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SUGESTÕES

LEITURAS

Por Luís Coelho, Solicitador e Vogal do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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O VENDEDOR DE PASSADOS de José Eduardo Agualusa

“… Félix Ventura. Assegure aos seus filhos um passado melhor…”

É este o mote com que Félix, o inventor e vendedor de passados, se apresenta aos seus potenciais clientes – altos quadros políticos, militares de elevada patente e empresários de sucesso, essencialmente homens com o futuro assegurado num país que pretende “reconstruir-se” depois de vários anos em guerra.

Neste romance de José Eduardo Agualusa, o escritor satiriza a sociedade angolana, na qual uma burguesia em ascensão está disposta a adotar uma nova identidade que lhes permita esquecer os horrores da guerra, em detrimento da sua identidade e memória coletiva, permitindo o estabelecimento de grandes confusões entre a verdade e a ficção.

Talvez hoje, mais do que quando foi editado pela primeira vez (2004), o tema seja de extrema importância para a sociedade angolana, mesmo que as motivações dos clientes do Félix sejam outras.

… em jeito de homenagem …

CARLOS DO CARMO – SONGBOOK de Rafael Fraga e Augusto Macedo

“… este livro é um documento muito importante, de como este senhor, Carlos do Carmo, com a sua maravilhosa inquietude, abriu as portas do fado …”

Ivan Lins

Carlos do Carmo é, indiscutivelmente, uma das maiores vozes que cantam em português e que cantam o FADO. O Grammy que lhe foi atribuído em 2014, na categoria “Lifetime Achievement”, premeia toda a carreira do artista e não apenas um álbum ou uma canção que obtiveram êxito em determinado momento.

Um reconhecimento internacional que terá tido como ponto fulcral a declaração do FADO como património da humanidade em 2011.

“O FADO é a primeira expressão artística a ser declarada Património Imaterial da Humanidade em Portugal” in: Museu do Fado - 2011

Em 2008, Rafael Fraga e Augusto Macedo brindaram-nos com esta coletânea de temas (letra e partitura musical) cantadas por Carlos do Carmo ao longo da sua vida artística.

O reportório não é exaustivo, mas foram selecionados, meticulosamente, 49 temas dos mais de 250 que Carlos do Carmo terá cantado durante a sua carreira. Com poemas escritos e musicados pelos mais diversos autores, este livro constitui um documento que preservará para sempre a história do fado e de uma das vozes que lhe deu mundo. : :

São muitos os produtos que fazem já parte da tradição portuguesa. São produtos que cruzam gerações e que se distinguem pela qualidade de excelência. Neste espaço, desvendamos todos os segredos dos produtos com história, desde as suas origens até ao seu processo de fabrico.

BONECOS DE ESTREMOZ A ARTE QUE ABRAÇA A HISTÓRIA E A TRADIÇÃO

Texto Dina Teixeira / Fotografias Câmara Municipal de Estremoz

É SINÓNIMO DE ALEGRIA, DE SIMPLICIDADE, DE PAIXÃO, DE VIVA POLICROMIA E DE AUTENTICIDADE. AS SUAS FIGURAS REFLETEM O AMOR, O ESPÍRITO, AS TRADIÇÕES, OS TRABALHOS E O QUOTIDIANO DAS GENTES ALENTEJANAS. CADA UMA TEM APROXIMADAMENTE VINTE CENTÍMETROS, MAS O SEU VALOR E CARÁTER ARTESANAL ASSUMEM PROPORÇÕES UNIVERSAIS. NASCE ALI… BEM NO CORAÇÃO DO ALENTEJO, EM ESTREMOZ, OUTRORA TERRA DE REIS E RAINHAS. TERRA ONDE O CASARIO BRANCO SE ESTENDE SOBRE AS COLINAS E AS MURALHAS DO CASTELO PERMANECEM IMPONENTES, SÍMBOLO DE UMA HISTÓRIA SECULAR JAMAIS ESQUECIDA. FALAMOS, CLARO ESTÁ, DA PRODUÇÃO DE FIGURADO EM BARRO, MAIS CONHECIDA COMO BONECOS DE ESTREMOZ, UMA ARTE POPULAR MUITO CARACTERÍSTICA DESTA REGIÃO.

