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PRODUTOS COM HISTÓRIA
DULCE MANUEL DA CONCEIÇÃO NETO
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PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
É, desde outubro de 2019, a primeira mulher a presidir a um tribunal superior em Portugal, passo que encara como natural para uma magistrada com trinta e cinco anos de carreira judicial e inevitável naquela que foi uma longa caminhada percorrida pelas mulheres portuguesas desde os tempos em que o acesso à magistratura lhes estava vedado. Nesta conversa com Dulce Manuel da Conceição Neto, Juíza Conselheira e Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, fique a conhecer os desafios que revestem o cargo e a justiça administrativa e fiscal, hoje e no futuro.
Entrevista Joana Gonçalves / Fotografia Cláudia Teixeira
É presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA) desde outubro de 2019, momento em que se tornou a primeira mulher a presidir um supremo tribunal português. O que representa para si este cargo? Tem um significado especial, sabendo que até ao 25 de Abril de 1974 a carreira da magistratura estava vedada às mulheres?
Ser presidente de um supremo tribunal e, por inerência, de um órgão superior de gestão e disciplina de magistrados judiciais, significa assumir responsabilidades, enfrentar desafios e cumprir compromissos, e, como tal, vejo este cargo como algo absolutamente natural para uma magistrada com trinta e cinco anos de carreira judicial. Um passo natural e inevitável nesta longa caminhada que nós, mulheres portuguesas, temos percorrido desde os tempos em que nos estava vedado o acesso à magistratura e onde diariamente temos dado provas não só da nossa aptidão, competência, empenho e brio profissional, como de capacidades de liderança, ocupando gradualmente, com toda a naturalidade e justiça, espaços e funções historicamente masculinos.
Foi, aliás, com essa naturalidade que encarei a minha eleição, em 2011, como a primeira vice-presidente do um supremo tribunal em Portugal e que encarei o facto de nas eleições realizadas em 2016 para o Conselho Superior dos Tribunais Administrativas e Fiscais (CSTAF) ter sido eleita, através de expressiva votação dos juízes de todas as instâncias, a lista que encabecei composta maioritariamente por mulheres.
Mas ser a primeira mulher a chegar ao cargo constitui, sem dúvida, uma enorme honra, não só pelo seu significado simbólico, de reconfiguração da Justiça-Mulher, que de mero símbolo talhado na pedra se transmuta em símbolo vivo, de carne e osso, do longe a que as mulheres portuguesas chegaram na magistratura, mas também por ter sido alcançado numa eleição entre pares num colégio maioritariamente masculino. É algo que me deixa cheia de alegria.
Como conseguiremos explicar o papel da jurisdição administrativa e fiscal ao cidadão? Em que casos é que se deverá recorrer a um Tribunal Administrativo e Fiscal?
Tentando utilizar uma linguagem acessível, ainda que genérica e algo redutora, diria que esta jurisdição é composta por tribunais especializados no controlo da atuação do Estado e demais entidades públicas, sobretudo a nível da legalidade de atos administrativos praticados pela Administração Pública – desde o indeferimento das mais diversas pretensões formuladas por cidadãos e empresas, a litígios que surgem a nível de concursos públicos, de vínculos de trabalho em funções públicas, de proteção social, de punição disciplinar, de urbanismo, de ambiente, de asilo, etc. – e da legalidade de atos tributários – liquidações de impostos, taxas e contribuições – ou de atos administrativos em matéria tributária.
Para além de serem os tribunais que julgam as ações de responsabilidade civil instauradas pelos cidadãos contra o Estado e demais entidades públicas por danos provocados com atos ilegais e atos ilícitos, de que constituem exemplo os danos por atos médicos praticados em hospitais públicos ou por atrasos na administração da justiça.
É uma jurisdição que dispõe de uma rede nacional de 16 tribunais administrativos e 16 tribunais tributários de 1ª instância, aos quais os cidadãos e empresas devem recorrer para se defenderem de atos lesivos dos seus direitos e interesses legalmente protegidos; que dispõe de dois tribunais de 2ª instância que funcionam sobretudo como tribunais de recurso das decisões de 1ª instância; e que dispõe de um órgão de cúpula – o STA – que funciona como tribunal de recurso, de revista, de reenvio prejudicial e de uniformização de jurisprudência, com a acrescida competência de julgar em primeiro grau de jurisdição processos em matéria administrativa relativos a ações ou omissões de importantes órgãos e entidades públicas, designadamente do Presidente da República, da Assembleia da República e seu Presidente, do Conselho de Ministros e do Primeiro-Ministro.
