O Discurso sem Método #4

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O DISCU RSO SEM MÉTODO um jornal a serviço da dúvida.

jun/jul 2013

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onde estão os negros? Marcelo Soares. p.8 A presença do racismo em nós significa presença na cultura. Logo, o racismo não é apenas a discriminação individual consciente e a violência explícita. Se o racismo está nas relações sociais, são elas que precisam ser mudadas, o que não se dá apenas pela boa vontade de um indivíduo.

“a questão das leis”, de Franz Kafka

luta de classes nas estrelas - episódio 1 Thiago Fonseca. p.21

odiscursosemmetodo.wordpress.com

publicação dos estudantes de Filosofia da FFLCH/USP

André Alves de Carvalho. p.18


editorial. 2

primeiro ano

sem método

Editorial Chegamos a mais um fim de semestre e este periódico completa o seu primeiro aniversário – a edição inaugural foi distribuída em junho de 2012, ainda sob o título de Jornal da Filosofia. Desde lá o Discurso Sem Método tem sido recebido com bastante entusiasmo pelos estudantes do curso, estimulando debates em nossos corredores e cada vez mais colaboradores têm se disposto a ajudar na elaboração deste jornal a serviço da dúvida. Os dois primeiros textos desta edição, Machismo e Universidade e Onde estão os Negros? problematizam duas opressões presentes em nossa sociedade: o machismo e o racismo. Ambos defendem que essas opressões se reiteram não só em posturas cotidianas individuais e explícitas, mas também e principalmente na estrutura social em que estamos inseridos e que, portanto, a superação dessas opressões demanda uma luta coletiva, em última instância, política. O texto seguinte é um informe importante para os estudantes e para o movimento político dentro e fora da universidade. Trata-se da sentença favorável às 72 pessoas presas na reintegração de posse da reitoria, ocorrida de maneira descabida em novembro de 2011, as quais haviam sido temerariamente acusados por formação de quadrilha, em denúncia do Ministério Público. Esperamos que Quadrilha agora só na festa junina.

Reivindicar mudanças radicais não seria daninho para todos? As leis foram formadas pela sabedoria ancestral, quem a questiona? Estas são questões que surgem de A Questão das Leis, de Franz Kafka, a tradução desta edição

Ser estudante é a condição que nos une. Mas, se esta condição é multifacetada, haveria uma ‘essência’ desse ser estudante, da qual todos nós compartilhamos? Nesta edição somos brindados com o Rascunho de uma Ontologia do Estudante, proposta bastante interessante para pensarmos a nossa unidade enquanto categoria dentro da universidade, a despeito de todas

as diferenças de interesse, políticas e acadêmicas. Em seguida temos outros dois textos que vêm dialogar com


editorial. 3 a ‘onda’ ideológica a favor da redução da maioridade penal, levantada depois do assassinato de um estudante em São Paulo. O primeiro deles, Sobre criminalidade, corruptos e corruptores, ressalta que os problemas sociais não são resolvidos quando se enfrente um ‘grande inimigo’, eleito pela opinião pública. Toda simplificação deste tipo nos impossibilita de compreender o problema em sua complexidade e até alimenta-o, na medida em que deixam intocadas suas origens. O segundo, como diz o nome, é uma Resposta a Contardo Calligaris, o qual surfou na ‘onda’ ideológica a favor da redução da maioridade penal – embora tenha alegado que já estava boiando há muito tempo esperando o hora certa. O autor da resposta busca evidenciar que o problema em questão é mais profundo do que qualquer ‘psicologia barata’ pode supor e que, se o texto de Calligaris tem por objetivo embasar teoricamente a redução, então ele expressa o autoritarismo do colunista da Folha, pois, em última instância, defende uma ‘justiça’ que recairá inevitavelmente sobre uma parcela bem específica da juventude, a saber, a negra e pobre. O texto seguinte, Ainda no caminho, ainda Maiakóvski, é uma homenagem ao poeta contemporâneo brasileiro Eduardo Alves da Costa que, em diálogo com o poeta russo da revolução, Maiakóvski, canta sua época, nossa ainda. E a revolução também é tema do episódio 1 de Luta de classes nas estrelas. Acompanharemos nessa saga épica Len Kenobi e Jean-Luke Skytre em luta contra as forças da reação galáctica, para salvar a princesa Plebeia. A sequência dessas aventuras será publicada nas próximas edições!

sendo todos igualmente capazes, o que nos distingue é termos compasso e liberdade ou não. A seção de Poesia desta edição, com uma quantidade inédita de contribuições, vem mostrar que produções literárias que tratam de diversos temas sempre têm espaço na nossa publicação. Fora isso, ela prova que muitos estudantes do nosso curso também são, nas horas mais ou menos vagas, artistas. Por fim, fechamos a edição com mais uma homenagem às publicações do CAF de 1994. Nossa contracapa é o bem humorado merchandising filosófico dos óculos “RayBem”, item essencial para a sobrevivência no mundo das ideias que é nosso curso. Esperamos que todos aproveitem a leitura e convidamos todos a participar das próximas edições desse Discurso sem Método. ϕ

Expediente desta edição André Alves de Carvalho Bruno Rosa Duanne Ribeiro (diagramação) Gabriel Bichir Fernanda Reis Fernando Rondelli Inauê Taiguara (edição)

As leis que organizam a nossa sociedade, mantidas pela nobreza e desconhecidas pelo povo, devem ser mantidas? A quem pertence a lei, ao povo ou à nobreza? Reivindicar mudanças radicais não seria perigoso e daninho para todos? Afinal, as leis foram formadas pela sabedoria ancestral e quem a questiona? Estas são questões que surgem da leitura de A questão das leis, de Franz Kafka, a tradução desta edição.

Lucas Paolo

Mais um dízimo de uma existência miserável será recolhido em O Condenado. Com uma epígrafe também de Kafka, o conto nos apresenta um relato deixado de testamento, no qual são expressos os diferentes pontos de vista da sociedade – do povo, das autoridades, da mídia, dos presos, etc – acerca de uma condenação a pena capital. Poucos sabem algo sobre o condenado e nada é dito sobre o caso, apenas a pena é conhecida. E sobre ela é que girarão todas as discussões. Uma vez iniciado o texto, só nos resta “seguir em diante”.

Rafael Tubone

Xaveco Insano, O cotidiano e a ética em Espinosa e Pobres de Transversal são os outros contos dessa edição. O primeiro, através de um diálogo bem humorado, nos lembra a velha máxima, segundo a qual ‘intimidade é uma droga’. No segundo temos um relato da impaciência, bem fundamentada na experiência, com as pontuais, mas frequentes, manifestações palhaçais e intelectualóides – tudo isto no contexto do fim do semestre e da iminência da entrega dos trabalhos. O último deles, sobre as almas marginalizadas da sociedade, se baseia na opinião de que,

Marcelo Soares (revisão) Mariana Luppi (revisão) Monica Marques (diagramação) Pedro Gabriel Rachel Faleiros Rafael Zambonelli Rondino Reg# Thiago Fonseca (ilustrações)

Agradecimentos a Johannes Gutenberg; à Comunicação Social da FFLCH;

imagem da capa: ”Golden Tears”, de Gustav Klimt.

Errata (edição 4) A “Nota de repúdio da Frente Pró-Cotas Raciais sobre o PIMESP”, foi erroneamente atribuída, no índice, a Inauê Taiguara.


sumário. 4

Índice agenda e notas calendário..........................................................5 coluna do CAF o machismo e a universidade.........................6 universidade e política

o condenado..................................................24 Gabriel Bichir xaveco insano................................................26 Fernanda Reis o cotidiano e a Ética de Espinosa..........................................27 Fernando Rondelli

onde estão os negros?....................................8 Marcelo Soares poesia.............................................................27 movimento estudantil quadrilha agora só na festa junina...........................................11 Mariana Luppi e Inauê Taiguara

Feminina carícia Quem sabe... arquiteta mulher do morro Rondino Reg#

à última cachaça rascunho de uma ontologia do estudante..................................13 Bruno Rosa Duanne Ribeiro ideias soltas devem ser sociedade condenadas a fogueira Rachel Faleiros sobre criminalidade, corruptos e corruptores..................................................15 um poema do tédio Mariana Luppi Duanne Ribeiro resposta a Contardo Calligaris pelo Pra você, eu sou você texto “Jovens delinquentes”........................16 Inauê Taiguara Rafael Zambonelli rodapé............................................................32 tradução CAF em 1994 “A Questão das Leis”, de Franz Kafka....................................................18 André Alves de Carvalho resenha ainda no caminho, ainda Maiakósvski..........19 Rafael Tubone quadrinhos luta de classes nas estrelas episódio 1.......................................................21 Thiago Fonseca conto pobres de transversal....................................23 Pedro Gabriel

leia as edições anteriores e o Manual do Calouro e da Caloura: issuu.com/caf_usp/


agenda e notas. 5

calendário acadêmico-estudantil:

Junho

2º Semestre Letivo de 2013

20 - Assembleia Geral dos Estudantes da USP. Local: Vão do prédio de História e Geografia - FFLCH. A partir das 18h.