Mais de três séculos de história R eza a história que esta arte soma já mais de três séculos. “Temos um registo arqueológico do século XVII que marca os primeiros tempos de produção de Figurado e temos também algumas fontes escritas, nomeadamente do Santuário Mariano e do Aquilégio Medicinal do primeiro quartel do século XVIII, que nos indicam que já existiam Bonecos nessa altura”, contextualiza Hugo Guerreiro, historiador, chefe da Divisão de Desenvolvimento Sociocultural, Desportivo e Educativo na Câmara Municipal de Estremoz e diretor do Museu Berardo Estremoz. E o mais interessante é que “através de um documento de 1970, sabemos que a produção, curiosamente, era feita por mulheres, o que é extraordinário, invulgar e de facto coloca os Bonecos de Estremoz num patamar diferente das restantes tradições cerâmicas, em termos nacionais e internacionais”, desvenda ainda. São elas as “boniqueiras”, mencionadas como as mulheres da vila de Estremoz, que produziam figuras em barro, principalmente santos da sua devoção. “Porque é assim que começa o Figurado de Estremoz, com figuras religiosas, como o Santo António, a Nossa Senhora da Conceição ou o São João. Como as pessoas tinham poucos recursos e muitas delas não podiam ter uma imagem do seu santo em casa, começaram a produzir Bonecos de barro e foi-se ganhando essa tradição aqui em Estremoz”.

Mas a história não termina aqui. Continuemos, pois, a trilhar os caminhos desta tão humilde tradição. Ainda no contexto da religião católica e da temática da devoção, é na segunda metade do século XVIII que se dá o desenvolvimento da arte presepista em Portugal. “Embora já tivéssemos alguns exemplares, pelo menos desde o século XVI e com algum desenvolvimento no século XVII, é no século XVIII que a arte presepista ganha uma dimensão artística extraordinária”, confirma Hugo Guerreiro.

Apesar desta arte alentejana ter um nítido vínculo religioso, a verdade é que não se resume apenas a isso. Aponte-se, portanto, o aparecimento das figuras do mundo rural, como os pastores, das figuras do mundo urbano, como os sargentos, os militares e os peraltas e, ainda, das figuras profanas e alegóricas vindas do imaginário barroco, como o “Amor é Cego” e “A Primavera” – as peças favoritas dos compradores. Para o historiador, os Bonecos de Estremoz são figuras simples, associadas ao mundo que as mulheres viam, mas com significados profundos”. Quem também partilha desta opinião são as irmãs Flores, dedicadas a este ofício há quase meio século. À conversa com Maria Inácia, artesã desde os 15 anos, percebe-se a ligação emocional com esta arte: “é uma arte muito antiga e que representa o que nós somos, a nossa identidade, porque através de um simples Boneco nós conseguimos passar tudo aquilo que é a cultura alentejana e os nossos costumes”. O mesmo sente Perpétua Sousa, barrista desde os 16 anos, que desabafa: “esta arte é a nossa vida e faz parte das nossas tradições”.

Irmãs Flores Conjunto Monumental da Alcáçova de Estremoz

Entretanto, durante o século XIX assistimos a uma certa decadência do Boneco de Estremoz por vicissitudes políticas e pela decadência do comércio com o Brasil. As consequências não tardaram a chegar. “Passou a haver menos encomendas, algumas oficinas fecharam e, consequentemente, o número de produtores diminuiu. Chegámos a um tal ponto em que, em finais do século XIX, tínhamos apenas duas famílias a produzir Bonecos”, esclarece Hugo Guerreiro. Esta tradição parecia estar profundamente ameaçada, quando, na década de vinte do século XX, morre a última “boniqueira” profissional, a senhora Gertrudes, permanecendo apenas Ana das Peles.

