho que o Festival de Trufas foi uma dessas idéias. Foram seis restaurantes no Brasil que receberam trufas frescas e o Café Riso foi um deles, o único em Santa Catarina. Além disso, o festival aconteceu justamente durante as enchentes do final de 2008 e a gente doou toda a receita para a compra de cerca de 100 colchões, que foram entregues à Defesa Civil. Fomentamos também, através de uma promoção, o mercado de vinhos catarinenses. O cliente toma o vinho de uma determinada vinícola catarinense e concorre a um fim de semana na serra com tudo pago. Além de brindar o cliente, valoriza aquilo que é o nosso produto. Qual a importância desse

do quê e da forma que quer fazer e vai ajustando até chegar a uma concepção que agrade e que a gente consiga reproduzir dentro das nossas estruturas. O Café Riso Plage tem uma proposta diferente do Café Riso & Etc.?

rico, tanto pelo número de etnias, pela composição do seu povo, pelas microrregiões, pelos microclimas. Todo o nosso estado tem uma veia gastronômica muito forte, basta os restaurantes e os chefs daqui fomentarem o que é nosso.

fomento aos produtos catarinenses por parte dos

Como é o relacionamento com

profissionais de gastronomia?

os fornecedores?

Acredito que a gastronomia francesa é o que é em função do fomento regional. Se diz isso, se fomenta isso, todo mundo fala: a melhor lagosta do mundo é o homard bretão, por exemplo. O cuidado que tem que ter é o de não falar mal dos outros, mas falar mais do que é produzido aqui e que tem uma belíssima qualidade. Santa Catarina tem hoje uma condição gastronômica ímpar. É um estado absolutamente

Certos produtos só são comprados de um determinado fornecedor. É o caso das ostras, que variam muito em função da região em que são criadas. Nossas folhas vêm de Ratones, de um produtor que não usa agrotóxico. A gente utiliza brotinho de salada, que ele cria através da germinação de sementes crioulas, que não passaram por nenhum processo químico. E o contato com os clientes?

Em qualquer segmento é absolutamente primordial que você esteja próximo ao cliente. A concepção gastronômica, mesmo sendo minha, é direcionada a agradar uma pessoa. Tentar agradar a gregos e troianos em um restaurante em que se atende um publico conhecedor é difícil, mas também é uma possibilidade de trocar experiências. A gente aprende e ensina um pouco todo dia. De que maneira acontece o

O Plage foi uma loucura. Tivemos 25 dias para fazer o mesmo trabalho que tivemos no primeiro restaurante, quando gastamos nove meses. A concepção é diferente, é um restaurante de praia, que sai um pouco da mesmice do pé sujo de praia. Tentamos dar mais de consistência à proposta, mas sem deixar de ser um ambiente democrático, rústico e descontraído. Trabalhamos basicamente com tudo grelhado: frutos do mar, carnes, frango. Isso tudo desenhado com a possibilidade de atender a um alto fluxo, já que fica em Jurerê Internacional, lugar que recebe muita gente na temporada. E durante a baixa temporada temos usado as estruturas para realizar eventos, além do movimento do fim de semana, que tem sido bastante satisfatório.

processo de criação dos pratos?

Nosso menu é modificado duas vezes por ano, para a primavera/ verão e para o outono/inverno. A criação é feita de forma participativa com minha equipe de cozinha, meus subchefs, com o chef que nós temos hoje, o Rafael Campagnolo, no Café Riso Plage. A gente se reúne, faz um briefing

Em geral, as pessoas reclamam muito do profissionalismo na área de gastronomia em Florianópolis, o que você acha disso?

É uma pergunta difícil de responder. Ao mesmo tempo que as pessoas cobram pela falta de profissionalismo, elas não querem

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Entrevista Vitor Gomes

pagar pelo profissionalismo. Nem sempre dentro do universo de clientela de Florianópolis as pessoas estão dispostas a pagar essa conta. Eu considero que, do ponto de vista profissional, de dez anos pra cá melhorou muito. Mas acho que existe uma deficiência grande no que diz respeito à mão-de-obra. Algumas profissões ligadas ao mundo gastronômico aqui não são levadas de forma profissional, mas de forma momentânea. Garçom até pouco tempo atrás não era profissão, era bico. E obviamente isso não contribui com a formação de profissionais que querem trabalhar nessa área.

capas de revistas. Você vê hoje nas faculdades de gastronomia pessoas muito deslumbradas com a profissão. Já saem da faculdade se denominando chefs de cozinha, achando que o principal processo a ser cumprido é adereçar um prato. Muitas vezes na nossa cozinha abrimos oportunidade para estagiários. Alguns chegam sem saber o processo inicial, querem saber do fim. Eu peço para o cara temperar um feijão, cozinhar um arroz e ele não sabe. Ele sabe montar um prato como ninguém, mas não tem o domínio pleno da técnica culinária, não tem domínio dos processos envolvidos,

“Alta gastronomia é todo ingrediente preparado com amor e técnica. Um feijão bem executado pode ser alta gastronomia”

se perguntaram por que eu parei, estudei, viajei. O primeiro prêmio veio em função da minha trajetória, eu tinha aberto o Riso há somente um mês. O segundo foi buscado desde a abertura. A família Café Riso trabalhou de forma exaustiva para ser reconhecida, é um brinde a esse esforço. Trabalhamos para gerar satisfação às pessoas que vem aqui, nossos reis e rainhas. Antigamente a gastronomia era voltada à burguesia, aos reis e seus amigos. Hoje a gente continua voltado a tratá-los como reis. A diferença é que, se errarmos, o fim não será a guilhotina, mas o cartão de crédito. Se o cliente não gosta, não volta mais. O que você acha das denominações de alta e baixa gastronomia?

Qual o papel das faculdades de gastronomia nesse processo?

Com o advento das faculdades de gastronomia, turismo, do Instituto Federal, que hoje forma garçons, barmen, serviço de sala, a mentalidade dessa mãode-obra está mudando. Hoje eles já começam a encarar como uma profissão de apaixonados, que é desgastante, cansativa, mas que pode ser produtiva e pode pagar um bom salário. Por outro lado, existe um glamour envolvido na profissão, que nem sempre coincide com a realidade. Ficar 12 horas em pé em uma cozinha passando calor ou frio, descascando batata, é muito diferente do que se vê nas

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desde o plantio daquilo até a chegada no restaurante e a preparação. Mas acho que a profissão de cozinheiros, baristas, garçons, maîtres, gerentes, sommeliers, nos últimos anos está sendo muito valorizada pela mídia e principalmente pelos estabelecimentos abertos em Florianópolis. Como foi ser premiado dois anos consecutivos pela Veja como o melhor chef e o primeiro como melhor restaurante de comida variada de Florianópolis?

