Sextante 15/2

Page 1

SEXTANTE 15/2

re sis tên CIA


Sextante 2015/2

Resistência

EDITORIAL Cada vez tenho menos a dizer.

lábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláBláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláBlábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláEscrevo em homenagem a dois subversivos. bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- Em homenagem aos jornalistas Tarso de Castro bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- (1941/1991) e Luiz Carlos Maciel (1938/). Ambos bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- gaúchos. Tarso nasceu em Passo Fundo e Maciel bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- em Porto Alegre. Tarso de Castro, um dos funda- blábláblábláblábláblábláblábláblábláblálábláblá- dores do Pasquim, ao preencher sua coluna com bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- blábláblá fez com que circulasse um boato pelo país bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- afora de que tinha sido censurado pela ditadura. O bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- fato está contado no livro “Tarso de Castro – 75 kg blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- de músculos e fúria”, de Tom Cardoso. Foi o cria- bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- dor do jornal brizolista Panfleto, assim como do bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- Folhetim da Folha de São Paulo, entre outras pu- bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- blicações. Luiz Carlos Maciel tinha no Pasquim a bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- página Undergroud. Leitura obrigatória. Foi da bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- Última Hora. Colocou-nos em contato com a con- blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- tracultura psicodélica. Foi criador do importante blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- jornal alternativo Flor do Mal. Com quase 80 anos blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- vive no Rio de Janeiro, desempregado e abandona- blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- do, na mais absoluta miséria. blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláb- bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá

Wladymir Ungaretti

Página 2

Se o nosso professor não tem nada a dizer, nós temos muito. Em uma passagem de sua reportagem, ele apresenta a opinião de que as palavras do jornalismo devam ser cortantes. Não tiramos completamente sua razão, talvez, para romper a superfície lisa e pegajosa da alienação, as palavras que informam devam ser pontiagudas – e esperamos que esta era a metáfora que nosso professor almejava. Entretanto, podemos interpretar estas palavras cortantes de uma maneira completamente diferente. De um jeito que vivemos de perto e sentimos na pele durante o semestre. Quando afiadas, as palavras podem ser dirigidas diretamente a nós, nossas fraquezas e inseguranças. Também, ao grupo a que pertencemos, nossa família, nossos semelhantes. Com fio, as palavras reiteram o lugar que nos colocaram na sociedade, nos ameaçam “ouse sair de onde está encaixotado” e nos ferem tanto, ou mais, do que facas e canivetes denotativos. São muitas as profissões que se apropriam do discurso, uma das muitas semelhanças entre ser jornalista e ser professor. Em qualquer destes lugares, usar este tipo de palavra cortante não só é perigoso como desastroso. Existem pessoas, sim, que se sentem bem ao perceber a tortura alheia. Existem ainda outras que entendem essas palavras-ataques como forma de pedagogia. Não sejamos uma destas pessoas, já existem muitos jornalistas e muitos professores que usam o seu poder discursivo para reiterar estereótipos, machucar física e emocionalmente. Seja por um desconhecimento, por uma dificuldade ou, simplesmente, por pura má intenção,

muitos de nós continuamos com estas palavras em nosso vocabulário. Deixemos elas de lado. Queremos, a partir de agora, palavras que abracem. Não é preciso desistir do jornalismo, da sede pela verdade e pela informação, para que nosso discurso seja aconchegante. Os personagens desta revista, resistentes, podem se reconstruir através do texto que os legitima e não os destrói. Abraçar, não significa ignorar as falhas de um indivíduo, um lugar ou de um sistema, significa acolher os seres humanos que compõem estas entidades e reconhecer que unidos pelo abraço – e não despedaçados pela faca – que algo pode mudar. Entendemos que resistir é permanecer onde alguém não quer que nós estejamos. Resistir. Re existir. Existir novamente. Mostrar para os outros que eu existo, estou aqui, daqui não saio. Não saio dessa sala de aula. Não saio desta rua, desse jogo, deste cargo, desta casa, desta vida. De mãos dadas, nós e nossos personagens nos recusamos a aceitar o fim daquilo que tanto lutam. Para nós, alunos de Jornalismo Impresso IV, o símbolo final de nossa resistência é ter essa revista em mãos. Não importa onde o semestre, o jornalismo, o professor, ou até nós mesmos quisemos ir durante estes meses: nos recusamos. E aqui estamos: diversos, entre contos, crônicas, entrevistas e reportagens. Pedimos desculpas, ao nosso professor, por talvez, durante o semestre, ter passado a impressão errada de que não nos importávamos. Ao contrário, nos importamos muito, e com muitas coisas e muitas pessoas. Essa revista só existe porque nos importamos.

Comissão Editorial

Página 3


Sextante 2015/2

Resistência

SUMÁRIO 05

Mulheres na Computação Katia Souza

10

Resistir é preciso Antonio Felipe Purcino

AS MULHERES E A COMPUTAÇÃO

12

Queda dupla, caminho único Bruno Pancot

Katia Souza

16

Gente que chora, gente que ri, gente que MAMA Nathália Cardoso

21

Procura-se Xandalu Roberta Scherer

22

2015 - Resistir? Iami Gerbase

25

Resistência Material Giuliana Heberle

29

Entrevista - Viviany Beleboni Antonio Felipe Purcino Carolina Trindade Nathália Cardoso

31

Entrevista - Paulo Flores Júlio Kaczam

38

Entrevista - Terezinha Vergo Bruna Andrade Maiury Winckiewicz

41

A Marinoni não para Nicholas Gheno

43

são Pedro, são Paulo Gabriel Nonino

45

Uma guerra em três atos Vitória Lemos

48

As três fases de César Rafael Santanna

51

A literatura como resistência no jornalismo Professor Wladymir Ungaretti

Página 4

Quando entrei no curso de Ciência da Computação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2011, a presença feminina era escassa. No início, ao andar pelos corredores do Instituto de Informática (INF), não eram raras as vezes em que olhares prolongados e desagradáveis faziam-me sentir como se eu não pertencesse àquele lugar. Na verdade, logo no meu primeiro semestre, uma professora fez questão de dizer que eu não pertencia: “Se você não entendeu esta parte do conteúdo, não deveria estar aqui”, afirmou ela com propriedade. Em resposta, argumentei que outros colegas – meninos – também tinham as mesmas dúvidas. “Mas eles não são mulheres. Para ganhar espaço na T.I., terá que se esforçar mais do que todos eles juntos”, falou. Nunca me convenci a gostar daquela professora, embora hoje consiga reconhecer que ela não teve culpa por suas palavras. Afinal, estava apenas reproduzindo o que escutara de seus avós, pais e empregadores, ao longo de uma vida inteira. No Brasil, de acordo com o censo de 2010 do IBGE, aproximadamente 520 mil pessoas atuam na área de Tecnologia da Informação, e as mulheres representam um quarto desta soma.

Além de serem minoria, elas ganham (em média) 34% a menos que os homens. Em posições de comando, a discrepância é ainda maior, alcançando os 65%. Entre os recém-formados da Ciência da Computação, 22% são do sexo feminino. Docente no Instituto de Informática da UFRGS, Taisy Weber considera a universidade um espaço inclusivo. “O ambiente acadêmico é extremamente acolhedor e respeita as diferenças. Existe toda uma área de pesquisa na computação que afirma que a diversidade é a melhor maneira para gerar projetos de qualidade”. Infelizmente, os próprios dados do INF revelam outra realidade. Na Ciência da Computação, dos 538 alunos matriculados na graduação, somente 81 são mulheres. Já na Engenharia da Computação, há 35 meninas em um total de 322 estudantes. Os números tornam-se mais preocupantes em se tratando de alunas negras: são 10 no primeiro curso e 4 no segundo. Atitudes excludentes e machistas estão naturalizadas no cotidiano e em ritos de passagem acadêmicos. “Sexo, dinheiro, mulher e zoação. Se tu quiser melhor, vem fazer computação” era um dos gritos de guerra na época em que eu participei do trote

universitário. Não incomumente, alguns colegas – incluindo amigos próximos – me diziam para buscar cervejas ou fazer sanduíches, porque lugar de mulher é na cozinha. Escutava veteranas reclamando de assédio (moral e físico) por parte de professores demasiadamente invasivos. E, por último, existiam também os rankings que elencavam quais calouras eram mais “fáceis”, conforme o número de meninos com quem haviam se envolvido. Na maioria dos casos, estes problemas são vistos erroneamente como meras brincadeiras. Práticas ofensivas recorrentes motivam muitas mulheres a abandonarem a T.I. Aquelas que resistem aos insultos e conquistam uma formação, acabam por enfrentar situações piores no mercado de trabalho. “Na década de 70, as empresas não sabiam lidar com mulheres. Minhas poucas colegas da engenharia foram atuar em empresas públicas, onde a discriminação era ilegal. Nas privadas, escutava-se abertamente que não poderíamos ser contratadas devido aos longos períodos de licença maternidade. Isto mudou de forma drástica nas décadas seguintes. Agora, as empresas vêm à universidade para incentivar as alunas a se inscreverem nos processos seletivos”,

Página 5


Sextante 2015/2 conta Taisy. Contudo, apesar da evidente evolução do cenário, o preconceito está longe de ter um fim.