Se é certo que as mulheres deram início a esta tradição, que hoje se assume como parte da identidade cultural deste concelho, certo é também que os homens não ficaram fora dela. Todavia, apenas em 1935 entram neste ofício, até então praticado apenas por mulheres. Assim, em meados dos anos trinta do século XX, num momento particularmente sensível para esta arte, José Maria Sá Lemos, diretor da Escola Industrial de Estremoz e a artesã Ana das Peles “agarram a arte e ensinam na escola de artes e ofícios. Desde essa altura, surge uma série de barristas que foram passando a arte aos nossos atuais artesãos e hoje há quase uma dezena de pessoas a produzir Bonecos de forma contínua”, ressalva o historiador. “Temos as irmãs Flores, o Ricardo Fonseca, o Jorge da Conceição, a Fátima Estróia, a Isabel Pires, o Duarte Catela, o José Carlos Rodrigues e a Madalena Bilro, que são os certificados. Depois, há um conjunto deles que ainda não estão certificados, mas acho que alguns são capazes de ter qualidade para lá chegar”, acrescenta.

De Estremoz para o Mundo

Desvendados os detalhes históricos, foquemo-nos agora no presente século quando se assumiu, nacional e internacionalmente, a grandeza desta arte viva. Foi em 2017, na

“É uma arte muito antiga e que representa o que nós somos, a nossa identidade, porque através de um simples Boneco nós conseguimos passar tudo aquilo que é a cultura alentejana e os nossos costumes.”

MARIA INÁCIA

Coreia do Sul, que a Unesco destacou os Bonecos de Estremoz como Património Cultural Imaterial da Humanidade, um marco importantíssimo para garantir a continuidade desta tradição. Conta-nos Hugo Guerreiro que “o principal objetivo da candidatura não era intensificar o turismo, mas sim que a arte não se perdesse dentro de vinte / trinta anos, porque os produtores estavam envelhecidos e havia poucos aprendizes. Era uma preocupação que nós tínhamos e felizmente essa batalha ficou ganha logo no primeiro ano”. Mas, inevitavelmente, “foi uma vitória em todas as frentes”, revela, pois “trouxe mais rendimentos para os barristas, mais visibilidade à cidade - a restauração ganhou, a hotelaria ganhou e todo o comércio local ganhou - e ajudou a alavancar investimentos”. Este acontecimento “marcou muito a história local e regional, ainda para mais porque foi a primeira manifestação de Figurado em Barro do mundo a ser inscrita na lista representativa, o que para nós teve um grande significado”, admite.

Desde então, manter a prática da arte tem sido a única prioridade. Como explica Hugo Guerreiro: “tivemos um curso apoiado pelo CEARTE para renovarmos o número de barristas; escrevi um livro sobre o Boneco de Estremoz para que as pessoas entendam todo o seu contexto; estamos a filmar a produção dos noventa Bonecos que constituem o núcleo base para salvaguardarmos o modo de produção; temos exposições temporárias; está a ser desenvolvida uma rota do Boneco de Estremoz; e continuamos a escrever artigos sobre a temática”. Portanto, têm sido adotadas “medidas educativas e administrativas, que vêm salvaguardar esta arte e eu tenho a certeza de que no próximo século teremos Bonecos de Estremoz”. Já as irmãs flores mostram-se mais preocupadas quanto ao futuro desta tradição, referindo que os novos barristas estão a renovar demasiado a arte, como nos diz Maria Inácia: “já trabalho há muitos anos e nós acabamos por ganhar um amor muito próprio por esta arte. Sempre defendi e respeitei aquelas que são as características do Boneco e acho que isso agora está a perder-se. Falta mais respeito pela arte” e Perpétua Sousa sublinha ainda: “é importante preservar a tradição e continuar com a produção como sempre foi, porque o valor do Boneco está precisamente nisso”.

Preocupações à parte, o facto é que o reconhecimento desta arte como Património Cultural Imaterial da Humanidade veio contribuir, e muito, para que o Boneco e a vila de Estremoz sejam, hoje em dia, conhecidos em todo o mundo. “Há coleções musealizadas nos Estados Unidos da América,

Convento dos Congregados e Castelo de Évora Monte

na Alemanha, em Espanha, entre outros, porque esta tradição é considerada uma especificidade cultural portuguesa e, sem dúvida, não há igual”, salienta Hugo Guerreiro.

