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Patriarcado-racista-capitalista na América Latina

Patriarcadoracista-capitalista na América Latina

Élen Cristiane Schneider - SESUNILA Doutora em sociologia. Docente do ILAESP. Ministrou a aula “O patriarcado capitalista na América Latina” no mini-curso “Feminismos e Emancipação: as lutas das mulheres em perspectiva” organizado pela SESUNILA em 2019.

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El colonialismo produce una combinación particular de la jerarquía varón-mujer, con la jerarquía racial étnica dando como resultado la existencia de una compleja tipología racializada de hombres y mujeres. Esta fusión entre colonialismo y patriarcado es una matriz estructuradora de todas las relaciones sociales sin que ninguna quede a salvo. — Maria Galindo

Pensar as relações sociais patriarcais, racistas, capitalistas e coloniais, durante o mini-curso “Feminismos e Emancipação”, promovido pela SESUNILA, contribuiu para refletirmos que a definição de emancipação é inseparável da luta concreta por ela. Emancipação não pode ser simplesmente uma crença, mas sim um estado de luta por transformações profundas nas relações sociais. Emancipar-se não é uma realização possível no capitalismo, pois os meios de produção não serão das trabalhadoras, mesmo que tenham condições menos

exploradas de trabalho. Será menos possível emancipar-se se consideramos o patriarcado, o racismo e as marcas coloniais despóticas de terra e de vida comunitária. Nessa conjuntura, os corpos das mulheres, principalmente das mulheres originárias, mulheres negras, mulheres racializadas e mulheres trans, são apropriados - de forma gratuita ou mal remunerada - para a manutenção da divisão social do trabalho, das hierarquias sexuais e raciais. Enquanto o trabalho sexual e o trabalho doméstico não forem valorizados nas reflexões críticas e no ciclo do capital, nem o horizonte de “conquistadoras” poderá se abrir completamente às mulheres, já que terão que cumprir múltipla jornada, ou delegar a outras mulheres a tarefa de cuidar, satisfazer e limpar, a fim de poderem estar no espaço público. Embora muitas mulheres, após 1970, tenham sido socializadas com as ideias de que: era importante entrar no mercado de trabalho em posições de gestão, destaque e sucesso; de que seria essencial representar sua diferença ou reparar as desigualdades estando em espaços de poder; de que poderiam escolher serem mães ou não serem, etc, todas essas são formas individuais de realização. São passos importantes, mas insuficientes para uma transformação radical, já que muitas mulheres compulsoriamente ainda serão mães e trabalharão de forma superexplorada, para que outras as representem ou obtenham suas conquistas, seguindo o modelo patriarcal de busca do poder. Além disso, em cenários de crise, as mulheres estão sendo novamente convocadas, quase que sem exceção, a cuidar, harmonizar e organizar, mesmo que não sejam mães nem trabalhadoras.

Além disso, a liberdade do corpo das mulheres ainda é despolitizada e não é incluída nas questões centrais e estruturantes das sociedades. Os temas são relegados à esfera privada, pessoal, particular: do amor, das paixões e emoções. Percebemos esse descaso em pelo menos cinco fatores: 1 - As mulheres ainda não poderem decidir sobre a interrupção de uma gravidez na maioria dos países da América Latina, a despeito de muita luta; e em alguns países, como El Salvador, elas são condenadas à prisão, mesmo em caso de aborto espontâneo; 2 – Não poderem eleger se terão e com quem terão relações sexuais, mesmo que algumas escolhas sejam feitas, há possibilidades de: (a) um estupro dentro de um relacionamento estável – 70% dos estupros são cometidos dentro de casa; (b) assédios, violações e estupros quando menos se espera, em espaços públicos e meios de transporte; (c) estar limitada na própria concepção do ritual sexual, no qual as mulheres são incentivadas a satisfazer os desejos de outrem, em especial em relações heterossexuais. Em resumo: o corpo das mulheres ainda é um território de conquista, bem como nas terras coloniais-patriarcais, conforme as ideias de Silvia Federici. 3 – A reprodução e o trabalho de cuidado são compulsórios para as mulheres. Mesmo as mulheres nãomães serão convocadas, nas suas profissões, para exercer papéis e aptidões “ditas femininas”. Caso decidam serem mães, correrão o risco de sofrerem violência gestacional, obstétrica e no puerpério. Havendo, assim, uma submissão das mulheres e seus corpos ao trabalho de reprodução gratuito e uma divisão sexual do trabalho e dos tempos.

4 – O trabalho doméstico, feito com cansaço do corpo e dispêndio emocional, que é feito por mais de 90% da população de mulheres, reproduz gratuitamente a força do trabalho, a principal mercadoria do capitalismo, pois é a única capaz de gerar outras mercadorias [futuros trabalhadores e trabalhadoras]. 5 – Ainda e talvez não por fim: Não poder viver, como demonstram os dados de feminicídio atuais e os históricos, através do fenômeno da caça às bruxas na Europa, conforme demonstra Silvia Federici e o do estupro colonial, na América Latina, debatido por Sueli Carneiro. Resistir, portanto, significa lembrar-se do passado, historicizando a opressão. Emancipar-nos passará por reconhecer a luta das ancestrais contra as opressões, não somente por presença e participação, mas na sua luta contra o extermínio constante, de seus corpos, territórios e comunidades, já que o extermínio de mulheres foi fundamental para a derrota do campesinato na Europa e condição patriarcalracista que possibilitou a colonização e a acumulação primitiva do capital, nas palavras de Silvia Federici. Nesse sentido, a emancipação tem um significante coletivo de resistência! Pela comunidade e pela força que nós mulheres tivemos e temos para a existência de estruturas coletivas de sociedade! Ela é um horizonte no sentido do tempo circular e da “memória larga”, termo de Silvia Riveira Cusicanqui. Horizonte de enfrentamento das relações sociais patriarcais-racistas-capitalistas-coloniais.