Enfrentando o preconceito juntas Cansadas de serem vítimas do machismo característico das ciências exatas, muitas mulheres passaram a se unir, dando início a projetos para estimular as garotas no trabalho com a computação. Um deles é o Mulheres na Tecnologia (MNT), que surgiu a partir de uma conversa entre três mulheres em uma comunidade goianense de usuários Debian. “Queríamos organizar um evento semelhante aos que são realizados pelo grupo Women Debian. Porém, começamos a pensar na ausência de mulheres

Resistência na área de Tecnologia da Informação. A fim de ampliar os debates, criamos uma comunidade no Google Groups, restringida ao estado de Goiás. Posteriormente, ela adquiriu dimensão nacional”, explica uma das fundadoras e conselheiras do MNT, Andressa Martins. Os objetivos do coletivo incluem a busca de igualdade de tratamento no mercado de trabalho para homens e mulheres, o incentivo de pesquisas e reflexões relativas às mulheres na tecnologia e o empoderamento das meninas que atuam na área. “O MNT impulsiona garotas a palestrarem em eventos, produz workshops online e bate-papos informais, divulga artigos técnicos e possui listas de discussão, nas quais todas podem contribuir com ideias. Nossas redes sociais e site também estão à disposição

para difundir o talento das meninas.” Inspirada no projeto Ah, Branco, dá um tempo! – que por sua vez é influenciado pela iniciativa I too am Harvard –, a professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e representante institucional da Sociedade Brasileira de Computação (SBC), Karen Figueiredo, desenvolveu o Delete Seu Preconceito. A proposta visa denunciar, através de fotografias, o preconceito sofrido por alunas e profissionais da T.I. “Desde a inauguração da página recebemos muitas histórias de meninas e mulheres que se identificaram com o projeto”. Já no Instituto de Informática da UFRGS foi criado o Meninas da Computação. “Promovemos encontros de veteranas e calouras, e de profissionais formadas e estu-

3º Encontro Nacional de Mulheres na Tecnologia, realizado nos dias 11 e 12 de setembro em Goiânia/GO. Reprodução: MNT

Página 6

dantes”, expõe Taisy.

Não é brincadeira, é machismo “Acredito que a situação de preconceito que mais me marcou foi no meu primeiro estágio após a faculdade. Diariamente, meus colegas de trabalho falavam que eu havia sido contratada para fazer o café, e não para programar”, relata a professora da UFMT, Karen Figueiredo. “Chegaram a apostar quanto tempo eu duraria no laboratório, uma vez que eles, com táticas idênticas, fizeram com que duas outras meninas desistissem de trabalhar lá”. Ao informar ao chefe local das afrontas destinadas a ela, Karen foi obrigada a escutar o que muitas de nós já ouvimos/ouviremos em diversas ocasiões: “Homens são assim mesmo!”. Andressa Martins, da MNT, garante ter sofrido todas as formas clássicas de machismo, tais quais perguntas indiscretas, piadas em sala de aula e salários menores para exercer o mesmo cargo que um homem. “A mulher que trabalha com T.I sempre está sujeita a momentos incômodos, pelos quais os homens não são obrigados a passar”, acredita Andressa. A jornalista e ex-editora assistente da Revista INFO, Paula Rothman, declara nunca ter sentido sua capacidade menosprezada no ambiente de trabalho, a despeito de algumas ocorrências graves com seu público leitor. “Certa vez, recebi um e-mail bastante explícito de um rapaz me chamando para ir ao motel com ele. Nunca respondi. Em uma segunda ocasião, um leitor me escreveu no Facebook pedindo um vídeo específico onde meu decote estava ‘generoso’. Esse comentário me fez escrever uma carta aberta, postada no site. Depois

de ver a carta, o leitor veio pedir desculpas – disse que não percebeu como isso era ofensivo.” A consultora de desenvolvimento de software na ThoughtWorks Brasil, Desiree Santos, diz que muitos preconceitos estão tão enraizados em nossa sociedade que não nos damos conta quando eles acontecem. Obviamente, isto não justifica a sua ocorrência. “Nos trabalhos antigos, para conseguir espaço, eu tinha que ser como eles a fim de ser respeitada e ganhar lugar no time. Na ThoughtWorks, graças a grupos tais quais o Gender Justice e o Quilombolas, pude encontrar uma atmosfera diferente”. O Gender Justice, coletivo da ThoughtWorks Brasil, luta pela igualdade de gênero nas organizações, promovendo o empoderamento das mulheres. Já o Quilombolas, do qual Desiree faz parte, busca a representatividade negra em todas os campos – incluindo a T.I.

A invisibilidade da mulher negra Se eu – branca e financeiramente privilegiada – tive dificuldades para me sentir parte do império masculino da T.I, sou incapaz de sequer mensurar o tamanho da falta de representatividade observada pelas meninas negras. Mas há um número que nos fornece uma pequena noção: um vírgula seis. Um vírgula seis. Elas são apenas 1,6% do corpo discente do Instituto de Informática. Uma vez que este não é meu lugar de fala – e a universidade não é capaz de suprir a falta de acadêmicas negras tanto na área de Jornalismo quanto nas demais (cotas raciais são o mínimo que podemos fazer) –, resta-me reproduzir as histórias destas

mulheres. Karen Figueiredo conta que, entre todos os relatos recebidos por meio da iniciativa Delete seu preconceito, os mais emocionantes partiram de três estudantes negras. “Eram alunas de lugares diferentes que enviaram mensagens dizendo estar felizes porque, através das fotos do projeto, descobriram outras meninas negras que faziam computação. Uma delas falou: ‘É bom ver que não sou a única, que não estou sozinha”. Segundo Karen, estas experiências foram especialmente tocantes visto que, ao idealizar o projeto, não pensara em implementar recortes além do referente ao gênero. Ao procurar possíveis fontes para esta reportagem, demorei até conseguir indicações de mulheres negras. Após muito investigar, encontrei a professora substituta e pesquisadora do Técnico em Desenvolvimento de Sistemas do Instituto Federal de Brasília (IFB), Alessandra Gomes. Ela, um exemplo de resistência negra e feminina na T.I, dividiu comigo algumas das situações de preconceito pelas quais passou. “Um exemplo recorrente (desde o meu primeiro emprego) é: eu produzo algo e apresento para a equipe, que só aprova meu trabalho depois dele ser legitimado por um homem. O mesmo não acontece quando um homem mostra uma produção. Alguns colegas também se sentem ofendidos quando eu (mulher) questiono os projetos deles. Outros tentam se apropriar das ideias propostas por mulheres”. Para Alessandra, ser professora mulher na área de T.I. é um desafio ainda maior. “Muitos alunos duvidam de minha capacidade. Ficam me testando o tempo todo e o respeito demora bastante para aparecer. É comum o aluno Página 7