A sensação é de muita felicidade. Essa foi uma resposta muito rápida às pessoas que

Às vezes as pessoas dizem que eu faço alta gastronomia e eu respondo que não sei onde elas vêem isso. É obvio que há uma confusão. Você faz uma terrine de foie gras, que envolve um ingrediente de valor alto e pouco difundido no Brasil, mas é um processo absolutamente simples de cocção, de fabricação, de execução do prato. Para mim, alta gastronomia é todo ingrediente preparado com amor, esmero e muita técnica. A partir do momento que consegue se extrair dele o melhor que o ingrediente pode dar, isso é alta gastronomia. Você pode fazer um feijão para mim e ele estar absolutamente delicioso, isso pra

mim pode ser alta gastronomia. Fala um pouco sobre o que você acha do movimento mundial em

dão a sua contribuição na busca dessa sustentabilidade, unindo economia com aspectos sociais e ambientais.

torno da cozinha brasileira.

O Brasil é um país rico e enorme, com vários países dentro de um só. A Amazônia é um desses países. Esse olhar pra Amazônia vem do momento, da busca da sustentabilidade do produto e de quem depende desse produto. Essas são discussões muito importantes em que empresas, ONGs e chefs sérios

Você usa alguma contribuição da cozinha científica, das técnicas de Ferran Adriá no Riso?

Acho que o Ferran é um gênio, a contribuição dele vai ser válida e falada por muito tempo. É um divisor de águas, com a técnica de esferificação, do uso do nitrogênio liquido, de insumos

antes usados em laboratórios e não dentro de uma cozinha. Mas não é algo que me toca de forma apaixonante. Eu prefiro muito mais o resgate de técnicas clássicas do que o processo de desconstrução e reconstrução de pratos. Já reproduzi, na França e com o Alex Atala, algumas técnicas como caviar de melão, algodão doce de abobrinha. Aqui usamos somente cocção a vácuo e cocção em baixa temperatura, mas o uso de esferificação, gelatinas, solução em cálcio não é a nossa praia. Quais são as suas referências?

Eu me inspiro muito na cozinha da minha casa, nas coisas inventivas que a minha mãe fazia. Talvez a diferença maior esteja no uso da técnica culinária, já que ela fazia de forma empírica e nós trabalhamos mais tecnicamente para potencializar o sabor, a textura dos alimentos. Na cozinha do mar, a referência são Jacques Le Divellec e Nicolas Meunier, o jovem chef francês de 30 anos, apaixonado pelo que faz e faz muito bem feito. Ainda é possível se surpreender na cozinha?

Eu me surpreendo todo dia com coisas impensáveis que vejo companheiros de profissão fazendo. Se existe o limite do cliente, para o cozinheiro isso não existe. Ele pode inventar infinitas combinações, formas, texturas e cores.

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TIRA GOSTOS

O lugar da misturança No Box 32, convivem políticos oposicionistas, jogadores de clubes rivais, manés e turistas

Q

uando, em 1984, Roberto

Palácio Cruz e Souza e completava a

roteiros turísticos, como o Guide Vert

Henrique Barreiros Silva

via sacra nas peixarias do Mercado.

da Michelin, a maior autoridade em

decidiu vender o posto de

somadas às visitas a mais de 30

mais democrático do Brasil pode ser

estado para abrir um boteco de 15m2

mercados públicos mundo afora,

traduzida em dois dos destaques do

no decadente Mercado Público de

deixaram Beto apto para expandir

cardápio, que é disponibilizado em

Florianópolis, muita gente apostou no

o negócio e receber manezinhos

sete idiomas: o pastel recheado com

fracasso. Mas Roberto, hoje Beto do

e turistas. Nas paredes do Box, as

100 gramas de camarão e o presunto

Box, não desistiu da empreitada. “As

fotografias registram a passagem

espanhol Pata Negra, considerado

pessoas que alcançam o êxito têm

de figuras como os chefs Alex Atala,

o melhor do mundo. Produtos com a

algo em comum: a capacidade de

Pierre e Claude Troigros, do presidente

marca Box 32 podem ser adquiridos

sobrevivência em ambientes hostis”,

Lula, do ex-presidente Fernando

somente no bar, como a reconhecida

orgulha-se Beto.

Henrique Cardoso e de um sem

cachaça da casa, além de uma série

número de famosos.

de souvenirs, perdição dos turistas.

Poucos imaginariam que os

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Fotos: Divulgação/Box 32

Para Beto, o sucesso dos atuais

As opiniões sobre o Box são

Box 32, hoje expandidos para nove,

42m2 do Box tem receita simples,

divergentes. Há quem discorde da

seriam responsáveis pela revitalização

resultado do bom atendimento,

fama de balcão democrático e diga

do Mercado Público. “O Mercado

da qualidade dos produtos, do

que os preços são salgados demais. O

é onde acontece a verdadeira

local certo e do preço para todos

certo é que, desde a fundação, o bar

misturança, que melhor traduz o seu

os gostos. Para Beto, não adianta

saltou de quatro para 30 funcionários,

povo”, observa Beto. A paixão pelo

oferecer somente quantidade.

que na alta temporada se empenham

lugar vem de criança, quando aos

“Nenhum ‘oh’ de felicidade ultrapassa

em servir mais de 1.200 pessoas por

domingos, com seu avô, assistia à

a terceira garfada”, sentencia.

dia. De março a novembro, 600 a

missa na Catedral, passava pelo

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guias do mundo. A fama de balcão

gasolina recordista de vendas do

originais cinco metros de balcão do

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As lembranças da infância,

O Box figura hoje nos melhores

Chef e proprietário do Box 32, Beto Barreiros é considerado embaixador da Ilha da Magia

800 pessoas passam pelo Box.