Junho 25 a 1º jul - PERÍODO DE MATRÍCULA DOS ALUNOS para o 2º semestre (1ª Interação). ATENÇÃO: o aluno deverá inscrever-se em, pelo menos, uma das interações, mas de preferência na primeira, para participar da seleção das disciplinas/turmas de seu Período Ideal (1ª Consolidação), e dar às Unidades noção mais precisa da demanda por vagas. 29 - ENCERRAMENTO DAS AULAS. Julho 4 e 5 - 1ª consolidação das matrículas. 10 - Início do Período para Realização da Recuperação 10 a 15 - 2ª interação de matrícula. 16 - Ajustes de vagas nas turmas pelas Unidades. 17 e 18 - 2ª consolidação das matrículas. 19 a 22 - 3ª e última interação de matrícula. 23 - Ajustes finais de vagas nas turmas pelas Unidades. 24 e 25 - Seleção, no Sistema Júpiter, de alunos inscritos em disciplinas optativas oferecidas nos termos da Resolução CoG nº 4749/2000 e 3ª e última consolidaçãodas matrículas. 26 - Final do período para realização da recuperação. 2º Semestre Letivo de 2013 Julho 23 a 31 - Período de retificação de matrícula, para o 2º semestre. Agosto 1º - INÍCIO DAS AULAS. Setembro 2 a 7 - Semana da Pátria. Não haverá aula. 10 - DATA MÁXIMA PARA TRANCAMENTO DE MATRÍCULA EM DISCIPLINAS. 26 e 27 de setembro - Jornada de Filosofia Oriental no Prédio do Meio da FFLCH

político-estudantil:

cultural: Junho 13 a 16 - O cantor, compositor e instrumentista João Bosco faz quatro shows na Caixa Cultural, com entrada franca As apresentações acontecem nos dias 13, 14 e 15 de junho, às 20h, e no dia 16, às 18h, e os ingressos devem ser retirados com uma hora de antecedência. Onde? Na Caixa Cultural Sé (http://www. caixacultural.com.br), Praça da Sé, 111 - 8º andar, Sé – Centro, telefone: (11) 3321-4400 (fonte: http://catracalivre.com.br/sp/). Até 30 - Trabalhos do cartunista Glauco Vilas Boas (19572010) serão expostos em mostra inédita “Abobrinhas da Brasilônia”, na Caixa Cultural da Sé. A mostra pode ser visitada do dia 5 de maio a 30 de junho, de terça a domingo, das 9h às 20h. Entrada franca. Onde? Na Caixa Cultural Sé (http://www.caixacultural.com.br), Praça da Sé, 111 - 8º andar, Sé – Centro (fonte: http://catracalivre.com.br/sp/) 28 a 30 – Festival Gastronomico Sabor de São Paulo. Pratos típicos de diferentes regiões do Estado foram selecionados de janeiro a junho de 2013, e estarão à venda em um grande festival popular na cidade de São Paulo., no Parque da Água Branca, Av. Francisco Matarazzo 455 – Água Branca. Julho 2 a 5 – Congresso Latino Americano de Estudos do Trabalho. Reunirá pesquisadores e docentes dos diversos países latino-americanos para intercâmbio de resultados de estudos e pesquisas sobre o mundo do trabalho e as transformações que vêm se processando nas últimas décadas nessas sociedades. O Congresso almeja, igualmente, consolidar a cooperação científica entre as diferentes instituições de pesquisa e universidades latino-americanas. 6 a 7 – Tabana Matsuri – Festival das Estrelas (35ª edição). O Festival das Estrelas é a maior festividade tradicional do Japão no Brasil. Praça da Liberdade, s/n. Das 11h às 19h. Até dia 14 - Candido Portinari - “Bíblica” e “Retirantes”. Museu de Arte de São Paulo (Masp - http://www.masp.art.br). Avenida Paulista, 1578, Cerqueira César – Centro (próximo à estação Trianon-Masp do Metrô). Terças, Quartas, Sextas, Sábados e Domingos das 10:00 às 18:00 e Quintas das 10:00 às 20:00. Quanto: R$ 15/ R$7 (meia-entrada); crianças até 10 anos e adultos acima de 60 anos não pagam; às terças-feiras, a entrada é grátis.


coluna do CAF. 6

O Machismo

e a Universidade

Frente a diversos casos de machismo que vêm sendo publicizados nos últimos meses dentro da universidade, nossa gestão considerou importante usar esse espaço para discutir o problema e levantar questões para a reflexão no curso. Primeiramente, é importante o reconhecimento do machismo como elemento subjacente a todas as nossas relações sociais. O caráter patriarcal da sociedade leva a que os homens sejam em geral considerados superiores ou mais capazes que as mulheres. Essa estrutura social não foi criada pelo sistema econômico contemporâneo, mas é reproduzida por ele, na medida em que legitima a maior exploração das mulheres enquanto um setor da classe trabalhadora (nesse sentido também o racismo é reproduzido). Essa maior exÉ importante o reconhecimento do machismo como ploração ocorre tanto porque os salários das elemento subjacente a todas as nossas relações sociais mulheres ainda são menores para exercer a mesma função, quanto porque o trabalho dade do que as características supostamente femininas. doméstico, reprodutivo, também necessário à manutenDestaca-se também que o “masculino” aparece em geral ção do sistema econômico, continua sendo feito mais pelas relacionado à intervenção no espaço público, enquanto o mulheres, mesmo que elas trabalhem fora. “feminino” liga-se ao espaço privado. As manifestações do machismo, no entanto, não se limitam às de caráter econômico. Os papéis de gênero construídos culturalmente (e dentro dos quais somos educados desde a infância), que definem mais ou menos quais são as características “femininas” e quais são as “masculinas”, são elementos de opressão sobre a mulher. As características ligadas à masculinidade tendem a ser mais valorizadas, ou seja, a ser consideradas mais importantes para a socie-

É importante ressaltar que uma das consequências da desvalorização da mulher nos espaços sociais é a violência machista. Enquanto não se reconhece a autonomia da mulher sobre o próprio corpo e sua independência enquanto indivíduo, o assédio, a violência verbal e física parecem justificados socialmente. Nesse sentido, o machismo também se manifesta na uni-

participe do jornal! Envie artigos, traduções, contos, crônicas, poesia, manifestos, comentários; ajude na edição; colabore com a diagramação. A produção do jornal é aberta a todos os alunos da Filosofia, com discussões presenciais e online.


coluna do CAF. 7

versidade de diversas formas. Os casos de estupro e de todos os tipos de violência são o aspecto mais agudo desse fato. A existência de trotes que usam a mulher como objeto sexual, como no caso do concurso “miss bixete” de São Carlos, às vezes passa como brincadeira ou infantilidade, mas devem na verdade ser considerada uma demonstração de violência sexista. Deve-se entender também como machista o recorte de gênero dos cursos, ou seja, a existência de cursos considerados mais “femininos” e outros mais “masculinos”, sendo em geral as carreiras mais tradicionais e valorizadas também as mais relacionadas à masculinidade, como no caso dos cursos de engenharia, que têm mais homens que mulheres, e, do outro lado, cursos como enfermagem, em que há mais mulheres. Essas desproporções aumentam muito se considerarmos a pós-graduação. Se pensarmos em nosso próprio curso, há em geral mais homens nas salas de aula da graduação e da pós e há um número ridiculamente pequeno de mulheres professoras. Essa problemática não é apenas formal – as dificuldades que as mulheres passam para estar na universidade e para dar continuidade a uma carreira acadêmica são bem maiores que as dos homens. Justamente porque se trata de um processo culturalmente desenvolvido, saber que o machismo é um problema social ou defender posições de esquerda não determina que um homem deixe de ter atitudes machistas ou uma mulher deixe de aceitar o machismo e reproduzi-lo. Não basta ter consciência do problema, mas estar em luta cotidiana contra suas consequências e a favor de medidas sociais que o combatam. No caso das mulheres, a auto-organização para o combate das manifestações do machismo e para a formação política é fundamental. O movimento de mulheres na USP tem avançado nesse sentido, e hoje há coletivos feministas em diversos cursos, além de uma frente feminista auto- organizada. As estudantes de Filosofia e Ciências Sociais se organizam no Coletivo Feminista Lélia González. Se quiser saber mais: http://bit.ly/leliagonzalez http://bit.ly/leliagonzalez2

ϕ

Informe aos estudantes sobre o PIMESP A UNESP aprovou as metas do PIMESP em seu C.O., no dia 26 de abril. Os estudantes da UNESP dos campi de Rio Preto, Marília, Assis, Quirinhos, Rio Claro, São Paulo e São Vicente e os funcionários dos campi Ilha Solteira, São José do Rio Preto, Marília, Bauru, São Paulo S. J. dos Campos estão (em 28 de maio) em greve para reivindicarem melhorias na assistência estudantil e a revogação do PIMESP. Não temos informes acerca do processo do PIMESP na UNICAMP. No que tange ao processo de implementação do PIMESP na USP, no dia 22 de maio, o CoG apresentou o seguinte relatório sobre o posicionamento das Unidades: As 42 Unidades da USP apresentaram suas manifestação à consulta formulada pela Reitoria sobre o PIMESP. As manifestações mais recorrentes emanadas das unidades são apresentadas a seguir. 1: Instituição do PIMESP Global: 05 manifestações contrárias e 03 favoráveis; 2: Instituição do College: 31 manifestações contrárias; 3: Manutenção e Aperfeiçoamento do INCLUSP/ PASUSP: 29 manifestações favoráveis; 4: Instituição de cotas raciais: 07 manifestações contrárias e 04 favoráveis; 5: Realização de maior discussão sobre o PIMESP: 07 manifestações favoráveis; 6: Criação de Comissões para organizar a discussão: 2 manifestações, sendo que uma Unidade sugere que a discussão deva ser realizada pelo CoG e outra, pelo CO; 7: Maior prazo para o cumprimento das metas do PIMESP:06 Como se pode ver, há uma correlação de forças desfavoráveis à aprovação do PIMESPna USP. Embora isso não signifique que há um reconhecimento da legitimidade de um projeto de cotas para a USP, este contexto reforça a importância de não deixarmos essa pauta esquecida e continuamos na luta contra o PIMESP e por um projeto de cotas legítimo. Cotas sim! PIMESP não!

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universidade e política. 8

Onde estão os negros? Marcelo Soares

Como superar o racismo? É preciso resolver os problemas sociais que mantêm a condição do negro em desigualdade em relação aos brancos. Mas como, concretamente? Racismo Acho que todos já ouviram falar de uma pesquisa que verificou: a maioria dos brasileiros (a) acha que existe preconceito racial e (b) não se considera racista. Concluise daí que muitos consideram que o racismo existe apenas no outro e que deveríamos todos nos considerar racistas. Conclusão perigosa. A asserção “Sou racista” dificulta o justo conhecimento de causa. Ora, se sou racista, devo tentar superar esse “meu racismo”. É essa forma de pensar que possibilita esta outra: “Não sou mais racista, tenho até amigos negros”. É evidente a necessidade do exercício individual de perceber o racismo em você, assim como é importante perceber seus deslizes machistas e homofóbicos. Mas a reflexão deve ser feita nesses novos termos: não mais sou racista , mas o racismo em mim . Afinal, a superação do racismo (bem como do machismo e da homofobia) não se dá por prática

individual de conscientização, mas por ação coletiva e, portanto, política. Essa mudança nos termos da linguagem significa a necessidade de mudar a própria forma como pensamos a questão. A presença do racismo em cada um de nós significa presença na cultura, que é construída pela história, isto é, pelas relações sociais de trabalho e de afeto, pelos valores morais, pelos bens materiais e pelo acesso a eles, pelos espaços públicos e privados e o pelas diferentes oportunidades de estar neles (elementos que interferem um no outro e que se organizam numa hierarquia). Logo, o racismo não é apenas a discriminação individual consciente e a violência explícita, mas toda a forma como se dão absolutamente todas as relações entre negros e brancos (assim como entre índios e nãoíndios, mulheres e homens, mas vou agora restringir a exposição). Se o racismo está nas relações sociais, são elas que precisam ser mudadas, o que não se dá apenas pela boa vontade de um indivíduo.


