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Da caneta ao algoritmo: A Digitalização na Justiça e a Nacionalidade Portuguesa como exemplo de progresso

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AVENTINO DE LIMA

AVENTINO DE LIMA

Presenciamos hoje uma era de transformação profunda da nossa história. O nosso quotidiano mudou, diversificou-se, a realidade tornouse multipolarizada. O mundo ficou mais próximo, em virtude do desenvolvimento exponencial das novas tecnologias de informação e de comunicação. Por todo o mundo encontramos intensos debates sobre os alicerces de uma Justiça marcada pela presença das novas tecnologias. Ponderam-se as ameaças e as oportunidades. Dois lados distintos que necessitam de equilíbrio. Alcançar esse equilíbrio é o grande desafio dos nossos dias.

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Exemplo de avanço na Justiça é o serviço online da Nacionalidade, acessível no Portal da Justiça desde o dia 17 de fevereiro de 2023. Este serviço é exclusivo para mandatários: Solicitadores e Advogados inscritos na respetiva ordem profissional. Esta plataforma é bastante intuitiva e pode, idealmente, permitir a aceleração da análise nos processos e ainda ser uma ferramenta importante para o combate à Procuradoria Ilícita. Mas esta plataforma foi criada de repente? Não. Faz parte de um plano. Analisaremos, então, o que está em cima da mesa. A transformação digital, pelo menos desde

2007, constitui um eixo fundamental da estratégia de governação para fortalecer a União Europeia, reforçando as bases e os valores partilhados em que assenta a construção europeia, mas também para que os seus Estados-Membros possam proporcionar melhores serviços e ir ao encontro dos interesses dos seus cidadãos. Como estadomembro da União Europeia, é incontornável o fenómeno da digitalização na Justiça Portuguesa. Em boa verdade, Portugal é visto como um exemplo de transformação digital na Justiça no panorama Europeu e Internacional. Em março de 2016, foi lançado o Plano de Ação Justiça + Próxima. O plano concretizou, até 2019, 122 medidas e mereceu uma elogiosa avaliação da OCDE, que reconheceu Portugal como um dos únicos países a adotar a abordagem integrada com recurso a um extenso pacote de medidas de simplificação administrativa, digitalização e inovação na Justiça. Em março de 2020, arrancou a 2º edição do Plano Justiça+Próxima e, em outubro de 2021, recebeu também, por parte da Comissão europeia, o merecido elogio. Depois de várias medidas, chegamos ao plano em vigor no dia de hoje. Fortemente influenciado pela candidatura do PRR da justiça, estamos, desde 2022, perante a Justiça+Próxima “PJ+P Powered by PRR 22|25” (PwBy PRR22|25), substituindo a edição que se previa até 2023.

Assim, esta edição vem dar continuidade ao processo de modernização em curso na Justiça, ampliando o investimento disponível e assegurando o alinhamento estratégico com as recomendações da Comissão Europeia, assegurando 114 medidas na área de eficiência, proximidade, inovação e humanização.

No meu ponto de vista, o objetivo deve ser sempre otimizar a gestão da Justiça, promovendo a simplificação e a desmaterialização de processos, incluindo tecnologias abertas e interoperáveis entre si, recorrendo a metodologias e modelos reconhecidos aplicados à governação das Tecnologias da Informação e Comunicação, potenciando poupança e ganhos de eficiência. No entanto, nunca devemos descurar que o processo de transição digital deve ser um processo inclusivo, que garanta iguais condições de acesso às tecnologias para todos e que assegure que ninguém fica para trás, colocando as pessoas no centro da transformação digital. Nas palavras de Andy Wharhol: “O tempo, por si só, não muda as coisas. Somos nós que temos de as mudar”.

Do ativismo para o cinema: a luta pela Democracia que não se pode esquecer nem apagar

Para Raquel Freire, argumentista, escritora, realizadora e ativista, o cinema tem lugar de sonho. Mãe de um jovem adulto de 22 anos, algo que a define profundamente, confessa-nos que, caso pudesse, todos os dias ao acordar filmava.

Nasceu no Porto, em 1973, no seio de uma família perseguida pela PIDE e rodeada de mulheres destemidas e corajosas. Em bebé, escondeu material subversivo, revolucionário nas fraldas. O batom vermelho define-a e tem orgulho em mostrá-lo.

Quem é a Raquel Freire? Quais as suas origens?