Sextante 2015/2 não levar a sério a disciplina até a primeira avaliação. Tive, inclusive, um caso de um aluno que reprovou e, no semestre seguinte, veio pedir desculpas pela postura. É um trabalho diário de luta e conquista de reconhecimento”. Alessandra alega que, até o momento, nunca foi vítima de racismo por parte de colegas ou alunos, mas já teve problemas em conferências de T.I. “Certa vez, cheguei atrasada a um evento e fui barrada na entrada. Achei que fosse por não usar uma identificação. Tirei o crachá da mochila, mostrei para o segurança e ainda assim ele não me deixou passar. Se posicionou como uma parede na minha frente e começou a fazer diversas perguntas sobre o evento. Quase um interrogatório. Fiquei chocada com aquilo. Uma colega (branca) chegou mais atrasada do que eu e para ela cobraram somente o crachá”. Em outra ocasião, desta vez no ambiente de trabalho, Alessandra teve novamente sua entrada obstruída. “O segurança para quem eu sempre dizia bom dia, que sabia que eu trabalhava ali, não me deixou entrar. Ele parou na minha frente e questionava ‘Onde você vai?’, ‘Vai falar com quem?’. E mais uma vez, enquanto ele fazia isso, uma colega (branca) passou por nós e ele sequer olhou para ela!”. Por recomendação de AlesPágina 8

Resistência sandra, também conheci a técnica em desenvolvimento de sistemas, Gardênia Nogueira Lima. Gardênia se interessa pelas relações políticas no campo da computação, sendo entusiasta do setor de software livre. “Me encanta imaginar a amplitude das mudanças que o software livre possibilitaria na sociedade”. Ela comemora ter se formado em uma turma composta quase que exclusivamente por alunos negros. “A maioria negra era uma das coisas que me deixava feliz no curso, porque com

se a profissão é de homem?’. Na faculdade, você se torna um objeto. Ao entrar na sala, sempre tem alguém que diz ‘Chegou a pessoa para embelezar o ambiente!’. Ou quando falam que já te consideram como um homem, implicando que isto seria um privilégio, pois você passa a fazer parte do grupo deles”. Para Ketelem, os piores casos ocorrem no ambiente de trabalho. “Muitas vezes querem te colocar como secretária do setor. Não desejo desmerecer a profissão, mas escolhemos fazer T.I., e não secretariado. Você tem que se esforçar muito mais para ser vista. E se você erra, não é porque não sabe ou se equivocou, mas sim porque é mulher e não deveria estar naquela posição”. A estudante aponta que o preconceito na Ketelem Lemos posa com uma das frases T.I. está atreque já ouviu por trabalhar com T.I: “Se fosse lado à aparênpara programar, ela tinha nascido homem”. cia física das Reprodução: Delete Seu Preconceito garotas. “Se isso a possibilidade do professor for muito bonita, vão achar que dar um tratamento diferenciado ela é burra, subestimá-la. Se não a negros e brancos era menor. A for, não só vão subestimar, mas grande diferença que eu sentia também vão evitar se aproximar era em relação ao tratamento de ou atender as necessidades dela”. homens e das pouquíssimas mu- No ponto de vista de Ketelem e lheres. Um dos meus professores das demais entrevistadas – as preferia meninos, e usava as me- únicas perspectivas importantes, ninas para dar bronca”. já que são elas que sofrem diariaAluna do 5º semestre do mente com isto –, a questão racial curso de Sistemas de Informa- amplia as dificuldades. “O preção da UFMT, Ketelem Lemos, conceito existe e está por aí, em diz sofrer preconceito desde que nossas casas, trabalho e escolas. entrou na faculdade. “Mesmo Às vezes, ser negra quebra a emem rodas de amigos, a primeira patia inicial que as pessoas costureação das pessoas é dizer: ‘Mas mam ter com a gente, e muitos se como você vai arrumar emprego afastem de nós por causa disso.

Não é de hoje que ouvimos frases como ‘Nossa, tinha que ser serviço de preto’ para dizer que algo não foi bem feito. Muitos levam na brincadeira. Sabe, pode não afetar você, mas machuca outras pessoas”. A desenvolvedora de software Desiree Santos ressalta a importância de discutir o machismo sem deixar de atentar ao fato de que, se mulheres brancas sofrem, podemos ter certeza que as negras sofrerão muito mais. “A realidade da mulher negra é bem distinta da mulher branca. Enquanto negra, preciso lutar não apenas contra o machismo, mas também contra o racismo em todos os lugares em que vou. Já sofri racismo institucional em processos seletivos e, frequentemente, sou confundida com a servente, a faxineira ou a garçonete, e nunca com a diretora. Por isso que milito para mudar este quadro!”. Desiree integra o coletivo Quilombolas, da ThoughtWorks Brasil, fundado no segundo semestre de 2014. O objetivo do grupo é fortalecer a presença negra no mercado, conectando-os e permitindo que eles próprios apontem o que precisa ser retificado neste sistema que favorece majoritariamente pessoas brancas.

Mudemos Qual seria, então, a solução para aumentar o número de meninas interessadas pela computação? “Esta resposta é difícil, mas determinadas estratégias poderiam ajudar: divulgar modelos femininos, incentivar o networking, investir em ações afirmativas e criar projetos que informem as mulheres sobre as possibilidades de carreira na área, conscientizando a comunidade de T.I com relação à equidade de gênero”, pensa Karen. “Sempre digo para as minhas alunas que a jornada é mais difícil se elas estiverem sozinhas. Existem vários grupos de mulheres na programação, computação, tecnologia. Estes grupos desenvolvem diversos tipos de trabalhos, mas também são uma fonte motivadora para seguirmos nessa luta”, considera Alessandra. Desiree sugere às meninas que “Procurem por mulheres na tecnologia, movimentos negros ou outros ambientes colaborativos e participem ativamente. É preciso ação, atitude! Acredite, você encontrará pessoas que te julgarão pelo gênero e cor da pele, mas seja forte e não permita que eles roubem sua autoestima”. Para Taisy, o estímulo deve iniciar na escola. “Se a menina gostar de matemática, quebra-cabeças e jogos de lógica, já está

pronta para começar a visitar universidades e empresas, e conversar com mulheres que trabalhem na área. Muitos acham que é necessário inserir a computação como uma disciplina adicional no currículo escolar. Tenho minhas dúvidas. Preferiria engajar os professores de matemática na introdução ao pensamento computacional”. Paula acredita que, desde cedo, precisamos desconstruir os estereótipos associados à palavra “tecnologia”. “O meu interesse por ciência, por exemplo, veio de casa, ao ver minha mãe (bióloga, pesquisadora e professora) lidando com esse assunto diariamente. Apesar de adorar bonecas, Barbies e ‘brincar de casinha’, também brinquei muito com Lego, kits de química e peças de montar. A questão de estereótipos de gênero começa em casa e passa pela escola, meio acadêmico, ambiente de trabalho e mídia”. Conforme coloca Andressa Martins, é essencial que as meninas reconheçam o seu potencial e confiem nele. Todavia, a conquista de espaço da mulher na computação não depende apenas dela. Às meninas, desejo coragem e aconselho que se arrisquem na área se esta for a sua vontade. Quanto aos demais – em especial aos piadistas: o mundo seria um lugar melhor se vocês simplesmente nos escutassem e deixassem de ser trouxas.

