O DISCU RSO SEM MÉTODO um jornal a serviço da dúvida. out/nov 2012
nº
2
ME, sociedade e falha estratégica Inauê Taiguara. p.8
A movimentação política do fim do ano passado e início deste ano não conseguiu o reconhecimento da legitimidade das reivindicações de um grupo politicamente organizado e o atendimento dessas demandas por parte da autoridade competente. Por que?
filosofia oriental? no departamento? Lucas Nascimento Machado. p.14
uma oração punk contra Vladimir Putin André Paes Leme. p.24
publicação dos estudantes de Filosofia da FFLCH/USP
odiscursosemmetodo.wordpress.com
editorial. 2
cartesianismo tropical Editorial Alto lá, caro(a) leitor(a)! Sim, você se encontra na FFLCH e este impresso lhe foi oferecido sem nenhuma forma de contrapartida. Isto, entretanto, não significa que se trate simplesmente de mais um informe, circular, panfleto pronto a oferecer a verdade última sobre o fim do calendário Maia, da luta de classes ou da carreira política de José Serra (ainda que esta última já seja praticamente um dado objetivo). Desse modo, tal impresso modestamente reivindica destino um tanto mais nobre do que aquele que costumamos oferecer aos anteriores. Seu nome, Discurso sem Método, parece ser fruto dos convulsivos anseios, nutridos pelos estudantes do curso de Filosofia, por algo que podemos chamar de um estranho e ainda informe (anti) cartesianismo tropical. Digo parece, pois, tendo tal epíteto emergido como vitorioso em uma acirrada disputa eleitoral (realizada em urna física e no site do CAF) dirigida, ironicamente, por preceitos e MÉTODO de cunho democratico, talvez ainda seja cedo para afirmar a quais desejos e expectativas ele vem atender. Por outro lado, o que podemos dizer com certeza é que este impresso orgulha-se desde já de responder a intensa necessidade de comunicação interna e externa dos estudantes deste departamento, coisa que podemos verificar com as duas primeiras edições experimentais, ainda sob o título genérico de Jornal da Filosofia. Ele procurará desempenhar este papel da melhor maneira possível e como não poderia deixar de ser com uma estrutura organizativa horizontal e aberta a todos os interessados em colaborar com o seu desenvolvimento. Buscando fazer jus a alcunha desfilam pelas páginas da presente edição artigos sobre conjuntura política, filosofia, resenhas de livros, crônicas, experimentações literárias, tudo isso acompanhado das excelentes ilustrações de Thiago Fonseca. Começamos com a coluna do CAF, que, buscando enfrentar as agruras da distinção entre entidade e gestão, mostra o quão poderoso pode ser o GÊNIO MALIGNO da representação (estudantil). Enquanto isso, em sua empedernida batalha pelas instituições, André Botelho Scholz, oferece, por meio de uma demonstração mais quixotesca do que propriamente cartesiana, a PROVA ONTOLÓGICA DA EXISTÊNCIA DA... esfera pública. O Retrato Calado, de Sa-
linas Fortes, vigorosamente resenhado por Michel Amary, se junta ao emblemático caso do grupo punk-feminista Pussy Riots, em uma estranha história da Rússia moderna aventada por André Paes Leme, para ilustrar a cínica MORAL PROVISÓRIA que determina a práxis de regimes autoritários aqui e lá/ontem e hoje. A “golpes de açougueiro lógico”, Gabriel Philipson descreve, com o simbólico título “Em volta, carne morta”, o espúrio e sofisticado necrológio a que se tem resumido a dissecação acadêmica da História da Filosofia. Talvez próxima a ele esteja a indagação de Lucas Nascimento: “Filosofia Oriental, por que não?” Uma pertinente discussão sobre o que a filosofia (acadêmica) é ou não é. Em aparente defesa dos critérios de CLAREZA E DISTINÇÃO, Igor CSC retoma o conhecido embate do físico Sokal com o nonsense que, segundo ele, dominaria os Cultural Studies e as apropriações de teorias científicas realizadas pela French Theory. Igor contribui ainda com a tradução de uma brilhante reflexão sobre o valor da poesia na construção do sentido de uma vida humana. “O Fogo da Vida” é também o último texto escrito pelo filósofo norte-americano Richard Rorty. Enfim, assunto para muitas MEDITAÇÕES METAFÍSICAS. Entre os inclassificáveis, Lucas Paolo nos propõe um “Exercício de Linguagem” quase tão improvável quanto os contos pós-beckett-dostoievski-drummondianos de Caio Sarack. E restam ainda poesias, crônicas, além da já clássica cruzadinha filosófica, sempre elaborada por Inauê Taiguara. Por fim, resta informar que a periodicidade deste impresso, ou melhor, do Discurso sem Método, passará a ser bimensal. A adoção de tal ínterim busca garantir a este periódico, que se pretende o veículo de (diferentes) ideias entre os estudantes de filosofia, uma melhor qualidade. Mais uma vez agradecemos a todos que tem colaborado com este Jornal e informamos que para o início do período letivo do ano que vem pretendemos fazer uma edição especial, portanto, enviem seus textos para ..., pois quanto maior a participação, mais poderemos conhecer as nuances de nosso curso. Bom fim de semestre a todos, E até ano que vem!
editorial. 3
Expediente Alberto Sartorelli André Paes Leme André Scholz Bruno Bernardo Caio Mello Duanne Ribeiro (diagramação) Gabriel Philipson Inauê Taiguara (edição) Igor de C. e S.C. Juliano Bonamigo Lucas Paolo Lucas Nascimento Machado Mariana Luppi (revisão) Monica Marques (diagramação) Michel Amary Thiago Fonseca (ilustrações)
tribuna do pequeno poder festa não-autorizada......................................13 André Scholz acadêmico filosofia oriental: por que não?....................14 Lucas Nascimento Machado em volta, carne morta....................................17 Gabriel Philipson o legado de Sokal: dezesseis anos depois do affair..................18 Igor de C. e S.C. crônica erasmo marmieládov....................................20 Caio Mello
Agradecimentos
os retratos de Salinas....................................21 Michel Amary
a Johannes Gutenberg;
tradução
à gestão CAFcofonia; à Comunicação Social da FFLCH; a todos os que participaram da votação do nome
Índice agenda e notas nome, calendário e classificados (?)..............4-5
“o fogo da vida”, de Richard Rorty.................22 Igor de C. e S.C. movimentos sociais somos todos Pussy Riot!.............................24 André Paes Leme poesia.............................................................27 poema sem-título Bruno Bernardo
manual de como envenenar exercício de linguagem...................................5 a tinta de uma caneta Lucas Paolo Alberto Sartorelli coluna do CAF rodapé.............................................................28 o CAF, a gestão e o jornal................................5 Cruzadinhas universidade e política erro de cálculo do ME ‘da USP’......................8 Inauê Taiguara movimento estudantil eu me importo com esse debate: espaço estudantil, espaço comunitário......10 André Scholz
edições anteriores: número 0: issuu.com/caf_usp/docs/jornaldafilosofia0 número 1: issuu.com/caf_usp/docs/jornaldafilosofia1
agenda e notas. 4
Habemus Nome!
calendário
Eis os resultados da votação do nome do jornal:
político-estudantil:
Votos na urna física: 77 11 - O Discurso sem Método – Um Jornal a serviço da dúvida; 9 - Dissenso; 8 - O Estado das coisas; 7 - Gazeta Dialética; 7 - Jornal da Filosofia; 5 - Jornal da Filó; 5 - O Martelo; 4 - Ágora; 3 - O Diário da Coisa em si; 2 - Res Extensa; (os demais tiveram um voto ou menos votos)
- eleição do CAF até 21/11: inscrição de chapas; 27-29/11: votação em urna.
Votos online: 54 11 - O Discurso sem Método – Um Jornal a serviço da dúvida; 7 - Dissenso; 7 - Gazeta Dialética; 6 - Jornal da Filosofia; 5 - Ágora; 4 - O Estado das coisas; 3 - Jornal da Filó; 2- Cafolha; 2 - DesCurso; 2 - Pré-Socrático; (os demais tiveram um voto ou menos votos) Total de votos: 131 22 - O Discurso sem Método – Um Jornal a serviço da dúvida; 16 - Dissenso; 14 - A Gazeta Dialética; 13 - Jornal da Filosofia; 12 - O Estado das Coisas De modo que, parece que nosso Jornal da Filosofia agora se chama O Discurso sem Método – Um Jornal a Serviço da Dúvida. Parabéns!
- eleição do DCE até 09/11: inscrição de chapas; 27-29/11: votação em urna (na mesma mesa!) - 09/11: ato contra a retirada da comunidade GuaraniKaiowá (aldeias Passo Piraju e Pyelito Kue no MS)
acadêmico-estudantil: - de 27/11 a 03/12: Período de Matrícula dos Alunos para o 1º semestre de 2013 (1ª Interação) - 06 e 7: 1ª Consolidação das matriculas. - 08/12: Encerramento das Aulas. - de 10 a 13/12: 2ª Interação de matrícula. - de 17 a 19/12: 2ª Consolidação das matriculas. - de 20/12 a 03/01: 3ª e última Interação de matrícula. - de 07 a 09/01/2013: 3ª e última Consolidação das matrículas. - O primeiro semestre letivo do ano de 2013 irá de 25/02 a 29/06 (98 dias letivos). (Dados: https://uspdigital.usp.br/jupiterweb/jupCalendario.jsp?codmnu=2213)
participe do jornal! Envie artigos, traduções, contos, crônicas, poesia, manifestos, comentários; ajude na edição; colabore com a diagramação. A produção do jornal é aberta a todos os alunos da Filosofia, com discussões presenciais e online.
agenda e notas. 5
classificados (?)
Lucas Paolo Digamos que o escrivão se encontrava em seu escritório e que o cubículo foi adentrado por alguém que devia lhe servir café e que nesse ínterim imprópria pergunta saltou aos olhos do subserviente e que o escrivão que escrevia notou a pergunta e aprontou uma resposta e que na ausência de resposta à resposta o escrivão decidiu improvisar uma reformulação e que assim aprumando as coisas eu pude organizar o debate teórico e oferecer uma definição. Precariado – corruptela apressadamente cunhada por escrivão funcionário de um livre-docente pósautônomo aposentado. Termo empregado para designar abreviadamente aquela parcela da população que não possui adequada conformação psicossocialjurídica aos dispositivos em voga na vida das duas classes dominantes, a saber, o burguesariado – termo cu nhado pelo escrivão para designar o movimento de
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Exercício de linguagem
redenção das lutas de classes, matrimônio feliz de burguesia e proletariado, ocorrido ao longo do século XX, e que correu para uma sedimentação possibilitada pelo consumo universalizado – e o pós-autonomiado – também cunhado pelo escrivão, termo designa a parcela da população que apoiada no trabalho e na aceitação do burguesariado, constrói bases sólidas de reflexão e distintos modos de vida que transcendem a conformação psicossocialjurídica hodierna; possuem na anomia o fundamento para implementarem a superação da autonomia como principal tarefa dos novos sujeitos insurgentes. O termo “precariado” não agradou ao patrão por - dentro do novo acordo ortográfico em vigência - possibilitar equívocos hermenêuticos e confusões odonto-ontológicas. Encaminhou-se, assim, mais que apressadamente o escrivão a sua merecidíssima demissão. O escrivão ganhou, desde então, o olho da rua.