universidade e política. 9 Para ilustrar a perversidade do racismo no sentido aqui defendido, cito o texto (1) do professor Sílvio Luiz de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama, no momento em que ele comenta o conceito de “ameaça dos estereótipos” (stereotype threat) de Claude Steel: “Basicamente, esse termo designa o estado psicológico de pessoas pertencentes a determinados grupos sociais discriminados que sempre são levadas a corresponder a uma expectativa negativa em torno de suas performances. A desconfiança preconceituosa em relação a certos grupos sociais faz com que seus membros sejam constantemente mal avaliados e percam a autoconfiança, abandonem os estudos, desistam de prestar vestibulares e concursos para carreiras consideradas “mais difíceis” como medicina, direito e engenharia.” Além de sofrerem com a perda da autoconfiança, outro efeito do estereótipo (enfatizo: construído através de relações sociais) é que muitos negros não têm se identificado como negros. Uns reconhecem sua cor, mas preferem termos como pardo (mais leve porque se aproxima do branco), outros nem param para pensar sobre isso. Daí a luta de diversas entidades para que negros se autodeclarem negros, uma forma de indicar não só uma cor, mas toda uma situação de falta de acesso aos bens públicos e de serem as principais vítimas da violência policial, entre diversas outras coisas. É nesse sentido que se diz ser falsa a noção de “democracia racial”. Então como superar o racismo? É preciso resolver os problemas sociais que mantêm a condição do negro em desigualdade em relação aos brancos. Mas como, concretamente? Cotas em concursos públicos são um passo. Identificamos, por exemplo, que a porcentagem de negros nas universidades públicas é cruelmente menor do que o recorte de negros na sociedade. No estado de São Paulo eles correspondem a cerca de 35%, enquanto são aproximadamente 7% na USP (2), e sua participação varia em diferentes cursos nos cursos de medicina, direito e engenharia, são menos de 1% (3).

1 - ”Uma proposta inconstitucional e ilegítima”, sobre o PIMESP, o modelo de inclusão projetado pelo Governo do Estado e pelas Reitoras da USP, UNESP e UNICAMP. Disponível em: http://bit.ly/pimespilegitimo 2 - “USP terá que quintuplicar número de negros para cumprir programa de cotas”, artigo no site do IG em 21 de dezembro de 2012. Disponível em: http://bit.ly/5xnegrosUSP 3 -“Negros são menos de 1% de cursos de ponta da USP”, artigo da revista Exame, 2 de junho de 2012. Disponível em: http://bit.ly/negrosumporcento

Cotas Comenta-se, em resposta, que cotas sociais são suficientes para mudar esse quadro. Será? Em primeiro lugar, devese tomar um critério para as cotas sociais. Se reservarmos uma parcela das vagas para quem estudou em escola pública, a situação não mudará substancialmente. As escolas públicas não recebem todas o mesmo investimento do Estado, não oferecem a mesma qualidade de ensino, não apresentam equivalentes condições de espaço físico e de carga horária dos professores. Hoje, muitos dos que estão na universidade e que vieram de escolas públicas estudaram ou em escolas do interior (que recebem investimento de suas prefeituras ou de outros meios), ou em colégios federais, ou em escolas técnicas. Para alguma dessas escolas inclusive já existe um sistema de seleção antes do ingresso. Consequência: há muitos alunos com boas condições sociais estudando em escolas públicas. Portanto, devemos considerar também a renda familiar per capita. Se estabelecermos um limite pequeno para a renda (como meio salário mínimo por pessoa), muitos negros preencherão essas vagas reservadas, mas serão poucos os cotistas sob esse critério que conseguirão se manter estudando na universidade. Precisamos reconhecer o fato de que condições de permanência (como restaurantes universitários e bolsas de estudos) não são oferecidas na proporção que deveriam. Na USP, por exemplo, ainda há campi em que os estudantes lutam pela construção de prédios de moradia estudantil, e em outros se luta pela ampliação de vagas. Estabelecer um limite de renda familiar muito baixo como critério da cota social significa, na prática, criar cotas falsas. No entanto, à medida que se toma uma renda maior, aumenta também a proporção de brancos em relação a negros. Afinal, todos aceitamos como fato (espero) que os negros estão concentrados nas famílias mais pobres. Desse modo, para se estabelecer um limite de renda razoável para as cotas sociais, são necessárias cotas raciais para equiparar a disputa entre negros e brancos no recorte tomado. Um candidato negro e um candidato branco podem apresentar a mesma renda familiar per capita, mas é o negro que sofre violência policial com maior frequência, é o negro que tem chances menores de conseguir um emprego, é o negro que recebe menos pelo mesmo trabalho, é o negro que foi escravizado desde a chegada dos brancos à América e à África. Comenta-se também que a causa da presença escassa de negros nas universidades públicas se encontra na condição desfalcada do ensino básico e fundamental público. Concordo e adiciono: não só no estado da educação, mas também de moradia, de saúde e de acesso aos bens públicos da cidade. Mas é falácia concluir a partir disso que se deve continua na próxima página >>


universidade e política. 10 primeiro resolver esses problemas. Sabemos que o acesso à educação garante melhores condições de trabalho e de renda. Ou seja, trazer os negros para a universidade pública significa ver, a médio prazo, mudanças acontecendo nos lugares de onde eles vêm - a saber, na periferia, onde estão predominantemente concentrados. É por isso que as cotas são evitadas com toda a força pela direita. Elas são uma forma de melhoramento das condições sociais como um todo. Mas é claro, as cotas sozinhas não trazem todas as mudanças necessárias no combate ao racismo. Violência policial Outra mudança concreta que deve acontecer é na estrutura da segurança pública - correção: nos instrumentos de insegurança de negros e pobres. Esse ponto também nos ajuda a responder: não existe racismo? Ou, em relação a outra linha argumentativa: é difícil determinar quem é

de negros em assuntos policiais, em proporções sempre maiores que a de sua representação na sociedade. Estimase, por exemplo, que dois terços das pessoas executadas por policiais militares são negras. (4) Nas prisões, 20% apresentam ensino superior ou médio completo. Entre os demais, a maioria tem ensino fundamental completo, mas 24% são analfabetos ou apenas alfabetizados. (5) Muitos citam uma fala do ator Morgan Freeman ou argumentam do mesmo modo. Indagado “Como vamos nos livrar do racismo?”, o autor responde “Parando de falar sobre isso”. Para ele - e para muitos outros que agora adotam sua opinião como verdade, uma vez que foi dita por um negro - a supressão linguística dos adjetivos “branco” e “negro” é suficiente para suprimir as desigualdades entre brancos e negros. Reforço: algumas pessoas podem parar de usar as palavras “negro” e “branco”, mas a polícia vai continuar matando mais negros; nas universidades, os negros continuarão sendo poucos. Não podemos confundir situação ideal com atuação concreta e política na realidade. Por fim, uma última consideração. A presença de negros e pobres nas universidades também terá o efeito de trazer os problemas, as contradições e as demandas de fora para dentro da bolha que é a USP, para falar especificamente de nosso caso. Vimos, no ano passado, o movimento estudantil da USP levantar a bandeira da desmilitarização da polícia, mas não tivemos perna para manter forte a luta. O conflito com a polícia em 2011 foi um evento pontual e, portanto, a mobilização foi pontual. Afinal, somos estudantes privilegiados, temos acesso à educação, muitos temos condições de permanecer na universidade, e poucos sofremos preconceito racial e violência policial cotidianamente.

negro? Um policial militar sabe muito bem identificar um negro. Inclusive isso faz parte de seu trabalho: Uma das lutas de entidades negras é por que seja um organismo público de saúde, como o SAMU, o responsável por resgatar os mortos em conflitos com policiais, não a própria PM. Outra pauta é contra o registro de “homicídio proveniente de auto de resistência” nos casos de conflitos em que sabidamente os negros e pobres não prestaram nenhuma ameaça aos policiais - sequer estavam armados, muitas vezes. Recentemente vazou na internet um vídeo que mostra policiais forjando um auto de resistência em favela do Rio, movendo corpos de lugar e falando sobre “socorrer” homens que já estão mortos. São diversas as pesquisas que mostram a incidência maior

No movimento estudantil, costuma-se tratar a questão do negro na chave das “opressões”, no mesmo saco que o machismo e a homofobia. Cada uma dessas relações desiguais entre diferentes grupos tem suas peculiaridades e demandas. Mas uma coisa é certa: há muitas mulheres na USP (há também uma Frente Feminista), há muitos não-heterossexuais na USP (e uma Frente LGBTT), mas há poucos negros e pobres, não há uma Frente dos militantes negros e o Núcleo de Consciência Negra ainda luta por ter seu espaço reconhecido e garantido (6). Portanto, se o movimento estudantil deseja superar a bolha e ser movimento social popular, deve ter clareza de que suas pautas prioritárias também devem ter esse caráter. ϕ 4 - Levantamento do Diário de São Paulo, publicado em 24 de abril de 2013. 5 - Infográfico “Brasil atrás das grades”: http://bit.ly/atrasdasgrades 6 - Abaixo-assinado pela criação da Casa de Cultura Negra da USP, disponível para assinaturas online em http://bit.ly/peticaocasacultura


movimento estudantil. 11

quadrilha agora só na

festa junina Mariana Luppi e Inauê Taiguara

Consideramos essa decisão da Justiça, que evidencia a arbitrariedade das denúncias do Ministério Público, uma vitória para o movimento estudantil e para os movimentos sociais No dia 8 de novembro de 2011, 72 pessoas foram presas durante a reintegração de posse da reitoria da USP. Com base nesse B.O., no dia 06 de fevereiro de 2013 o Ministério Público apresentou uma denúncia contra os estudantes que foram presos, acusando-os, entre outras coisas, de formação de quadrilha. 557 dias após a prisão dos estudantes, no dia 28 de maio de 2013, o juiz Antonio Carlos de Campos Machado Junior rejeitou a denúncia do M.P. Segue a íntegra da decisão emitida pelo juiz, com grifos nossos: SENTENÇA Processo nº: 0023563-10.2011.8.26.0011 Classe - Assunto Inquérito Policial - Quadrilha ou Bando Autor: Justiça Pública

Indiciado: Lahayda Lohara Mamani Poma Dreger e outros Vistos. Trata-se de ação penal movida contra Lahayda Lohara Mamani Poma Dreger e outros por infração ao artigo 163, parágrafo único, III, por três vezes, artigo 253, artigo 288 e artigo 330, todos do Código Penal, c.c. o artigo 65, “ caput”, da Lei nº 9.605/98, nos termos dos artigos 29, “ caput”, e 69, ambos do Código Penal. É o relatório. Decido. Devo consignar, inicialmente, que a descrição feita na denúncia, bem como o noticiado nos meios de comunicação, dão concontinua na próxima página >>


movimento estudantil. 12 ta de que o protesto realizado pelos alunos da USP, longe de representar um legítimo direito de expressão ou contestação, descambou para excessos, constrangimento, atos de vandalismo e quebra de legalidade. Assim, a instauração de um procedimento criminal foi válida, para apurar eventuais práticas delitivas. A presente denúncia, porém, contém impropriedades, que impedem tenha curso a persecução criminal, sob pena de se incorrer em arbitrariedade distinta, e igualmente censurável, de se processar uma gama aleatória de pessoas sem especificar as ações que cada uma tenha, efetivamente, realizado.