A Raquel Freire é uma pessoa, para começar, mãe de um jovem adulto de 22 anos, algo que me define profundamente. Cineasta que adora filmar e, caso pudesse, todos os dias ao acordar filmava. É também argumentista, escritora, realizadora e ativista.

Em que campos é ativista?

O meu ativismo foi uma forma de me expressar contra a injustiça em toda a minha vida. Sou filha, neta e bisneta de uma linhagem de mulheres e pessoas feministas e antifascistas.

A minha bisavó, por exemplo, foi a primeira mulher a entrar no liceu, assim como a primeira mulher a votar, a primeira mulher a ser professora na Póvoa de Varzim e a participar nos primeiros movimentos feministas aqui na região.

Numa terra muito pequena e conservadora, como é a Póvoa de Varzim, as mulheres da minha família sempre estiveram na luta feminista e antifascistas. Tive pessoas da minha família que morreram na luta pela democracia, os meus pais sempre estiveram nessa luta e levaram-me com eles.

A luta, ela, é interseccional, não nos podemos esquecer disso. As lutas cruzam-se e encontram-se, seja por mais direitos LGBTQIAP+, pela igualdade de género, pelas mulheres, pelo antirracismo.

Sou uma otimista porque nasci numa ditadura, mas vivo e eduquei o meu filho numa Democracia. A Democracia é sempre o que as pessoas, num determinado espaço e tempo, fazem dela, mas considero errado dá-la como adquirida. Cabe-nos a nós, cidadãos e cidadãs, estarmos despertos para todas as ameaças que possam surgir e, neste momento, elas existem, inclusive, infiltraram-se pela Democracia. E, como artista, sinto mais urgência em dar voz às pessoas que neste momento são as mais ameaçadas por estes ataques – eu como pessoa e artista tento escrever e dar novas formas de liberdade.

E lembra-se de algumas histórias que a sua mãe lhe contou desses tempos?

Por exemplo, a minha mãe tinha um PIDE que a vigiava todos os dias, logo desde o sair de casa, quando ia trabalhar para a telescola. A partir do momento em que eu nasci, o PIDE fazia-lhe o pior assédio verbal sexual até ela chegar às portas da RTP, isto era um tipo de violência que acontecia naquele regime, sobretudo para com as mulheres. Outra história que me lembro perfeitamente: Num dia em que a minha mãe tinha de fazer uma distribuição de panfletos a anunciar uma ação de professores, o meu pai ia deixá-la num sítio onde um outro professor ia buscar o saco para distribuir os panfletos pelo Porto. O que aconteceu foi que esse professor não apareceu, com medo da PIDE, e os meus pais tinham os panfletos to- dos escondidos na minha alcofa, nas minhas almofadas. Após ter dado meia dúzia de voltas comigo no carrinho, a fazer o compasso de espera, a minha mãe tomou a decisão de pedir ao meu pai para fazer a ação. Dessa vez, conseguiram escapar. Ou, então, depois do 25 de abril, a minha mãe levou-me para tudo e contou-me que eu ainda nem sabia falar, mas já cantava algumas músicas de intervenção que ia escutando. Levavam-me para as campanhas de alfabetização com mulheres do Minho, a vários piqueniques nos campos com as mulheres agricultoras, aos encontros em cooperativas no Alentejo. Lembro-me de entrar em casa de uma alentejana que tinha uma grande imagem da Nossa Senhora de Fátima e ao lado uma fotografia do Álvaro Cunhal, acho que era como as pessoas naquela altura se sentiam.

Sou uma otimista porque nasci numa ditadura, mas vivo e eduquei o meu filho numa Democracia. A Democracia é sempre o que as pessoas, num determinado espaço e tempo, fazem dela, mas considero errado dá-la como adquirida. Cabe-nos a nós, cidadãos e cidadãs, estarmos despertos para todas as ameaças que possam surgir e, neste momento, elas existem, inclusive, infiltraram-se pela Democracia. E, como artista, sinto mais urgência em dar voz às pessoas que neste momento são as mais ameaçadas por estes ataques – eu como pessoa e artista tento escrever e dar novas formas de liberdade.

Foi com os meus pais e a minha família que eu aprendi, sem dúvida, a alegria de se viver em democracia. Herdei a certeza de saber quem sou, de onde venho, o que quero fazer da minha vida e que a luta pela justiça é sempre a luta correta.