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coluna do CAF. 6
o CAF, a gestão e o
Jornal
Talvez convenha, antes de mais nada, lembrar das diferentes posições que vemos por dentro da tal massa chamada “movimento estudantil”. Além dos diferentes partidos que atuam e das relações diferentes com os recortes da comunidade externa à universidade, a distinção que mais nos interessa neste texto é sobre o papel conferido às instituições. Grosso modo, há aquela posição de que o esforço deve ser empreendido fora das instituições estabelecidas, sendo sua intenção pressionálas, não disputá-las. A outra consiste em um esforço de estar inserido na estrutura e buscar mudanças por dentro. Se essas posições não definem comportamentos totais de indivíduos ou de grupos, pelo menos elas orientam a tomada de decisões em casos particulares. Um exemplo: como deve agir o movimento estudantil em busca de maior participação nas instâncias deliberativas das unidades e da universidade? Essa pergunta não só põe em questão a possibilidade real de hierarquizar as estratégias, como também – e quem sabe principalmente – a necessidade de uma ação única e totalizadora da massa “movimento estudantil”. Mas esse ponto fica para depois. Por ora, pensemos na posição do CAF nesse quadro. Trata-se de uma instituição estudantil inserida em uma estrutura universitária, possuindo assim relações de diferentes graus e natureza com as outras instituições: o departamento de filosofia, a diretoria da FFLCH, os outros centros acadêmicos da faculdade, o DCE, centros acadêmicos mais distantes, o Sindicato dos Trabalhadores da USP, a prefeitura do campus etc. É uma possibilidade lógica que uma gestão opte por ir contra o departamento de seu curso e com a administração de sua faculdade, visando a pressioná-las por fora, mas nossa gestão considera essa escolha no mínimo complicada enquanto entidade. Distingamos também, portanto, gestão e entidade. A gestão do centro acadêmico consiste na chapa vencedora nas eleições – costumam existir três ou quatro nas Ciências Sociais, por exemplo, e em nosso caso, temos a tradição de chapa única, e a última eleita, quem lhes escreve, é a gestão Cafcofonia. Já a entidade é a instituição que, em teoria, representa as pessoas de um grupo (nosso caso: os estudantes de Filosofia). Dizemos “em teoria” porque já há um tempo vem sendo feita a crítica ao critério da representação para estabelecer legitimidade e à possibilidade mesma de se representar uma vontade geral
abstrata, preferimos pensar a entidade enquanto espaço de construção coletiva da vida política. De modo que, se por um lado sabemos que CAF e gestão se diferem, por outro acreditamos que gestão e estudantes dispostos a participar da construção – política, artística, acadêmica, etc. – do curso podem e devem se articular conjuntamente. Interpretar a atual gestão como um grupo que pretende fechar-se em si mesmo, em uma atitude militontesca, é, no mínimo, demonstrar desconhecimento de causa. A distinção entre entidade e gestão é perdida quando o centro acadêmico se torna instrumento de atuação de um grupo em benefício próprio. Do ponto de vista do movimento estudantil, em geral, a USP é um verdadeiro jogo de War: quanto mais centros acadêmicos seu coletivo ou grupo possuir e quanto mais soldados aí estiverem inseridos, maior será seu poder de direção e de decisão em conselhos de centros acadêmicos e maior será o recrutamento de novos militontos. O que deveria ser garantia mínima das gestões de centros acadêmicos – que a entidade esteja em contato direto com seus estudantes – se torna posição política que também precisa entrar em disputa. A última passagem de gestões do centro acadêmico da Letras (CAELL), quando o PSTU saiu e o MES-PSOL entrou, significou, por exemplo, um rearranjo do diálogo (para não falar “negociações”) entre esses dois grupos que compõem a atual gestão do DCE. Citamos isso a fim de indicar que existe uma diferença entre a gestão do CAF e a de CAs que são geridos por alguns coletivos políticos, e que essa nunca foi a realidade da filosofia. Porém, faz-se importante lembrar que o CAF está nesse contexto de disputa. É compromisso de nossa gestão do CAF que os interesses de grupos isolados não pautem o trabalho que se faz em nosso curso – o que, no entanto, não impede que quaisquer propostas sejam consideradas, independentemente de sua origem. A realização do Jornal da Filosofia é expressão de sucesso nesse sentido. Se se afirma que ele é “autoorganizado” ou “independente” do CAF, entende-se simplesmente que as pessoas que o organizam são majoritariamente pessoas de fora da atual gestão, o que é ótimo! Afinal, se o jornal está dando certo, os diretores do centro acadêmico podem se ocupar de mais outras tarefas, como a eleição de representantes discentes, a campanha por uma Comissão da Verdade da USP etc. Logo, não há nenhuma contraposição entre o jornal e “o CAF” – na
coluna do CAF. 7
verdade, a gestão do CAF. Afirmar isso somente faria sentido se se tratasse de uma produção que deseja se afirmar independente de um centro acadêmico aparelhado por algum grupo indisposto a construir atividades com todos os alunos (e que mantivesse reuniões fechadas, entre outras características). O jornal é do CAF no sentido em que é de todos os estudantes de filosofia. Lembramos que a decisão de criar o jornal foi uma deliberação de uma assembleia dos estudantes de Filosofia, decisão esta que a atual gestão fez o possível para viabilizar, possibilitando, por exemplo, que essa deliberação se valesse das vias institucionais do CAF para se concretizar, bem como contribuindo com a divulgação, atualizando o mural, participando da organização da eleição do nome, que pretendeu abarcar o máximo de estudantes. Agora, não nos interessa a vaidade de dizer que se trata de uma iniciativa de nossa gestão, nós nos satisfazemos por ter garantido espaço para que ele se formasse com a participação de estudantes fora da gestão. Reconhecemos também que mais poderia estar sendo feito, como a ideia antiga de um cineclube ou de um grupo de estudos sobre a universidade, indicando nossa concepção de que a vida universitária se estende para além das salas de aula. Mas por haver poucas pessoas na gestão e pela impossibilidade de dedicação exclusiva (afinal, também estudamos e trabalhamos), nos vemos constantemente com mais ideias do que com pernas, fracassando algumas vezes em exercer o papel da entidade de articular diferentes atividades estudantis – inclusive aquelas em diálogo com professores e funcionários, como o Diálogos Sinceros. Aliás, a diferença mais evidente entre qualquer grupo político que se organize e os membros
da gestão propriamente dita é que estes estão comprometidos com os calendários institu cionais, da entidade CAF, que amiúde excede o calendário da própria gestão. Por exemplo, o calendário institucional pode alte rar-se bruscamente, de um dia para o outro, o que exige uma atenção e dedicação extra por parte dos membros da gestão. Talvez seja devido a essa res ponsabilidade, assumi da no momento das eleições, que o número de membros na gestão seja, historicamente, tão baixo. E é, em geral, quando os membros da gestão tentam dar conta de seu calendário enquanto gestão e do calendário da en tidade que muitas vezes falta perna. Nossa abertura permanente à participação de qualquer estudante de filosofia – entendendo por participação, aliás, muito mais do que os costumes da vida militonta – não é pedido encarecido por ajuda para realizar atividades, mas uma decisão política! Não somos nós o movimento estudantil da Filosofia e quem quiser, que nos acompanhe. Se temos críticas ao que o movimento estudantil da USP vem fazendo – como temos –, então vamos apresentar contrapropostas pondo-as em prática em nosso curso: garantir um jornal em que não há predominância daquela repetição industrial de ideias e jargões, mudar o formato da reunião do CAF (por que não passar filmes curtos e debatê-los, por que não organizar discussões temáticas para além das coisas que precisam ser encaminhadas em reunião?), tornar o mural um espaço também profícuo à expressão dos estudantes, repensar a forma de se tirar decisões coletivas. Tomar o CAF como um espaço maior que a própria gestão não só permite a participação de mais estudantes, como também afasta a atitude de atribuir a responsabilidade de realização de atividades somente ao grupo restrito eleito para ser gestão. Em verdade, acreditamos que o poder de atuação do CAF aumenta se mais pessoas participam das discussões e execuções. Temos nossas reuniões abertas todas as segundas-feiras às 18h, também temos nossos corredores e iniciativas como o Jornal! Mas é preciso articular. ϕ
universidade e política. 8
erro de cálculo do ME “da USP” Inauê Taiguara Durante a movimentação política do final do ano passado na USP, mais especificamente durante a greve estudantil, um ponto específico foi demasiadamente martelado em todos os cantos: “Fora PM da USP!”. Este foi o slogan criado quando o convênio USP-PM foi assinado e que se amplificou no dia 27 de outubro, quando três estudantes foram detidos pela PM dentro do campus Butantã, ganhando maior destaque após o cumprimento de reintegração de posse do prédio da reitoria, fato este que resultou na prisão de 73 pessoas e na deflagração da Greve. “Fora PM da USP!” foi a palavra de ordem que pautou a mobilização dos estudantes – sendo também fator desagregador, pois estreitou plebiscitariamente o apoio à greve, dividindo os estudantes no debate superficial contra ou a favor da PM, sendo que haviam bem mais coisas em jogo. Quando a movimentação se iniciou, em defesa dos três estudantes que foram presos por portar maconha, imediatamente um estereótipo bastante negativo dos ma-
nifestantes foi imaginado e veiculado nos meios de comunicação. Porém, muito pouco foi feito por parte dos estudantes para desfazer esta imagem e apresentar os motivos profundos que levariam à greve pouco mais de uma semana depois, e chego mesmo a pensar que algumas atitudes pontuais, tais como focar as críticas no fato da PM estar no campus, tão somente fortaleceram para tornar mais caricatural o movimento estudantil da USP aos olhos da população. Recorro a um exemplo, vejam a cena: uma grande bandeira com os dizeres “Fora PM da USP!” puxando um ato na Av. Paulista e apresentando o ponto de vista dos estudantes à população. Qual é afinal o efeito desta bandeira na sociedade? A meu ver, não é nenhum pouco favorável a conseguir o que se espera, a saber, primeiro o reconhecimento da legitimidade das reivindicações de um grupo politicamente organizado e depois o atendimento das reivindicações por parte da autoridade competente. E por quê? De um lado existem aqueles que defendem a PM e acreditam cegamente na importância e necessidade de tal instituição, mantida exatamente nos moldes em que ela atualmente se encontra. Quando veem estudantes protestando contra a presença da PM “na USP” – informados unilateralmente por meios de comunicação sensacionalistas – a sua reação natural será a de pensar: “se eles não querem a PM perto deles, é porque estão fazendo coisas erradas. A PM tem mais é que estar lá!”.
Pergunta-se o cidadão comum: qual o propósito de querer que a PM não frequente a USP?
Doutro lado existem aqueles que conhecem, no seu dia a dia, e de forma bem mais intensa, a forma truculenta de agir da PM e não contam com a visibilidade que os estudantes da USP contam, quando querem protestar. Quando estes cidadãos veem estudantes protestando pela saída da PM “da USP”, muitos deles são levados a pensar, e com razão, que a atuação da PM no campus é fichinha quando comparada a forma com que ela atua cotidianamente nos bairros da periferia. A consequência acaba sendo que muitos destes cidadãos – que reconhecem a legitimidade da pauta – também não
universidade e política. 9 Incursões da PM na Cracolândia e Pinheirinho: Quem sabe se tivéssemos oferecido uma resposta mais organizada estes outros eventos tivessem se dado de outra maneira, ao menos no que tange a resposta da sociedade diante deles. De modo que não conseguimos em nossas manifestasimpatizam com as reivindicações do ME da USP, pensando que estamos muito preocupados com nossos próprios problemas e que acabamos por vê-los maiores do que são.