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Tira-Gostos

Gosto de Ler

Rota catarinense

Onde todos são iguais

U

das últimas colônias de pescadores e fica a 30 km do centro de

U

Florianópolis. Formalidades como cardápio ficam de fora da casa

Cerveja e Harmonização – a publicação foi inicialmente disponibilizada para o Governo do Estado. Na

m dos redutos mais tradicionais da Ilha, o Pântano do Sul, é onde se encontra o Restaurante do Vadinho. A localidade, no extremo sul da Ilha de Santa Catarina, abriga uma

m apanhado geral da vitivinicultura e da indústria cervejeira de Santa Catarina. Este é o produto final do trabalho do jornalista, professor e sommelier João Alexandre Lombardo, transformado em livro. Santa Catarina à mesa (Editora Expressão, Florianópolis, 2009) pode ser lido por

especialistas, amantes de vinhos e cervejas e também principiantes. Dividida em três capítulos – Vinho,

que abriga mais de um século de história e foi transformada em

segunda edição, conta com distribuição em todo o território nacional.

restaurante em 1984.

O livro, ilustrado com belas fotografias, retrata os primeiros anos

Lourival João Perão, o Vadinho, começou a pescar aos 14 e não

da vitivinicultura e das cervejarias artesanais e faz uma retomada

parou mais pelos 30 anos seguintes. Depois de trabalhar com pesca

histórica dos movimentos que transformaram a qualidade da indústria

artesanal e industrial por toda a costa brasileira, Vadinho deixou de

do vinho e da cerveja catarinenses. A obra traz ainda dicas de como

lado o molinete e as redes. Abandonou a embarcação quando abriu

se deve degustar uma boa cerveja e um bom vinho e ainda conta com

o restaurante, mas continuou apaixonado pelo mar, provedor das

30 receitas. O leitor pode consultar os guias da cerveja e do vinho

delícias que leva à mesa.

em Santa Catarina, com a relação das vinícolas e cervejarias e mapas

Os ingredientes que entram na cozinha são todos de pescadores

de localização. Lombardo foi o responsável por todas as etapas do

do Pantâno do Sul, amigos da família. “Hoje já não pesco mais, só

processo de criação, desde a apuração, realizada em todo o estado, até

de vez em quando pego umas tainhas”, conta Vadinho, que faz da

a elaboração dos pratos e da degustação e harmonização com vinhos

renda do restaurante o sustento da casa.

e cervejas. Sommelier formado pela Federazione Italiana Sommelier

A opção de almoço é uma só para todos: peixe da época servido em postas e/ou filé, pirão, salada, arroz, feijão, batata frita e a saborosa estopa, um desfiado de cação ou arraia, destaque da

Albergatori Ristoratori (FISAR), com especialização em enogastronomia na Toscana e no Piemonte, possui também formação pela Wine & Spirits,

A típica comida açoriana é servida à vontade por R$ 18 por pessoa

tradicional escola inglesa. Lombardo é figura conhecida pelos ilhéus,

casa. Ali se encontra a autêntica comida caseira do Pântano,

atraídos pela qualidade dos produtos da renomada padaria Lombardo e,

segundo Vadinho. “Aqui não existe pobre nem rico. Todos comem a

agora, pela leitura deste registro histórico da enogastronomia catarinense.

mesma coisa à vontade e pagam o mesmo valor: 18 reais”, explica o proprietário. O restaurante, que antigamente abrigava a venda do seu João Manuel Inácio, pai do Vadinho, abre todos os dias durante a alta temporada. De abril a novembro, o almoço é servido aos fins de semana e feriados. Os quatro garçons se desdobram para atender as 19 meses que lotam nos finais de semana de inverno e no verão. “Na temporada ficamos aqui até de madrugada, esse salão fica cheio de gente”, comemora o ex-pescador.

Há cerca de uma década a ostra vem se firmando como um produto típico ilhéu. Atentos a essa

No ambiente rústico podem-se ver as obras de arte

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transformação cultural, alunos de Gastronomia da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) levaram

confeccionadas pelo próprio Vadinho. As paredes expõem os

o conhecimento das panelas às páginas. A orientação foi feita pelo professor

quadros de barcos a vela, feitos com conchas e outros materiais.

João Gustavo Souza, que faleceu logo depois de concluir o projeto. O professor

Já na arte das panelas, quem se destaca é a esposa, a quatro

foi também responsável pela organização do livro, ao lado do coordenador do

auxiliares de cozinha.

curso de Gastronomia, Luiz Guilherme Figueiredo. A invenção da ostra –

A dica é chegar cedo para garantir lugar. Se no tempo do seu

Vadinho expõe sua arte nas paredes do restaurante

Em busca de uma identidade

Receitas de Floripa (Editora Unisul, Palhoça, 2009) faz um resgate histórico

João Manuel o destaque era o único gramofone da região, que

da adoção do molusco como marca da Ilha de Santa Catarina na busca de uma

fazia a venda ficar apinhada de gente, hoje é a comida do Vadinho

identidade gastronômica. Conta ainda com 23 receitas elaboradas pelos alunos

que atrai turistas e moradores de Florianópolis em busca de uma

de gastronomia, que fizeram parte da seletiva para participar do concurso da

refeição simples e saborosa.

Festa Nacional da Ostra e da Cultura Açoriana, evento que acontece todos

RESTAURANTE DO VADINHO Rua Manoel Vidal, 305 - Pântano do Sul, tel. (48) 3237-7305.

Fotos: Geison Werner

os anos em Florianópolis. Três tradicionais restaurantes contam suas histórias e também revelam receitas de sucesso.

Fotos: Divulgação

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Especial

A gente não quer só tainha O que era apenas um tira-gostos depois do futebol foi o pontapé inicial para fazer de Florianópolis a Capital Nacional da Ostra

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ansado de ver o mar carregar amigos que iam até os costões catar mariscos, Seu Luis Carlos Costa teve uma ideia. Se os moluscos, que retiravam das pedras para comer no futebol de domingo, se fixavam até nos bambus que as ondas traziam, por que não controlar a criação, levando-os para as águas calmas de Santo Antônio de Lisboa? A curiosidade do Seu Luis Carlos, aliada ao conhecimento de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), colocou o estado no mapa da maricultura no final dos anos 80. Do cultivo de mariscos para outros tipos de moluscos foi um pulo. O que era uma experiência aparentemente pouco promissora se transformou no sustento de mais de 130 famílias da capital e alcançou status de grife: a ostra de Florianópolis. A variedade mais comum de ostra encontrada nos restaurantes é a Crassostrea gigas ou ostra do pacífico. Independente da variedade, o molusco bivalve (protegido por uma concha externa dupla) divide a opinião entre fãs e detratores. Há quem ame a textura, o gosto de mar absorvido pela carne da ostra. Há quem não consiga nem mesmo ver alguém comendo a ostra in natura. Para os iniciantes, o mais comum é começar pela gratinada, com molho de queijos, preferência dos turistas. O chef Beto Barreiros, do bar Box 32, entusiasta dos primeiros cultivos de ostra em Palhoça, na Região da Grande Florianópolis, considera a ostra gratinada uma heresia. “O molusco indica a pureza e a vida dos oceanos. Acho que pode se comer ao bafo, para quem está começando. Mas amantes da boa mesa curtem as ostras vivas”, sentencia Beto. In natura, ao bafo, gratinada ou em preparações mais elaboradas, como no risoto ou acompanhada de massas, depende do gosto do freguês. O certo é que a ostra foi a responsável por fazer de Santa