Reprodução: ZachWeinersmith/ SMBC Comics. Tradução: Kátia Souza

Página 9


Sextante 2015/2

RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR Página 10

Resistência

RESISTIR É PRECISO Resistir é da própria vida. É da nossa natureza, está no nosso dia a dia. Resistimos cotidianamente às enfermidades, às desilusões, às tragédias diárias. No fim, celebramos cada dia como uma conquista. Superamos as dificuldades e realizamos grandes coisas. Mas e quando a própria existência é uma resistência diária – quando a resistência exercida é o puro ato de viver (ou talvez sobreviver) diante do ódio cego e irracional de parte da sociedade? Esse é o desafio diário de muitas pessoas que estão ao nosso redor. Estratos que, além dos tradicionais desafios que todos vivemos, precisam enfrentar preconceitos torpes, discursos de violência e todo um sistema que não só naturaliza, como também retroalimenta o ódio. Falo das mulheres, dos negros e dos LGBTs. Falo como um homem branco, cis e hétero, que jamais sofreu e jamais sofrerá os mesmos preconceitos que estes grupos enfrentam. Heterofobia? Um delírio criado pelos que falam em “ditadura gay”. Preconceito por ser branco? Faça-me o favor. Oprimido pelas feministas? Irrealidade. Um breve adendo antes de continuar: não quero de forma alguma assumir discursos que não me cabem. Por nunca ter sofrido tais preconceitos, não posso falar sobre eles com toda a propriedade. Meu lugar de fala

Antonio Felipe Purcino

nestas linhas é exatamente este onde estou, como homem hétero cis branco. Acredito que quem está, como eu, colocado nesse lugar de privilégio deste sistema, deve antes de tudo, agir justamente para ajudar a implodir o sistema que perpetua preconceitos. Portanto, minhas palavras são direcionadas justamente a quem está no mesmo espaço. Dentro dessa condição, devemos antes buscar a consciência dos lugares em que todos estamos posicionados nesse ambiente social. Um cenário onde pastores e deputados promovem discursos de ódio contra os LGBTs, defendendo uma “família tradicional” e ignorando os novos formatos de família que existem. Advogam em nome do amor de Deus, mas são incapazes de reconhecer o amor que não é, em sua definição, “tradicional”. Um ambiente onde as mulheres são diariamente julgadas por suas atitudes, sua maneira de se vestir; culpabilizadas quanto são estupradas ou têm fotos íntimas vazadas; assediadas nas ruas, no transporte público, no trabalho, nas festas; e são reduzidas a “feminazis” quando enfrentam tal opressão. Um espaço onde negros ainda são vítimas de toda ordem de racismo, nas relações de trabalho, nas ruas, nos estádios; e apesar de alguns negarem o racismo, os negros ainda são minoria nos grandes espaços de poder.

RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR

RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR

É um cenário perverso para quem enfrenta – e precisa resistir aos efeitos de tanto preconceito e ódio. E que com enorme frequência, resulta em tragédias. As estatísticas mostram os efeitos desse sistema: em 2014, foi registrado um estupro a cada 11 minutos, segundo o Anuário de Segurança Pública; a cada 28 horas, um LGBT é morto por motivações homofóbicas, de acordo com dados do Grupo Gay da Bahia; em relatório da ONG Transgender Europe, o Brasil é o líder em mortes de travestis e transexuais; e segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o percentual de negros assassinados no Brasil é 132% maior do que o de brancos. Porém, só números não mostram com exatidão a rotina diária e perversa de preconceito. Como resumir em estatísticas os tantos jovens LGBTs que são agredidos por simplesmente amarem? Ou então os negros que ainda enfrentam olhares tortos em tantos lugares que, pelo ideário geral, não lhes pertencem? Todo dia surge a notícia de mais uma violência, seja ela física ou simbólica. Um horror que é celebrado nos comentários de portais e estimulado por representantes da política, da fé e da mídia. Para vencer a luta contra tantas opressões, é preciso cada vez mais luta e debates, na sociedade, na imprensa e na política. E

quem está neste lugar privilegiado de fala, que não sofre nenhum – ou não todos esses preconceitos, deve colaborar nesse enfrentamento. O primeiro passo para isso é a autoconsciência sobre o sistema social. Leia, analise, desconstrua os discursos e conceitos que estão por aí. Desenvolva a empatia para com os grupos que sofrem as opressões, colocando-se em seus lugares. Pense e repense: você acha justo alguém ser odiado por amar de uma maneira “diferente”? Acha adequado uma transexual ser expulsa de casa por não se identificar com o seu gênero designado ao nascer? Acha justificável tratar de forma diferente uma pessoa negra? Feita essa autoconsciência, identifico duas formas de agir, a partir de seu lugar de fala: a primeira é, simplesmente, modificar suas atitudes, evitando ações que possam propagar preconceito. Elas estão na forma como tratamos os demais, no nosso vocabulário. É importante, também, não desqualificar os movimentos que enfrentam a opressão. Claro, isso não significa a ausência da crítica, quando ela é cabível. Mas somente quem sofre o preconceito tem a real condição de determinar como se dará a reação às opressões. E a segunda forma é se aliar a esses movimentos. E como ser um aliado? Enfrentando os pre-

RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR

RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR

RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR conceitos entre os seus, no espaço em que você está inserido. Se você é um homem e não aceita o machismo, deve enfrentá-lo perante outros homens, quando manifestado. Se você é heterossexual, precisa repelir a homofobia praticada pelos seus pares. Um movimento feito, sobretudo, para neutralizar as ideias de opressão. Ou, ainda melhor, trazendo mais pessoas à luz, para longe do preconceito. Não é uma tarefa fácil, eu sei. Muitas discussões e até mesmo violência poderão advir desse movimento. Repito: não pretendo assumir lugares de fala que não me pertencem. Porém, do lugar onde estou, sinto e sei que devo fazer algo para enfrentar o ódio. Nisso, penso em meus amigos que integram esses grupos sociais. Não serei nunca capaz de sentir exatamente esse preconceito. Mas não posso me silenciar enquanto amigos – e todos que fazem parte desses estratos – sofrem essas dores diariamente. Não apenas porque são meus amigos, mas porque são seres humanos, e, consequentemente, merecem respeito como qualquer um. Façamos nossa parte, dentro dos espaços aos quais pertencemos. Enfrentemos o ódio. Assumamos nosso lugar como parte dessa resistência. Para que possamos, um dia, ver nossa sociedade mais igual e mais justa.

RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR RESISTIR É PRECISO RESISTIR Página 11


Sextante 2015/2

Resistência

Queda dupla, caminho único Melancólica como os resultados de 2015, a despedida do Caxias diante da sua torcida na série C do campeonato brasileiro foi em uma manhã de domingo fria e chuvosa. Em campo, uma equipe desacreditada, com o rebaixamento para a série D confirmado ainda no jogo anterior, após um empate em que o gol adversário veio nos acréscimos – tônica de uma campanha trôpega, em que o clube da Serra Gaúcha não conseguiu somar sequer uma vitória. Nas arquibancadas, uma mistura de raiva, ressentimento e desilusão. A dor era visível nas faces dos cerca de duzentos torcedores que também viram o clube do coração despencar para a segunda divisão do campeonato gaúcho. Decepções demais para um ano só. “Ano que vem vai ser pior. Vai ficar brigando para subir. Sem recurso. Sem apoio. Sem financiamento nenhum”, desabafa um torcedor grená. Caxias 1 x 2 Portuguesa. O resultado não importou tanto. Era a quinta derrota em casa na série C entre os nove jogos – os demais quatro confrontos acabaram empatados. A torcida caxiense estava dividida: alguns torciam contra o próPágina 12

prio time, incentivando as jogadas da Portuguesa, já que a Lusa era concorrente direta do rival Juventude na busca pela classificação. Outro grupo de torcedores, ao contrário, ainda esperava pela redenção do time e queria uma vitória para encerrar a campanha com dignidade. Em alguns momentos, os ânimos se exaltaram. As duas alas grenás trocavam provocações na disputa pela razão. “Esse time desgraçado não ganhou nenhuma até hoje, vai ganhar justamente hoje para ajudar eles”, gritou um torcedor. De baixo, a resposta: sinais para a altura do peito e gritos de “Juventude”, como forma de ironia. Havia ainda os vinte e dois lusos que vieram de São Paulo. Até os torcedores da Portuguesa pareciam constrangidos pelo mau tempo. Chegaram a abrir as faixas, mas já fecharam em seguida. A fragilidade caxiense ficou evidente em campo. Por alguns minutos, o Caxias chegou a criar jogadas e acumulou duas boas chances de gol. Mesmo assim, bastou um descuido e a Portuguesa pulou à frente no placar em um contra-ataque fulminante. 1 a

Bruno Pancot 0. Em um gol contra, a equipe grená empatou – para a ira de grande parte dos poucos torcedores. No segundo tempo, no entanto, a pressão da Portuguesa dava sinais de que o placar seria insustentável. Em um chute de fora da área, o goleiro caxiense falhou. 2 a 1 para a Lusa. O Caxias tentou, a Portuguesa segurou. Após o apito derradeiro, a torcida serrana foi deixando o Centenário com um misto de alívio e melancolia. Se não ganhou nenhum jogo, ao menos tinha prejudicado o rival. Além disso, a chuva tinha oferecido uma breve trégua. Talvez o Caxias seja um exemplo inverso de resistência do futebol no interior. Ou, ao menos, um semi-exemplo. Nos últimos dez anos, o clube sempre figurou entre os melhores do campeonato gaúcho. Foram três disputas de semifinais gerais e o vice-campeonato contra o Internacional, em 2012. Um ano antes de cair, em 2014, o Caxias também chegou às semifinais, perdendo para o mesmo Inter. Mas a resistência acabou. Ou, ao menos, sofreu um golpe duro. Com dificuldades financeiras, troca intensa de técnicos e dirigentes, o grená sucumbiu.