Antonio Carlos de Campos Machado Junior Juiz de Direito

Embora ainda caiba recurso, consideramos essa decisão da Justiça, que evidencia a arbitrariedade das denúncias do M.P., uma vitória para o movimento estudantil e para os movimentos sociais. Lembramos que a primeira edição deste jornal veiculou uma entrevista com a comissão jurídica sobre os processos administrativos (“Processos contra os estudantes”), cuja sentença, emitida em janeiro de 2013, puniu os estudantes com até 15 dias de suspensão. Em seu direito, os estudantes punidos entraram com recurso a essa decisões. No entanto, o gabinete da reitoria indeferiu tais pedidos, usurpando a competência do C.O. de julgar tais recursos.

O direito penal, exceto nos regimes de exceção, não compactua com acusações genéricas, que acabam por inviabilizar, muitas vezes, o pleno exercício do direito de defesa. É preciso que o acusado saiba, expressamente, não só as acusações que lhe são imputadas, mas “Prova maior do exagero e sanha qual a conduta que ele, em particular, punitiva que se entrevê na denúncia Mesmo sendo apenas administeria desenvolvido, permitindo, a um, é a imputação do crime de quadril- trativos, apontamos que ainda contrapor-se adequadamente as afirma- ha, como se os setenta estudantes existem processos referentes à ções que lhe recaem, e, a dois, afastar os em questão tivessem-se associado, reintegração de posse da reitoaventados enquadramentos típicos. de maneira estável e permanente, ria. É necessário que os recursos dos estudantes sejam aprepara praticarem crimes, quando à Afirmar, com respeito a setenta ciados e julgados pelo C.O., e evidência sua reunião foi ocasional, réus, que todos praticaram ou aderinão pelo reitor. ram a conduta dos que depredaram informal e pontual, em um contexto as viaturas policiais, ou guarda- crítico bem definido.” Reiteramos que existem provam artefatos explosivos e bombas cessos administrativos e crimicaseiras, recai no campo das ilações, por quem ignora ou nais, politicamente motivados, a estudantes em não mais se lembra da sistemática de funcionamento das decorrência da reintegração de posse da Moradia manifestações estudantis. Retomada, ocorrida no domingo de carnaval de 2012, entre outros processos administrativos a proMuitos ali certamente estavam para, apenas, manifestarem fessores e funcionários, de modo que a luta contra sua indignação, que não é objeto no momento de apreciação os processos persiste. Devemos mobilizar-nos conse certa ou errada. Rotular a todos, sem distinção, como tra a criminalização da luta política na universiagentes ou co-partícipes que concorreram para eclosão dade e para além dela. ϕ dos lamentáveis eventos, sem que se indique o que, individualmente, fizeram, é temerário, injusto e afronta aos princípios jurídicos que norteiam o direito penal, inclusive o que veda a responsabilização objetiva. Prova maior do exagero e sanha punitiva que se entrevê na denúncia é a imputação do crime de quadrilha, como se os setenta estudantes em questão tivessem-se associado, de maneira estável e permanente, para praticarem crimes, quando à evidência sua reunião foi ocasional, informal e pontual, em um contexto crítico bem definido. Isso posto, indefiro a denúncia contra Lahayda Lohara Mamani Poma Dreger e outros, com fundamento no artigo 395, I e II, do Código de Processo Penal. P.R.I.

Leia o artigo “Processos contra os estudantes” no seguinte link: http://issuu.com/caf_usp/docs/jornaldafilosofia0/6 Outro texto relacionado é “Chico e os Processados, de Michel Amary: http://issuu.com/caf_usp/docs/dsm3/14

São Paulo, 27 de maio de 2013.


movimento estudantil. 13

rascunho de uma

ontologia do estudante Duanne Ribeiro gunta em: como se compreende o estudante? A resposta individual a essa questão me aparenta ser a tensão latente em vários debates acadêmico-estudantis. É por visões diferentes do que é ser um estudante que centros acadêmicos propõem políticas distintas, que os alunos se envolvem ou não com atividades políticas. É por visões diferentes de para que o estudo serve e o quanto ele pode me fornecer, que se restrinjem ou expandem os campos de interesse universitário. É por visões diferentes do que a profissão que se terá exige que se formam não só caracte­ rísticas de grupo e de personalidade, mas expectativas em relação à forma como os que não são desse grupo pensam. (Ainda mais, para quem se forma em Filosofia com a pretensão de ser professor, o conceito que ele O que é ser estudante? Como nos compreendemos como estudantes? forma do estudantado determina como lida com seus alunos, o que espera deles e dos demais profesEm alguma das discussões online nos dias posteriores ao sores. O que nossos professores acham que o estudante é? 27 de outubro de 2011, em que ocorreu o confronto com a O que o reitor acha?) PM que desembocou em duas ocupações e em uma greve e continua tendo consequências até hoje, ganhei uma pergunta com a qual venho lidando mais ou menos desde então: o que é ser estudante?

As tentativas mais simplórias de dar uma definição não conseguem dar conta da multiplicidade identitária envolvida. Defini-lo por estudar, por sujeito que estuda, não evidencia o significado próprio que “estudo” assume em momentos variados do tempo. Defini-lo por formação profissional, sujeito formante em uma profissão, novamente, não traz qual o valor de “trabalho” para cada caso individual e nesse mesmo golpe os esvazia, digamos, de ser — na medida em que são caracterizados negativamente, pelo que não são, pelo que um dia virão a se tornar. Essa complicação semântica me aperfeiçoa a per-

Lendo coisas que me caem na mão, tenho uma ideia ou outra de debate sobre os elementos que estão em jogo nessa definição — eixos pelos quais se pode avaliar a pro­blemática que eu esbocei acima. Minha ideia é fazer uma série de resenhas sobre esses textos eventuais cá pro Discurso, explorando vias de debate. Começo pelo O Poder Jovem: História da Participação Política dos Estudantes Brasileiros, de Arthur José Poerner. No final, quem sabe eu chego a responder: — Como eu me compreendo como estudante? Para a qual a resposta atual é: continua na próxima página >>


sociedade. 14 É curioso lembrar que José Genoíno e José Serra estiveram dentro do mesmo movimento, discutindo dentro das mesmas assembleias (onde estarão todos esses nossos conhecidos daqui a 30 anos? Explicando-se por desvios de verba? Implementando grandes ideais?). — Não sei. O Novo Já Nasce Velho O Poder Jovem tem duas partes principais: a primeira, um apanhado da atividade política realizadas por qualquer um que se encaixe no dilatado termo “jovem”, o que pressupõe uma oposição contra o que seja o “velho”; a segunda, a história da União Nacional dos Estudantes, a UNE. Além da UNE o que temos de informação sobre outros agrupamentos estudantis surge bastante resumido, de sobrevoo. A construção de uma articulação unitária e nacional, e, ao longo desse processo, as relações com o Estado (das proximidades maiores ou menores com o Estado, as alianças com o Exército na primeira metade do século XX e a oposição completa no período pós-1964), todos são temas curiosos, assim como é lembrar que José Genoíno e José Serra estiveram dentro do mesmo movimento, discutindo dentro das mesmas assembleias (onde estarão todos esses nossos conhecidos daqui a 30 anos? Explicando-se por desvios de verba? Implementando grandes ideais?). São temas curiosos, mas quero me focar em apenas dois: o aspecto familiar como definidor do sentido dessa oposição jovem X velho; e as condições sociopolíticas variáveis desde a fundação da UNE até o período pós-1960. Esse último é sabido: na história da educação no Brasil, por muito tempo uma parcela insignificante da população tinha acesso ao estudo, e de modo ainda mais restrito ao universitário. Isso implicava em formações identitárias ao redor do privilégio — de um lado os que se compreendiam como figuras de uma elite a que caberia a gestão nacional; e de outro os que se sentiam quase como missionários, a quem caberia ampliar o acesso, universalizar seus privilégios, torná-los direitos. Tratemos esses opostos não como inconciliáveis, e sim como pontos extremos em um continuum. Já a oposição citada recebe uma feição singular nesse trecho: “(...) os velhos – por tal designacão entendidos os pais, professores, autoridades, etc. – funcionem, as mais das vezes, como poderoso agente catalítico da revolta. (…) O adolescente ainda não sabe o que deseja ser, mas já tem a certeza de que não pretende ser aquele pai quadrado e tacanho, que tem por Deus o dinheiro e por diabo o comunismo. O pai que justifica, com um sorriso nos lábios, em nome da “civilização ocidental-cristã”, o assassinato, a napalm, de crianças e adolescentes vietnamitas, e que só lamenta as favelas como fator de perturbação da pais-

agem. O pai que é dado a súbitos e extemporâneos acessos de intimidade para com o filho, quando resolve, num rasgo de pseudogenerosidade, lhe transmitir a bagagem de “experiência” acumulada em astutas calhordices e velhacarias financeiras e mesmo – nos mais “moderninhos” – eróticas, mas que é incapaz de dar aos filhos uma orientação, que dirá uma educação sexual sadia, por considerar imoral o comentário e a consulta sobre essas coisas, quando partem de jovens.” A dissociação em relação à figura dos pais é profissional, política, ética. Funda-se nessa ruptura a “revolta” novas posições éticas, políticas, profissionais. Supondo por óbvio o reverso dessa situação — aquela em que os pais são uma figura a ser alcançada — construímos um outro continuum. O semelhante nos dois continuums é que eles são fatores de influência basilar na criação de identidades. Pensemos na nossa condição: onde estamos na escala elite X missionários? É sequer possível pensar nesses termos? Com a oferta muito maior (seja privada ou pública), o financiamento estudantil e as bolsas, a educação online, o potencial empregatício do técnico, a saturação dos formandos em algumas áreas — tudo isso esgarçou aqueles parâmetros de forma que estudar pode ser entendido (em nível mais intenso do que antes) como uma mera burocracia a mais, sem política ou ética relacionadas. Dizer hoje “Aumentar os recursos para a educação!” não tem o mesmo caráter evidente de eticidade, de saber que você só conseguiu aquilo por estar isolado da grande população. Você está, mas não no mesmo grau, não sob ingerência americana, é outra coisa. E de que maneira nossos pais nos formam? É ainda, quiçá sempre, por aderência ou oposição que nos relacionaremos com eles. Mas me parece que a rigidez que o livro de Poerner descreve não existe mais com tanta força. Assim, o que é ser um estudante parece à deriva sem esses faróis de personalidade. Nós temos, claro, a lembrança dessa história. E pode ser pela imagem dela que se criam identidades. Ser irmanado dos inconfidentes mineiros e dos opositores da Ditadura. Ser a continuidade, pelos tempos, de uma luta. Eis um farol persistente.