O que é para si a Liberdade?

É podermos sonhar e realizar os nossos sonhos, que se concretizam de diversas maneiras. Se me questionar o que é para mim liberdade agora, seria gravar, mas infelizmente não posso por não ter meios. A Liberdade ainda não chegou ao cinema português, continuam a ser homens, brancos, ricos, da mesma elite que têm acesso ao capital e as histórias que contam apenas interessam a essa elite.

O divórcio entre o cinema português e o público é cada vez maior. Não há mulheres a gravar, os concursos continuam a ser com júris só de homens.

Sempre quis ser realizadora?

Eu sonhava muito e, quando tinha 4 anos, a minha mãe levou-me a ver o “Ladrão de Bicicletas”. Foi uma revelação para mim, eu tive uma epifania, eu ria, eu chorava (risos). Eu até ali só tinha visto animação e quando percebi, naquele momento, o que era realmente cinema, pedi à minha mãe para me levar lá no dia seguinte. Ela decidiu, então, inscrever-me no cineclube, onde tenho uma foto minha com 5 anos, muito pequenina no cartão de sócia para conseguir entrar.

Então, as manhãs de sábados e domingos, onde lá ia eu apanhar o autocarro, com bastante responsabilidade, porque não era suposto uma criança andar sozinha de transportes públicos, tornaram-se mágicas!

Quando comecei a escrever histórias, comecei pelo crime. Enquanto os meus pais costumavam sair à noite para reuniões e eu achava que eles iam morrer, havia uma pessoa lá em casa a tomar conta de mim e foi aí que começou a minha vida de crime. Eu subornava essa pessoa com a minha mesada para não ir para a cama às

21h00 e ficava a assistir aos filmes da RTP2. Quando não conseguia subornar essa pessoa, ia para a cama escrever as minhas próprias histórias, literalmente um filme. Todas as noites quando ia para a cama escrevia mais um capítulo, que podia durar meses a fio.

Qual foi o primeiro trabalho enquanto realizadora?

O meu primeiro trabalho enquanto realizadora profissional foi o “Rio Vermelho”, uma curta-metragem. Foi um desafio incrível, inclusive porque quis ser eu a decidir de que forma é que o dinheiro seria gasto, não ia ser ninguém a decidir por mim. Neste sentido, fundei uma produtora, a Terra Filmes.

O meu grande desafio com o “Rio Vermelho” foi o voltar ao Porto, à minha infância, ao ser criança e atirar-me ao rio. Ao mesmo tempo, também foi uma afirmação porque a única frase que se ouve no filme é “agora as mulheres fazem tudo sozinhas”.

Trata-se de uma mulher grávida, uma pescadora, que se atira ao rio para nadar, apercebe-se que o filho vai nascer e sobe a uma rocha para parir. Há uma deusa da fertilidade, despida, a dançar em cima da ponte, que a vai proteger e olha por ela porque nós mulheres estamos sempre todas juntas e de mãos dadas nestes momentos.

Qual foi o trabalho que mais gostou de fazer?

E menos? Porquê?

Todos os filmes me deram muita alegria. Mas há um filme que eu tentei fazer depois do “Rasganço”, sobre as mulheres do meu país, no sentido em que o 25 de Abril não tinha chegado às mulheres e havia um grave problema com o aborto. Mulheres eram presas por quererem abortar, porque como eram muito pobres e não tinham outra maneira, abortavam de forma perigosa e clandestina. Eu não podia continuar a viver num país que via mulheres a quererem decidir sobre o seu corpo e não poderem nem conseguirem uma vez que iam presas, isto ainda antes do referendo sobre o aborto.

Comecei a escrever à Rebecca Gomperts, fundadora do movimento “Women on Waves”, e ela disse-me que chegava no dia seguinte a Portugal no voo das 8h00. Gravei uma entrevista com ela, onde revelou que vinha a Portugal a convite de três associações feministas fazer uma ação. A meio da nossa conversa disse-lhe que tinha de sair porque estava com umas amigas a fundar um grupo de ação direta chamada “Panteras Rosa” e íamos fazer um beijaço – e ela questionou-me se podia ir, porque os gays sempre estiveram ao lado da nossa luta.

Quando lá chegámos e chegou o momento do beijaço, não havia assim tantas mulheres e as que estavam eram casais, pelo que a Rebecca me puxou e disse “let’s go, darling!” e beijámo-nos!