ções o apoio da sociedade civil. Ora, o fato é que o ME precisa justamente deste apoio, pois é a opinião da sociedade que faria a pressão necessária para que as autoridades competentes atendam as reivindicações – em especial no caso de uma greve estudantil, na qual não há um setor da economia sendo lesado. Se não temos modos de nos defendermos nos meios de comunicação que veiculam aquele estereótipo sensacionalista, precisamos, no mínimo, tomar mais cuidado com as bandeiras que levantamos e com os atos que potencialmente nos representam, refletindo previamente sobre as suas consequências. Fazemos atos na Av. Paulista para sermos vistos e darmos visibilidade a nossas reivindicações e, no entanto, o que mostramos veio a nos prejudicar. O “Fora PM da USP!”, que pode ter efeitos positivos dentro do campus, é um tiro pela culatra na Paulista, afinal, pergunta-se o cidadão comum, qual o propósito de querer que a PM não frequente o espaço físico da USP? Eis que as reivindicações do ME da USP parecem reduzidas a esta questão superficial e, por isso mesmo, esvaziadas de importância. É claro que os estudantes que levantaram a bandeira “Fora PM da USP” por certo tinham em vista fazer uma crítica à forma de atuação da PM em qualquer contexto político-social, mas na hora de apresentar o questionamento, restringiram-no ao lado interno dos muros dos Campi. A bandeira à sociedade não deveria ser “Fora PM da USP”, mas talvez “Fim da Violência da PM” ou “Reivindicação Política não é caso de PM” ou ainda “Por uma educação que nos ensine a pensar, não a obedecer” como a levantada pelos estudantes do curso de Filosofia, enfim, uma bandeira que não circunscrevesse tanto o âmbito da questão a nós, uspianos, afinal a atuação da PM é uma questão de toda a sociedade. Além disso, jamais poderíamos permitir que as reivindicações do ME ficassem aparentemente reduzidas a este único eixo, como de fato se deu. A presença da PM na USP, imposta à comunidade uspiana que nem se quer foi consultada sobre o assunto, é um sintoma da forma de gestão Rodas. É contra ela e principalmente contra ela que os estudantes entraram em greve. Por trás da bandeira “Fora PM da USP!” está implícita uma crítica à forma como a reitoria vem agindo dentro da universidade. Não é à toa que um dos outros eixos da greve, deliberado juntamente com o “Fora PM da USP!”, tenha sido o “Fora Rodas!”. A questão é que há uma estrutura de poder permitindo essa atuação da reitoria e que, entretanto, surpreendentemente só foi questionada de fato três semanas após o início da
greve, quando então se tornou eixo da greve estudantil a reivindicação “Por uma nova estatuinte!”. Mais uma vez os estudantes não souberam elaborar, organizar e apresentar a sua luta - nem à sociedade nem a muitos de seus pares. Em suma, defendo aqui que quem realmente possibilitaria que as pautas da greve estudantil fossem alcançadas seria a sociedade, pois é ela que faria pressão sob as entidades competentes. O ME não foi capaz de convencê-la da importância da pauta, entre outros fatores, devido à incapacidade de articular uma estratégia eficaz para angariar o apoio necessário. A liberdade própria do ambiente universitário permite reflexões e críticas deste tipo (i.e. à presença militar para resolver conflitos de caráter civil), porém elas ganham maior legitimidade aos olhos da sociedade na medida em que extrapolam os ‘recentes’ muros dos Campi. Se os estudantes levantaram uma bandeira pedindo a saída da PM da USP, a USP deveria aqui ser entendida como liberdade de pensamento e PM como controle ideológico e normativo. Este significado mais profundo não foi transmitido. E eis que toda a movimentação do ano passado não obteve as vitórias que dela se esperava. O fato absurdo de 400 homens da tropa de choque terem sido mobilizados para retirarem e prenderem 73 pessoas de um prédio público, que lá estavam por motivos políticos, sendo ainda que não houve negociação alguma na reintegração – procedimento comum em casos deste tipo –, além de terem sido utilizadas bombas de efeito moral no CRUSP impedindo que os moradores de saíssem de suas casas, são fatos que foram muito mal aproveitado pelos estudantes mobilizados, e que foram encarado pela sociedade, pouco tempo depois, devido a ajuda dos meios de comunicação fantástico-sensacionalistas, como uma incursão rotineira da PM, ou seja, normalizou-se a exceção. Foi uma demonstração explícita do autoritarismo presente nos nossos dias, à qual não conseguimos dar uma resposta à altura, e que somente precedeu as incursões da PM na cracolândia e em Pinheirinho – que, acredito que esta opinião seja consenso geral, foram muito mais sérias. Quem sabe se tivéssemos oferecido uma resposta mais organizada, de modo a já naquela época termos apontado à forma problemática de agir da PM, não só dentro do campus, mas em qualquer lugar, estes outros eventos tivessem se dado de outra maneira, ao menos no que tange a resposta da sociedade diante deles. ϕ
movimento estudantil. 10
eu me importo com esse debate:
espaço estudantil, espaço comunitário André Scholz É natural, em tempos sem graça, idealizar o passado. Essa atitude, muitas vezes conservadora, pode ser um pouco indelicada em alguns casos. Por exemplo, quando a homenagem aos heróis do passado é feita de maneira a justificar certas ações do presente; visando equiparar-se ao sacrifício deles, tenta-se justificar as suas próprias ações. A memória anda em debate na esfera pública brasileira. Por um lado é salutar, por exemplo, a Comissão da Verdade (aquela instituída em nível federal) com excelentes quadros, como Paulo Sérgio Pinheiro. Por outro lado, certo discurso corrente em nossa universidade parece ofender o passado sem que os porta-vozes desse discurso percebam o que dizem (supondo que sejam mais ingênuos do que mal intencionados). “O cara então ajeitou o meu pescoço, tranquila e profissionalmente, como preparando-o para arrancá-lo com o certeiro golpe, caso o sujeito lá do outro lado dissesse que sim, que me conhecia”. Comparar essa violência, que Salinas e tantos outros sofreram, ao que ocorre hoje na universidade é farsa histórica e utilização imoral das tragédias de nosso País, da vida de tanta gente... Não, não parece que a coisas são as mesmas que “naquela época”... Na última edição deste hebdomadário, o texto “Eu não me importo com esse debate” (*) defendeu a tese de que os espaços estudantis da universidade são locais de “resistência ou oposição ao poder político vigente”. Uma primeira questão seria se essa resistência e oposição é mesmo cláusula pétrea. Se for, poderíamos chegar ao absurdo de nomear Reitor um dos líderes de quem defende esta posição, só para ver o que acontece. Explodiria ele numa nuvenzinha de contradição como o Descartes da piada “Eu não penso que...”? É no mínimo intrigante defender que o poder institucional da universidade seja idêntico ao da ditadura. No que se refere aos espaços, a questão fica ainda mais interessantes se considerarmos que, para falarmos só do nosso prédio, o Espaço Verde é um espaço estudantil há muito pouco tempo, desde a unificação das bibliotecas da FFLCH apenas. O espaço “de resistência
ou oposição” foi resultado de acordo com o poder ao qual se supõe que se deva resistir e se opor. Curioso... Mas há questões ainda mais sérias nesse debate. Gostaria apenas de aventar outra hipótese, continuando também a pequena reflexão que publiquei neste jornal, no texto “Qual o papel das instituições estudantis?”. A universidade realiza atividades de ensino, pesquisa e extensão. O espaço é, assim, dividido em salas de pesquisa, salas de aula, salas de reunião, salas de professores, salas de informática, auditórios, museus, cinema, entre outros. A convivência nesse espaço se dá nos corredores, nos pátios e nas lanchonetes, por exemplo. É natural que seja assim. São nesses espaços de convivência que se integram funcionários, alunos, professores e o público externo que participa das atividades de extensão, constituindo assim uma comunidade acadêmica. Essa comunidade é composta em sua maioria por estudantes. Não podemos participar, enquanto alunos, da administração da universidade (**), embora com nossos representantes e até o fim da graduação muitos de nós comecem a entender como funciona um gigante burocrático do tamanho da USP. Na pós-graduação suponho que o comprometimento com a pesquisa acabe impedindo muitos colegas de continuarem tão presentes nos espaços de convivência. Os professores e funcionários estão em local de trabalho, muitas vezes utilizando os espaços públicos apenas como local de trânsito... A comunidade que se forma no espaço da universidade tem interesses próprios. Da convivência surgem interesses comuns, dissensos políticos, culturais, estéticos, etc. Esses interesses vão além do ensino, pesquisa e extensão concebidos pela administração institucional e são tão voláteis tanto quanto se alteram alunos, funcionários e professores. A criação de um espaço estudantil parece adequada justamente com o surgimento destes interesses e dissensos. Uma parte do espaço da universidade gerida pela própria comunidade é algo que pode fortalecê-la enquanto
movimento estudantil. 11 quase todos os anos em que esteve na chefia, estando pelo menos duas vezes por semana no prédio. Lembrome quando fui seu aluno e, depois, como diretor do CAF, que jamais encontrei nenhuma resistência gratuita a nenhuma proposta de atividade do Centro Acadêmico. Foi ele que, por exemplo, autorizou o uso do site institucional Departamento para hospedar o site do CAF. Moacyr era mais entusiasmado com o Centro Acadêmico do que eu próprio em alguns momentos. Chegou a propor trazermos músicos para atividades O espaço estudantil não é, necessariamente, um espaço a cada quinze dias entre as 18:15 e 19:15 (já tinha até de “resistência e oposição” ao poder vigente. Ele pode nome para propaganda, “de 15 em 15”), colocou o CAF ser complementar a este poder. Uma comunidade em um debate com o MEC sobre Ensino à Distância organizada pode ser instrumento de pressão muito na época que a UNIVESP era a ordem do dia, nunca mais forte que grupelhos que querem se passar por negou uma reunião e até articulou atividades do uma comunidade organizada. O espaço estudantil é centro acadêmico com um espaço público em a diretoria, inclusive que a os interesses da movimentando comunidade podem a Comissão de ser realizados – como Qualidade de Vida aqueles que elencamos com a proposta de acima e outros tantos discutir como fazer dos quais não temos uma lanchonete no nem ideia do que prédio... Embora não possam ser... Um espaço estivesse mais no que permaneça acessível Centro Acadêmico mesmo que o interesse durante a gestão do seja apenas por um local professor Roberto de convivência. Bolzani, vi de longe o seu empenho durante, E, afinal, “resistência e por exemplo, a greve oposição” a quê? Não se de 2011 e a ocupação ria melhor “interlocução da Diretoria, quando e transformação”? A ele ganhou uma oposição à política moção de louvor, do re i tor não precisa E, afinal, “resistência e oposição” a quê? Não seria oferecida pelo CAF, ser uma oposição de melhor “interlocução e transformação”? agradecendo o seu trincheira, por mais desempenho exitoso que discordemos de suas concepções políticas. A cada nas negociações. A gestão do professor Milton acaba quatro anos há eleição. Por que não disputar lá? Mesmo de começar, mas sempre o vejo pelo Departamento que se queira modificar a estrutura, ela parece porosa conversando com alunos. Não acredito que qualquer suficiente para que esse debate seja institucional. O colega estudante de nosso Departamento possa que ganharíamos com isto? Legitimidade, qualidade, reclamar da acessibilidade de nossos professores. comunidade, políticas coletivas...? Não vou entrar em Ainda preciso destacar a participação dos professores meandros da discussão sobre o que ocorre na reitoria. Caetano Plastino e Márcio Suzuki na vice chefia, A estrutura atual é evidentemente ruim, mas isso não professores extremamente atenciosos e disponíveis. pode ser mudado de cima para baixo. O problema Por fim, mas não menos importante, temos que nos começa nos cursos. Como discutir com a reitoria e lembrar da Mariê. O capo di tutti i capi. Mais simpática propor debates em escala universitária (dado o tamanho e acessível é algo impossível ou inimaginável... na USP isso quer dizer quase em escala nacional) sem antes ter debates em cursos e faculdades? O reitor O CAF tem, eventualmente, realizado atividades em pode, assim, ser inacessível. Diretores também. E cooperação com o Departamento. Mas acho que é chefes de departamento? Vejamos na Filosofia. pouco. Muito pouco. Nossas atividades parecem cada tal e fortalecer a própria universidade. Ora, se nós estudantes somos maiorias dentro da comunidade, não nos caberia organizar atividades que visassem esses interesses comuns? Debates políticos, culturais, estéticos, etc. Que mais nos interessa? Discussão de livros de literatura, de trabalhos de filosofia que não tem espaço na academia, filmes, festas, organização de jornais...?
Nos últimos três anos, tivemos três: Moacyr, Roberto e Milton. Moacyr deu aula no primeiro ano durante
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movimento estudantil. 12 vez mais voltadas apenas aos estudantes. A divisão categorial em professores, alunos e funcionários foi naturalizada e assimilada mais pelos alunos que pelos outros. As três “categorias” são tão diferentes assim? Muitas vezes me parece que todos temos os mesmos interesses, todos querem uma educação melhor, um espaço mais agradável... As atividades mais realizadas pelos estudantes são as assembleias, cujo objetivo, por definição, é decidir, não debater. Ilude-se quem defende que há debate na assembleia. Lá há disputa por convencimento e voto. A comunicação é instrumentalizada pela retórica de quem quer vencer uma disputa momentânea, tendo que, para isso, fazer parecê-la muito mais importante do que ela realmente é. As pessoas costumam reclamar de quem aparece sempre no prédio e não vai às assembleias. Isso é um absurdo. As pessoas que sempre estão aqui já são membros de uma comunidade e utilizam o espaço comunitário. Não precisam ir à assembleia para dar diretrizes do que querem, já que estão sempre aqui. Afinal, porque aceitariam a premissa das assembleias de que só há uma maneira legitima de deliberação se, pela prática, reiteram sua recusa a ela no dia a dia? A assembleia instrumentalizada pode fazer barulho, mas sem estudantes lá sua legitimidade e eficiência é zero. Muito pior, me parece, são aqueles que aparecem na assembleia, mas não frequentam o prédio no cotidiano... O espaço estudantil é um espaço comunitário. Ele é estudantil porque é, ou melhor, deveria ser gerido pelos estudantes (***). Nós somos maioria da comunidade, temos tempo para passar tempo nos espaços e temos interesse nisso, pois convivemos mais tempo e, mais importante, porque é nele que nos formamos... Aos estudantes não deveria caber realizar as atividades que o poder institucional não realiza, seja por que não é responsabilidade dele, seja porque ele não é priorizado, ou seja, por que ele não pode realizar? (Como defendi no texto anterior, o debate político não pode ser feito na sala de aula, uma vez que a assimetria entre professor e aluno faz com que a autoridade da sala de aula não seja democrática, o que seria condição para a constituição de uma esfera comunicativa). E o que ganharíamos com isso? Parece-me que seria elevar o nível do debate e dos debatedores. Seria formar gente não apenas academicamente, mas também comunitariamente. Alguns grupos, é verdade, tem medo de debates sérios, medo inconsciente que parece às vezes uma resistência estrutural à percepção da fragilidade dos absurdos que defendem... Vejamos o nosso espaço estudantil, por fim. Atualmente, são os corredores do prédio e as lanchonetes. O outro espaço, o Espaço Verde, cuja gerência é dever dos estudantes, é, na prática, uma ingerência. Grudento,
O espaço estudantil é um espaço comunitário. Nós somos maioria da comunidade, temos tempo para passar tempo nos espaços e temos interesse nisso, pois convivemos mais tempo e, mais importante, porque é nele que nos formamos... fedorento, nojento. Inabitável. Nem sempre foi assim. Em 2009 ele ficou limpo durante uns dois meses, mas não deu tempo das pessoas passarem a frequentá-lo (afinal, demora tempo a voltar a um lugar marginalizado) e ele ficou sujo novamente. Uma vez ajudei a limpá-lo. Encontrei um rato morto. Uma menina disse que pegou sarna. Outra foi assediada ao deitar-se no sofá. Atualmente o Espaço Verde, espaço estudantil por direito, foi privatizado por interesses individuais. Tem a turma do bilhar que fica com o barulho insuportável mesmo se houver assembleia, a turma que usa o espaço para secar camisetas do partido, a turma que fuma no lugar em que não pode fumar... Até os centros acadêmicos o abandonaram e realizam assembleias em sala de aula! A comunidade tem, de fato, resistido e se oposto ao espaço estudantil. Resistem ao não frequentá-lo. Opõe-se ao recusá-lo. Ou há quem ache que ignorar sistematicamente as reuniões que discutem o que fazer para melhorá-lo é desinteresse? Felizmente a situação pode mudar quando nós, a comunidade, decidirmos... Mas que fique claro que não foram os estudantes que abandonaram o espaço: foi o espaço que abandonou a comunidade. ϕ
Notas (*) Embora discorde do texto de Murilo, sobretudo da afirmação que cito, não me endereço especificamente a ele. As premissas a que tento me opor aqui são outras, são públicas e não sei se são compartilhadas por meu colega. (**) A questão da administração da universidade é complexa e extremamente importante. Fica para mês que vem. (***) Ser gerido pelos estudantes não é sugerir uma autogestão (situação atual), o que me parece privatizar o espaço aos interesses de quem mais o frequenta. Mas alongar essa reflexão também é para outro momento.