Foto: Divulgação

Catarina o maior fornecedor de produtos da maricultura para o Brasil. O estado responde por cerca de 95% da produção nacional de ostras. Das fazendas marinhas de Florianópolis saem 90% dos moluscos comercializados no país. Pode parecer estranho, mas o vocabulário da ostreicultura passeia por termos agrícolas pecuários sem nenhum problema. As sementes de ostras crescem e engordam nas fazendas marinhas, por mais que isso possa parecer uma incoerência semântica e biológica. Os dados mais recentes, de 2008, apontam que a Grande Florianópolis comercializou 2.159 toneladas do molusco, mais de 97% da produção de Santa Catarina. Foram 2.213 toneladas em todo o estado. Alex Alves dos Santos, engenheiro agrônomo da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), explica por que a atividade ganhou força em Florianópolis. “A cultura açoriana, que tem uma relação muito forte com o mar, trabalhando em sintonia com a pesquisa e extensão da Epagri e da UFSC criou o cenário de sucesso para a maricultura”, destaca Alex. A Epagri foi parceira na implantação da ostreicultura e hoje desenvolve uma série de projetos para fomento da atividade. Somente em 2008, a ostreicultura gerou uma movimentação financeira bruta estimada em R$ 29.709.300. Mas as dezenas de donos de restaurantes que hoje fazem da ostra o carro chefe de seus menus, até pouco tempo sequer imaginavam que o molusco conquistaria o país. Convencer os produtores de que a ostreicultura era um bom negócio foi uma tarefa difícil, que reuniu esforços da universidade, do governo e de alguns pescadores que tomaram a frente da situação. Os pescadores artesanais sofriam com a oscilação das safras e com o avanço da pesca industrial. Foi então que Seu Luis Carlos juntou a experiência acumulada com o espírito empreendedor para liderar o grupo de cinco pescadores que levou o projeto da UFSC em frente, em 1988. A iniciativa foi o embrião para a criação do Laboratório de Moluscos Marinhos da Universidade

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Balsa onde acontece o manejo das ostras da Freguesia Fazenda Marinha

(LMM), referência no Brasil e atualmente responsável pela comercializaçãode 100% das sementes de ostras para os produtores de Santa Catarina. O laboratório cultiva os moluscos reprodutores, acompanha o desenvolvimento das larvas e, finalmente, a transformação em sementes. A partir daí são comercializadas e o trabalho fica por conta do produtor. As pequenas smeentes saem do laboratório para ganhar o mar medindo de 1mm a 3mm. Da semente à mesa podem passar de quatro meses a um ano no mar, dependendo das condições do tempo, das correntes e, principalmente, do manejo. “Além da vocação natural e do manejo correto, a ostra precisa de águas calmas e limpas, em uma temperatura que fique entre 18o e 23o e com incidência de correntes frias”, explica o professor Jaime Fernando Ferreira, supervisor do LMM e um dos incentivadores do grupo capitaneado por Luis Carlos. Essas são justamente as condições que as ostras encontram na praia do Ribeirão da Ilha, ao sul, e em Santo Antônio de Lisboa e Sambaqui, ao norte da Ilha de Santa Catarina. São nessas localidades que trabalham a maioria dos ostreicultores de Florianópolis, como Leonardo Cabral Costa, filho de Luiz Carlos e responsável pela Fazenda Marinha Freguesia, que tem 21 anos de atividade, e

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também pelo Freguesia Bar e Restaurante, aberto há 12 anos, ambos em Santo Antônio de Lisboa. Leonardo começou a trabalhar ao lado do pai quando o público que hoje lota seu restaurante começava a descobrir o sabor da ostra. Eles montaram o empreendimento em 1998 e tiveram que educar os potenciais consumidores. “Foi um trabalho de garimpo de clientela. As pessoas vinham comer camarão e a gente oferecia ostra de graça, porque sabia que mais tarde isso ia nos dar retorno”, relembra Leonardo, que herdou do pai e do avô o espírito empreendedor. A família investia na pecuária e tinha um abatedouro de carnes, mas a vocação para o mar falou mais alto. Hoje Leonardo consolidou uma forma de manejo das ostras que o diferencia dos demais produtores da região. O pai, Seu Luis Carlos, foi quem montou a balsa onde atualmente ocorre toda a manipulação das ostras, que antes, de forma mais rudimentar, era utilizada para manejar os mexilhões do domingo de futebol. Com a manipulação na balsa, que fica a cerca de 200 metros da margem, as ostras não precisam ser deslocadas para a praia, o que diminui despesas, poupa tempo e garante maior segurança alimentar e sanitária. O processo garantiu à Fazenda Marinha Freguesia o quarto lugar no ranking de produtores de ostras no Brasil em 2003, posição que mantém até hoje. São comercializadas de 90 a 110 mil dúzias de ostras por ano.

Produção controlada Dentro da balsa, o controle é rigoroso. Todo o material é de inox e polietileno, para evitar contaminações. Com o sistema de rastreabilidade que o engenheiro agrônomo Rafael Luiz da Costa implantou é possível saber a qual lote pertence a semente, há quanto tempo ele está no mar e quando vai chegar ao consumidor. A ideia é simples, feita em uma planilha manual com uma legenda de cores para cada lote. A preocupação com o meio ambiente também passa pela balsa de Leonardo. Todas as cascas são recicladas. “Nós temos três tipos de consumidores das cascas: o pessoal que usa para artesanato, os que usam para