Pelas mãos dos barristas

É tempo de partirmos à descoberta de todos os segredos da produção desta arte única. Os Bonecos de Estremoz ganham forma pelas habilidosas mãos dos artesãos. Cada figura é cuidadosamente preparada, seguindo-se todos os preceitos, como manda a tradição. Não faltam a delicadeza, o perfecionismo, a atenção aos detalhes e, acima de tudo, o amor por esta arte tão autêntica, “característica da cultura do nosso povo”, realça Maria Inácia.

“Realizada em contexto oficinal, a produção dos Bonecos envolve um procedimento técnico muito simples. Com base na técnica do rolo, da bola e da placa, modela-se o Boneco, que depois é montado e, numa etapa posterior, com placas recortadas ou com uma navalha, veste-se o Boneco”, clarifica Hugo Guerreiro. E, assim, camada a camada, vamos ficando mais perto do produto final. Mas continuemos, porque ainda há muito mais por descobrir. “Depois de montado, o Boneco fica a secar durante 2 ou 3 dias, porque o barro tem de secar até ao núcleo para não rebentar quando for cozido”, este é um dos grandes segredos, conta-nos o historiador. Passada essa fase, o Boneco é cozido durante cerca de 10 horas e a temperatura vai subindo gradualmente até atingir os 900 ºC. Após a sua cozedura, é chegado o momento-chave. O momento em que o Boneco ganha vida através de uma multiplicidade de cores que fazem lembrar o arco-íris. Pincelada a pincelada, vai-se construindo a história do Boneco. “São uns bonecos muito coloridos e com especificidades muito características”, destacam as irmãs flores. E só fica mesmo a faltar “envernizar o Boneco e está pronto a ser vendido”, conclui o historiador. Assim se fazem os típicos Bonecos de Estremoz.

Certamente estarão a questionar-se sobre o paradeiro destes Bonecos. Vamos, sem mais demoras, satisfazer a curiosidade dos nossos leitores. Esta “é uma tradição viva, que pode ser encontrada nas oficinas dos barristas, onde há bonecos à venda”, assegura Hugo Guerreiro, desvendando também que “cada artesão tem a sua pequena oficina, sendo muitas delas um anexo da casa. Têm oficinas abertas ao público as irmãs Flores e o Afonso Ginja”. Mas para os fãs desta arte deixa um conselho: “o melhor é fazerem encomendas porque assim que um Boneco cai na prateleira está imediatamente vendido”. Para quem pretende conhecer toda a história dos Bonecos, o ideal é mesmo “visitar o Museu Municipal de Estremoz, onde temos uma coleção fantástica dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX,” menciona o historiador. Já para os que preferem pôr mãos à obra, temos boas notícias: “em breve, no mês de maio / junho, vamos abrir, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte, o Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz, um espaço expositivo para compreendermos a atualidade do Figurado e para as pessoas fazerem o seu próprio Boneco”.

O Figurado em Barro de Estremoz é uma genuína e singular forma de arte que envolve, é certo, muita paciência e perícia. Porém, tudo vale a pena quando se vê “o amor que as pessoas têm pelas peças que nós fazemos”, afirma Maria Inácia. “O entusiasmo das pessoas é o que nos motiva a dar continuidade a esta arte”, complementa Perpétua Sousa, defendendo ainda que “esta tradição tem mesmo de continuar, porque se acabar as pessoas vão deixar de conhecer muitas coisas da nossa história e dos nossos costumes”. Como investigador e apaixonado pela arte, Hugo guerreiro confessa: “estarei para sempre ligado aos Bonecos de Estremoz, porque é algo que já faz parte de mim. Mais do que trabalho é paixão”.

Damos, assim, por terminado o nosso périplo pelas maravilhas desta tradição estremocense, mas não sem antes deixar um convite: visite a vila de Estremoz e deixe-se deslumbrar pela riqueza histórico-cultural do seu Figurado. : :

“É uma tradição viva, que pode ser encontrada nas oficinas dos barristas, onde há bonecos à venda.”

HUGO GUERREIRO

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