tribuna do pequeno poder. 13
festa não-autorizada
Tendo tomado conhecimento de festa a ser realizada na próxima sexta-feira no vão da História, a partir das 20 horas, a diretoria informa toda a comunidade o que se segue, divulgando esta mensagem para seus mais de 13 mil integrantes por email. a) Os organizadores da festa não comunicaram nem solicitaram permissão à direção. b) O espaço referido é destinado a atividades estritamente acadêmicas, de maneira que não tem as condições mínimas de higiene para uma festa. c) O espaço em que se planeja montar um palco de reggae encontra-se carente de manutenção, havendo risco de acidente. A diretoria não se responsabiliza pelo que vier a acontecer. d) Preocupada com os acontecimentos, a diretoria alerta as autoridades universitárias*. A organização da festa e os danos que eventualmente ocorrerem são de inteira responsabilidade dos centros acadêmicos. São Paulo, algum dia de 2012.
* Fica a questão de quem seriam as tais “autoridades universitárias”.
acadêmico. 14
Filosofia Oriental:
Por que não? Lucas Nascimento Machado se encaixa no tipo de pensamento, ou no modelo de pensamento filosófico, que é o que estudamos aqui.
Alguns alunos concordaram que seria interessante estudar o pensamento oriental, quer pudéssemos chamá-lo de filosofia, quer não. E foi assim que surgiu o Grupo de Estudos Sobre o Pensamento Oriental. Lembro-me quando, no ano de 2006, ao ingressar na filosofia, durante uma daquelas aulas introdutórias, em que três professores se uniam para responder as perguntas dos alunos sobre o curso, uma aluna levantou uma pergunta curiosa: por que não havia, na grade curricular, cursos sobre a filosofia oriental? Não lembro, exatamente, a resposta do professor; lembro, contudo, que ela remontava a algo desse gênero: não há cursos sobre filosofia oriental, porque não existe filosofia oriental. Qualquer que seja o pensamento oriental, ele não
Na época, não sabia virtualmente nada sobre o pensamento oriental, de tal maneira que, por mais que a resposta do professor me parecesse incerta, não dispunha de recursos – nem, para sermos sinceros, de motivação – para problematizá-la. Acabava de ingressar na filosofia; não tinha conhecimento nem informação o bastante para me posicionar a esse respeito. Não tinha como me colocar a favor da aluna que queria cursos de pensamento oriental ou do professor que afirmava não haver filosofia oriental, pois simplesmente sabia muito pouco sobre filosofia, que dizer sobre pensamento oriental, para ser capaz de me posicionar de qualquer maneira minimamente justificável sobre essa questão.
Muitos anos depois, por um mero acaso, acabei me deparando, por meio de um amigo, com alguns comentários sobre Nagarjuna, um pensador budista. Imediatamente me interessei por ele - ao ponto de, assim que terminei de ler esses comentários, já ter ido procurar na internet onde poderia conseguir os seus livros. Suas considerações sobre como as coisas não teriam ‘substância’ alguma, sobre como o próprio critério do conhecimento seria relativo, e o modo profundamente original com que as fazia captaram imediatamente o meu interesse – inclusive em suas relações, mencionadas nos comentários, com filósofos modernos e contemporâneos,
acadêmico. 15 como Hume e Wittgenstein. Nesse ponto, mesmo que ainda não tivesse verdadeiramente parado para reconsiderar essa questão, me parecia claro que, mesmo que não houvesse ‘filosofia’ (de acordo com alguma definição específica dessa) no oriente, havia, contudo, ideias interessantes e perspicazes, de profunda agudeza lógica e conceitual que, sem dúvida, poderiam ser aproveitadas por aqueles que estudam filosofia... Algum tempo depois, uma discussão no grupo do facebook da filosofia da FFLCH acabou levantando (também de maneira surpreendentemente inesperada) uma discussão sobre filosofia oriental. Alguns defendiam que ela existe, se por filosofia entendermos algo bem geral como ‘formas de pensamento conceituais e racionais’; outros defendiam que, filosofia, tal como a entenderíamos atualmente, enquanto pensamentos profundamente sistematizados, não existiria - embora existisse, de todo o modo, algo como o ‘pensamento oriental’, tão digno de atenção quanto qualquer filosofia. De qualquer maneira, alguns alunos concordaram que seria interessante estudar o pensamento oriental, quer pudéssemos chamá-lo de filosofia, quer não. E foi assim que surgiu o Grupo de Estudos Sobre o Pensamento Oriental. Como primeiro objeto de estudos, o grupo aderiu à minha sugestão de estudarmos Nagarjuna, que, já há algum tempo, me interessava. Escolhemos uma de suas obras traduzidas para o inglês – The Fundamental Wisdom of The Middle Way – e separamos a leitura dos capítulos por meses, de modo que, ao final de 2012, tivéssemos concluído a leitura do livro. Contudo, muito além de estudarmos Nagarjuna, as discussões do grupo, como seria de se esperar, estenderam-se para muitas outras questões e pensadores. Pensadores indianos foram frequentemente mencionados, tal como o Shankara, e comparados com filósofos ocidentais, tal como Plotino; discussões enérgicas sobre as diferenças entre pensamento oriental e ocidental (e mesmo se haveria tais diferenças) foram feitas e levaram ao levantamento de várias questões e ideias. Aos poucos, fomos descobrindo como diversas pessoas em diversas regiões do mundo já estudam seriamente o pensamento oriental (tal como o Jay L. Garfield, comentador do livro de Nagarjuna que estamos estudando, ou Adrian Kuzminski, autor do livro Pyrrhonism: How The Ancient Greeks Reinvented Buddhism, ou Dasgupta, em seu The History of Indian Philosophy) e questionam a filosofia como patrimônio exclusivo do ocidente (Tal como Johannes Bronkhorst em seu Pourquoi la philosophie existe-t-elle en Inde?, ou Justin E. H. Smith, sem seu artigo Philosophy’s Western Bias). De uma forma geral, descobrimos que, em universidades de filosofia mundo afora, já não é questão de se perguntar se há ou não filosofia oriental; de fato, nessas universidades, cursos já foram dados sobre “Metafísica e Epistemologia na Índia”, tal como na Universidade de Heidelberg, ou sobre
as “escolas heterodoxas de filosofia na Índia”, no King’s College London. Nessas universidades, a questão de se há ou não no oriente formas de pensamento dignas de serem chamadas de filosofia e dignas de um estudo filosófico sério já deixou de ser um problema. E nossas ‘descobertas’ não pararam por aí: de fato, descobrimos que algumas dessas pessoas, estudiosas do pensamento oriental, estavam muito mais próximas de nós do que imaginávamos. Professores da Letras da USP (como a professora Lilian Gulmini, que tem uma tese de doutorado sobre Shankara e o Advaita Vedanta, ou o professor Miguel Attie Filhom, que dá aulas sobre filosofia e história do pensamento árabe) já estudam seriamente o pensamento oriental e, na UFMG, já há cursos na filosofia que se propõem à ‘leitura de textos da filosofia oriental’. Inclusive, alguns anos atrás, houve, na própria filosofia da USP, um colóquio cujo tema era a relação entre filosofia oriental e ocidental, e já temos mesmo alguns pesquisadores que estudam autores árabes como o Muhiyyddîn Ibn’Arabî. Se todas essas ‘descobertas’ nos pareceram fatores importantes para problematizar a afirmação de que não existe filosofia no oriente, eu diria, contudo, que o fator mais relevante para essa problematização foi simplesmente esse: o de contato com os textos DE pensamento oriental e SOBRE o pensamento oriental. Pois é muito difícil não ter a impressão de que um mero contato inicial com esses textos já bastaria para dissipar uma boa parte dos motivos que podem levar a crer que não existe filosofia oriental. Basta termos contato com Nagarjuna para percebermos a força lógica e racional de sua dialética, que, em vários momentos, se aproxima da dialética cética pirrônica; basta lermos a introdução do Indian Logic, de Jonardon Ganeri, para percebermos a profundidade e complexidade das discussões e da lógica indiana; basta começarmos a ler The History of Indian Philosophy, de Dasgupta, para percebermos que há algo no oriente que não apenas podemos identificar como filosofia, mas também como história da filosofia, quer dizer, uma história de debates e discussões em torno de questões filosóficas centrais que definem os rumos e as propostas de diferentes escolas ou correntes filosóficas. Ora, se basta um contato puramente inicial para dissipar alguns dos motivos centrais que poderiam levar a crer que não existe filosofia no oriente – que não haveria pensamento racional e conceitual em torno de questões centrais, que não haveria uma história da filosofia, que não haveria textos passíveis de estudo filosófico, etc. – parece-nos, então, que, ao menos em alguns pontos, só pode manter essa opinião quem, na verdade, ignora o que existe no oriente. Em outras palavras, parte dos motivos que autoriza o julgamento de que não haveria filosofia no oriente não se deveria a uma avaliação minuciosa – ou, na verdade, a qualquer avaliação - de seus produtos culturais e de sua continua na próxima página >>
acadêmico. 16 história, mas sim de um completo desconhecimento ou de um conhecimento muito superficial e fragmentário desses. Em larga medida, muitos dos argumentos que poderiam nos levar a crer que não há filosofia no oriente são incapazes de se sustentar, a partir do momento em que há uma confrontação mínima com a literatura produzida por pensadores orientais e sobre o pensamento oriental. Não que com isso queiramos dizer que toda a defesa de que não há filosofia no oriente só possa ser produto da ignorância. Talvez, o que esteja em questão sejam certas definições de filosofia, segundo as quais seria possível dizer que o pensamento oriental não é ‘filosófico’. De fato, é possível que haja algo que separe, em larga medida, boa parte do pensamento oriental de certo contorno que a filosofia ocidental adquiriu nos tempos modernos. Entretanto, é igualmente plausível que, segundo outras definições, seja difícil, senão impossível, dizer que o pensamento oriental não é filosofia; de fato, se pensarmos mais em termos de filosofia ocidental antiga e medieval do que moderna, torna-se praticamente impossível não perceber as aproximações naquilo que haveria de característico nessas filosofias e, mais do que isso, naquilo que as caracterizaria como filosofias. Ninguém questiona que Santo Agostinho fosse filósofo, apenas pelo fato de ter sido religioso e de sua filosofia ter se apoiado em princípios religiosos; por que deveríamos fazer diferente com pensadores orientais que, sem abdicar dos ensinamentos de suas religiões ou dos textos sagrados, tal como os Vedas, buscavam, contudo, fornecer uma explicação e justificativa racional para eles? E se, por vezes, o pensamento oriental se preocupa mais com o ‘modo de vida’ do que com a elaboração de uma teoria sistemática, não se pode dizer o mesmo de muitos filósofos antigos ocidentais? E, se é assim, por que só poderíamos chamar esses últimos de filósofos? Talvez, na verdade, mais do que nos perguntarmos se há ou não filosofia no oriente, tenhamos que nos perguntar: quais motivos levam a querer defender que não haja filosofia no oriente? Por que levar tão a sério se, em um ou outro sentido da palavra, não haveria filosofia no oriente? A pergunta sobre “o que é a filosofia”, afinal, já não é, por definição, uma pergunta filosófica, aberta a tantas respostas diferentes quanto qualquer outra questão filosófica? Nesse caso, por que insistir em uma definição de filosofia que exclua o pensamento oriental? Seriam os motivos que levam a essa insistência, eles mesmos, frutos de considerações filosóficas? Ou seriam motivações e considerações de outro gênero, políticas, institucionais ou mesmo ideológicas, que estariam na origem dessa persistente relutância em admitir as correntes de pensamento oriental no rol daquilo que chamamos de filosofia?
