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08 de Março: a luta das mulheres em perspectiva
Elena Schuck - SESUNILA Doutora em Ciência Política. Foi docente do ILAESP/UNILA (2017-19). Coordenou o mini-curso “Feminismos e Emancipação: as lutas das mulheres em perspectiva” organizado pela SESUNILA em 2019.
o8 de março, data internacional da mulher, foi a razão pela qual em março deste ano, nós professoras da SESUNILA, propusemos um minicurso aberto à comunidade sobre as origens do movimento feminista no mundo, sobre a especificidade desta pauta política e reflexiva (pois feminismo implica ação política, mas também reflexão teórica) e sobre os muitos desafios atuais que vislumbramos para a emancipação das mulheres latino-americanas enquanto sujeitas políticas. Apesar daqueles e daquelas que têm maior familiaridade com movimentos sociais e estudantis estarem atentos às armadilhas de comercialização da data, é sempre necessário fazer uma leitura crítica das diversas manifestações publicitárias e que pulsam no mês da mulher: promoções de serviços estéticos, anúncios comerciais da indústria da moda, ou ainda manifestações espontâneas das pessoas nas ruas com “parabéns pelo seu dia” ou “feliz dia da mulher para você”. Antes de mais nada, deixo claro que sou feminista, não sou
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contra serviços estéticos, contra o consumo de produtos da moda, tampouco contra a cordialidade pública. A leitura crítica que proponho diz respeito à frequente imbecilização da ideia de mulher nesta data. É como se as mulheres fossem seres ainda incapazes de refletir sobre significados históricos para além do consumo imediato de serviços e produtos. Ao retirar os signos de luta contra opressão da data, a publicidade, com grande poder sobre o inconsciente coletivo, reduz uma data política a mais uma data festiva, e pior, reduz a mulher a estereótipos opressores e cruéis: mulheres cuja feminilidade está sempre associada ao grau de enquadramento aos padrões de beleza e comportamentais, devem ser magras, sorridentes e silenciosas, e quase que por consequência, terem o instinto reprodutivo-heterossexual da maternidade como sua principal meta de vida. O que acredito ser necessário é o resgate do caráter político da data, a qual simboliza a luta por igualdade social entre homens e mulheres. Suas origens são marcadas por fortes movimentos de reivindicação política e trabalhista, com a organização de greves e passeatas, que no início do século XX eram ilegais e, portanto, passíveis de perseguição e violência policial. A história que circunda a definição do 8 de março tem versões estadunidenses e russas, e remonta à transição entre os séculos XIX e XX, período no qual as lutas sindicais por igualdade entre os sexos e os movimentos sufragistas eclodiam no mundo. Os Estados Unidos, desde o início do século XIX, foram marcados por um forte movimento de industrialização, onde o trabalho fabril seria a oportunidade para imigrantes
vindos/as da Europa. As condições de trabalho de então eram bastante precárias, com jornadas de até 14 horas, em semanas de seis dias inteiros e frequentemente incluindo as manhãs de domingo. Os salários eram muito baixos, justificados pelo grande fluxo migratório ao país, acompanhados de condições laborais precárias e insalubres. É nesse contexto que têm início as reivindicações por melhores condições de trabalho, as quais contavam com o contato prévio de trabalhadoras/es com movimentos sindicais e ideologias marxistas e anarquistas na Europa.