Encontramos a existência patriarcal há pelo menos seis mil anos, datando a invenção da agricultura, segundo as pesquisas de Heleieth Saffioti. Patriarcado é “um território ou jurisdição governado por um patriarca”, na definição de Christine Delphy. A escravização dos povos dominados faz parte dessa forma de conquista de terras, através das guerras. A estratégia se transfere para as colônias, forjando uma simbiose histórica entre patriarcados e o capitalismo, que aprofundou e criou outras formas de escravização, como a baseada na subalternização racial.

Ao ignorar essas relações sociais hierarquizadas da divisão social, racial e sexual do trabalho, as opressões das mulheres, como numa armadilha, passam a ser vistas de forma secundária na luta de classes e das lutas trabalhistas. Sem nenhum respeito histórico às milhares de mulheres assassinadas em crimes hediondos. As pautas das mulheres são atribuídas a distorções do ideológico e do cultural, ignorando a dimensão material das relações. As mulheres são responsáveis pela reprodução gratuita da principal mercadoria do capital! Entre tantas outras tarefas! Esse patriarcado foi se transformado no decorrer da história e carregando com ele outros sistemas, modos de relações sociais e econômicas e foi criando pelo menos três mitos atuais: 1 - De que haveria uma separação entre o pessoal e o político, reprodutivo e produtivo, privado e público, entretanto, toda relação no ambiente doméstico é também política e as relações entre homens e mulheres e gêneros são políticas;

2 - De que há um ideal de imparcialidade do público cívico e a busca pela integridade dos indivíduos, um mito que propaga outro, o da democracia racial na América Latina, desmascarado por Lélia Gonzalez. Essa sustentação moral das estruturas sociais e políticas, a de que as pessoas podem ter pontos de vistas imparciais e impessoais, nega que a democracia nasce de um estupro das mulheres originárias e africanas, conforme relembra Sueli Carneiro. Imparcialidade e integridade não foram valores respeitados para as mulheres, desde a colonização de America Latina; 3 - O de que há um Contrato Social, no qual as pessoas fariam acordos e concessões para aceder a liberdade civil. Para Heleieth Saffioti a liberdade civil deriva justamente de um direito patriarcal, e, portanto, é por ele limitada. As mulheres ainda vivenciam massivamente um “Estado Proxeneta” (cafetão), nos termos de Maria Galindo, que deseja mantê-las em um estado de natureza, de trabalho sexual, trabalho doméstico e de cuidado.

Uma das maiores falácias é a da igualdade entre homens e mulheres, da libertação de ambos pela via do trabalho assalariado. As mulheres precisam cumprir pelos menos quatro jornadas de trabalho no marco das relações históricas em que vivemos: 1) a jornada de trabalho doméstico, de limpeza e cuidado de crianças, adultos capazes e idosos; 2) a jornada produtiva; 3) a jornada militante – para quem se engaja na mudança dessas relações sociais; 4) a jornada cotidiana de pedagogia – para as mudanças micro, nas relações com esposos, companheiros, amigos e filhos homens.

Assim, a luta de classes se forja na norma da heterossexualidade, pois se funda na herança da propriedade privada patriarcal e na submissão das mulheres à reprodução desses herdeiros e da força de trabalho. Portanto, não há luta primária e secundária. É preciso ter memória histórica entendendo essas relações como um nó, uma simbiose, ou, como nas palavras de Julieta Paredes e Adriana Gusmán: um entronque patriarcal entre o patriarcado europeu e o patriarcado ancestral, o racismo e o capitalismo. É necessário fazer a genealogia das guerras e da colonização, da acumulação primitiva do capital, e encontrar aí as relações históricas despóticas que afetaram as mulheres e a humanidade. Mas, a emancipação é um horizonte! Pois a despatriarcalização também é um horizonte que se constrói na prática diária de lutas! Acessando a memória larga dos povos ancestrais, constantemente. Segundo Maria Galindo, a despatriarcalização é a ousadia de conceber o patriarcado como uma estrutura suscetível de ser desmontada. Os sindicatos podem ser espaços que gestem a despatriarcalização já que representam lutas pelo comum. Mas devem contribuir para politizar as existências e as

pautas de sobrevivência e resistência das mulheres em suas diversidades de ser; (re)politizando as relações de reprodução/produção. Os caminhos de despatriarcalização exigirão, ainda, enfrentamento ao Estado, em suas estruturas proxenetas. Como fala Maria Galindo, desde latino-america: “Despatriarcalizar [...] es uma palabra que también nos sirve para designar um estado de ánimo: La impaciência. No nos hemos resignado, conformado o adaptado”.

Intervenção urbana, s/d. Coletivo Mujeres Creando.

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