O drama do Caxias, no entanto, não é descolado das dificuldades pelas quais outros clubes do interior passam. Da origem, em 1935, passando pelo título gaúcho em 2000, contra o poderoso Grêmio, de Ronaldinho Gaúcho, até o rebaixamento duplo em 2015: por onde passa a queda da Sociedade Esportiva e Recreativa Caxias do Sul? Com a palavra, alguns dos protagonistas.

aconteceu no distante 30 de março, contra o São José, em Caxias do Sul. Ao todo, cinco técnicos passaram pela casamata do grená. O primeiro deles foi Paulo Turra, auxiliado por Luciano Almeida, ambos ex-jogadores e ídolos da torcida. Do alto do estádio Centenário, o também ex-jogador grená Washington comandava o departamento de futebol. A estratégia era aproximar a tor-

seguida”, avalia o presidente Nelson Mario Rech Filho Com o acúmulo de reveses, Washington acabou deixando a direção do Caxias em maio de 2015. O rebaixamento no campeonato gaúcho já estava consumado. Nos bastidores, o ex-dirigente sofreu críticas pela falta de experiência na função de vice-presidente de futebol. Washington, no entanto, foge das polêmicas

Poucos torcedores acompanharam o último jogo do Caxias no Centenário em 2015, na derrota de 2 a 1 para a Portuguesa

Muitas trocas, poucos resultados Durante os 134 dias de disputa de série C, o Caxias não conseguiu nenhuma vitória, seja no Centenário, seja em outros estados. Foram 8 empates e 10 derrotas. A última vitória da equipe profissional em 2015, ainda pelo gauchão,

cida do clube. “No final de 2014, teve troca de todo o comando técnico, nós buscamos ídolos do clube em quem a torcida acreditava muito e a própria diretoria acreditava. Houve um mau planejamento que afetou todas as áreas do clube. A mudança, no futebol, é muito prejudicial quando se torna muito

e lembra que tem mais de 20 anos de vivência no esporte. Vereador pelo PDT no município, o Coração Valente ponderou que a falta de condições financeiras dificultaram o planejamento do clube. “Nós tínhamos que fazer um time da forma como havia condições e isso reflete dentro de campo”. Além de Paulo Turra, a Página 13


Sextante 2015/2

torcida caxiense viu na casamata Hélio dos Anjos, Luís Antônio Zaluar, Marcelo Vilar e Beto Campos. Nenhum deles conseguiu imprimir um ritmo para salvar o Caxias dos rebaixamentos. “Tivemos cinco trocas de técnico. Tudo isso acontecendo no desespero. As pessoas que foram trazidas, por mais boa vontade que tivessem, não conseguiram reverter o quadro a acabou acontecendo o que aconteceu”, pontua o presidente grená. Dificuldade$ financeira$ Como outros clubes do interior do Rio Grande do Sul, o Caxias reclama do estrangulamento das finanças para planejar e executar o futebol. Os salários dos atletas caxienses chegaram a ser atrasados durante o primeiro tuno da série C. Com a lista extensa de jogadores e técnicos contratados em 2015, os gastos do Caxias foram altos, conforme a direção. O clube, porém, não informou a média mensal de gastos. Segundo a direção, a dívida do Caxias atualizada para 2015 é de R$ 18 milhões. O valor é dividido entre R$ 6 milhões referentes a questões trabalhistas e outros R$ 12 milhões relacionados ao passivo fiscal do clube. “É uma situação que vem se alongando, muito difícil. Nós temos dificuldades, principalmente no interior, de desenvolver um trabalho e uma sistemática de arrecadação”, assevera o presidente do Caxias, Nelson Rech Filho. Página 14

Resistência

A previsão é que o passivo relativo a questões trabalhistas seja quitado até o final de 2015. Os recursos devem vir por meio de uma indenização da Prefeitura de Caxias do Sul ao clube. Além da falta de recursos, a ausência de um departamento jurídico estruturado é apontada como causa para a enxurrada de questões trabalhistas no Caxias. Ao longo de 2013, 2014 e 2015, no entanto, praticamente nenhuma nova ação trabalhista ingressou, conforme o presidente do clube. “Até o final do ano (2015), todas as questões trabalhistas, ao menos dos últimos 15 anos, nós estamos liquidando. É algo que tem que existir porque dá a condição, tendo as negativas de trabalho, de buscar projetos e ter uma boa imagem perante o judiciário”, afirma o presidente. O restante da dívida do Caxias, atribuída a questões fiscais, deve ser saldada através do Profut, medida sancionada pela presidente Dilma Rousseff que prevê o refinanciamento dos clubes. A direção caxiense espera destinar R$ 50 mil mensais à quitação do passivo fiscal. Muitas empresas, pouco patrocínio A má fase em campo do Caxias também teve reflexos no comércio do Centenário. Nos bares, por exemplo, a estimativa é que o consumo tenha se reduzido em até 70% durante 2015. Situação que agrava um pouco mais as já combalidas

finanças do clube interiorano. O presidente caxiense, Nelson Rech, reclama que o patrocínio das empresas de Caxias do Sul aos clubes de futebol é pequeno. “As indústrias existem, as parcerias podem ser feitas mas não estão sendo montados os projetos, as empresas não estão sendo visitadas”, afirma. As empresas de Caxias do Sul concordam que o patrocínio é reduzido, mas destacam que a iniciativa precisa partir dos clubes de futebol através de projetos. Com a vivência de quem já trabalhou no futebol do Caxias, o vice-presidente de Indústria da Câmara de Indústria e Comércio (CIC) de Caxias do Sul, Reomar Slaviero, reconhece que os clubes do interior têm dificuldade em obter patrocínio. Além disso, Slaviero afirma que parte significativa das empresas de Caxias do Sul prefere patrocinar os clubes de Porto Alegre. “Muitas vezes, os clubes de Caxias conseguem mais patrocínio de empresas de fora que as locais”, ressalta. Slaviero acredita que é necessário um trabalho de marketing para convencer as empresas que o patrocínio é um investimento, não apenas um gasto. Para isso, segundo o vice-presidente da CIC, os clubes devem apresentar estudos sobre o retorno que o patrocínio daria às empresas. “O clube tem que ter uma visão profissional, divulgando o quanto é exposta a marca estando na camisa de um clube de futebol em comparação até com outras mídias”, pontua Slaviero.