Naquele tempo era comum cobrir os relógios para que os trabalhadores e trabalhadoras não pudessem saber há quanto tempo estavam trabalhando, e de mesmo modo comum era trancafiar as portas das fábricas para que nenhuma distração prejudicasse a produção das operárias. Devido a tais circunstâncias, em 1911, um incêndio tomou conta de uma grande fábrica têxtil em Nova York, a Triangle Shirtwaist Company, deixando 146 vítimas, dentre as quais 125 meninas e mulheres entre 13 e 23 anos de origem judaica e italiana. A tragédia que assolou a cidade suscitou a necessidade de se criar uma data para lembrar as mulheres trabalhadoras. Em 8 de março 1917 trabalhadoras russas do setor de tecelagem entraram em greve, tendo como demanda questões trabalhistas e do sistema político, e pediram apoio
aos metalúrgicos. Para Trotski, este seria primeiro momento da Revolução de Outubro. Para além de tais preocupações, temas relativos ao corpo, à sexualidade, à reprodução humana, relação afetiva entre homens e mulheres, e aborto também ocupavam pautas de debates das mulheres organizadas. Estes últimos, no entanto, só foram retomados 40 anos mais tarde pelo movimento feminista. Subjacente aos grandes movimentos sindicais e políticos do início do século XX, emergia também uma nova consciência do papel da mulher como trabalhadora e cidadã. Clara Zetkin e Alexandra Kollontai, atuantes na Alemanha e Rússia, militaram através da causa socialista e dedicaram suas vidas ao que posteriormente se tornou o movimento feminista. Na ocasião do II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhagen em 1910, ambas propuseram a criação de uma data internacional das mulheres. Já nos EUA, destacaram-se Clara Lemlich, cuja atuação sindical instigou uma das mais longas greves no país, e Emma Goldman, ferrenha crítica das Tierra Purpúrea, 1973 Artista Leonilda González. concepções de Estado e matrimônio, assim como uma grande referência para o pensamento anarquista. O Brasil, em sintonia com os demais movimentos políticos da Europa e EUA, inaugurava suas reivindicações sufragistas com a liderança de Bertha Lutz, a qual criou a Fundação para o Progresso Feminino em 1919. No mesmo período, mulheres
trabalhadoras também manifestavam suas inquietudes, denunciando abusos e violências. A União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas denunciavam em seu manifesto de 1917 a situação precária das mulheres nas fábricas. Apesar dos ecos do movimento sufragista brasileiro serem muito mais audíveis às elites políticas do que as demandas trabalhadoras, o direito ao sufrágio feminino foi conquistado apenas no início da Era Vargas, em 1932, e confirmado pela Constituição de 1934. Tal direito ainda era bastante restritivo, sendo concedido apenas a mulheres alfabetizadas. Vale lembrar que o sufrágio universal no Brasil foi somente incluído na Constituição de 1988. A partir da década de 1960, ocorre o fortalecimento do movimento feminista na Europa, nos EUA, e também na América Latina. Em nosso continente, em virtude dos golpes militares instaurados, a principal bandeira do feminismo era o combate à ditadura e luta pela redemocratização dos Estados. Na década de 1960, o 8 de março foi sendo constantemente escolhido como o dia comemorativo da mulher e se consagrou nas décadas seguintes. A data foi institucionalizada pela ONU em 1975, na ocasião da criação da década internacional da mulher. Embora exitosos em parte de seus propósitos, sabemos que os desafios de nosso tempo requerem constante vigilância e combate. Apesar de as mulheres terem obtido igualdade formal, com igualdade salarial no serviço público, direito ao sufrágio e à representação, o panorama da luta feminista é enorme: combate às desigualdades salariais, ao trabalho
informal, não regulamentado e escravo, à dupla jornada, aos assédios e violências, às mulheres imigrantes, ao racismo, às lgbtfobias, assim como à baixíssima representação política. Estes desafios, assim como os inúmeros outros não citados, são decorrentes de um longo processo de opressões sistêmicas que impedem o entendimento da mulher enquanto ser humano e sujeita de direitos. As políticas emancipatórias, capazes de combater opressões sistêmicas, conferem cidadania às mulheres e outras minorias políticas, através de três eixos: reconhecimento, a redistribuição e a representação. Pensando na universidade pública, podemos entender as ações afirmativas como políticas emancipatórias. Há nessa política o reconhecimento de que existem grupos que ainda têm dificuldade em acessar a universidade, há a redistribuição de curto prazo (auxílios estudantis) e longo prazo (qualificação profissional), bem como a representação de grupos sociais que antes não se faziam presentes no ambiente universitário. Por certo, os desafios que as ações afirmativas trazem se multiplicam, pois ao mesmo tempo que emancipam, também revelam muitas outras opressões, de gênero, de raça, que antes eram invisibilizadas. Nesse sentido, surgem uma série de grupos estudantis preocupados com o assédio sexual na universidade, com o racismo e a discriminação de minorias, que podem resultar inclusive em políticas universitárias.
Estejamos atentas, sejamos vigilantes, nós professoras/es sindicalizadas/os, para que consigamos identificar e combater as opressões patriarcais, racistas e capitalistas, começando pela universidade, mas indo muito além dela.