--Meu relato sobre os acontecimentos do 27/10/11: http://bit.ly/tirospedras

ϕ


sociedade. 15

sobre criminalidade, corruptos e

corruptores Mariana Luppi

A polêmica sobre a redução da maioridade penal após o assassinato de um estudante da Cásper Líbero ilustra como a sociedade, ou melhor, a opinião pública, tem facilidade de eleger grandes inimigos, acreditando que o combate a eles teria o potencial de resolver, de uma vez por todas, as mazelas sociais. A “criminalidade” — entendida, aliás, bem restritamente, sempre como desrespeito violento à propriedade ou à vida (nesse senso comum em geral não se pensa em agressão à mulher, por exemplo) — é um desses inimigos, construído ideologicamente como se não tivesse origem histórica e fundamento social, como se se restringisse a um fenômeno moral de uma sociedade decadente. Como fenômeno moral, é claro, a única solução se baseia na repressão e punição afinal, não há como prevenir que as pessoas sejam “más” e “cruéis” (exceto, em alguns discursos, pela via da religião). É importante notar também, no entanto, que uma parcela da esquerda que tem clareza de que a espetacularização da violência é usada de forma ideológica, para sustentar medidas repressoras e antidemocráticas, ao mesmo tempo tem dificuldade (ou desinteresse) de identificar essa espetacularização em outro “inimigo” construído: a corrupção. Vejam bem, não estou nem posso estar defendendo um “político corrupto”, considero que eles devam ser punidos, afastados dos cargos etc. e tal. Mas esse está longe de ser o problema do sistema político. É bastante confortável para as mídias e em geral os grandes conglomerados que a toda a opinião pública gire em torno de casos de corrupção, criminalizando os corruptos e não os corruptores, os grandes proprietários que são favorecidos por decisões e ações “escusas”. Transformar os políticos em uma “classe” autônoma, com interesses próprios, só tem a função de confundir os conflitos sociais. O problema é que justamente as posturas de combate à corrupção tendem a recair também no discurso da moralidade, como se os principais esquemas se baseassem na vontade de enriquecer de indivíduos “maus” e “sujos”,

A luta contra a corrupção não pode ser o foco de um questionamento sério sobre a sociedade não na sustentação política de uma classe. Na verdade, a ilegalidade de ações políticas sequer é o melhor critério para avaliar o que é mais deletério para a maioria da população. Tome-se como exemplo a bancada ruralista: mais de um terço do Senado é composto de parlamentares que representam menos de 1% da população: os grandes proprietários rurais. E eles foram eleitos democraticamente. Podem passar seus mandatos sem nenhum desvio de ética. Só de defenderem seus interesses já cometem uma violência e um desvio, já sustentam uma sociedade desigual e exploratória. A luta contra a corrupção não pode ser o foco de um questionamento sério sobre a sociedade. Se observarmos os problemas sociais, a falta de serviços públicos, a desigualdade etc., como resultados da falta de vontade política baseada no egoísmo dos políticos, não temos nenhuma saída. As relações orgânicas entre o capital e o Estado devem ser expostas para que não haja a ilusão de que políticos “limpos” são suficientes para reformar o sistema político. Cabe questionar, inclusive, se o sistema é reformável. ϕ


sociedade. 16

resposta a Contardo

Calligaris pelo texto

“Jovens delinquentes” Rafael Zambonelli Como se não bastasse seu texto defendendo a tortura, o sr. Contardo nos surpreende mais uma vez, agora defendendo a redução da maioridade penal. Na época do primeiro artigo, o problema maior me parecia o fato de ele não ter nenhum senso de responsabilidade histórica, defendendo a tortura no momento em que há uma pressão pelo julgamento dos crimes da ditadura e em que se denunciam os resquícios desse período ainda hoje. No entanto, agora tenho a impressão de que o sr. Contardo sabe muito bem o que está fazendo e o seu artigo, longe de ter sido apenas infeliz em virtude do momento em que foi publicado, mostra um posicionamento político claro e determinado. Esses dois textos não trazem nada de novo às questões tratadas: pelo contrário, eles apenas revelam o autoritarismo de seu autor. Vamos aos argumentos enumerados no artigo: 1. O sr. Contardo diz que não está “legislando sob forte impacto emocional” porque “pensa isso há muito tempo”. Ao que parece, muito tempo de reflexão não bastou para fazer com que o sr. Contardo deixasse de se apoiar apenas em suas convicções pessoais e fosse ler algum estudo sério tanto sobre o sistema carcerário brasileiro quanto sobre a questão da redução da maioridade penal, uma vez que seus “argumentos” não possuem nada além do feijão-com -arroz de sempre; 2. Apesar disso, ele acha que devemos, sim, agir sob forte impacto emocional e que dizer o contrário é fazer o mesmo jogo dos fabricantes de armas nos EUA que, quando “um exterminador invade uma escola”, pedem que esperem as coisas esfriarem, visando ao esquecimento e à desmobilização. A analogia é intrigante, porém falaciosa. A posse de armas de fogo por parte de civis potencializa muito a ocorrência de crimes e acidentes letais: um instante de maior exaltação numa briga de trânsito pode ser o suficiente para que uma pessoa armada atire em alguém, além da possibilidade de acidentes domésticos com armas de fogo envolvendo crianças. A situação, contudo, é bastante diferente no que se refere à violência enquanto fenômeno social, radicado na desigualdade, na exclusão, etc. São duas coisas de naturezas bastante distintas,

de proporções bastante distintas — ainda que não seja possível desenraizar casos como o citado pelo sr. Contardo de uma certa realidade histórica e social —, não há analogia possível; 3. A única consideração racional que o sr. Contardo conhece contra a redução da maioridade penal — ainda bem que ele admite que não é boa — é o fato de o córtex pré-frontal não estar plenamente desenvolvido na adolescência (apreciemos, de passagem, a limitadíssima concepção cientificista que o sr. Contardo tem da razão...). Se esse é o único argumento racional que o sr. Contardo conhece, isso prova não que não haja argumentos para isso, mas apenas a ignorância — ou o cinismo — do sr. Contardo, e confirma o que foi dito no primeiro item; 4. As outras “considerações racionais”, diz o sr. Contardo, são apenas “disfarces de emoções”, a saber: nossa “infantolatria”, a “paixão narcisista que nos faz venerar crianças e jovens porque, graças a eles, esperamos continuar presentes no mundo depois de nossa morte” e que nos faz conceber as crianças como “querubins felizes”, que nos faz “crer” na possibilidade de “mudança” do “caráter” desses “jovens delinquentes”. “Infantolatria” com causas narcisistas? Psicologia barata, não vale nem a pena comentar. A ideia do homem essencialmente mau, tal como o sr. Contardo a coloca, é antes uma justificativa ideológica para o autoritarismo que coloca a culpa numa suposta “natureza humana” em vez de encarar concretamente a questão da violência. É um discurso fácil e dogmático, o que não costuma ser o melhor caminho. Além disso, o sr. Contardo não percebe que seu discurso “inovador” sobre a ineficiência do sistema carcerário no tocante à reabilitação dos pre-

O artigo em pauta foi publicado na Folha de S.Paulo em 18 de abril de 2013. Disponível em: http://bit.ly/contardojovensdelinquentes


sociedade. 17 sos sempre operou em favor de uma ideologia autoritária que justifica a existência de espaços repressivos e de exclusão para a proteção do “cidadão de bem”. Quando, em outro artigo (“Maioridade penal e hipocrisia”, também na Folha, em 15/02/2007, disponível em: http://bit.ly/ maioridadehipocrisia), o sr. Contardo fala mais explicitamente sobre o assunto, ele o faz deslocando totalmente a questão: mais uma vez, o que entra em cena é o narcisismo, a hipocrisia dos indivíduos, que acreditam nessa história de reabilitação porque vão “dormir melhor” assim. Em outras palavras, mais uma vez o sr. Contardo se utiliza de uma psicologia barata para tirar de cena os conflitos e as tensões sociais que subjazem ao problema da violência e da criminalidade. Não há história, não há sociedade, não há política, não há nada além de indivíduos com seus complexos narcísicos. Na verdade, faz parte da prisão tal como ela existe — uma instituição voltada à manutenção da or- Contardo se utiliza de uma psicologia barata para tirar de cena dem pública a partir dos inte- os conflitos e as tensões sociais que subjazem ao problema da violência e da criminalidade resses de uma elite — que ela seja ineficiente e que, portanusar tais casos como “provas” da necessidade de se reto, continue perpetuamente criando inimigos sociais e duzir a maioridade penal pode ser ou ingenuidade ou justificando um discurso do medo que reprime e encarmascaramento de uma posição favorável ao encarceracera principalmente as camadas populares, ocultando mento em massa da juventude — não, evidentemente, uma realidade fortemente marcada pela exclusão social “a” juventude, mas principalmente “certa” juventude e pela opressão. — seguindo a mesma lógica que rege há muito tempo a prisão comum. Citar alguns países em que supostamenO sr. Contardo não comenta o fato bastante conhecido te isso aconteceu não tem significado algum (até porde que a maior parte da (super)população carcerária que é possível contrapor dezenas de outros países nos consiste em criminosos comuns, acusados de crimes de quais jamais ocorreu a redução da maioridade penal, baixa periculosidade como roubo e furto. Isso se confircomo França, Espanha, Alemanha, Áustria, Finlândia, ma também nos dados referentes aos adolescentes, que Holanda, Chile e por aí vai.... Além disso, não sei até por si mesmos já constituiriam uma parte mínima da que ponto os exemplos citados pelo sr. Contardo conpopulação carcerária, mesmo desconsiderando o tipo ferem, pelo que mostram esses artigos, de 2007, no caso de crime. Portanto, a regra é aquilo que o sr. Contardos EUA: “Juvenile Injustice” (http://nyti.ms/12O7c3i) e do joga para segundo plano. A redução da maioridade “Throwing Away Young People: Prison Suicide” (http:// penal proposta significaria não um tratamento especial nyti.ms/14T7TZi). Francamente, sr. Contardo, acho menos casos de exceção, como eventuais casos de psicolhor andarmos na contramão de EUA, Reino Unido, Capatia (citados pelo próprio sr. Contardo no outro texnadá, Austrália e Índia do que seguirmos seu autoritato), mas a ampliação do falido sistema penitenciário rismo andando na contramão dos direitos humanos e de de modo a envolver também os adolescentes. Por isso, qualquer possibilidade de democracia. ϕ