Foto: Bruna de Paula

Ostras gratinadas do Ostradamus: a preferida dos turistas é considerada um sacrilégio pelos puristas

ração animal, já que a casca tem muito cálcio, e os que usam em estações de tratamento de esgoto, onde a casca substitui a pedra e ainda tem a vantagem de regular a acidez do solo”, detalha Leonardo. As sementes chegam do laboratório com cerca de 1mm e passam por três acondicionamentos diferentes. Primeiro vão para as caixas flutuantes, com uma tela, que garante uma boa iluminação e contato com a superfície, a região que mais tem microalgas, que é o alimento dos moluscos. Quanto mais ele cresce, maior é o tamanho da tela, trocada periodicamente. Na segunda etapa vão para os chamados travesseiros, que são estruturas maiores e também flutuantes. Essas estruturas são também formadas por uma malha que permite o contato do molusco com a água do mar. “Essa malha se parece com uma meia-calça feminina, depois vamos abrindo mais, para dar espaço para crescerem”, explica Leonardo. Quando atingem o tamanho de um dedo polegar, é hora de transferi-las para as lanternas, estruturas verticais que ficam submersas no mar. Depois de engordarem na lanterna, são separadas, limpas e já têm destino certo: metade vai para o

Foto: Divulgação/Ostradamus

restaurante e os outros 50% são comercializados para dez estabelecimentos da região. Mas todas estas melhorias nos últimos anos tiveram um motivador: o Certificado de Qualidade das Ostras da Grande Florianópolis, concedido por uma série de autoridades. “Para obter o selo, existe uma análise de controle que vai do laboratório à mesa”, explica Leonardo. Ele adotou o manual de boas práticas desenvolvido pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de Santa Catarina (Sebrae/SC) e obteve a primeira certificação, uma preocupação com o cliente, além de uma boa jogada de marketing. “Como fomos os primeiros produtores, também tínhamos que conseguir o selo primeiro”. A Fazenda Marinha Paraíso das Ostras, que fica do outro lado da Ilha, na Caieira da Barra do Sul, foi uma das três fazendas que conquistou a certificação. Em atividade desde 2004, fornece ostras para restaurantes de renome, como o Ostradamus, que fica no Ribeirão da Ilha, também ao Sul da capital. Além da certificação do fornecedor, o restaurante trabalha com o processo de depuração da ostra. O aparelho que faz a depuração

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Ostras depuradas do Restaurante Ostradamus

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Foto: Divulgação/Ostradamus

é muito semelhante aos filtradores de piscina. A água diretamente aos apreciadores. A proposta está em do mar é retirada a 200 metros da costa e submetida a discussão e movimenta todos os interessados no um tratamento através de raios ultravioletas. Depois processo. Leonardo é o representante dos produtores e de passar no mínimo 12 horas dentro dos tanques acredita que a medida vai profissionalizar o mercado. com a água tratada para eliminar as bactérias e outras “Hoje se vê muitas fazendas clandestinas. Se as pessoas impurezas, as ostras estão prontas para ir para a vissem como é produzido, certamente não consumiriam. cozinha. O subgerente Rogério Carvalho, que trabalha Mas quando vêem a dúzia da ostra no mercado a quatro no restaurante há oito anos, garante que o processo não reais, não pensam duas vezes antes de comprar”. A altera o sabor da ostra. “Pelo contrário. Em outros locais, expectativa da aprovação do SIM é boa. “Devemos quando se abre a ostra, ainda tem lama e impurezas e aprová-lo ainda nesse ano. A ideia é que na Fenaostra do é comum que as pessoas as lavem em água corrente, ano que vem só entrem ostras inspecionadas”, antecipa o da torneira. Isso tira o sabor do mar característico da engenheiro Alex. ostra. Aqui elas são filtradas nos tanques com a água A Festa Nacional da Ostra e da Cultura Açoriana salgada”, garante Rogério. A ideia original era submeter (Fenaostra) acontece todo ano desde 1999. Integra as já à depuração somente as ostras que seriam consumidas tradicionais festas de outubro de Santa Catarina e este in natura. Como a estrutura montada comporta uma ano acontece entre os dias 22 e 31. Durante o evento há grande quantidade de moluscos, toda ostra consumida no atrações gastronômicas, folclóricas e culturais para o restaurante passa antes pelo depurador. A mais pedida é público, além de pequenos cursos e seminários voltados a ostra gratinada. ao maricultor. Em 2009, sete restaurantes tradicionais A depuração é uma das barreiras sanitárias que da Ilha serviram ostras para um público de cerca de impede que o molusco atravesse o oceano e atinja grandes mercados Depois de passar no mínimo 12 horas dentro do tanque de consumidores, como a Europa. depuração, as ostras estão prontas para ir para a cozinha “Acredito que dentro de quatro ou cinco anos Santa Catarina exporte ostra”, prevê o 150 mil pessoas. É nessa época que os restaurantes engenheiro agrônomo Alex, da Epagri. Por enquanto, mais faturam. Somente o Freguesia, restaurante do a limitação é tamanha que apenas sete empresas Leonardo, vendeu cerca de 22 mil dúzias de ostras, conseguem comercializar o molusco em outros estados entre preparações gratinadas, ao bafo, in natura, brasileiros. pastel, risoto e o carro-chefe da festa, o estrogonofe de O Serviço de Inspeção Federal (SIF) é a condicionante ostras. que impede que os outros produtores também alcancem Leonardo se divide entre o stand montado para o mercado nacional. “Esses sete detém 80% da o restaurante e o palco do evento, onde participa do comercialização, os outros 20% são pequenos produtores tradicional Concurso Papa-Ostra. Munido de faca e que não conseguem implantar o SIF, porque o custo é limão, ganha quem conseguir comer mais ostras vivas muito alto”, argumenta Alex. A alternativa encontrada em um minuto. No ano passado, Leonardo ficou com foi a criação do Serviço de Inspeção Municipal (SIM), o segundo lugar, com 12 ostras, uma a menos que que prevê regras que se adaptam à realidade dos o vencedor, Sérgio Luiz Pereira. Mas em matéria de produtores artesanais. Com o SIM, ainda não será Papa-Ostra ninguém bate o pai. Luis Carlos Costa é possível comercializar o molusco para outros estados, o recordista de todas as edições. Chegou a comer 28 mas será garantida a segurança alimentar e sanitária da ostras em três baterias de um minuto. Experiência que ostra que vai para os restaurantes ou é comercializada vem de família.

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Estrogonofe de ostras do Freguesia Serve 3 porções  24 ostras médias frescas  180g de creme de leite  4 tomates médios maduros  2 cebolas médias  250g de champignon  2 colheres de sopa de cheiro verde

1. Refogue a cebola, o tomate e o cheiro verde por cerca de cinco minutos. 2. Acrescente as ostras abertas na hora, inclusive com o suco. 3. Cozinhe por mais três minutos. 4. Acrescente o creme de leite e o champignon 5. Sirva com arroz branco e batata palha.

