5 minute read
As mais recentes alterações ao regime da insolvência de pessoas singulares
Após uma época pandémica acrescida de outros fenómenos sociais – como a invasão da Rússia à Ucrânia e a crise energética – que, inevitavelmente, culminaram num aumento exponencial da inflação e de um consequente agravamento das taxas de juro dos créditos, a liquidez de muitas daquelas famílias diminuiu a ponto de não conseguirem cumprir pontualmente as obrigações que anteriormente assumiram, expectando-se assim um panorama difícil para o nosso país: o aumento do número de insolvências pessoais. O desfecho que acabamos de explanar é consequência de fatores externos anormais e imprevisíveis, que não dependem da vontade do devedor e que colocam em causa a estabilidade daqueles que se encontram já endividados - por exemplo, com créditos à habitação, ao consumo – resultando numa situação de insolvência provocada por sobre-endividamento passivo. No entanto, a par desta continuam a existir situações de insolvências que emergem de causas de sobre-endividamento ativo e que se prendem com comportamentos dolosos ou negligentes do devedor que sabia ou não podia desconhecer que não conseguia suportar as obrigações que assumiu por não ter liquidez para tal.
Identificada a situação de insolvência nos termos do artigo 3.º, número 1 do CIRE enquanto impossibilidade de cumprir pontualmente as obrigações assumidas, poderá a declaração da mesma ser requerida por terceiros (como os credores) ou até pelo próprio devedor cuja iniciativa poderá ser-lhe legalmente exigida ou tornar-se uma condicionante para a adesão de regimes aliciantes para a sua recuperação. Ao devedor pessoa singular é-lhe exigido, nos termos do artigo 18.º do CIRE que requeira a sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data em que conheceu ou podia ter conhecido da sua situação de insolvência. O incumprimento de tal obrigação é um dos fundamentos para a qualificação da sua insolvência como culposa, sendo este um incidente de tramitação apensa ao processo de insolvência com o objetivo de julgar e punir os comportamentos do devedor que, com dolo ou culpa grave, permitiram criar ou agravar a sua falência. Pelo incumprimento daquele dever, presumir-se-á, iludivelmente, à sua culpa grave (artigo 186.º, número 3, alínea a) e número 4) na criação ou agravamento da sua insolvência, não sendo necessária prova para a sua demonstração, o que acarretará sanções criminais (artigos 228.º, número 1 e 229.º do Código Penal) e ainda sanções civis (artigo 189.º, número 2) –como a inibição para o comércio e para a administração do património de terceiros, assim como indemnização a credores prejudicados. Com a introdução do advérbio “unicamente” pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, o legislador passou a restringir aquela presunção à atribuição de culpa grave perante o incumprimento dos deveres mencionados no número 3 do artigo 186.º, não servindo a mesma para presumir o nexo de causalidade entre aquele incumprimento e a criação ou agravamento da situação de insolvência. O quantum indemnizatório do valor a atribuir aos credores prejudicados foi ainda alterado, tendo em conta a nova redação da alínea e), do número 2 do artigo 189.º do CIRE, podendo agora ser estipulado em montante inferior ao dos créditos não satisfeitos – ao invés do previsto na anterior redação –continuando a haver uma ponderação daquele valor com o montante dos danos que efetivamente foram provocados pela atuação/omissão do devedor.