gumentos e razões, ele se fundamente em preconceitos e desconhecimento. Nesse sentido, a 1a Jornada de Filosofia Oriental da FFLCH/USP, que, no momento em que esse artigo foi escrito, estava para ser realizada no dia 28 de setembro, na sala 14 do prédio do Depto. de Filosofia, das dez da manhã às oito da noite, se propõe precisamente a trazer essa discussão para o âmbito de nossa faculdade, para que todos aqueles que se interessarem pelo assunto possam ter um contato inicial com ele e começarem a inteirar-se a seu respeito. Esperamos, dessa forma, que essa Jornada seja apenas um começo para o debate e o estudo sobre o pensamento oriental, por meio do qual nós poderemos, quem sabe, contribuir para que ele seja mais profundamente estudado e discutido em nossa faculdade, em sua significância filosófica e no que ele pode contribuir para nossos estudos filosóficos. Para aqueles que já quiserem começar a fazer parte dessa discussão, convido-os a participarem do nosso Grupo de Estudos Sobre o Pensamento Oriental, no link https://www.facebook.com/ groups/grupodeestudospensamentooriental/. ϕ
.: Referência Básica: Nagarjuna, The Fundamental Wisdom of The Middle Way. Tradução e comentário: Jay L. Garfiel. Oxford, Oxford University Press, 1995 http://bit.ly/nagarjuna1 Tradução alternativa (e bilíngue): http://bit.ly/nagarjuna2 .: Referências Complementares: Nagarjuna, A Grinalda Preciosa http://bit.ly/grinalda - Sobre o budismo: Entrevista de Paulo Borges ao filósofo romeno Ciprian Valcan sobre budismo, filosofia, Cioran, Oriente e Ocidente http://bit.ly/paulociprian “Se vires o Buda, mata-o !” - Ensaio sobre a essência do budismo, Paulo Borges http://bit.ly/matabuda
- Vídeos da 1ª Jornada de Filosofia Oriental da USP Seja como for, uma coisa parece certa: é desejável a aber- http://bit.ly/1ajornada tura da discussão sobre o pensamento oriental: pois, qualquer que seja nosso posicionamento sobre ele, parece-nos sempre indesejável que, em vez de se fundamentar em ar-
Veja mais referências no grupo!
acadêmico. 17
em volta, carne
morta
Gabriel Philipson No primeiro ano de um estudante de medicina, o calouro entra em contato com as famosas geladeiras com pedaços de gente morta, podres, conservadas. É memorável e inesquecível a primeira aula em que o freezer é aberto e, ao invés de cerveja, o sujeito se depara com nada mais nada menos do que carne de gente morta. Ao mesmo tempo, ao calouro de filosofia é aberto outro freezer igualmente inesquecível. A primeira aula em que se passa mais de duas horas refletindo-se apenas sobre o título de uma obra é de tal forma impactante que se sai de tal modo zonzo que poucos, até o fim dos seus anos de aprendizado conseguem se distanciar para refletir sobre o ocorrido. A mensagem é, aqui e ali, a mesma: é bom, jovens, que vocês aprendam a lidar com isso, pois se vai daqui para pior. A medicina é uma profissão da morte. A atividade do médico é a prevenção, o diagnóstico ou a preparação do sedativo. É possível que se viva daqui 90 anos muito mais tempo – não infinitos, mas pelo menos 910293283299120239420192342843 anos –, mas para isso precisaremos que nossos políticos parem de construir tantos presídios e pontes e invistam em hospitais ou descansos felizes para idosos: pois é isso e unicamente isso o que a medicina pode promover: uma vida pastosa, com cheiro de álcool, e sonolenta. Em paralelo, o ‘filósofo’ ou ‘historiador da filosofia’ se relaciona diretamente com a morte em sua profissão (sim, profissão). Ele é um baluarte de pensadores mortos, ele reflete sobre a morte e ele a prepara, na medida em que procura compreender o sentido da vida. É verdade que essa última atividade parece em grande medida esquecida e estranha aos nossos colegas. É que nos tornamos meros médicos. Tanto porque fazemos diagnósticos de nosso tempo – e quase sempre chegamos à conclusão que só está em nosso poder aplicar sedativos (esses são os apocalípticos) –, quanto porque para isso fomos minuciosamente preparados através de aulas dissecativas. Pode-se dizer que nosso departamento é especialista nisso: dissecação. Ao ver o quadro A lição de anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt, vejo os colegas e professores com quem topo nos corredores. A filosofia como história da filosofia para a tradição uspiana é uma filosofia dissecativa. O corpo da imagem é Descartes, ali vejo o professor, com um braço aberto, os alunos atentos, fascinados e completamente perdidos... – coitado de Descartes, tantas vezes identificado com a leitura estrutural, acredito que se ele pudesse se levantar, todo rasgado e fétido, e, por um milagre alla Frankstein, voltasse a viver e lhe fosse explicado o que acontecia, preferiria voltar ao seu descanso perpétuo. E assim, aquilo para que a filosofia procu-
ra dar uma resposta, quer dizer, de onde viemos, para onde vamos, qual é o sentido da vida permanece completamente esquecido – ou quando lembrado, como agora, tendemos a rir, abrir um sorriso amarelo e classificar aquele que lembrou como ingênuo: - há tanta coisa mais importante que a filosofia deve tratar! E geralmente se trata apenas disso: repetir O que fazer? de Tchernichevski, assim como Lênin o fez, ou re-re-re-...fundamentar a ciência em bases seguras. A filosofia como dissecadora se torna não apenas mais uma ciência, mas uma ciência inferior a todas as outras, porque subjugada a si mesma e à sua criatura: a ciência. Contra esse quadro macabro, pareceu a alguns que era necessário dizer sim à carne. Era preciso devorá-la – e assim mesmo, toda aberta, podre, dissecada. É claro que não sem qualquer método, sem filiação a uma escola estrangeira para validar o passaporte ao inferno do diabo de Flusser, sem isso não há academia! Então, o aluno de filosofia entra em contato com a fenomenologia – ou ‘uma’ fenomenologia –, temperada com Nietzsche e a moda Merleau-Ponty (essa poderia aparecer no bandejão, ao invés dos famosos bifes a fantasia). Como na cozinha da bruxa de Fausto, a Noite de Walpúrgis é assim preparada. O que se assiste nessas aulas é um festival pagão assimilado pela racionalidade em que o ator eleva a carne sobre a qual até então nos debruçamos muito sérios e distintos a totem, a amor, a alimento. Se comem os pensadores. O que se faz ali não é muito diferente do que se vê no documentário Os Mestres Loucos de Jean Rouch. Ali, nós, os selvagens, os bárbaros, assimilamos a civilização europeia, seus mais altos valores, a chamamos de carne e a antropofagamos em um ritual: lá, representada em um cachorro comido cru, aqui, em um texto tantas vezes dissecado, agora estripado e saboreado, sangrento, também cru, em meio a sapatadas. Assumimos as identidades europeias em meio a babas diabólicas e depois... no dia seguinte, ou mesmo logo ali, depois da aula, voltamos ao nosso cotidiano: um é policial, outros advogados, médicos, homossexuais (militantes e não militantes), psicólogos, dançarinos, budistas, pedófilos, agitadores políticos, professores de yoga, de capoeira, de karatê, de ensino médio, de berçários, filhinhos de papai, aposentados, cristãos, pais... Contra isso aparecem os selvagens vegetarianos, que comem soja industrial. Soja industrial é a abstração da pretensa linguagem lógica pura. Não é à toa que a coisa é para poucos. Comida insossa, esses já vão se acostumando desde cedo aos sucos pastosos que ingerirão a revelia de suas vontades em suas velhices em uma cama de hospital, já desprovidos de carne e intelecto. Esses já não servem mais para dissecação futura. ϕ
acadêmico. 18
o legado de Sokal: dezesseis anos depois do affair Igor de C. e S. C. “¡Todo es igual! ¡Nada es mejor! ¡Lo mismo un burro que un gran profesor!” (Cambalache, Enrique Santos Discepolo) “Now heaven knows, anything goes” (Anything Goes, Cole Porter) Dezesseis anos se passaram desde a publicação do escrito irônico dos físicos Alan Sokal e Jean Bricmont. A história é simples: incomodados com o aparente vale tudo dos cultural studies e, mais do que isso, com o mal uso do jargão científico, empregado para conferir uma aura de erudição e respeitabilidade a trabalhos vazios, Sokal e Bricmont submeteram uma paródia ao conceituado periódico americano Social Text. O trabalho foi feito seriamente: cada linha do artigo – “Transgressing the Boundaries: Toward a Hermeneutics of Quantum Gravity”, um título por si só divertido - parece cuidadosamente pensada como sátira aos vícios e cacoetes que imperam no mundo acadêmico. Dezenas de notas de rodapé se aglutinam, formando uma verdadeira barricada, atrás da qual o texto, tímido, se esconde entre afirmações inebriantes e delirantes, sempre de mãos dadas com um sem número citações de eminentes intelectuais das humanidades. Mas, a despeito da total sandice que permeava o ensaio, ele foi aceito. Não como paródia, mas para compor uma edição especial da Social Text. Daí para frente, a polêmica havia se instalado sem haver volta possível
e o debate, no mais das vezes muito pouco civilizado, correu o mundo. Nossos trópicos não foram exceção, e tiveram seu epicentro no jornal Folha de São Paulo, que recebeu artigos de autores tão díspares quanto possível. Agora, após o baixar da poeira, talvez seja possível arriscar alguma conta dos mortos, se é que houve algum. Após a publicação de um segundo artigo, onde o embuste era cuidadosamente deflagrado, os autores expuseram suas preocupações: trazer à luz a nudez do(s) rei(s), identificados por eles como eventuais impostores, assim como sua quase necessária ligação com as teses do relativismo epistêmico cognitivo. A preocupação foi, em boa parte, política: declaradamente de esquerda, os autores criam que parte desse falatório, invariavelmente ligado ao pensamento esquerdista, era grande responsável pelo enfraquecimento de um movimento que, antes de tudo, devia se opor a desigualdades. O debate não seguiu por aí, entretanto, e acabou por derrubar outras máscaras no caminho. O tom geral ficou entre a seriedade e a brincadeira, pendendo muitas vezes mais para a segunda do que para a primeira. O objetivo era fazer a plateia, atônita, rir dos monarcas despidos. E dificilmente o leitor não se sentirá impelido ao riso, frente aos absurdos cuidadosamente recolhidos e expostos na vitrine satírica de sua obra. Ficamos sabendo, por exemplo, do sexismo intrínseco à equação de Einstein, que “[...] privilegia a velocidade da luz em comparação com
acadêmico. 19 Também infelizmente, essa estratégia não é exclusiva de um círculo marginal do conservadorismo agressivo. Quem passar os olhos cuidadosamente sobre parte das polêmicas quase onipresentes em nosso tempo, verá uma triste repetição desse comportamento. Tornou-se impossível discutir seriamente uma infinidade de temas, tal é seu imbricamento com picuinhas puramente ideológicas. Assim, é triste ver que basta dizer que algo é, digamos, uma investida conservadora para, automaticamente, invalidá-lo. Todo o trabalho cuidadoso com argumentos, verificação de fatos, clareza e rigor vão por terra, já que uma palavrinha mágica – mutável de acordo com o lugar a ser proferida – dá conta de todo o trabalho. A conta dos mortos é extensa. A rigor, em um nível mais fundamental, ninguém morreu: o “pós-modernismo” continua seu curso silencioso nos meios acadêmicos; os cientistas continuam seu trabalho nos Todo o trabalho cuidadoso com argumentos, verificação laboratórios, à revelia do que qualquer de fatos, clareza e rigor vão por terra, já que uma trabalho revelador dos estudos relativistas palavrinha mágica – mutável de acordo com o lugar a ser das ciências. O todo já perdia, à época, com proferida – dá conta de todo o trabalho. o divórcio cada vez mais escancarado entre as ciências humanas e naturais. Agora, outras velocidades que nos são vitalmente necessárias.” continua a perder, em um ritmo que parece Segundo os autores, esse uso despudorado de termos não ter se alterado muito. O estado das coisas não científicos só servia para inebriar o leitor, que se sofreu um abalo com as propostas de Sokal, cujas achava perdido em meio a um conteúdo hermético posições positivas, senão ingênuas (não acredito no qual ele frequentemente não era versado de modo que o sejam), são ao menos carentes de grande algum. Resta saber se os flagrantes ridículos eram relevância para os estudos filosóficos das ciências. suficientes para o descarte de tudo o que nisso tivesse A desonestidade intelectual