ESCOLHAS…

Um livro: “As Mulheres do Meu País” de Maria Lamas, Um filme: “O Movimento das Coisas” de Manuela Serra Música: “Sou Mulher” de Joana d’Água, composta para “Mulheres do Meu País”. Todas da Mynda Guevara. Teatro: “Julietas” de Mónica Calle.

Um sítio: o mar

O que aconteceu foi que eu queria gravar o acontecimento histórico da vinda do barco a Portugal, mas como não tinha dinheiro para tal, pedi ajuda a um produtor para me pagar as filmagens e até hoje desapareceu-me com as imagens gravadas! Vi uma juíza, quando fui a tribunal, dizer que a profissão de realizadora não existia.

Quem são as Mulheres que a inspiram?

Neste momento, estando a investigar para o meu próximo filme Mulheres de Abril sobre as mulheres que lutaram pela nossa democracia, são as fundadoras: Maria Lamas, Virgínia Moura, Margarida Tengarrinha, Clara Queiroz, Maria Teresa Horta, Lilica Boal, Helena Neves, Luísa Sarsfield Cabral, Ruth Rodrigues, Teresa Loff Schwarz, Julieta Rocha, Isabel do Carmo, Manuela Juncal e Maria Emília Bederode Santos.

Estas são apenas uma pequena parte dessa força anónima entre Portugal continental, ilhas e territórios africanos ocupados que lutou para nós podermos estar aqui hoje em liberdade.

Desde que nasci que nunca suportei que me reprimissem. Portanto, quando me vi como cineasta e comecei a criar os meus filmes, vi-os sempre como novas formas de inventar a Liberdade. No fundo, é isso, eu quero dar voz às pessoas que não têm a voz que merecem na sociedade, quero contar a história das pessoas e comunidades que mais precisam de ser escutadas.

Mas muitas mulheres me inspiram, de todas as culturas. Todas as mulheres que habitam neste território e lutam por uma vida digna.

As mulheres têm menos visibilidade e reconhecimento no setor do cinema?

Os estudos demonstram precisamente isso. Eu e outras colegas temos feito queixas sistemáticas ao Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) de que éramos discriminadas em concursos públicos onde, por exemplo, numa equipa de quatro homens há uma mulher que é a redatora ou secretária, ou seja, tem uma função adjetiva. Nesse sentido, sente-se que a equidade da Democracia não chegou a várias estruturas deste país.

Para problemas coletivos, do machismo estrutural, que afeta todas as mulheres, exigimos soluções coletivas. Fundámos uma Associação, MUTIM - Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento, onde, com muito orgulho, estão mulheres muito mais jovens do que eu.

A luta feminista, lgbti+, queer e antirracista estão presentes no seu trabalho. Porquê?

Desde que nasci que nunca suportei que me reprimissem. Portanto, quando me vi como cineasta e comecei a criar os meus filmes, vi-os sempre como novas formas de inventar a Liberdade. No fundo, é isso, eu quero dar voz às pessoas que não têm a voz que merecem na sociedade, quero contar a história das pessoas e comunidades que mais precisam de ser escutadas.

Tenho de dar voz às pessoas, mulheres e minorias que, historicamente, como eu, foram silenciadas.

O próximo filme vai ser sobre as “Capitãs de Abril”. Como surgiu essa vontade? E o que pretende com esse filme?

A historiografia da oposição ao fascismo e da nossa revolução foi feita, sobretudo, do ponto vista militar e contada por homens. Há alguma investigação sobre os partidos políticos, mas pouquíssima sobre os movimentos sociais.

Mais recentemente, felizmente, a história tem sido contada através de mulheres. Mulheres que estiveram na luta armada, nos partidos e nos movimentos sociais. Chegou o momento, quase 50 anos depois do 25 de Abril, dessa revolução chegar ao cinema! Não podemos esquecer que a nossa revolução começou em África e somos herdeiros dos movimentos de libertação da Guiné, Moçambique e Angola. Este filme conta com duas mulheres que fizeram a luta anticolonial, Lili Cabual e Maria Teresa Lopes Schwarz. E outras tantas corajosas e bravíssimas mulheres, como é o caso da Margarida Tengarrinha, Maria Teresa Horta e Maria do Carmo. Estas mulheres são a história viva que construíram a nossa Democracia.

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