No fundo, estes são os tribunais em que o Estado (em sentido amplo) é sempre o Réu. O que pode fazer alguma luz sobre o desinvestimento na eficiência destes tribunais.
Considera que as fronteiras de competências entre a jurisdição comum e a jurisdição administrativa estão suficientemente definidas?
Penso que sim, ainda que existam zonas em que a rede da fronteira possa estar mais esbatida ou tenha uma malha mais problemática. Mas ela está desenhada de forma clara: o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é delimitado em função da qualificação dos litígios como emergentes de relações jurídicas administrativas e tributárias. Uma fronteira que segue um critério material, ligado à natureza da questão a dirimir.
E o que normalmente embaraça e provoca o conflito de jurisdições é a interpretação do pedido e dos seus fundamentos face aos termos em que o autor configura a ação, sendo os conflitos mais frequentes na área administrativa do que na área fiscal.
Esses conflitos são resolvidos no Tribunal de Conflitos – cuja composição e modo de funcionamento foi recentemente alterada pela Lei nº 91/2019 – e não podem considerar-se numerosos. Foram resolvidos 42 conflitos em 2016, 61 conflitos em 2017, 66 conflitos em 2018 e 40 conflitos em 2019. O que não pode considerar-se expressivo face ao volume anual de litígios pendentes nas duas jurisdições, e que na 1ª instância desta jurisdição ronda os 70.000 processos.
Em Portugal existe um sentimento geral de que os processos se arrastam demasiado tempo nos Tribunais Administrativos e Fiscais. A isto acrescem as queixas recorrentes sobre falta de meios e de recursos. Podemos dizer que a jurisdição administrativa e fiscal é o parente pobre da Justiça, em Portugal?
Assim é, infelizmente. Os processos demoram demasiado tempo a serem decididos e os juízes arcam com o peso de
Os processos demoram demasiado tempo a serem decididos e os juízes arcam com o peso de uma culpa, que não é sua, de não conseguirem dar resposta atempada a um volume de litigância claramente excessivo para a capacidade dos meios instalados.
uma culpa, que não é sua, de não conseguirem dar resposta atempada a um volume de litigância claramente excessivo para a capacidade dos meios instalados.
Uma situação que se encontra espelhada em relatórios nacionais e internacionais. Segundo o relatório divulgado em Outubro de 2019 pela Comissão Europeia e pelo Banco Central Europeu, a justiça administrativa e fiscal continua a representar um dos pontos mais críticos do sistema judicial português, sendo a duração dos processos nestes tribunais apontada como um dos maiores desafios na área da justiça portuguesa. E o mais recente relatório da Comissão Europeia, elaborado no passado mês de Fevereiro, revela que os processos dos tribunais administrativos e fiscais portugueses continuam a contar-se entre os mais longos da União Europeia, ainda que ultimamente tenham sido introduzidas medidas para melhorar a situação, como é o caso das equipas para a recuperação de pendências e a criação de juízos especializados.
A nível nacional, o relatório elaborado em 2017 pelo Observatório Permanente da Justiça evidencia, com a clareza e a crueza dos números, o estado de prolongado estrangulamento destes tribunais, com um elevadíssimo volume de processos para um quadro de magistrados e de funcionários ostensivamente subdimensionado, com pendências acumuladas ao longo de anos e que são impossíveis de resolver em tempo útil num quadro de carência de meios e instrumentos que permitam uma gestão racional.
E até o órgão de gestão desta jurisdição sobrevive de forma amadora. Não tem secretaria própria ou qualquer gabinete de apoio e assessoria, ainda que previstos na lei há 16 anos, funcionando com o esforço da juíza-secretária e de alguns funcionários do STA que lhe dão apoio; não existe quadro orgânico para o normal desenvolvimento da sua atividade – como seja a figura de um vice-presidente, de um chefe de gabinete, de um órgão de gestão corrente que assegure a resolução dos assuntos que não possam aguardar pelas sessões de um Conselho que, segunda a lei, só reúne uma vez por mês e sempre em Plenário; e não tem membros a exercer funções em regime de tempo integral ou parcial.