Risoto de ostras do Ostradamus Serve 2 porções

1. Em uma panela, junte metade da manteiga e o azeite e

 24 ostras grandes pré-cozidas

doure o alho. 2. Acrescente os pistilos do açafrão e a cebola.

e extraídas da concha

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100g de manteiga sem sal

3. Quando estiver com aparência translúcida, coloque o

 2 pistilos de açafrão

tomate picado finamente.

150ml de vinho branco

4. Em seguida, adicione o arroz e mexa bem.

 50ml de creme de leite fresco

5. Coloque o vinho, refogue até obter cremosidade e

 3g de alho picado fino

despeje o caldo de peixe aos poucos, mexendo sempre para

 50g de cebola picada fina

que o arroz não grude no fundo da panela.

100g de tomates sem semente

6. Quando estiver bem cremoso, junte as ostras e acerte o

 30ml de azeite extra virgem

sal.

120g de arroz arbóreo

7. Desligue o fogo quando o arroz estiver al dente.

1,5 litro de caldo de peixe

8. Acrescente o restante da manteiga, o queijo parmesão e o

100g de queijo parmesão ralado

creme de leite.

 Sal a gosto

9. Sirva imediatamente.

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Foto: Ronaldo Lima/Foto Arena

Foto: Sérgio Vignes/Abrasel SC

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Ensaio

Tudo ao mesmo tempo agora O sucesso da sequência de camarão, o prato que contraria o Aurélio, mas enche a barriga

C

omo para a maioria das

e óleo marcam encontro na mesa no

de restaurante. Na contramão do

pessoas quantidade satisfaz

mesmo horário. Tudo ao mesmo tempo

oba-oba da temporada, são poucos os

muito mais que qualidade,

e agora, sem o mínimo vestígio de

sérios restaurantes que se dedicam a

continuação.

conquistar o cliente, a vê-lo mais uma

não é de se espantar que o prato faça tanto sucesso. Amada

Mas por R$ 39,90 e muitos camarões,

chamar de rodízio. Na carona da

quem liga?

sequência de

semelhança, alguns restaurantes (pra quem o Aurélio pouco importa

casquinha, que de siri tem só o nome.

em nove entre

e a sequência é o que bem entendem)

Com o camarão boiando no óleo,

dez banners dos

optaram por rebatizar o prato.

mirrado que só, com a milanesa

restaurantes da

“Rodízio” passou de semelhante

molenga de tão gordurosa. Com a

orla da Lagoa da

a sinônimo, em uma tentativa de

apresentação lamentável da comida,

Conceição. O preço

se aproximar do léxico de alguns

com a solitária folhinha de alface

turistas, como os paulistas, por

adornando o prato, sem nunca

exemplo, para quem “sequência” soa

encontrar um estômago como destino.

estranho.

Com a demora entre o pedido e o prato

dependendo da época do ano e da cara do freguês. A manezinha conquistou súditos pelo Brasil afora, atraídos, quase sempre, pelas generosas porções oferecidas. É difícil contabilizar quantos

na mesa. Com a comida fria, que é servida atropelada, toda de uma vez,

rodízios de pizzas, massas ou carnes,

sem um ritmo que respeite o tempo do

imagina-se que a ideia seja: pague

paladar.

um valor fixo por uma quantia

Seja no Ribeirão da Ilha, em Santo Antônio de Lisboa, na Lagoa

estabelecimentos, entre restaurantes,

indo e vindo. Fazer “rodar” a maior

da Conceição, na Barra da Lagoa ou

bares, botecos, lanchonetes e

quantidade de sabores possíveis sobre

na Armação, a sequência é sucesso

quiosques têm na sequência o principal

a mesa do cliente é o objetivo que dá

absoluto. Ultrapassou a ponte, cruzou

atrativo. A tradicional costuma servir

sentido ao termo. Ao contrário, no

estados e hoje já pode ser encontrada

duas pessoas, com casquinha de siri de

tal rodízio de camarão, a quantidade

em alguns restaurantes do Rio, de São

entrada, seguida por camarão ao alho

é ditada pelo restaurante. Entre os

Paulo e onde mais sua fama tenha

e óleo, camarão à milanesa, camarão

donos dos estabelecimentos e os fãs

alcançado. Por aqui cumpre o papel

ao bafo e, como se não bastasse, peixe

do prato, comer bem e comer muito

de legítimo “chama turista”. A ideia

grelhado ao molho de – adivinhe se

é uma equivalência que beira a

não é condenar o pobre crustáceo,

puder – camarão. Isso sem falar nos

unanimidade.

que é muito gostoso. Quem dera

arroz, pirão e batata frita.

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Há controvérsias. Como a base de comparação, nesse caso, são os

não-limitada, servida por garçons

tradicionais acompanhamentos, como

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Poucos se importam com a

camarão figura

varia da casa dos 30

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vez à mesa, pedindo o prato favorito.

pelos turistas, a

reais até os três dígitos,

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A sequência do Aurélio caminha próxima do que se convencionou

A quantidade e o preço, em uma

o mesmo esforço empregado para

matemática rasa de custo/benefício,

empanar tantos camarões fosse usado

Tudo iria bem, se a lógica da

justificam todo o resto do serviço. A

para escolher ingredientes de boa

nossa sequência não contrariasse o

começar pelo atendimento. Como se

qualidade. Em menor quantidade,

Aurélio. Para ele, se.quên.ci:a é: 1. Ato

sabe, Florianópolis é criticada pela má

melhor qualidade e sem o amontoado

ou efeito de seguir. 2. Continuação.

prestação de serviços, traduzida no

de todos os camarões ao mesmo tempo

Por aqui, a ideia é bem diferente. Os

desleixo dos garçons, no desrespeito

à mesa, o prato poderia ser chamado

camarões ao bafo, à milanesa ou alho

aos clientes e no despreparo dos donos

de se.quên.ci:a.