Papel do poder público e da Federação Gaúcha de Futebol Rebaixado para a divisão de acesso, o Caxias terá um terço da cota destinada aos clubes da elite do campeonato gaúcho em 2016. Times como o rival Juventude receberão R$ 1,1 milhão da Federação Gaúcha de Futebol. Além disso, apenas um clube subirá para a primeira divisão gaúcha no próximo ano. O presidente da FGF, Francisco Novelletto Neto, afirma que a queda do Caxias para séries inferiores do futebol gaúcho e brasileiro é uma “perda lamentável”. “Economia andam de mãos dadas. Nosso Estado passa por um momento difícil e, consequentemente, o futebol acaba sofrendo também”, opina. Questionado sobre um possível aumento de repasses aos clubes do interior, o presidente da FGF responde que a Federação não recebe nenhuma verba de governo e parte em busca de patrocinadores para obter receita. “Milagre nós não aprendemos a fazer. Trabalhamos para sempre aumentar essa cota, mas devido a crise que estamos atravessando, eu já me dou por satisfeito em conseguir os mesmos valores”, afirma Francisco Novelletto. Sem categorias de base desde 2013, o Caxias não recebe verbas da prefeitura do município para a formação de atletas. De acordo com a lei municipal de financiamento

de esportes (Fiesporte), os repasses da prefeitura de Caxias do Sul devem ser destinados aos projetos de esporte e lazer da cidade, elaborado pela própria secretaria de esporte e lazer. No entanto, segundo a pasta, o poder público é impedido de repassar valores para financiar as categorias profissionais dos clubes. O secretário de esportes e lazer Jó Arse estima que até R$ 50 mil poderiam ser repassados ao Caxias, caso o clube tivesse categorias de base. “É uma questão organização. A diretoria precisa rever algumas coisas e a questão das categorias de base também. Nós estamos trabalhando para ver de que forma podemos buscar um mecanismo para ajudar os times, mas que não comprometa o esporte amador de Caxias do Sul”, afirma Arse. A direção do Caxias afirma que avalia a retomada das categorias de base, mas não tem previsão para a volta da modalidade. Com a palavra, quem tudo acompanha No intervalo do sofrível Caxias 1 x 2 Portuguesa, o torcedor Gilberto Dondé, lamentava a situação do clube. Dondé acredita que 2016 deverá ser ainda pior. O torcedor critica o time, mas também ressalta o azar da equipe. “O time é ruim, foi mal planejado. A direção trouxe jogadores que estavam parados há tempo, jogador que não tem condição de vestir a camisa desse time. Também teve azar: a bola ba-

tia na trave e não entrava”, diz o torcedor de 49 anos. Torcedor grená há 40 anos, Rodrigo Chies também trabalha no bar da arquibancada social do estádio Centenário. Para Chies, os rebaixamentos não foram causados apenas por erros de gestão atual. “Teve troca de diretoria, problemas internos de pessoas que não concordavam com as outras e foi dividindo o clube em vários setores. Assim, o clube foi pagando a conta dessas diferenças entre os dirigentes”, avalia o torcedor. “Os clubes da série A têm muita verba, o Caxias não tem, depende muito da ajuda dessas pessoas. Aqui, se sente mais essa divisão”, conclui Rodrigo Chies. Jorge Roth, 60 anos, acompanha o Caxias em todos os jogos, anotando todos os lances de jogo em um caderno. O torcedor não aponta um único motivo para as quedas. Roth destaca a falta de recursos para contratar jogadores qualificados, a inexperiência de ex-dirigentes do clube e a mística dos 80 anos de história completos em abril de 2015, que poderia ter trazido azar. “Toda competição vai mostrar quem cai e quem fica”, afirma Roth. O ano de 2016 não deve ser fácil para os caxienses. Jorge Roth, no entanto, olha para o próximo ano com expectativas. “O clube é tradicional, tem plenas condições de retornar à elite tanto do futebol gaúcho quando do brasileiro”. No fundo, é o que o torcedor grená mais espera do clube. Página 15


Sextante 2015/2

Resistência

gente que chora, que ri e que mama

Nathália Cardoso

Toca, toca, toca. A água desse chuveiro está muito fria, talvez a resistência tenha queimado. Coloca o cotovelo atrás da cabeça. Preciso ficar atenta ao carteiro, talvez hoje chegue o livro que eu encomendei semana passada. Toca, toca, toca. Aperta o mamilo. Apalpa a axila. À noite preciso passar no super e pegar pão, cebola e pasta de dentes. Troca de seio. Outro cotovelo para cima. Passa a mão embaixo. Levanta o bico. Opa, o que é isso? Isso não estava aqui na última vez que eu toquei. Amor, vem aqui! Boa tarde, senhora. Boa tarde. Qual convênio, particular ou SUS? SUS, aqui está o meu encaminhamento do posto de saúde. Muito obrigada, espere na fila ao lado. Pelo menos 10 mulheres na minha frente, espero que o meu patrão não se incomode com a falta. Se não for hoje, vão ficar muitas coisas por fazer para amanhã. Boa tarde, senhora. Aqui está a sua camisola, senhora, pode ir até aquela salinha, tem que tirar a blusa, o sutiã e voltar aqui para começarmos o exame. Deus, como está frio nessa sala. Que idade a senhora tem? 57, fiz mês passado. É a sua primeira mamografia? Sim, nunca consegui me organizar para vir. A senhora tem his-

Página 16

tórico de câncer de mama na sua família? Não sei. Agora pode ser um pouco desconfortável para a senhora. Bem desconfortável, não? Por que você parou o exame? Por que está dando zoom nessa mancha branca? Senhora, aguarde aqui que vou chamar o nosso médico radiologista para fazer uma avaliação. Moça! Volte aqui, me explique o que está acontecendo! Bom dia, doutora. Bom dia! É apenas rotina, não é mesmo? Isso. Então você já conhece o procedimento – na salinha ao lado está a sua camisola. Como vão as crianças? O mais velho começou a faculdade essa semana, faz três dias que só anda pintado pela cidade, pedindo dinheiro. A mais nova vai viajar mês que vem e está uma pilha de nervos. É mesmo? Ela vai sozinha? Levante o braço, por favor, vamos examinar as suas mamas. Sim, vai sozinha. Parece mentira que essa menina já está fazendo 15 anos, não é, doutora? Parece que foi ontem que eu estava fazendo meu pré-natal aqui, nesse mesmo consultório. Pois é. Você sempre teve esse carocinho aqui? O do seio direito? Não, esse quase na axila esquerda. Não. Nunca tinha sentido. Doutora, por que você está com essa cara?

O monstro Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA), o câncer de mama é o segundo tipo de câncer mais recorrente entre as mulheres - perdendo apenas para o de pele não melanoma-, e é a principal causa de morte de mulheres no Brasil. Os tumores nas mamas são os mais recorrentes nas mulheres, figurando no segundo lugar geral, perdendo apenas para os tumores de câncer de pulmão. Apenas em 2013, foram mais de 14 mil mortes causadas pela doença, um Ginásio Gigantinho inteiro de brasileiras levadas pelo câncer em um ano. Para 2015, a estimativa é de que 57 mil mulheres descubram a enfermidade, quantidade de pessoas que encheria a Arena do Grêmio em um dia de jogo. De acordo com o INCA, esse tipo de câncer também é o mais frequente nas mulheres das regiões Sudeste (71,18 casos a cada 100 mil mulheres), Sul (70,98 casos a cada 100 mil mulheres), Centro-Oeste (51,30 casos a cada 100 mil mulheres) e Nordeste (36,74 casos a cada 100 mil mulheres). Na região Norte, é o segundo tumor mais incidente (21,29 casos a

cada 100 mil mulheres). São milhares de mulheres que precisam de detecção precoce, diagnóstico rápido, cirurgia bem feita, tratamento de qualidade e follow-up (acompanhamento pós-câncer) efetivo para que tenham chances reais de vencerem esse obstáculo. Os grupos de risco relacionados à doença são as mulheres com mais de 40 anos e as mulheres com histórico de câncer de

mama na família. Além disso, outros fatores considerados de risco incluem comportamento pessoal (como fumar e consumir bebidas alcoólicas), nuliparidade (não ter filhos), menarca precoce (antes dos 11 anos), gravidez madura (depois dos 35 anos), obesidade e longa exposição ao anticoncepcional hormonal. Entretanto, é equivocada a informação de que se há presença do câncer na família, a mulher também desenvolverá a patologia: apenas 10%

dos casos são desse tipo, denominados “câncer de mama familiar”. Estudos epidemiológicos do Ministério da Saúde afirmam que os fatores ambientais são responsáveis por 80% da incidência do câncer de mama. O diagnóstico precoce é parte fundamental e indissociável da luta pela cura. A detecção pode acontecer de três maneiras: autoexame, exame de toque pelo ginecologista e mamografia. O autoexame é realizado pela própria mulher, que deve estar familiarizada com as particularidades de seu corpo e empoderada o suficiente para se tocar e saber o que deve e o que não deve ser encontrado. O exame de toque das mamas é rotina em consultas ao ginecologista. O profissional deve voltar a sua atenção em um exame de toque simples, e não apenas se ater a aspectos da saúde ginecológica feminina. Em muitos casos nos quais a paciente não tem o autoexame como prática regular, o toque da médica ou médico ginecologista pode ser crucial na detecção rápida de um tumor. A mamografia é um exame radiológico de análise mamária, feito pelo mamógrafo, um aparelho de raio-x especial, e operado por um radiologista. O exame de imagem tem como especialidade a detecção do câncer Página 17