continua viva e sempre tocado, ou seja, de qualquer coisa que acenasse, ainda presente nas praças: as públicas e privadas, de tijolos, que sutilmente, ao relativismo; algo negado pelos papel ou bits. Podemos tirar alguma lição de tudo autores, mas que parece implícito na chacota. isso, além do evidente sentimento de derrota imposto àqueles que acreditaram em um debate franco? Mas voltemos ao Brasil: aqui, o debate foi relativamente Acredito que, sim, há muito a ser aprendido. Entre acalorado. Primeiro, em relação ao artigo; depois, outras coisas, arriscaria dizer que não fazem mal ao acerca do lançamento do livro de Sokal - por aqui, filósofo a humildade na discussão e a iconoclastia “Imposturas Intelectuais”. A comoção geral começou atenta na leitura. A filosofia, enfim, tem pouco a ver por parte dos setores mais conservadores do espectro com o culto a personalidades. político: pintou-se um Sokal que desmascarava as fantasias irreais próprias do esquerdismo, sobretudo em sua variante acadêmica, também dita notória por seu ávido corporativismo e ímpeto de censura. O leitor mais atento – aquele que leu o texto antes de partir para as resenhas – podia notar o conteúdo falacioso da P.S. Preferi não dar nome aos bois no concernente conclusão, já que os autores assumidamente tentavam ao debate brasileiro. Não por qualquer mistificação, separar o joio do trigo, não incendiar toda a colheita. mas para não tornar o texto uma guerra de egos. De Infelizmente, esse tipo de argumentação periférica – qualquer forma, há um sumário extenso, com todos os isto é, que ataca pessoas e posições políticas em lugar textos publicados ao redor do mundo, os brasileiros de ideias e argumentos – ainda grassa em grande inclusos, na página acadêmica de Sokal: http://www. parte do debate, seja ele científico, filosófico, político. physics.nyu.edu/sokal/. ϕ
crônica. 20
Erasmo Marmieládov Caio Mello
“Finalmente, a civilidade emancipada, puramente individual, converte-se em mentira. O que ela atinge no indivíduo é aquilo que ela oportunamente silencia, o poder real ou ainda mais o poder potencial que cada qual encarna.” Minima Moralia, Adorno “Compreende, será que compreende, meu caro senhor, o que significa não se ter mais para onde ir? (...)porque é preciso que toda pessoa possa ir ao menos a algum lugar...” Marmieládov em Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski
Mulher robusta e feia, rosto fechado que vem do arado agreste nordestino, a cor barrenta, vermelho com marrom, dizia de onde vinha. Dois filhos, gêmeos e de nomes de anjo, “pertencentes a Deus”. Miguel e Rafael. “Oito anos atrás podia até dizer o contrário, mas hoje, hoje eu sou homem!” dizia primeiro pra si, soando bem, dizia em voz alta. Usava as calças largas, retas no corpo, camiseta ou camisa abotoada até o penúltimo botão, tinha a barba rala e mal-feita, antes de ir ao trabalho silente dos seis dias da semana, passava rente a navalha próxima ao pescoço, cortava-se ora acidental ora propositadamente, de sangue suportava só o seu, dado... quando bem entendia. Morava em um cômodo ajuntado por cimento e tijolo na parede da cozinha, o quintal que antes se estendia, diminuiu-se em duas famílias, a sogra, Beatrice de Souza, a esposa, Solange. As mulheres eram fracas em suas teimosias. A sogra recém-viúva engraçava-se com um homem mais novo, dez anos. A esposa trabalhava pouco e perto de casa, os dois filhos quietos não lhe davam problemas, mas eram azarados e sempre lhes respingavam alguma arte dos vizinhos. “Hoje, eu falo até com os olhos molhados, hoje o moleque arrebentou um para-choque de carro, deu um prejuízo, o rapaz, dono do carro, veio gritando comigo, falando alto perto da minha mulher, dizendo que tinha que brigar com o menino, que tinha de dar uma lição nele. Eu disse ‘calma lá, rapaz, o pai da criança sou eu, um dia sequer eu me mostrei como um sem-palavra, um rapaz que não cumpre o que deve cumprir?’, não!, aqui não, quem cuida do meu filho sou eu... E depois, antes de ir trabalhar mesmo, fiquei de coração cindido, machucado mesmo, quando o menino veio pra mim, deitado no sofá, e falou que não tinha sido por querer, que foi um acidente, que ele próprio não queria que eu passasse por toda aquela gritaria... Olha, olha só esse menino! É nesse momento que eu vejo que tudo o que eu suporto é por eles, eu suporto Beatrice, Solange
A bebedeira não o fez largar sua cruz e martírio, o calor do trópico, o costume de abusar, o favor em todos os estratos. nervosa, trabalhar minhas 10 horas... Eu banco a casa, eu banco os meninos e a Solange, e a mãe dela vem me dizer que eu estou lá de favor? Aguento pelos meninos”, Erasmo estava um pouco alto pela cerveja, desde o fim do expediente, o domingo para ele era a véspera do descanso merecido, o corpo moído, só o pó, era sinal de sua graça, como a penúria de Cristo, “Perdoe Beatrice, ela não sabe o que faz”. Ele pedia vez ou outra sua redenção, que o afastassem do cálice temporal da obrigação, “não quero, não, obrigado”. No fundo, naquele naco de humano que todos parecem mascarar e o esclarecimento não consegue trazer luz, ele via no seu fardo o sorriso orgulhoso, que Solange não reclamaria caso ele quisesse transar no meio da madrugada, faria as posições mais humilhantes se fosse preciso, os filhos carregariam o homem extraordinário que foi em suas refeições, colégios, no seio das famílias que teriam. A bebedeira não o fez largar sua cruz e martírio, o beijo de Solange não é o tapa de Caterina, o calor do trópico, o costume de abusar, o favor em todos os estratos. Passada a madrugada fria pelas grandes árvores que banham a cidade que cresce, traria pra si a notável imagem do pai e marido, cobraria de si ainda mais uma vez o rigor no trabalho. “O bom pai está senil, envelhecido, mas não há quem o deixe falecer... Eu faço isso pelos meninos”, disse Erasmo confundindo-se neles. ϕ
crônica. 21
Os retratos de Salinas Michel Amary
Escrever uma biografia é como pintar um retrato! As cores são as palavras que se interpõem ao desafio da página em branco: apresentar uma imagem de nosso personagem. O retrato não inventa história, não cria ficção, por mais absurda que a história que se conte seja, mas faz das faculdades da imaginação um dos grandes instrumentos do retratista que precisa transpor do melhor modo aquele que deve falar ao silêncio mórbido do papel É necessário imaginar antes de retratar. Quando a imagem de quem nós retratamos pede a forma, já são outros critérios para os quais devemos estar atentos, o retrato deve descrevê-lo, riscar seus traços, salientar suas características, dar-lhe uma justa proporção, seja em seus erros, seja em suas glórias. Quando pintamos ou escrevemos também somos juízes de nossos objetos, devemos ter a delicadeza no toque ao expressar uma alma e a frieza da mão que pesa sobre o caráter de todos nós. É importante achar a posição precisa entre o eclipse de um passado que assombra e a luz que não falta àquele que retrato. Então, a percepção e a memória também se fazem imprescindíveis. Ao falar de alguém não retratamos apenas o ser humano, mas o seu espaço, seja ele claustrofóbico como um cubículo escuro em um porão qualquer pelo qual a luz aparece fulgurante, ofendendo o ódio cego de determinadas ratazanas antropomorfizadas, seja em um quarto solitário no centro da cidade pelo qual o sol corta a janela, derretendo as certezas da razão. O tempo, como a razão, caminha incerto e são as variâncias climáticas e temporais que, sobretudo, realço sobre aquele que pretendo retratar. Mas, espera aí, eu não estou a escrever uma biografia! É bom que a razão me impeça de cair na tentação de realizar algo que não estou capacitado a fazer. Realmente não vou retratar uma vida, seus personagens, seus lugares, seus tempos, suas histórias; não darei as cores sóbrias daquele sobre ao qual falo: Luiz Roberto Salinas Fortes. O que posso fazer é apenas um comentário que dê os meus matizes sobre este que só posso conhecer postumamente. Um comentário que também não deixa de ser um retrato, talvez na melhor forma do simulacro, um retrato sobre o retrato; uma metalinguagem sobre os personagens, os lugares e a história de vida; um retrato sobre as impressões subjetivas de alguém que se autorretratou para conceder a si uma anistia ampla, geral e irrestrita e a nós a liberdade de poder dizer seu nome. Belo, tímido, talentoso! São esses os relatos daqueles que o conheceram. Um menino interiorano que veio estudar direito no Largo de São Francisco e se interessou por filosofia. Um jovem Salinas que despertava o elogio das meninas na mes-
Mas há uma coisa que nós estudantes, que também fomos destituídos de sua presença, podemos: fazer, de sua memória, vida! ma proporção em que Sartre lhe chamava a atenção. Quantas foram as tardes na Maria Antônia em que ele passava falando sobre o filósofo francês despercebido dos olhares interessados que lhe destinavam. Guardemos esse Salinas, ainda inocente e encabulado, em um porta-retrato da lembrança. Os suores noturnos que já o atormentavam desde cedo, as dúvidas existenciais que sempre o perseguiram, as inconstâncias de um pensamento próprio que se direcionava ao ceticismo sobre a razão e sobre o tempo é que são os primeiros retratos de que quero falar. Posso sentir a angústia de seu modo de pensar, a consciência sobre sua fragilidade emocional, tipicamente humana, que, mesmo amedrontada, não se deu por vencida e com coragem enfrentou tudo o que estava por vir. Salinas se sentia fora do mundo e realmente o estava. Sua existência não era compatível com as barbaridades que havia ouvido sobre Auschwitz e que se teciam por debaixo dos panos verde e amarelo da pátria mãe gentil. A caricatura mal feita do autoritarismo, do terror, dos instintos mais repulsivos que não sou capaz de vislumbrar só poderia ser piada de mau gosto para um entusiasta de Rousseau. Com pesar, é pelo riso sádico e totalitário do leviatã que Salinas descobriu que, no meio de lobos, o anacrônico é ser humano! É impossível não pensar em como aquela personalidade carregada pelas incertezas que o amadurecimento não tratou de acalmar, pelo entusiasmo da juventude, pelos senticontinua na próxima página >>
crônica/tradução. 22 mentos que nos fazem humano, e pela capacidade de pensar além de sua época, teria recebido o duro golpe que recebeu do destino. Em como o já filosofo Salinas poderia justificar para si a dor física de uma realidade deformada que nunca foi a sua. Se os homens se encontravam aos ferros, Salinas conhecia o pau que o sustentava de cabeça para baixo enquanto esfolavam as suas costas. Um mundo ao contrário que certamente fez Salinas desejar o fracasso de uma das maiores das questões metafísicas, a união o corpo com a alma. A tortura foi abominável, cruel, inumana, não há adjetivos capazes de descrever o tamanho sofrimento que ele relatou. Por isso também tenho que me retratar com Salinas. Aqui faço meu segundo retrato, não aquele que mostra a essência da pessoa, mas aquele que pede desculpas. É quase indigno escrever sobre Salinas sem sentir a dor física e psicológica que ele se submeteu ao retratar suas memórias. Sou incapaz de sentir o sofrimento que está além de qualquer um que não tenha o vivido. As sequelas vão além das têmporas que aliviavam a clamor do corpo, o espírito pede piedade no reviver de toda sua história, inúmeras e inúmeras vezes. A prisão sem motivos, sem por quês, sem conhecimento do que se fez, ultrapassa a realidade das alegorias de Kafka, a aflição do desconhecimento, a angústia da dúvida, a dor da tortura, o medo de sentenciar amigos à morte, se repetiram não apenas do Doi-Codi ao Deic, mas também nas incontáveis noites de insônia sobre a máquina de escrever em que repassava o mesmo sofrimento a cada letra lida por seus pensamentos. Meus colegas e eu já não podemos compartilhar o mesmo espaço que Salinas. Que lembranças teríamos das aulas sobre Platão que o tiraram da luz e o levaram para a mais profunda das cavernas? O que teríamos aprendido se a nossa vontade geral prevalecesse? Ah, que cursos maravilhosos poderíamos testemunhar. É lastimoso não poder mais contar com seus valiosos ensinamentos sobre ética e política. Infelizmente nunca poderemos reaver os volumes do Capital pelos quais tinha tanto apreço e certamente foram queimados em alguma fogueira da censura. Também não podemos devolver a dignidade, a saúde e o futuro que lhe roubaram naqueles fétidos porões. Mas há uma coisa que nós estudantes, que também fomos destituídos de sua presença, podemos: fazer, de sua memória, vida! Ainda que Salinas não quisesse ser visto como um herói, achava-se covarde demais para isso, precisamos devolver a moral à justiça, necessitamos recobrar dos fatos sua verdade histórica. É por isso que devemos fazer com que seu cálido retrato fale. Retratos falados não são apenas aqueles que, esquecidos, estão comidos pelo mofo nos empoeirados depósitos da repressão; mas também aqueles retratos que contados de pessoa a pessoa, vivem, e ao viver dignificam a memória daqueles que se foram para que a história não mais se repita nem como farsa e nem como tragédia. É essa a emergência da Comissão da Verdade da USP: fazer um retrato da verdade para que, em um pedido de perdão, a história oficial se retrate com todos aqueles que, Fortes como Salinas, deixaram suas vidas nas mãos do inquisidor para que não tivéssemos nunca mais que passar por isso. ϕ