Advertisement
Aquele que não é titular de uma pequena empresa, apesar de não estar obrigado a apresentarse à insolvência (alínea b), do número 2, do artigo 18.º a contrario sensu), não culminando aquela com a sua qualificação como culposa, se o processo de insolvência não tiver sido por si atempadamente impulsionado, poderá, contudo, sofrer desvantagens tal como não ver ser-lhe deferido o pedido de adesão ao regime da exoneração do passivo restante (artigo 238.º, número 1, alínea d)) que pode ser requerido logo aquando da sua apresentação à insolvência ou nos 10 dias após a sua citação, se aquela tiver sido requerida por terceiros (artigo 236.º, número 1). Este é talvez o regime mais aliciante para o devedor pessoa singular (empresário ou não) que é submetido a um período de teste intitulado por período de cessão, em que cumprirá uma série de obrigações legais (artigo 239.º) – nomeadamente a entrega da parte disponível do seu rendimento – para demonstrar que é merecedor do perdão do passivo relativo às dívidas da insolvência1 que ficaram por cumprir após esgotada toda a massa insolvencial e após ter cedido o seu rendimento disponível e, assim, beneficiar de uma segunda oportunidade para se recuperar enquanto agente económico liberto das dívidas do passado cujo prazo prescricional poderia ascender aos 20 anos. Aquele período de cessão sofreu recentemente um relevante encurtamento de cinco para três anos, com a introdução das alterações provocadas no CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro2, com vista a uma mais rápida recuperação do devedor e a um verdadeiro fresh start. Objetivo que se sobrepõe, naturalmente, ao interesse dos credores na satisfação (quase) integral dos seus créditos. Apesar da sua sistematização criticável, para mitigar esta redução brusca do período de teste o legislador introduziu com o artigo 242.º-A a possibilidade de prorrogação do mesmo até ao máximo de três anos por uma única vez, o que implica que a duração do período de cessão possa, afinal, ser superior àquela que anteriormente estava prevista, continuando o devedor sujeito a continuar a cumprir com as obrigações que se obrigara no período inicial –nomeadamente, continuar a entregar todo o seu rendimento disponível durante o período da prorrogação – não ficando apenas sujeito a cumprir o que eventualmente possa ter ficado por cumprir naquele período de cessão3. Um entendimento contrário seria mais penalizador para os credores do que para o devedor incumpridor das suas obrigações. Tal prorrogação poderá ser solicitada pelo próprio devedor4, por algum credor da insolvência, pelo administrador da insolvência ou pelo fiduciário quando o devedor tenha violado as obrigações impostas pelo artigo 239.º, prejudicando a satisfação dos créditos sobre a insolvência. O facto de o legislador não ter apresentado a redação mais feliz a este preceito e ter delimitado aqueles fundamentos à sua utilização pelo fiduciário, não implica que nos limitemos apenas à letra da lei, parecendo-nos que podem os mesmos ser utilizados pelos outros sujeitos legitimados a requerer esta prorrogação de forma a penalizar o devedor incumpridor das suas obrigações, mas também a dar-lhe uma última oportunidade para obter a exoneração do passivo restante. A mirar sempre no objetivo principal do processo de insolvência – a satisfação dos credores –, o legislador inseriu a inovadora possibilidade de liquidação superveniente (artigo 241.º-A), especialmente pensado para os casos em que, já durante o período de cessão – momento em que a liquidação já estaria encerrada – o devedor herda bens que podem ser apreendidos para a massa insolvente e liquidados, gerando dinheiro que poderá reforçar a distribuição aos credores, permitindo evitar que o devedor possa ser sujeito a um período de prorrogação do período de cessão e impulsionando uma mais rápida recuperação e libertação das amarras de algumas dívidas, conseguindo assim renascer para o mercado.
1 Cfr. Apesar de ficarem excluídas as dívidas da insolvência descritas no artigo 245.º, número 2. Este perdão não abrange também nenhuma das dívidas da massa insolvente (artigo 235.º do CIRE).
2 Nos termos do artigo 10.º, número 3 deste diploma, do encurtamento do prazo beneficiaram logo os processos pendentes em que tivesse sido deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante. Assim, consideraram-se imediatamente findos aqueles que, à data da sua entrada em vigor (11 de abril), já tivessem decorridos três anos do período de cessão do rendimento disponível em curso.
3 “[A] solução que melhor se coaduna com o texto da lei e a filosofia do sistema é aquela que considera que com a prorrogação se abre efetivamente um novo período de cessão”. Cfr. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06-12-2022, (Isabel Fonseca), Processo n.º 35/13.3TBPVC.L1-1, disponível em www.dgsi.pt
4 A jurisprudência tem entendido que o pedido de prorrogação do prazo de cessão pode ser formulado pelo devedor “com vista a evitar a recusa da exoneração”. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15-12-2022, (Paula Cardoso), Processo n.º 124/18.8T8BRR.L1-1, disponível em www.dgsi.pt