Sextante 2015/2 de mama, e deve ser feito anualmente em mulheres com mais de 40 anos. É sabido que os tratamentos usuais de qualquer câncer não são fáceis ou simples, e requerem muita força de vontade e resistência da parte dos pacientes. Dentre os tratamentos mais conhecidos está a quimioterapia, que consiste na utilização de fármacos químicos que diminuem a multiplicação celular e acaba interrompendo a expansão do tumor. Já a radioterapia expõe a paciente à radiação ionizante para a destruição completa das células tumorais. Especificidade do câncer de mama, existem a devastante mastectomia e a hormonioterapia. A primeira consiste na retirada cirúrgica completa ou parcial da mama e dos linfonodos regionais e a segunda, no uso de hormônios sintéticos para a diminuição do tumor. É cor-de-rosa choque O Outubro Rosa é um movimento de conscientização para discutir a importância de prevenção e tratamento do câncer de mama. A campanha começou em 1990 nos Estados Unidos, quando a Fundação Susan G. Komen for the Cure idealizou o conhecido laço rosa e o distribuiu na primeira Maratona pela Cura, em Nova York. A partir de então, a corrida acontece anualmente e traz consigo discussões sobre o tema. Mas foi apenas em 1997 que outras cidades resolveram fomentar a disseminação de informações sobre o Câncer de Mama, e o movimento se espalhou por todo o mundo no começo do século XXI. Porto Alegre, durante outubro de 2015, além de colorir de cor-de-rosa diversos pontos turísticos da cidade, recebeu a 13ª Caminhada das Vitoriosas, evento realizado pelo Instituto da Mama do Rio Grande do Sul Página 18

Resistência

foto

(Imama) para dar inicio às atividades do mês comemorativo da causa. Mulheres de todas as etnias, classes sociais e faixas etárias se reuniram no Parcão, às 10h do dia 03/10, para marcharem em direção à Redenção e celebrarem as suas conquistas ou, em alguns casos, as suas vitórias iminentes. Com o lema “Para todas as Marias”, a Caminhada reivindicou tratamento igualitário no SUS para o tratamento do Câncer de Mama. Atrás de um trio elétrico que tocava de Celly Campelo a Anitta, seis mil pessoas pintaram de cor-de-rosa as ruas da cidade, algumas trazendo cartazes de empoderamento e superação, como “Venci o Câncer e hoje espero meu primeiro filho” ou “Agradeço pela cura”. Com um chapéu único de comandante que bradava “Eu venci o Câncer” em lantejoulas pink, a vice-presidenta do Imama, Maria Angélica Linden, comandou a caminhada cheia de energia em cima do trio elétrico. Vencedora do Câncer há 14 anos, Maria Angélica comemora mais um sucesso da caminhada: “Esse evento já está no calendário da cidade. A população comparece em peso porque as pessoas sempre

apoiam a nossa causa. Este ano tivemos especialmente o grande apoio dos jovens, o que para nós é incrível”. A ativista também ressalta a importância da campanha de 2015, que pede apoio e tratamento igualitário para todas as mulheres com câncer de mama metastático “Queremos que o SUS ofereça mais leitos, medicamentos e tratamentos mais avançados. Precisamos que isso chegue a todas”.

ViAMOR, ViAPOIO, VIAMAMA Em 2008, Tânia de Castro, aos 44 anos, percebeu uma erupção cutânea no seio direito. Visitou o ginecologista, que a encaminhou para retirada e biópsia do corpo estranho. O resultado da biópsia chegou, e era um lipoma. Lipoma não é câncer, é apenas um acúmulo de células de gordura da pele. Mas foi a partir da investigação do lipoma que o seu câncer de mama foi detectado. “Eu lembro até hoje do dia que eu recebi o diagnóstico. O consultório do meu ginecologista ficava na Borges de Medeiros. Eu desci as escadas depois da consulta, atordoada, com os exames na mão e a voz dele tocando na

minha cabeça. Era um dia de sol. Eu nunca olhei para a Borges e a vi com tanta vida. Eu podia ter recebido um diagnóstico de câncer, mas foi ali que eu percebi que estava viva”, relembra Tânia. Também em 2008, Marilisa Peeters, com 38 anos, realizou uma mamografia de rotina, prescrita pela sua ginecologista na época. A mamografia detectou um tumor cancerígeno localizado perto do mamilo esquerdo, que, apesar de estar em estágio inicial, era metastático e agressivo. Mari, como é chamada pelas amigas, resumiu qual foi a sua reação inicial ao diagnóstico: “Para ser sincera, descobrir que tu está com um câncer de mama é colocar a cabeça na guilhotina. Eu recebi o meu diagnóstico no balcão do laboratório, por fax. A moça me entregou o papel e me deu tchau. Eu li carcinoma ductal infiltrante grau 3 e não entendi nada. Fui direto do laboratório para a minha ginecologista, em Viamão. Quando cheguei lá, ela me recebeu de braços abertos na porta do consultório. Foi aí que eu pensei: fodeu”. Foi a necessidade de Mari e Tânia de encontrarem apoio e histórias de quem já passou por um câncer que fez elas se aventuraram na internet. “Meu filho me

disse para pesquisar sobre mulheres que já passaram por isso nas redes sociais.”, conta Tânia. E ela foi. “Entrei em uma comunidade no Orkut e encontrei a Mari. Depois disso, encontramos outras meninas que quiseram lutar conosco e ficamos amigas.” Passado o tratamento, nasceu no grupo a vontade de palestrar, de conversar sobre o câncer, de contar que ele tem cura. Em 2012, quando terminou o tratamento e voltou à vida normal, Tânia resolveu fazer academia. “Quando cheguei na Vida Ativa, precisei contar sobre as minhas limitações pós-câncer para o Lucas, nosso professor e proprietário do estabelecimento. Acabamos ficando amigos. Expressei a minha vontade de colocar o meu projeto de ajuda em prática e ele nos convidou para ocupar o espaço da academia”, Tânia comenta. Então, no dia 14 de julho de 2012, aconteceu o primeiro grande encontro do Viamama em uma sede física, na Academia Vida Ativa. Desde então, a instituição só teve sucessos na sua história. A pequenos passos, iniciaram em uma pequena peça na casa da mãe da Tânia, com tímidas doações de perucas mas, com o passar do tempo e com o aumento das aquisições da entidade, elas

viram suas necessidades crescerem. Elas precisavam de um espaço para atender quem procurava a sua ajuda. Entre as principais ações estão chás e jantares beneficentes, rifas, promoções e venda de camisetas para arrecadar fundos para ajudar as flores da instituição. “Flores é como chamamos as pacientes em tratamento, e jardineiras são as voluntárias que já venceram a batalha e agora só cuidam do nosso jardim”, conta Tânia, orgulhosa. A renda arrecadada é transformada em perucas para as flores, que são emprestadas durante o tratamento e devolvidas após o término dele. Também são produzidas próteses externas para as vitoriosas que não conseguiram, como a própria Tânia, fazer a cirurgia de reparação das mamas. E elas não estão sozinhas nesse trabalho: “Além de toda essa ajuda ao nosso jardim, também conseguimos parcerias com profissionais da saúde como fisioterapeutas, psicólogos e nutricionistas, que auxiliam no tratamento e follow-up das flores”, comenta Tânia. O Viamama também ajuda as mulheres que têm dificuldade em adquirir todos os medicamentos necessários para o tratamento ou para o seu bem-estar. O gru-

No meu país eu boto fé, porque ele é governado por uma mulher! • A mamografia no sistema público de saúde recebeu grandes investimentos no último governo federal, com repasse de R$ 3,3 bilhões de reais a hospitais que tratam cânceres no período de 2010 a 2014. De acordo com o Ministério da Saúde, os recursos para esse tipo de tratamento foram 45% maiores em relação ao governo anterior. • Segundo o Ministério da Saúde, o número de mamografias realizadas em mulheres de 50 a 69 anos cresceu significativamente: em 2010, o SUS efetuou cerca de 1,55 milhão de mamografias. Em 2014, este índice pulou para mais de 2,5 milhões, apresentando um aumento de 62%. • O parâmetro da OMS é de um mamógrafo para cada 240 mil habitantes – a necessidade brasileira seria de 833 equipamentos. O Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) afirma que, atualmente, existem 2.507 mamógrafos em uso no SUS. Entretanto, esses mamógrafos estão mal distribuído: localizam-se, em sua maioria, nas capitais e grandes cidades, deixando a população do interior com poucas máquinas e sem diagnóstico preciso.