Ilustração: Ilustração: Tarik Tarik Assis Assis

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Perfil de chef Madá

O que é que Floripa tem? Trabalhando há duas décadas na capital catarinense, Madá recebe clientes e amigos em sua casa, onde serve o acarajé que a põe ao lado de grandes nomes da cozinha baiana

D

as mãos da alegre e tímida baiana Maria Madalena Soares saem os acarajés que conquistaram público cativo em Florianópolis. Madá, como é conhecida, abre as portas da sua casa e, juntamente com as filhas Andréia e Daniela, dá aos sábados ilhéus um sotaque baiano. Madá deixou Salvador em 1990, quando começou sua história em Florianópolis. A mudança se deu a convite do casal Roberto Marimon e Paula Casagrande, para quem trabalhava como doméstica em Salvador. Foi então que, contrariando a resistência de alguns familiares, veio para a capital catarinense com as duas filhas. “A adaptação em Florianópolis foi difícil, as pessoas são muito diferentes. Foi nesse período complicado que os meus patrões deram a ideia do acarajé. Eles foram meus pais”, relembra Madá, que até hoje trabalha para Roberto e Paula, em casas separadas depois do divórcio deles. Sem muita experiência com o acarajé, a baiana começou a cozinhar para amigos do Seu Beto antes de montar o tabuleiro na Praça Bento Silvério, na Lagoa da Conceição. Do primeiro acarajé até hoje, foram muitos os lugares onde Madá conquistou clientes e amigos. “Fazer amigos com o acarajé pesou muito na hora de decidir ficar aqui. São gaúchos, baianos, cariocas, paulistas, paranaenses e até estrangeiros”, orgulha-se. Da Bento Silvério, mudouse para o restaurante do Seu Valtécio, que ficava em frente à praça. Em seguida montou o tabuleiro

ao lado do Via Shopping, ainda na Lagoa. Passou a trabalhar no restaurante Rififi, na Joaquina, mudouse para o Boteco da Ilha e, finalmente, para o Bar Drakkar, os dois últimos na Lagoa da Conceição. Foi então que, há três anos, Madá anunciou aos clientes que estavam no bar: “A partir da semana que vem o acarajé vai ser na minha casa”. O boca-a-boca impediu que a clientela ficasse órfã dos acarajés. “Acho que eles vieram atrás do cheiro”, brinca a baiana. A maioria dos frequentadores são amigos ou vão até a casa de Madá, no Rio Tavares, por indicação. “No restaurante trocava de garçom toda hora. Eles não conheciam as pessoas, às vezes não tratavam bem”, relembra. Agora, quem dá conta dos pedidos, que são feitos por telefone ou pessoalmente, são as filhas Andréia e Daniela, que trabalham com Madá todos os sábados. Andréia conta que sabe da preferência da maioria dos clientes. “Uns pedem com mais pimenta, outros sem. Tem os vegetarianos que não comem o camarão seco, nem o vatapá, que leva camarão também”. Para alguns, o ritual do acarajé de sábado à noite é sagrado. “Acompanho a Madá desde 1995, quando vim de Salvador pra Floripa. Foi amor à primeira vista. Nos apaixonamos e ela me adotou como mãe”, conta Aldelice Braga, a Nega, que não falha um sábado. “Há pouco tempo fui a Salvador e senti saudades do acarajé da Madá. Fui até na Cira, considerada por muitos a melhor do Brasil, mas não é a mesma coisa”, garante Nega. Na sua cozinha, Madá prepara o típico prato da cozinha baiana

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Foto: Geison Werner

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Perfil de chef Madá

Acarajé da Madá Serve 10 porções  1kg de feijão fradinho  250 g de cebola ralada  1 litro de azeite de dendê  sal a gosto 1. Deixe o feijão de molho, na véspera. 2. No dia seguinte, tire toda a casca de feijão, lavando por várias vezes até sair toda a casca. É importante que fiquem bem limpos. 3. Passe o feijão na peça lisa da máquina de moer carne, para que a massa fique lisa e uniforme. 4. Junte a cebola e o sal e misture bem, batendo por cerca de 10 minutos. Madá prepara o acarajé na pracinha da Lagoa da Conceição, lugar onde começou sua história na ilha, em 1990

Flávio César Ribeiro é dos clientes mais antigos. Conheceu Madá assim que ela montou o tabuleiro na pracinha da Lagoa. Já levou a baiana para preparar acarajé no bairro Kobrasol, em São José, cidade vizinha à capital. Baiano de Salvador, também faz acarajé em casa, mas não poupa elogios à Madá. “É difícil bater o acarajé dela. O importante na cozinha é a constância. O comprometimento tem que ser o de atingir pelo menos a mesma qualidade do que você já ofereceu. Manter o mesmo nível ou então melhorar. Jamais pode piorar. E a Madá nunca decepcionou”, destaca Flávio. Para Madá, o segredo é só um: lavar bem o feijão fradinho. De resto, é só seguir a receita que ela

O capricho ser vista da

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vista da sala de sua casa, onde fica grande parte dos clientes e amigos. Durante o inverno o movimento cai bastante, já que as pessoas ficam mais preguiçosas para sair de casa, segundo a baiana. No verão, chega a vender de 50 a 100 acarajés por noite. Tamanha imprecisão tem justificativa. “Comida de santo não se conta”, explica Andréia, a filha mais nova. São as divindades que protegem a baiana. Sem esquecer a tradição, Madá não deixa de lado a bata, a saia rodada e o torço, que envolve a cabeça, todos brancos. O colar completa a indumentária, com contas coloridas que representam diversos Orixás. Depois de conquistar tanta gente, ainda resta um sonho. Montar o próprio negócio é um desafio para e a dedicação são comprovados na cozinha aberta, que pode a baiana que construiu sala de sua casa, onde fica grande parte dos clientes e amigos a própria casa com a aprendeu em um livro antigo de culinária baiana, renda do acarajé e do trabalho na casa dos patrões. que hoje não precisa mais consultar. De Salvador “Precisa de muito investimento, contratar outras vem o azeite de dendê, que ela encomenda aos litros. pessoas e muita dedicação. Eu e as minhas filhas, De Florianópolis, o camarão fresquinho do Mercado durante a semana, já temos nosso trabalho. Quem Público, comprado no dia e secado no forno, em sabe mais pra frente?”, divaga Madá. Enquanto o casa. O restante dos ingredientes vem de um sonho não se realiza, as filas se formam à porta da fornecedor de São Paulo. O capricho e a dedicação casa. “Me sinto muito feliz. Chamamos isso aqui de são comprovados na cozinha aberta, que pode ser encontro de amigos”.

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Foto: Arquivo/Madá

5. Em uma panela funda, aqueça o azeite de dendê. 6. Com a ajuda de duas colheres, molde os bolinhos e frite-os. Eles

Vatapá

devem subir rapidamente.

 ½ kg de pão

7. Depois de fritos, retire com escumadeira.

 1 galinha média

Acompanhe a seguir como se faz o vatapá, que recheia o bolo de

 1 coco de 1kg

feijão.