Trata-se de uma situação anómala, fruto de uma desatenção e desinvestimento que se prolongou durante muitos anos.
Ainda assim, mantenho a esperança, uma esperança lúcida e atuante, no futuro desta jurisdição, não só pelo esforço
do seu corpo de magistrados, que está a conseguir alcançar taxas de resolução processuais superiores a 100%, mas também pela atenção que a atual Ministra da Justiça tem votado a estes tribunais e pelo esforço que, a nível de justiça tributária, está a ser desenvolvido pelo atual Secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Fiscais com vista à redução dos litígios tributários – seja a nível da sua resolução a montante do sistema judicial, seja a nível preventivo da conflitualidade e de alteração da postura da Administração Tributária, a qual, enquanto serviço público, tem o dever de contribuir para uma justiça mais célere.
Considera que a Justiça está, atualmente, mais credibilizada, próxima e acessível ao cidadão, nomeadamente no que respeita aos custos e procedimentos?
A credibilidade da justiça administrativa e fiscal passa pela existência de um corpo de juízes de direito que garanta uma justiça independente e imparcial, e passa pela eficiência e qualidade da resposta judicial. Se relativamente ao primeiro aspeto não há motivos para duvidar da sua atual credibilidade, já o mesmo não posso dizer do segundo aspeto.
Como pode ter mais credibilidade se continua a não conseguir dar resposta atempada e adequada a um volume de litigância claramente excessivo para a capacidade dos meios instalados? Como pode ter mais credibilidade se é conhecida quase exclusivamente pela sua morosidade?
E como pode ter maior eficiência se os juízes continuam a não ter um mero assistente administrativo, o que os obriga a ter de pesquisar toda a legislação e todos os elementos doutrinais e jurisprudenciais necessários para julgar cada caso, a ir pessoalmente procurar e comprar obras e publicações indispensáveis à resolução dos mais diversos litígios, a bater no teclado do computador todo o despacho diário, todo o expediente, todas as decisões, o que os impede de se libertarem para a sua verdadeira função, que é a de julgar.
Como pode ter maior eficiência se não existem ainda juízes para preencher o quadro legal fixado para os tribunais de 1ª instância, o que, além do mais, acarreta a impossibilidade de criação de uma bolsa ou quadro complementar de juízes para fazer face a ausências temporárias, como as que ocorrem, com frequência, por força do gozo de licenças parentais numa magistratura maioritariamente feminina.
Como pode ter maior qualidade se os juízes continuam a não dispor de assessoria técnica e jurídica, apesar de ela ser indispensável para a adequada resolução de litígios que exijam conhecimentos que não são estritamente jurídicos e que frequentemente envolvem matérias de elevada tecnicidade e complexidade.
Quanto a custas, são óbvios os obstáculos económicos que impedem e dificultam o acesso à justiça em Portugal. E como já alertou a Comissão Europeia, há uma clara necessidade de reforma do sistema das custas judiciais, atenta a incerteza do seu montante e a sua pouca transparência. O regime vigente, em que não existe limite máximo para a taxa
de justiça a cobrar às partes, leva ao pagamento de taxas de valores elevadíssimos, sem correspondência com o serviço efetivamente prestado pelo tribunal, originando situações de manifesta injustiça e desproporcionalidade. E o facto de ser o juiz a decidir, de forma casuística, se dispensa ou não a taxa de justiça remanescente nas causas de valor superior 275.000 euros e, no caso afirmativo, em que proporção, constitui um cancro que só agrava a incerteza, a injustiça e a morosidade processual.
Com a última alteração ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), os Solicitadores passaram a poder exercer o mandato nos termos conseguidos no Código de Processo Civil e as entidades públicas podem fazer-se patrocinar em todos os processos pelo Solicitador. Do lado dos Solicitadores houve um grande esforço formativo, seja na área académica, seja em termos de formação contínua. Os tribunais administrativos já interagem com os Solicitadores considerando esta nova realidade?
Conheço e louvo todo esse esforço formativo. É notória essa maior interação profissional entre Magistrados e Solicitadores e é cada vez mais comum a representação de Entidades Públicas por Solicitadores.