tradução. 18

‘A Questão das Leis ’ Franz Kafka André Alves de Carvalho (Zur Frage der Gesetze, 1920. In: Gesammelte Werke. Taschenbuchausgabe in acht Bänden, Fischer Verlag, Frankfurt 1998) Em geral, nossas leis não são conhecidas. São segredos de um pequeno grupo aristocrático que nos governa. Ainda que estejamos convencidos de que essas leis ancestrais são observadas com exatidão, é um fato extremamente mortificante ser governado segundo leis que nos são desconhecidas. Não penso agora, nas diferentes possibilidades de interpretálas nem nas desvantagens existentes quando apenas alguns poucos indivíduos, e não todo o povo, podem participar desta sua interpretação. Talvez essas desvantagens não sejam tão grandes assim. As leis são de fato tão ancestrais, que os séculos trabalharam na sua exegese, e certamente até essa interpretação já se tornou lei. Na verdade, continuam a existir as liberdades possíveis no ato de interpretar, mas já elas são muito limitadas. Além do mais, é evidente que a nobreza não tem nenhuma motivação na interpretação para se deixar influenciar por seu interesse pessoal em detrimento do nosso, já que as leis foram desde sua origem estabelecida para os nobres, a nobreza está fora da lei e precisamente por isso a lei parece ter sido posta com exclusividade em suas mãos. Naturalmente isso encerra certa sabedoria — quem duvida da sabedoria das leis ancestrais? — mas é também ao mesmo tempo um terrível tormento para nós, provavelmente algo que não podemos evitar. Por outro lado, essas aparentes leis podem na realidade ser apenas pressupostas. Segundo a tradição elas existem e são confiadas à nobreza com um segredo, mas não se trata nem pode tratar-se de mais uma antiga tradição e, por sua antiguidade, digna de fé, pois a natureza dessas leis exige também manter o segredo da sua existência. Mas se nós, o povo, acompanharmos atentamente as ações da nobreza desde os tempos mais distantes, e também possuirmos a respeito delas os registros dos nossos antepassados, daremos a esses registros uma atualidade conscienciosa e acreditaremos reconhecer nos múltiplos fatos, certas diretrizes que permitem concluir sobre esta ou aquela determinação histórica, e se ainda depois destas conclusões, filtradas e ordenadas, procurarmos

nos adaptar de forma um pouco mais cuidadosa em relação ao presente e ao futuro — então tudo isso é incerto e quem sabe, somente um jogo do espírito, uma vez que essas leis que aqui tentamos decifrar, talvez não existam de maneira alguma. Há um pequeno partido que realmente sustenta essa opinião, e tenta provar que, se uma lei existe, ela só pode rezar o seguinte: o que a nobreza faz é lei. Esse partido enxerga somente ações arbitrárias dos nobres e rejeita a tradição popular que, em sua opinião, traz somente pequenos e eventuais benefícios que, pelo contrário e na maior parte das vezes, provocam graves prejuízos, causando ao povo uma segurança falsa, enganosa e superficial, que conduz à leviandade diante dos acontecimentos que estão por vir. Esse prejuízo não pode ser negado, mas a grande maioria do nosso povo vê, como razão disso, o fato de que a tradição ainda não é nem de longe suficiente, havendo assim necessidade de que nela muito mais seja estudado; de qualquer maneira, por enorme que pareça, seu conteúdo ainda é demasiado pequeno, e séculos terão de transcorrer antes que a tradição acumulada seja suficiente. O confuso dessa perspectiva aos olhos do atual só é iluminado pela fé de que surgirá um tempo em que — de certo modo com um suspiro — a tradição e seu estudo chegarão a um ponto final, em que tudo terá ficado claro: a lei pertencerá ao povo e a nobreza desaparecerá. Isso não é dito de modo algum, com ódio da nobreza — e tampouco por ninguém. Devemos antes, odiar a nós mesmos, pois ainda não somos dignos de ter a lei. E na verdade, foi por isso que aquele mesmo partido — muito atraente em certo ponto de vista, e que na verdade não acredita em lei alguma — permaneceu tão pequeno: porque também reconhece plenamente à nobreza seu direito em existir. Decerto, só é possível exprimi-lo numa espécie de contradição: um partido que, junto com a crença nas leis, repudiasse também a nobreza, teria imediatamente o povo inteiro ao seu lado, mas um partido semelhante a esse não poderia surgir porque ninguém ousa repudiar a nobreza. Vivemos sobre o fio desta navalha. Certa vez um escritor resumiu isso do seguinte modo: A única lei visível e isenta de dúvida que nos foi imposta é a nobreza — e dessa única lei haveríamos de privar a nós mesmos? ϕ


resenha. 19

ainda no caminho,

ainda

Maiakovski Rafael Tubone

Uma canção para o meu tempo - o nosso - há muito se escreveu. Encontrei-a nas surpresas preparadas pela sequência de causalidades da vida, escolhas conscientes que me proveram de armas, armas para um combate árduo. Em tempo: para nós, que não pactuamos com os senhores do mundo, o combate é imperioso! Vagando, tal como os vagabundos vagam em busca de um prazer fugaz num copo, num corpo, encontrei-me sem querer com Maiakovski impresso em páginas de livro, museu adornado no qual - por covardia - matamos imediatamente nossa intensa sede de justiça. Para minha surpresa, ele estava acompanhado. Quem nunca ouviu a velha história? Do roubo da flor do jardim? Da morte do cão? Do roubo da luz? Da descoberta do medo? Da voz arrancada da garganta? Do silêncio. Do silêncio. Do silêncio... ? “(...) Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história. Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão,

e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada (...)” Foi caminhando com Maiakovski que Eduardo Alves da Costa entrou para a história da poesia contemporânea do Brasil. No entanto, por muito tempo, devido a um equívoco na epígrafe de um livro, em que era utilizado o trecho que acima está colacionado, atribuindo o excerto a Maiakovski, Eduardo Alves da Costa permaneceu como um dos poetas mais reproduzidos no Brasil, ainda que anonimamente. Coisa que dizem diverti-lo. Poeta alheio a fama, formado em Direito no Mackenzie em 1962 - ressaltando que “já não estava lá quando o Mackenzie ‘ empastelou’ a faculdade de Filosofia, num retorno ao tempo dos hunos” -, compara a poesia com a alquimia: tal como esta, “a poesia é o aumento das vibrações”. Se não acredita nesta comparação, faça um experimento: continua na próxima página >>


resenha. 20 As manifestações mais agudas da crise civilizatória do Capital se mostram cada vez mais explícitas. A social-democracia fracassou; a desregulamentação dos mercados produziu uma baixa da inflação ao custo de um aumento do desemprego e da miséria gigantesco; o mundo árabe se contorce ao cuspir e substituir déspotas mantidos pelo imperialismo. Agonizante, o mundo pede socorro e as condições objetivas o exigem. O que pode ser pedido ao poeta em tal situação?! leia algum poema seu sem esboçar reação. Desafio quase impossível! Ou nos surge um aperto no peito, ou um riso debochado, ou um grito que há muito queria sair, mas não tínhamos coragem. Como um alquimista, o poeta mistura um impactante cunho social - não aquele rasteiro de uma estética repetitiva, mas criativa, inventiva -, com uma linguagem que se associa ao conteúdo de maneira intrínseca. Afinal, “ seja qual o ‘conteúdo’ que o Poeta-Alquimista pretenda fazer chegar ao leitor ouvinte, deve necessariamente decorrer do trabalho exercido sobre a linguagem, ou seja, das associações, entrechoques, absorções, anulações, intensificações, enfim, todas as reações manifestadas pelas palavras em confronto durante o processo poético-alquímico”. E que maravilha não é ver o resultado a que chega nosso alquimista. Transita com facilidade do poema mais incisivo contra a ordem social burguesa, até um poeminha escatológico – que tira sarro do bom comportamento exigido do citoyen. O golpe de misericórdia me parece ser dado num poema destinado ao seu tempo - mas que bem pode ser o nosso. O mundo não melhorou, ou melhor, as manifestações mais agudas da crise civilizatória do Capital se mostram cada vez mais explícitas. A social-democracia fracassou; a desregulamentação dos mercados, que se seguiu à grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, produziu uma baixa da inflação ao custo de um aumento do desemprego e da miséria gigantesco; o mundo árabe se contorce ao cuspir e substituir déspotas mantidos pelo imperialismo. Agonizante, o mundo pede socorro e as condições objetivas o exigem. O que pode ser pedido ao poeta em tal situação?! “Não peças ao poeta uma canção discreta num tempo de conquistas e loucura. Para a liberdade ou para a morte é que o mundo caminha: e isto requer estrutura Quanto te aproximas segurando o copo, em pose estudada, tenho vontade de te dar um murro para que acordes no século vindouro

com a tua problemática suspirante. Ah, meu pequeno, a tua vida! Tua amada te traiu com teu melhor amigo, não suportas o professor de estética e teu pai não te deu o carro prometido. Já não vais à Europa? Tua vida é lixo e teus dias se acrescentam à História como o pipi que as crianças fazem na praia. Queres um minuto de atenção para o teu soluço e me agarras o braço e insistes e te aborreces quando não escuto Espera... na tua agitação deixaste cair uma gota de licor na tua calça de flanela. Aceitas um conselho? Abandona de vez as festinhas de sábado e lança teus nervos distendidos até a outra margem para que os outros, os que vêm depois de ti, encontrem passagem.” (Eduardo Alves da Costa, “Canção para o meu Tempo”) Sigo no caminho, com Maiakovski e Eduardo Alves da Costa.