 2 cebolas grandes  150g de castanha de caju  250g de camarão  cebolinha, sal, tomate, pimenta e salsinha a gosto  2 xícaras de azeite de dendê 1. Rale o coco e separe o leite grosso do leite fino. 2. Coloque o pão de molho em água fria e escorra. Leve-o ao liquidificador, junto com o leite fino. 3. Passe os camarões secos, juntamente com as castanhas de caju na máquina de moer carne. 4. Junte essa mistura à massa de pão com os temperos, a pimenta e o sal e 1 xícara de azeite de dendê. 5. Leve-os ao fogo brando, mexendo sempre. 6. Quando cozido, junte a galinha desfiada e leve ao fogo novamente. 7. Junte o restante do azeite de dendê e o leite grosso. Espere ferver. Está pronto para rechear o acarajé. Corte o acarajé ao meio, recheie com vatapá, camarões secos e tomates sem pele e sem semente cortados em pequenos cubos.

A baiana ensina qual a temperatura certa do azeite, o formato e o tamanho do acarajé

Fotos: Geison Werner

Acrescente pimenta malagueta a gosto. A gosto do freguês.

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Com açúcar, coco e afeto A receita simples se mantém há sete décadas e está na terceira geração da família Schütz F O T O S

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aspado do fundo do tacho é melhor ainda. Quentinho, com açúcar no ponto, gosto levemente queimado, com pedaços de coco fresco que em nada lembram o ranço artificial dos doces industrializados. Há anos a produção deixou de ser artesanal, mas o gosto de feito em casa é o principal diferencial do Doce de Coco em Tabletes Dalva, que muita gente chama de bala. A tradição começou em 1942 e se aproxima do septuagenário mantendo a mesma receita: coco, açúcar, água e xarope de milho. Seu Alberto Henrique Schütz apostou na indústria do doce em uma época em que Florianópolis contava com pouco mais de 40 mil habitantes, dez vezes menos que a população atual. A Almirante Lamego nem de longe lembrava a rua ladeada por lojas e com fluxo intenso de automóveis e pedestres que se vê hoje. Foi ali que o velho Alberto montou a fábrica de doces que carregava no nome uma homenagem à filha Dalva. Aposentou-se somente em 1990, quando o filho Alberto Schütz Júnior, o Nêne, assumiu o comando. Ele já trabalhava na fábrica desde 1962, quando tinha 19 anos. Viu de perto muita lenha queimar para dar o ponto do doce na caldeira, observou o trabalho para cortar a bala a mão e acompanhou o grupo de mulheres que passava de segunda a sábado embalando um sem fim de tabletes Dalva. Nêne acompanhou o crescimento de muitos dos alunos do Colégio Catarinense, um dos mais tradicionais da capital catarinense. Na hora do recreio, o rumo era certo: a fábrica do doce de coco, que exalava o cheiro de

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Foto: Geison Werner

longe. “Eu era pequena e me lembro de irmos quase todos os dias pra pegar bala. Como o meu avô era o dono, pra mim ficava mais fácil”, relembra Gisele Schütz, neta do fundador e sobrinha de Nêne. A produção, na época, era de 400 a 500 kg por dia, somente de tabletes Dalva. Isso porque o mercado de atuação de Nêne era muito mais amplo. Incluía a ainda sobrevivente bala queimada e os extintos pirulitos psicodélicos, chupetas e balas azedinhas, vendidos no atacado e no varejo. Mas o verdadeiro frisson ficava por conta da bala de coco, a preferida nas festas juninas. Conquistou fãs com a mesma embalagem vermelha e amarela que se vê hoje. De lá pra cá, só o material mudou: o papel deu lugar ao plástico, em nome da praticidade. Mas não foi só o material da embalagem que mudou. O comando da fábrica veio acompanhado de novos desafios. Nêne percebeu que era impossível se manter no mercado sem abandonar a produção completamente manual. A primeira máquina a entrar pela porta da fábrica foi justamente a de embalar os tabletes. É utilizada até hoje, assim como todo o restante do maquinário adquirido na época. “Esse equipamento substitui o trabalho de dez mulheres que antes embalavam os doces”, observa Israel Izadinho Florindo, gerente de produção e funcionário mais antigo, na fábrica há 29 anos. Israel acompanhou o crescimento e a modernização do negócio, assim como da cidade. Em uma Florianópolis com uma população de 340 mil habitantes não havia mais espaço para uma fábrica em pleno centro da capital. A pressão da Vigilância Sanitária e, principalmente, dos vizinhos, incomodados com o barulho e com a fumaça, foram os responsáveis pela mudança do empreendimento para Biguaçu, na Grande Florianópolis, em 2001. Assumia então a terceira geração da família. Augusto Schütz, neto do velho Alberto e filho de Nêne,

estudou no Catarinense e cresceu em meio a cocos, embalagens de doces e quilos e quilos de açúcar. É ele o responsável por fazer sair do galpão de 130m2 os 300 kg diários de tabletes Dalva e bala queimada. A capacidade de produção de 700 kg por dia não é aproveitada porque o negócio hoje só atende clientes que fazem pedidos por telefone. “Não valia mais a pena trabalhar com distribuidores. Eles não conservavam os carros e isso era um prejuízo para nós”, lamenta Israel. A distribuição que antes era feita também no Sul do estado, hoje se restringe à Grande Florianópolis. Augusto é quem faz as entregas e se relaciona com os clientes. Israel assume o comando da produção, que conta com quatro funcionários e diversas máquinas: uma para triturar o coco, outra para apurar o doce (hoje com gás central), a terceira para prensar e cortar os tabletes uniformemente com 3,5cm e uma última para embalar. Com quadro de funcionários reduzido e demanda baixa, o jeito é revezar a produção. Um dia é o da bala queimada, o outro é o do tablete Dalva. A aproximação do inverno anima o empresário. “Os pedidos aumentam em 50% nessa época, principalmente em junho, por conta das festas”, analisa Augusto. É quando o telefone mais toca. Mas os pedidos não se resumem às quermesses juninas. É comum receberem chamadas de diversas regiões do país, procurando pelo doce. “Já atendi gente de Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul. Mas não temos como enviar o produto por conta dos custos com a postagem”, conta Israel. São turistas que visitam Florianópolis e levam daqui mais que a foto da ponte Hercílio Luz. Carregam a lembrança da bala de coco que atravessou três gerações e marcou a infância de muitos manés. Alguns dos visitantes passam na fábrica para se municiar de um carregamento estratégico. Pelo menos até a próxima incursão à capital.

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