o fogo (Publicado originalmente em Poetry Foundation, o pequeno ensaio foi o último publicado durante a vida do filósofo norte americano Richard Rorty (1931 – 2007).) Em um ensaio chamado “Pragmatismo e Romantismo” tentei revalidar o argumento de “Defesa da Poesia”, de Shelley. No coração do romantismo, eu disse, estava a tese de que a razão só pode seguir caminhos que a imaginação já desbravou. Sem palavras, não há deliberação racional. Sem imaginação, não há palavras novas. Sem essas palavras, não há progresso moral ou intelectual. Terminei o ensaio com um contraste da habilidade do poeta de nos prover de uma linguagem mais rica com a tentativa do filósofo de adquirir um acesso não linguístico ao verdadeiramente real. O sonho de Platão de um acesso desse tipo era, em si, uma conquista largamente poética. Mas, à época de Shelley, argumentei, ele havia se desgastado. Agora estamos mais aptos do que Platão estava em reconhecer nossa própria finitude – em admitir que nós nunca estaremos em contato com algo maior que nós mesmos. Esperamos, em contrapartida, que a vida humana aqui na terra se enriqueça conforme os séculos passam, porque a linguagem usada por nossos descendentes remotos terá mais recursos do que a nossa teve. Nosso vocabulário estará para o deles assim como o de nossos ancestrais primitivos está para o nosso. Nesse ensaio, e também em escritos anteriores, eu empreguei “poesia” em um sentido estendido. Eu ampliei o termo “poeta forte”, de Harold Bloom, para que ele cobrisse escritores de prosa que haviam inventado novos jogos de linguagem para jogarmos – pessoas como Platão, Newton, Marx, Darwin e Freud, bem como mestres do verso como Milton e Blake. Esses jogos podem envolver equações matemáticas, ou argumentos indutivos, ou narrativas dramáticas, ou (no caso dos mestres do verso) inovação prosódica. Mas a distinção entre prosa e verso era irrelevante para meus objetivos filosóficos. Pouco após terminar “Pragmatismo e Romantismo”, fui diagnosticado com um câncer pancreático inoperável. Alguns meses após receber as más notícias, eu estava
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da vida richard rorty Igor de C. e S. C. tomando café com meu filho mais velho e um primo que me visitava. Meu primo (que é um ministro da igreja batista) perguntoume se eu percebera meus pensamentos se direcionando para assuntos religiosos, ao que respondi negativamente. “Bom, e quanto à filosofia?”, meu filho perguntou. “Não”, eu respondi, nem a filosofia que eu havia escrito, tampouco aquela que eu havia lido pareciam dizer respeito à minha própria situação. Eu não tinha qualquer problema com o argumento de Epicuro de que é irracional temer a morte, nem com a sugestão de Heidegger que a ontoteologia se origina em uma tentativa de escapar à nossa mortalidade. Mas também nem ataraxia (liberdade de perturbações), nem Sein zum Tode (ser para a morte) pareceram estar em questão.
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Encontrei conforto nesses lentos meandros e nessas brasas gaguejantes. Suspeito que nenhum efeito comparável pudesse ter sido produzido por prosa. Não só o pictórico, mas também rima e ritmo eram necessários para realizar o serviço. Em linhas como essas, todos os três conspiram para produzirem um grau de compressão, e de impacto, então, que apenas o verso pode alcançar. Comparada às investidas moldadas pelos versificadores, mesmo a melhor prosa é um tiro disperso.
“Nada do que você leu teve qualquer uso?” meu filho persistiu. “Sim”, deixei escapar, “poesia”. “Quais poemas?” ele perguntou. Citei duas velhas castanhas que eu havia desencavado da memória, e que estranhamente estavam me ajudando, em sua maioria linhas de “Jardim de Proserpine”, de Swinburne:
Agradecemos brevemente A quaisquer deuses que possam existir Que nenhuma vida vive para sempre; Que homens morram e não mais levantem; Que, por tortuoso que seja, o rio Aporte seguro em algum lugar no mar.
E “Em Seu Septuagésimo Quinto Aniversário”, de Landor:
A natureza, amei; e, próxima a ela, Arte; Aqueci ambas as mãos frente ao fogo da vida, Ela afunda, e estou pronto para partir.
Ainda que vários pedaços de verso
Encontrei conforto nesses tenham sido muito significativos lentos meandros e nessas para mim em momentos particulares brasas gaguejantes. de minha vida, nunca fui capaz de
escrever algo eu mesmo (exceto os sonetos que rascunhava durante tediosas reuniões de departamento – uma forma de rabiscar). Tampouco acompanho o trabalho ϕ de poetas contemporâneos. Quando leio versos, geralmente são preferidos os da adolescência. Suspeito que minha relação ambivalente com a poesia, nesse senso mais estrito, é resultado de complicações edípicas, oriundas de ter um poeta como pai. (Ver James Rorty, Children of the Sun (Macmillan, 1926)). De qualquer modo que tenha sido, agora gostaria de ter passado mais tempo da minha vida com verso. Isso não se dá porque temo ter deixado escapar verdades que são informuláveis na prosa. Não existem essas verdades; não há nada sobre a morte que Swinburne e Landor sabiam, mas Epicuro e Heidegger não conseguiram abarcar. Ao contrário, é porque teria vivido mais completamente se eu tivesse conseguido declamar mais velhas castanhas – assim como também o teria se tivesse tido mais amigos íntimos. Culturas com vocabulários ricos são mais inteiramente humanas – mais distantes das bestas – do que aquelas empobrecidas nesse aspecto; homens e mulheres individuais são mais completamente humanos quando suas memórias são amplamente povoadas por versos. ϕ
movimentos sociais. 24
somos todos
pussy riot! André Paes Leme
“No verão, confinamento intolerável, no inverno, frio insuportável. Todos os pisos estavam podres. A sujeira no chão tinha uma polegada de espessura; alguém poderia tropeçar e cair… Éramos empilhados como anéis de um barril… Nem sequer havia lugar para caminhar… Era impossível não se comportar como suínos, desde o amanhecer até o pôr-do-sol.” (Fiódor Dostoiévski)
Em 23 de Abril de 1849, sob a acusação de conspiração contra o regime do Czar Nicolau I, fora encarcerado Fiódor Dostoiévski. O regime autocrata russo, temendo a onda revolucionária que varrera a Europa alguns meses antes, passara a perseguir obstinadamente toda e qualquer forma de oposição à sua supremacia. O autor de Crime e Castigo era membro de uma organização conhecida como Círculo Petrashevsky, um grupo de intelectuais, com certas tendências socialistas, dispostos a discutir e a intervir na situação política do país. De todas as acusações que pairavam sobre o romancista, a principal delas referia-se a uma leitura pública da famosa carta aberta em que Bielínski estraçalhava os pressupostos reacionários sobre os quais repousavam parte da obra de Nikolai Gogol. A despeito de sua errante trajetória, tal missiva acabou por tornar-se um dos mais importantes documentos históricos da literatura russa do XIX. Nela, ao comentar como Gogol fora desonesto ao reduzir os ensinamentos de Cristo à pregação da Igreja Ortodoxa, Bielínski acusava: “A igreja surge como hierarquia, portanto defensora da desigualdade, aduladora do poder, inimiga e perseguidora da fraternidade entre as pessoas – e continua sendo isso até hoje.” A sociedade de então não suportara tamanho acinte. Como ousar, ainda mais em público, um ataque tão direto ao clero? Dostoiévski fora detido e condenado à morte. O texto dele que colocamos aqui em epígrafe é a descrição que o autor nos oferece da prisão a que fora recolhido. Não bastasse a situação desumana em que se encontrava, Dostoiévski ainda teria de passar pela simulação, orquestrada em pessoa pelo Czar Nicolau I, de seu próprio fuzilamento. Seu destino seguinte fora um campo de trabalhos forçados na Sibéria, onde o
inferno multiplicou-se. Dostoiévski sairia de lá apenas em 1854 para então tornar-se um dos maiores escritores da literatura universal. Mas nossa história ainda está longe do fim. No ano de 1930, Vladimir Maiakovski, o poeta da revolução bolchevique, encontrava-se em um agudo estado de depressão. Stálin finalmente se instalara no comando do Partido Comunista e da burocracia estatal e colocara em funcionamento uma enorme máquina de guerra pronta para aniquilar todos aqueles que se colocassem no “caminho da revolução”. O humor corrosivo da poesia de Maiakovski e o caráter metafórico de sua produção teatral haviam se tornado muito mais vanguardistas do que exatamente proletários. Sua arte já não se enquadrava nos padrões políticos do realismo soviético. Sua voz dissonante se tornara dissidente. Aos 36 anos, o mais brilhante criador daquela geração, acossado pela perseguição stalinista, suicidou-se. Um claro sintoma de que o comunismo soviético padecia fortemente de um autoritarismo que mais tarde seria a causa de sua ruína. Em 1937, foi a vez de Asja Lacis, atriz, diretora de teatro e sobretudo militante política cosmopolita, sentir os efeitos nefastos da repressão stalinista. Muito conhecida como a mulher que, segundo a dedicatória de Rua de Mão Única, na qualidade de engenheira, a abrira – a rua – no coração de Walter Benjamin, Lacis nunca escondeu ter sido uma das maiores entusiastas do ideal de liberdade que parecia ganhar forma quando os bolcheviques tomaram o Palácio de Inverno. Certamente, a esperança na causa revolucionária fez com que a talentosa atriz, que começara sua vida política no interior da Letônia em um grupo conhecido como “teatro perseguido”, calasse quase que completamente a respeito de sua estadia em um Gulag: “Fui obrigada a passar dez anos em Kazajstán”, diz ela em sua autobiografia. Haveria ainda centenas de capítulos a incluir nessa nossa pequena história. Porém, em um longo salto chegaremos a Dezembro de 2011. Passada uma grande guerra mundial, o apogeu e o declínio da guerra fria e finalmente a fragmentação da União Soviética após a queda do muro de Berlim, alguns milhares de pessoas
movimentos sociais. 25 são detidas em manifestações contra possíveis fraudes nas eleições legislativas russas. A onda de protestos segue maciça após as declarações de observadores internacionais confirmarem a alta incidência de procedimentos suspeitos durante a apuração dos votos. Os opositores pedem a anulação do pleito e a queda de Vladimir Putin, presidente da Rússia entre 2000 e 2008 e primeiro ministro do presidente Medvedev (indicado por ele) desde 2009. Em Março deste ano Putin foi reeleito presidente
Em política, há algumas décadas, conhecíamos este tipo de ato como ação direta. Em estética, Walter Benjamin fora muito feliz ao encontrar a expressão “experiência do choque”. Talvez não fosse por demais ousado reconhecer, na petulância e na irreverência com que as jovens saltavam sobre o altar da catedral ortodoxa, o abismo sem estrelas que Benjamin descobrira em Charles Baudelaire. Ciente de todo o peso do anacronismo em que nos arriscamos incorrer, defenderíamos que a ação direta das Pussy Riot, mais do que um novo capítulo de uma história que gostaríamos de dizer esgotada, retoma o aspecto político combat ivo de uma tradição artística que se autodenominou moderna. Não se trataria aqui obviamente de uma análise estética da mú s ica ou da famigerada “oração” real izada pelo grup o em meio a igreja, mas apenas de reconhecer uma nova possibilidade de imbricamento entre arte e política numa época em que isso já não parecia mais possível.