Leia outros trechos de No Caminho com Maiakóvski - Poesia Reunida no link: http://bit.ly/eduardomaiakovski

ϕ


quadrinhos. 21

desenhos e roteiro: Thiago Fonseca


quadrinhos. 22


conto. 23

pobres de transversal Rafael Tubone

A perfeita montaria, obediente e inteligente naquilo que interessa Retilíneas almas que se deslocam sobre o escoro da régua. Emparedadas por muros brancos e invisíveis a quem nunca se desviou do ideal de culminação, se encontram em abundância hoje, em tempos de encurtamento dos modos de sublimação. Pois, constantemente expostos as fulgurantes telas do esquecimento, caem de teia em teia a apertar o nó que lhes prende o cabresto e lhes apruma a tapa nos olhos. Os freios são utilizados com frequência e assim cria-se a perfeita montaria, obediente e inteligente naquilo que interessa; nos outros aspectos, porém, verdadeiros asnos. Dizer que não têm culpa esses seres é o mesmo que concebê-los incapazes de si, eternas crianças ansiosas de serem servidas e postas em seus devidos lugares. O que de fato me tenta as veias, mas infelizmente me nega os cálculos. Sou de opinião justa de que são todos capazes, me mantém vivo esta, por favor não faça de modo a me provar o contrário. Faltam-lhes apenas compasso e liberdade, um lhes ensinaria a beleza da curva, o outro lhes demonstraria a vertigem de suas paragens. E então todos, até os mais teimosos recuariam frente ao caminho direto e se perderiam por querer nos infinitos destinos do desconhecido.

ϕ


conto. 24

O Condenado Gabriel Bichir

“Dize-me”, diz o homem, “se todos desejam entrar na lei, como se explica que em tantos anos ninguém, além de mim, tenha pretendido fazê-lo?” O guarda percebe que o homem está já às portas da morte, de modo que para alcançar o seu ouvido moribundo ruge sobre ele: “Ninguém senão tu podia entrar aqui pois esta entrada estava destinada apenas para ti. Agora eu me vou e a fecho” (Franz Kafka, O Processo). Há alguns dias deparei-me com um documento de natureza peculiar. Remexia em alguns livros e anotações de um velho amigo já falecido, quando um envelope chamou-me a atenção: ele continha um breve relato escrito a tinta sobre um sujeito condenado à pena capital. Deixo ao leitor a árdua tarefa de julgar até que ponto tal relato seria verídico ou não; conhecendo as propensões literárias de meu amigo, fico tentado a dizer que se trata de mera ficção. No entanto, vi-me demasiadas vezes assombrado por tais ficções para ousar negar-lhes realidade. Multidões reuniam-se fora do presídio. O coro ressoava em uníssono: “inocente, inocente!”. Jornalistas amontoavam-se em meio à massa, atravessando um tortuoso caminho para alcançarem o palanque, onde o orador assim discursava: - Um homem do povo, um trabalhador como qualquer um de vocês! Ficaremos aqui de mãos atadas? Ficaremos olhando enquanto um homem inocente é acusado injustamente e condenado à morte? Seremos indiferentes ao sofrimento do próximo como se não fosse a nossa própria chaga? As autoridades apenas observavam. Os guardas do presídio miravam a multidão de longe, indiferentes a qualquer movimento, esperando pacientemente. Pelo quê? O discurso inflamava o espírito dos presentes, os gritos de muitos fundiam-se estranhamente ao silêncio que emanava do interior da cadeia, numa harmonia digna de ponderação metafísica: - Assassinos! Corruptos! Os presos ouviam a tudo completamente desorientados. Sequer conheciam a identidade do companheiro

que incitava a compaixão do povo, mas já se sentiam entusiasmados com a perspectiva de dias menos monótonos, regozijando-se na escassa possibilidade de serem beneficiados por aquele movimento. Assim como um jovem enamorado que se angustia diante da perspectiva de rever a amada, gozando da espera como a mais sublime forma de desespero, os encarcerados mostravam-se extremamente agitados e punham-se a dialogar entre si e a elaborar teorias fantasiosas sobre quem seria o afortunado colega. Mesmo entre os oficiais e suboficiais do estabelecimento, poucos conheciam a identidade do mártir. Alguns diziam que ele sequer existia, que houvera um engano por parte das autoridades e o verdadeiro homem já estaria morto. Aqueles de maior patente nada compartilhavam com os outros e quando questionados apenas diziam que tal indivíduo era, de fato, real. Certo dia entreouviu-se a seguinte conversa em um dos corredores: - Disseram-me que se ele não comparecer à audiência nada poderá ser feito. De onde vem tanta obstinação? - Segundo me consta, e isso lhe digo em caráter estritamente extraoficial, o homem já foi removido daqui. - Mas como? Conheço sua cela, já me comuniquei com ele, apesar de nunca vê-lo pessoalmente. - Pois eu mesmo julguei vê-lo um dia desses perambulando pelos corredores; resolvi aproximar-me e, de repente, ele tomou a esquerda e desapareceu. Nunca mais o vi desde então. - Parece-me muito curioso... Há algumas semanas fui encarregado de levar a comida para sua cela, e quando retornei a tigela estava vazia! ..................................................................................... Porque eis que hão de vir dias em que dirão: Bem-aventuradas as estéreis, e os ventres que não geraram, e os peitos que não amamentaram! (Lucas 23:29).


conto. 25

Os universitários reuniam-se em bares e ponderavam as consequências político-metafísicas da ultraexposição no interior da sociedade do espetáculo, vendo no pobre sujeito um símbolo de resistência contra a alienação do homem No dia da audiência informou-se que o acusado não compareceu à sessão e que, portanto, não poderia apelar da decisão proferida pelo juiz. Seria executado em duas semanas, por injeção letal. Alguns diziam que havia perdido a vontade de viver; afinal, não eram todos capazes de aguentar tanta pressão e permanecerem sãos. Outros, que tudo havia sido planejado de antemão e que o acusado fora impedido de comparecer ao fórum pelas próprias autoridades, pois temiam que ele revelasse a verdade por trás do caso. Os mais conservadores não hesitavam em ver uma confissão de culpa diante de tão singular proceder. A sociedade cada vez mais se mobilizava para evitar o desastre iminente: dezenas de artigos eram publicados diariamente nos jornais, manifestos com milhares de assinaturas eram enviados às autoridades competentes, buscavam-se por todos os lados parentes e amigos para darem depoimento. Nada. Aparentemente, o acusado recusou-se a dar qualquer entrevista e a falar em público, mesmo tendo aval do diretor do presídio. As pessoas recusavam-se a acreditar que o homem não quisesse ser salvo; não que a vida fosse assim tão digna de ser vivida, ponderavam alguns, mas isso não excluía o fato, exaustivamente provado pela ciência, de que estamos atados a ela por um inexplicável impulso de autoconservação. Ora, que solo infértil poderia abrigar a semente de tão profunda misantropia? Na televisão, psicólogos advogavam a tese de que o condenado sofresse de algum tipo de

depressão ou distúrbio de comportamento originado de um trauma passado. Qual não foi a surpresa de todos quando descobriram que o homem perdera a filha dois anos antes! A pobre criatura padecera de uma enfermidade do coração pouco conhecida pela medicina e não fora tratada a tempo, falecendo a caminho do hospital. Uma semana antes da execução, em uma transmissão ao vivo, o prefeito mostrou-se relativamente flexível em convocar um plebiscito sobre a revogação da pena de morte. Infelizmente, dizia ele, nada poderia ser feito com relação àquele caso específico, já que o acusado recusara-se a participar das audiências e a ser representado por um advogado. Os partidários dos Direitos Humanos reconheceram tal declaração como um relativo ganho social, mas asseguraram que aquilo não bastava para que se fizesse justiça, já que não houvera ocasião para o homem se manifestar publicamente sobre seu crime. Contudo, não deixavam de esboçar certo constrangimento quando especialistas alegavam que tal falta de oportunidade decorria de uma escolha do próprio réu que, em plena posse de suas faculdades mentais, tinha todo o direito de recusar defesa: “Agora iremos forçá-lo a falar e a se expor? Tratá-lo como uma besta? Digamme, há violação maior dos direitos humanos do que obrigar alguém a fazer o que não deseja, justamente no que concerne à sua própria existência, seu bem continua na próxima página >>


conto. 26

xaveco insano

mais valioso?” Um grupo ainda mais radical advogava o recém-criado conceito de “direito à morte”: “Vivemos em uma sociedade hipócrita, todos querem legislar sobre a vida de todos – escrevia um colunista – pois eu digo que se há direito à vida também deve haver direito à morte! Cada um que decida por por conta própria se quer viver ou não. Já dizia Camus que o suicídio...”. Um dia antes da execução toda a cidade só falava nesse assunto. Singular acontecimento! Não havia um único lugar que permitisse uma flanagem desinteressada; em todos os cantos encontrávamos invariavelmente um grupo discorrendo sobre a questão: os mais velhos diziam que no passado cada um podia morrer como bem entendesse, e não havia ninguém para ficar atazanando sua vida por isso. Os universitários reuniam-se em bares e ponderavam as consequências político-metafísicas da ultraexposição no interior da sociedade do espetáculo, vendo no pobre sujeito um símbolo de resistência contra a alienação do homem. Muitas passeatas em favor da paz e da abolição da pena capital foram promovidas nas principais avenidas da cidade; a atmosfera era hostil, mas para o alívio de todos não houve qualquer tipo de conflito com as autoridades. No fim da tarde reuniramse alguns manifestantes diante do presídio, buscando numa tentativa desesperada o conforto de que fizeram todo o possível para evitar tamanha barbárie. Por mais revoltante que fosse o crime, diziam, ninguém merecia ter a própria vida ceifada sem antes ser julgado de maneira justa. A comoção gerada por tais manifestações foi grande, mas não o suficiente para cativar o apaixonado ceticismo das autoridades competentes; afinal, como bem lembrava o diretor do presídio, famoso por suas formulações tautológicas: “Lei é lei”. Já despontava o dia quando os guardas dirigiram-se à cela do acusado para recolher o dízimo daquela existência miserável, apenas... Aqui se interrompe o manuscrito.

OBS: a seguinte passagem foi encontrada junto ao texto, em folha separada, mas não está claro a qual momento da história corresponde. Para não comprometer a integridade do relato, optei por publicá-la à parte, assim como se encontra no original: “Permanecia imóvel diante da entrada. O prédio denotava um ar austero e intimidante; diziam que em breve seria demolido para dar lugar a um hospital, o que talvez reforçasse o efeito melancólico que provocava no espírito. Após descer dois lances de escada e percorrer um estreito corredor parcamente iluminado, chegava-se enfim ao destino em questão. Só restava seguir em diante.” ϕ

Fernanda Reis - Você não pode perguntar essas coisas, a pessoa só pode falar isso se achar que deve - entendeu? - Acabe com minha insônia, por favor. - Ok, eu cheguei perto... mas me retirei quando vi o perigo: eu impedi. - Então não me amou... chegou perto, mas não me amou, é isso? - Ora, entre amar e chegar perto, existe pouca diferença, pouquíssima. Quando se chega perto, o grosso já está feito. Bem, na verdade isso tudo são só palavras... e nem tudo se nomeia. - Sim. Mas eu tenho a minha opinião sobre isto, quer saber? - Fala. - Você me ama e não quer admitir isso, está com medo de ficar a sós comigo e termos uma recaída... - Minha nossa! Você devia passear pela minha cabeça de vez em quando para entender como ela funciona. Eu não ligo muito para os nomes que se dá às coisas, além disso os modos convencionais de se entender o amor não correspondem aos meus. OK, eu não vou conseguir te explicar o que eu penso em cinco minutos, até porque nem eu sei direito, o que eu sei é que os humanos são muito confusos e contraditórios, carentes e vaidosos e no meio desse caos todo, muitas vezes nos perdemos, mas depois nos achamos... e nesse ínterim é que acontece o amor, no meio de toda essa confusão... - Você é incrivel. De onde tira isso? - Mas é. Talvez as coisas não tenham explicação... nós (macacos metidos) é que somos obcecados por explicações, definições, essas coisas. Talvez isso seja uma neurose e desnecessário. Há que se classificar tudo? “então isso é o amor, aquilo é paixão, aquilo é desejo”... dane-se, é tudo caos. As palavras foram inventadas um dia, elas são uma invenção, é só isso que elas são. Elas não afirmam ou legitimam nada, se você tirá-las de cena o que fica é só o caos, os fatos e o caos. - Você me bombardeia com seus argumentos... agora chega de firula e vamos pra cama. - Quando?

ϕ


conto/poesia. 27

o cotidiano e a ‘Ética’ de Espinosa Fernando Rondelli “No mesmo sentido em que se diz que Deus é causa de si mesmo, também se deve dizer que é causa de todas as coisas.” Leio e releio a afirmação. Volto ao início da Ética, às anotações de aula. Já estou virando a cabeça diante do texto, como um daqueles cachorros curiosos que parecem não entender muito bem o que está acontecendo. Chega de Espinosa por hoje. Livro fechado, navegador aberto. Rede social e portal de notícias. Na rede social, um palhaço um tanto assustador salta da tela em protesto: “Bolsa-crack? Talvez eu devesse me viciar também, assim a minha família ganha um dinheiro” Excesso de maquiagem, provavelmente. Deve ter entrado tinta nos olhos do palhacinho, que não conseguiu ler direito a notícia: o dinheiro não vai para o viciado, não vai para a família. Vai para a clínica de tratamento. Clínica particular, é claro, pois estamos em São Paulo. Escolho não falar nada. As últimas tentativas de discutir políticas sociais com “amigos” de internet não foram exatamente um sucesso. Fecho a página. Próximo. Pior ainda. Doutorado em Filosofia, uma dezena de especializações, professor, colunista, comparando bandidos a frentistas. A comparação, na verdade, é entre aquilo que os defensores dos direitos humanos pensam dos “bandidos” e o que pensam dos trabalhadores, como o frentista. Segundo a lógica do colunista, se eu acho que quem rouba ou mata continua sendo um ser humano – o que não significa, nem de longe, defender a prática do roubo ou do assassinato – eu só posso estar me lixando para o trabalhador. “Ser bandido é, antes de tudo, um problema de caráter.”, afirma categoricamente, dois parágrafos depois de escrever: “Hoje em dia, ‘causa social’ serve para tudo, como um dia foram os astros e noutro a vontade dos deuses.” Perguntome se a certeza do autor a respeito da causa da criminalidade é fruto da aparição de alguma divindade. Levanto-me, alongo os braços e o pescoço. Espinosa continua lá, na estante, no mesmo lugar onde o deixei. Abro o livro novamente, juntamente com o caderninho de anotações de aula. “Preconceito é como uma consequência sem premissas.” A frase é uma entre muitas outras escritas com minha péssima caligrafia, mas parece destacar-se após a breve reflexão sobre o texto do colunista e sobre a imagem do palhaço revoltado. ϕ 1 - Espinosa, Ética, I, prop. 25, escólio 2- http://bit.ly/pondebandidofrentista

Feminina carícia Rondino Reg# Está chegando o dia, o momento, em que mulheres e homens viverão plenamente. Suas vidas, sonhos, Sentimentos e desejos. Em que nossas diferenças serão motivo de encontro de infinitas possibilidades de autoconhecimento e regozijo. Sem opressão, recalque, ou mandonismo. Está chegando. Sinto como se ouvisse o estrondo das ondas do mar que ainda não chegaram no sertão de nossas existências. Mas ouço. Me assusto e me alegro. Nossas vidas e entranhas nos levam à busca de uma vida supimpamente melhor. Muito melhor. A luta sindical, social, política, os confrontos e as prisões impostas e as que criamos) não têm frutos se em seu cerne a força da mulher, a Gaia, a Mãe Terra não estiver no centro e em todo lugar cuidando da vida. A carícia essencial. Como diz o poeta das esquinas da memória, as mulheres são fundamentais. Parabéns à você. Hoje não, toda hora, todo dia. No que já foi e ainda será. 8/3/2007


poesia. 28 todos os poemas nesta página: Rondino Reg#

Quem sabe... Quem sabe, um dia o masculino mundo aprenderá com a feminina sensibilidade e seu cuidado com a vida e tudo que vive. Quem sabe, todo mês, toda hora faremos homenagens às mulheres. Mais que isso, nos libertaremos juntos.

Quem sabe, a mulher também consiga superar os grilhões da cultura machista eu e mais homens, meninos, crianças navegaremos na memória infinita das mulheres e no seu eterno acalanto que nos acaricia a alma Quem sabe... março de 2008

Arquiteta arquiteta mulher desenha nossos sonhos rabisca nossos desejos mede nossas paixões passa a régua em nossos medos escala nossos corpos traça devaneios arquiteta amores arquiteta mulher arqui teta o teto sem fim de nossos exageros 8/3/2012

Mulher do morro Vem mulher Que vou acarinhar seus pés Beijar e chupar seus dedos Massagear seu corpo teso Lamber e tocar Todas suas úmidas partes E me entregar

Em suas mãos, boca, Língua, olhos, nariz e Tudo mais que você trouxer. Vem, desce a ladeira já Se esquentando Pra fervermos em plena manhã. Vem. 30/3/2011


poesia. 29

À Última Cachaça Bruno Rosa 1. O filósofo fala: O que o bêbado sempre quer indo aos saltos de copo em copo é chegar ao cálice extremo onde a aufhebung se dissolve. Num absoluto que se dá como límpido copo d’água sem mostrar os senões do sotaque forte de cachaça. Este absoluto que aqui Tem-se forte, mas dissolvido, Tem-se como quando o rio Vem no estouro, rompendo dique. 2. O pintor fala: O que o bêbado ainda quer No afã de achar o último copo De saciar sua sede extrema De um rio retesado num gole. É alçar, indo de copo em copo,

Àquela atmosfera limpa (Sem o mórbido e excessivo) Arrasada até sua caliça. Chegar àquele aéreo solo De uma paisagem em grau zero Onde nada cerceie o voo Desse corpo, nada ulcere-o. 3. O arquiteto fala: E descendo desde essa aérea Paisagem-zero frequentada Vem aos saltos, vem aos tropeços Dos bêbedos pelas calçadas. Onde tudo fosse estranheza Nesse mundo multiplicado Por mil quinas, mil arestas Mil cárceres à alma-alada. Ei-lo de volta a este mundo Sem coisa alguma que amorteça O choque de quando entre coisas Se vai aos trancos, sem leveza.

*** Talvez daí a nostalgia que nos bêbados se advinha nostalgia de um mundo leve um mundo árido, mas alegre; Nostalgia ainda de um mundo que só o álcool prefigura na atmosfera que ele cria onde o álcool é travessia. É atmosfera que se alcança Quando se lava-se em cândida. É atmosfera conquistada quem não teme a última cachaça.

São Paulo, 1/5/2013


poesia. 30

ideias soltas devem ser condenadas a fogueira Rachel Faleiros

Doravante longínquas terras tenham me trazido até aqui, que saberá de justificativa alguma que não a posterior a qualquer entendimento? Pasmem, vãs filosofias, que isso saià contragosto da lógica. Deduzam, àqueles que puderem, o chamariz basilar de uma pretensa colocação que mal cede a injustaposição do não ser, quiçá, do não existir. Malogrados os reis, padres, poetas e atrizes. Sonharam, um dia, em representar o que o mais rico dos homens jamais compreenderá, mesmo porque esse nem a riqueza conhece, visto que é desprovido dessa necessidade que lhe é tão alheia à sua bruta imanência universal mais que invejável. Adeus às folhas soltas, páginas das árvores leves sem raízes que podem ser investidas nesse estado a que se agregam ao mundo real. Que coisa me fez querer partir e repartir o que sou do que eu vejo? Ou o que eu sinto do que eu sou? Ou o que eu escrevo do que eu espero poder escrever sem qualquer culpa ou com qualquer linearidade e vantagem para os dedos e o pensamento? Abra-te, Sésamo! Olha, não sei quanto a indecisão. Foram os fortes de Copacabana que receberam os menestréis? Dizem, alguns, que a chama vazia do intento é parte do querer. Sóbrios, vãos, maltratam a sua própria natureza. Proposições, ao léu, sem qualquer preocupação com diálogos. Ideias soltas e largadas devem ser condenadas à fogueira, inquiram-nas! Inquiram-nas! 19/4/2012


poesia. 31

Pra você, eu sou você Inauê Taiguara Não gosto de ser breve tampouco gosto quando demoro minha conversa é leve mansa e fluída, e só é entendida por aqueles que me conhecem as vezes faltam palavras, é verdade, mas antes faltem elas que a sinceridade

um poema do tédio Duanne Ribeiro

na aula sobre Pascal, o ruído dos grilos me interessa mais que o amor de deus. caem esperanças em mim. esses insetinhos verdes, vindos cá de fora, que eu não mato por conta do nome.

Se presto, não é pelas palavras mas pelos gestos. Reflexo.


rodapĂŠ: CAF em 1994. 32


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