Sob o imperativo da brevidade, diríamos que, se a experiência do homem da metrópole na virada do XIX para Não se trata de uma análise estética da música, mas de reconhecer uma XX fora marcada pela nova possibilidade de imbricamento entre arte e política numa época em impossibilidade de ca que isso já não parecia mais possível. racte rizar-se como uma experiência autêntica, com 64% dos votos. Mais uma vez, no entanto, a o impasse que se colocou à dita era pós-moderna foi oposição e os observadores internacionais insistiram o da espetacularização desta mesma inautenticidade. na existência deliberada de procedimentos Se o niilismo perpassava o espírito de uma época cuja fraudulentos. Uma ONG chegou a apontar que a experiência coletiva encontrava-se completamente votação real de Putin estaria na verdade na casa dos arruinada, Baudelaire ainda podia recolher-se à 50%. Uma nova onda de protestos se inicia pelas meditação melancólica e transformar, pela reflexão, a principais cidades do país. Mas, antes disso, em experiência vivida do choque em uma imagem poética. fevereiro deste ano, Yekaterina Samutsevich, Maria No entanto, em um tempo em que a própria noção de Alyokhina e Nadezhda Tolokonnikova foram presas reflexão já não pode ser afirmada sem os ares de uma sob as bizarras acusações de “hooliganismo” e ressuscitação impossível, a questão que se coloca é a da incitação ao ódio religioso. Integrantes de uma banda possibilidade mesma de uma experiência do choque. punk feminista chamada Pussy Riot, as três mulheres Se o decadentismo de Baudelaire se caracterizava haviam adentrado a Catedral do Cristo Salvador, em pela busca inaudita por salvar os vestígios de uma Moscou e, embaladas pelo som estridente de suas experiência histórica, como podemos nos comportar em guitarras, entoaram uma oração punk pedindo à um mundo em que estes vestígios já há muito parecem Virgem Maria que se tornasse feminista e expulsasse perdidos? É a esta questão que as Pussy Riot parecem de alguma forma responder. Perante uma realidade em Vladimir Putin da presidência.
movimentos sociais. 26 que o niilismo se mostra apenas mais uma teoria, um simples imaginário da catástrofe, as associações entre arte e política aparecem sob a forma do apoio de celebridades à questões como a ecologia, a defesa dos animais ou, na melhor das hipóteses, a luta contra a homofobia e o sexismo. Alguns veem nisso a vantagem da descentralização dos focos de luta por reconhecimento, outros constatam a desaparição da própria política. Baudelaire ressentia-se de não poder realizar uma experiência coletiva autêntica, por isso sua experiência com o social era uma forma de choque. Mas e nós, será que ainda podemos viver uma experiência de choque? Algum evento na vida social ainda preservaria a capacidade de nos chocar, de ofender, de desestabilizar nossa concepção de mundo? O breve comentário que Slavoj Zizek dedicou ao episódio nos dá uma pista: “Elas são artistas conceituais no sentido mais nobre do termo: artistas que encarnam uma ideia. Este é o motivo de estarem mascaradas: máscaras de des-individualização, liberadoras do anonimato. A mensagem de suas máscaras é a de que não importa quais delas foram presas - elas não são indivíduos, são uma idéia. E é por isso que são uma ameaça: é fácil aprisionar indivíduos, mas tente aprisionar uma ideia”. O riso irônico que se insinuara no rosto de Nadezhda no momento da condenação das três mulheres a dois anos de prisão parece confirmar o diagnóstico do esloveno. Há de se reconhecer que a Rússia de hoje, um país de dimensões continentais, possui uma enorme faixa de sua população fortemente ligada aos valores clericais e a uma política de costumes bastante conservadora. Por outro lado, a desintegração da URSS favoreceu a instalação de um capitalismo, de tal forma selvagem e aguerrido, que, em pouco mais de duas décadas, foi capaz de fazer brotar uma seleta casta de novos bilionários com significativo papel do mercado mundial. É entre esse processo avassalador de modernização e a manutenção de estruturas sociais arcaizantes, que sequer parecem ter sofrido o impacto do apogeu e da queda do comunismo, que Putin equilibra-se habilmente. Inútil notar a extrema fragilidade de uma democracia erigida sob as condições apresentadas. O culto personalista a Putin, apesar do forte apoio recebido da Igreja Ortodoxa, não chega a ser de uma natureza tão distinta daquele que outrora fora destinado a Stálin. Por isso não deveríamos nos admirar quando Nadezhda Tolokonnikova afirma corajosamente em seu discurso de defesa sentir-se diante de uma troika dos tempos soviéticos. Mais ainda, Nadezhda poderia reconhecer-se, como vimos, na pele de um Dostoiévski (o homem e não o criador. Como vimos, Dostoiévski foi perseguido por sua militância política e não diretamente por seus escritos.) as voltas com a ortodoxia cristã e o
Putín monta sua farsa e as condena. Os ortodoxos vibram. A comunidade internacional horroriza-se. Nadezhda sabiamente esboça um sorriso sarcástico. Durante um dos dias de julgamento, ela vestia uma camiseta estampada com a frase “No Pasarán!” poder de fogo de Nicolau I. É agravada ainda a opressão pela sua situação feminina que lhe impinge a necessidade, muito bem observada por Simone de Beauvoir, de afirmar-se antes de tudo como um ser humano dotado de direitos. De todo modo, o ponto que gostaríamos de enfatizar é que as Pussy Riot deixaram um lampejo sobre como podemos recuperar uma velha forma moderna de se fazer política: a forma do choque, da desestabilização. Elas foram capazes, em um único ato, de “reunificar” as pautas da emancipação social com a da emancipação das mulheres (um feminismo que combate as aparências do tecido político-social ao invés de contentar-se com a distribuição equitativa, entre os gêneros, das formas de opressão) e justamente por isso sofreram uma represália tão dura por parte do Estado. A política de Putin, claramente apoiada pelo clero e pelas massas conservadoras, inseguras acerca de seus valores tão arcaicos quanto incipientes, é incapaz de neutralizar cinicamente um ataque frontal como o das Pussy Riot. Como nos mostrou Zizek, sua performance tem o peso de uma Ideia. A política de Putin é a do medo. Mas ela não é apenas dele. Como a pequena história que buscamos traçar desde a prisão de Dostoiévski nos mostrou, a política do medo é o espólio czarista que fortaleceu Stálin diante de Trotsky e que agora opõe Putin à democracia. Sua tentativa com a condenação é transformar a punição às Pussy Riot em exemplo de seu poder e, assim, reprimir manifestações contrárias a seu governo. A política destas feministas, no entanto, é a da boutade, do deboche, da irreverência, enfim, da ironia. Putín monta sua farsa e as condena. Os ortodoxos vibram. A comunidade internacional horroriza-se. Nadezhda sabiamente esboça um sorriso sarcástico. Durante um dos dias do julgamento ela vestia uma camiseta estampada com a frase “No Pasarán!”, uma clara referência ao lema eternizado por Dolores Ibarruri (La Pasionaria) durante a guerra civil espanhola no cerco à Madrí, perpetrado pelas tropas nacionalistas. Como sabemos, eles, os franquistas, passaram. Mas não apenas pelos comunistas. A história lhes pregou uma bela peça, isto é, o seu vitorioso “passar”, no decurso do tempo, converteu-se em um lacônico “extinguir-se”. Assim, das profundezas de seu sorriso irônico, a bela Nadezhda deixa entrever a solidez de uma certeza: Putin e os ortodoxos também passarão! ϕ
poesia. 27
poema sem-título por Bruno Bernardo
à M.M. E se, enquanto caminho por tenebrosas trilhas caminhos sofridos de gente minguante, por detrás de um poste mijado não se sabe por que triste ser, aparecer um demônio, ou talvez seja um profeta, e me diga que toda minha vida do jeito que é foi e será com cada alegria e sofrimento cada futilidade toda vergonha e medo que já senti, toda lágrima, toda dor, toda dor, que tudo que posso tocar com a memória retorne idêntico ao que é, foi e será? Se nada mudar, o que mudaria em mim? Me prostraria e choraria em desespero por todo mal que fiz ou talvez por todo mal que evitei? Não. Se esse demônio sabe das coisas nada mudaria em mim, aceito cada pecado seu e meu cada desgosto não para afirmar cada prazer mas para afirmar toda paixão e amor. As inúteis lutas que se travam em meu interior o imaginário e estúpido sangue derramado tudo se empalidece, se infantiliza. Quero uma vida irredutível à biografia. Uma vida baseada em outra realidade, secreta, sagrada eterna. E só se vive o eterno uma vez. As outras repetições infinitas pra trás e pra frente terão sempre o mesmo amor a mesma intensidade, pois é dela que vivo, não por mim mesmo - você me move
a violência de seu ser é transmitida à minha violência - minha paixão, como sabe, não é passiva violência que não é luta, mas continua violência não é bondade mas é religiosa. A pequenez de nosso amor não se reduz à pequenez de nossas vidas, nossa mesquinhez, futilidade, alegria, tudo que se reduz ao cômico, a pequenez de nosso amor é o todo da mesma substância do caos universal um microcaos, a pequenez de nosso amor é a verdade e o segredo é o eterno
Manual de como envenenar a tinta de uma caneta Alberto Sartorelli
Como fazer uma bela poesia Quando não se fala de nada? O silêncio é o soberano das respostas, Da palavra na garganta estagnada. Cheio de aforismos, o texto continua, Flui como água na corrente exaltada. Não para, não recua, O escrito é mais mortífero que a espada. Não falo do método dos parnasianos, Estes, meros homens sem planos. O manual é de como envenenar a tinta, Prática funesta e assaz distinta. Nos versos frios vão-se os anos, E com eles, o despojo dos enganos. O novo sangue desfruta e pinta, Rompe o vidro antes que o inimigo sinta. O sangue novo, da linhagem de Rimbaud, O mais espirituoso dos poetas. Riso falso não vale a pena, diz o Pierrô, A poesia é o vinho das grandes festas. Sem jograis, nem alentos delirantes, Meros palhaços no mundo dissidentes. A estirpe suja em movimentos dissonantes, O veneno mais mortal é o das serpentes.
rodapé. 28 expressões latinas
RESPOSTAS: Horizontais: 2) exempli gratia; 10) ipso facto; 12) sic; 13) ibidem; 15) a fortiori; 19) opus; 20) sine qua non; 21) a posteriori; 23) pro forma; 24) et cetera; 25) post scriptum/ Verticais: 1) mutatis mutandis; 3) modus operandi; 4) ad nauseam; 5) a priori; 6) de facto; 7) sui generis; 8) ex abrupto; 9) ipsis litteris; 11) id est; 14) ad infinitum; 16) apud; 17) in natura; 18) fac simile; 22) in.
Horizontais
Verticais
2. Por Exemplo (cuja abreviação é “e.g.”). É expressão sinônima de verbi gratia (abrev.: v.g.). 10. Mesmo fato. Por esse mesmo fato, por isso mesmo. 12. Assim, assim mesmo, exatamente. Pospõe-se a uma citação, ou nela se intercala, entre parênteses ou entre colchetes, para indicar que o texto original é da forma que aparece. 13. No mesmo lugar. Usada para evitar repetir citações ou referências, cuja abreviação é “ibid.”. 15. Com maior força. Com maior razão. 19. Obra. 20. Diz-se de uma condição indispensável, sem a qual não ocorre algo. 21. Pelo que segue, depois de um fato. Diz-se do raciocínio que se remonta do efeito à causa. 23. Pela forma, pela aparência. Por mera formalidade. 24. E as outras coisas, e os outros, e assim por diante. Expressão continuativa cuja abreviação é “etc.”. 25. Depois de escrito, cuja abreviação é “P.S.”.
1. Mudado o que deve ser mudado. Fazendo-se as alterações ou adaptações necessárias. 3. Modo de operar. Maneira de agir. 4. Emprego exagerado do mesmo argumento ou mesma ideia, etc. Até o enjoo. 5. Segundo um princípio anterior, admitido como evidente; antes de argumentar, sem prévio conhecimento. 6. Na realidade, evento real. De fato. 7. De seu próprio gênero. Peculiar, original, diferente. 8. Tratar de algo sem preparação, sem introdução, direto ao assunto. De repente. 9. Com as mesmas letras. Literalmente, textualmente, nos mesmos termos. 11. Isto é, quer dizer. Às vezes, aparece abreviadamente (i.e.). 14. Ao infinito. Indefinidamente, até o infinito. 16. Junto a ; indica a fonte consultada indiretamente. 17. Em estado natural; na Natureza. 18. Reprodução (literal, fiel, exata) 22. Em, na obra de...