Página 19


Sextante 2015/2 po, por exemplo, consegue doar um determinado remédio específico para os enjoos advindos da quimioterapia, cuja cartela custa quase cem reais.

Um jardim de muitas vitórias – Um pé de anjo, um raio que cai duas vezes no mesmo lugar e uma jardineira que virou flor Em uma noite de setembro de 2012, Simone de Moraes estava sentada no sofá quando uma de suas filhas, sem querer, chutou o seu seio esquerdo, no meio de uma brincadeira com a irmã. Simone sente dor, apalpa o seio instintivamente, e percebe um caroço com os dedos. “Segundo o meu mastologista, aquele tumor, apesar de pequeno, já estava ali há pelo menos dois anos”, conta ela que, na época, tinha 37 anos. Sem saber o que pensar, sem ter diagnóstico certo, sem entender o que estava acontecendo, mandou um e-mail para o Viamama. A entidade estava recém começando, portanto, Tânia demorou a ler e responder seu e-mail. Depois de encontros e desencontros, dificuldades de acesso a tratamento, ela foi a primeira flor cultivada pelo Viamama: “Eu não gosto de

Resistência falar muito sobre o dia em que saiu o resultado da minha biópsia declarando o diagnóstico do meu câncer, porque o momento que tu recebe aquele envelope é o pior de todos. Mas, desde lá, eu tive o apoio das meninas do Viamama. Quando a Tânia me recebeu de braços abertos na porta do hospital, foi o apoio que eu precisava. Se não fossem elas, principalmente me orientando e me apoiando pelo Facebook, eu não teria conseguido tirar forças para continuar”, emociona-se. Em algumas situações, o raio simplesmente cai duas vezes no mesmo lugar. Maria Ivanir Soares, ou Iva, como é chamada pelas amigas, é um caso à parte dentro do Viamama. O tipo de câncer que ela tratou em 2006, aos 51 anos, não era metastático, então Iva só precisou retirar a mama e fazer algumas sessões de radioterapia. Quatro anos depois, a doença atacou novamente, mas dessa vez os rins. “Não querendo desmerecer a história das outras meninas, mas o segundo câncer foi muito pior. Eu tive muito mais medo da segunda vez, principalmente por saber que ele não tinha nada a ver com o primeiro”, comenta Iva. A tesoureira do Viamama conta que, primeiramente, ficou um pouco reticente em participar do grupo

(quando ainda ficava apenas na esfera virtual), mas basicamente porque as suas feridas ainda não estavam bem curadas: “No início ainda ficamos meio em choque, tentando entender o que aconteceu e o quão perto estivemos da morte. Tu quer te distanciar de tudo o que aconteceu. Até que chegaram elas e me levaram para a cura total.” Vera Lúcia Palma é uma atual flor do Viamama. O Câncer de Mama a atacou pela primeira vez em 2004, aos 44 anos. Fez o tratamento completo e correto mas, dez anos depois, foi detectado um novo tumor, dessa vez alojado no pulmão. “Também tive algumas resistências em ser jardineira do Viamama, e demorei um ano para me engajar totalmente”, conta. Mas, em dezembro de 2013, quando o câncer estava de novo na sua vida, ela entendeu a necessidade. “Na época do diagnóstico, era verão e todos os meus médicos estavam de férias. Um office-boy perdeu meus exames. Quando eu consegui entrar em contato com a minha médica, sem os exames, ela propôs começar a quimio imediatamente, por já conhecer o meu quadro e ter certeza que ainda era remanescente do câncer de mama”, ela conta. Vera já está encerrando a primeira fase do tratamento e poderia tirar férias - como é chamada a pausa de descanso de alguns meses sem nenhuma intervenção médica antes de entrar na reta final do tratamento -, mas resolveu esperar: “Cheguei na médica com a ideia de postergar as minhas férias. Ela desconfiou de início, mas aceitou. Quero terminar logo as quimioterapias para poder aproveitar as minhas férias melhor e, no verão, poder visitar meu filho, que mora em Recife”. Fotos: Carolina Trindade

Página 20

Procura-se Xadalu Roberta Scherer

Quem anda por Porto Alegre já está familiarizado com a figura de um indiozinho estampada em paredes, tapumes, viadutos e placas da cidade. Mesmo quem não conhece sua origem compreende que ele faz parte da correria da capital. Há quem pense que é publicidade, demarcação de território, vandalismo ou que carrega alguma mensagem subliminar. Nada disso. O indiozinho, meus amigos, tem nome e história. Prazer, Xadalu. Xadalu é um artista alegretense que vive em Porto Alegre. Traz no rosto e na sua arte as origens indígenas. Criou o indiozinho como símbolo da luta de um povo que é tantas vezes marginalizado. O rosto expressivo do personagem estampado em um cartaz de procurado, por exemplo, propõe uma leitura além da primeira aparência. Qual foi a última vez que você viu um índio? Em que condições ele estava? Sua origem e cultura estavam sendo respeitadas? O índio na cidade é raridade, assim como aqueles que se preocupam com suas condições de vida. Falar de cultura indígena é falar de preservação ambiental. Mostrar os efeitos da poluição desenfreada causada pela economia, capitalismo bem mais selvagem do que qualquer tribo já foi na visão do homem branco. Xadalu, o personagem, usa uma máscara de oxigênio para sobreviver ao ar poluído, equipamento de mergulho para conseguir nadar nos rios contaminados e um

grosso casaco de inverno para se proteger das consequências do aquecimento global. Arrisco-me a dizer que o menino logo vai ser obrigado a conhecer o protetor solar e óculos escuros, algo estranho aos seus antepassados. O ateliê é um espaço de trabalho, de lazer e de criação. No antigo depósito abandonado, artista e trabalhador se fundem (se é que essa separação realmente existe). Escritório, quarto, mesa para desenho e, em toda parte, material para serigrafia, ganha pão e meio de expressão do artista. A Sticker Art (arte do adesivo) é uma forma de arte urbana. Foi criada nos Estados Unidos durante a década de 90 e tem se popularizado desde então. Os artistas utilizam desenhos e frases para passar uma mensagem, através de adesivos autocolantes ou cartazes lambe-lambe. Xadalu cola o indiozinho criado por ele pelas ruas de Porto Alegre, principalmente no Centro. Vão desde pequenos adesivos atrás de placas até grandes cartazes fixados com cola em tapumes de obras da cidade. Além das ruas da capital gaúcha, o desenho ocupa espaços em todo o Brasil, como no Rio de Janeiro e em São Paulo. Acompanhando as andanças do seu criador e também com a ajuda de outros adeptos da arte de rua, o indiozinho ganhou o mundo e é visto também em diversos outros países: Irlanda, Inglaterra, Alemanha, Áustria, França, Itália, Grécia,

Turquia, Romênia, Eslováquia, Sérvia, Holanda, Canadá, Estados Unidos, Cuba, Guatemala, Colômbia, Bolívia, Angola, Portugal, Japão, China, Austrália, Paraguai, Argentina. Ultrapassando o limite das ruas (ou seria avançando pelos limites dos museus?), Xadalu entrou nas galerias de arte. Entrou como ele é, com suas características, seus olhos expressivos e tudo o que ele representa. Nesse ponto o artista é firme: se vai expor, tem que ser como as ruas mostram. Tem que ser tão livre quanto. Além da serigrafia, outras formas de expressão foram surgindo ao longo dos anos e, com isso, novos projetos. Xadalu vai virar filme. Um documentário sobre artista, personagem, origens, futuro. Um cacique guarani vai participar de uma das fases do projeto, e novas peças estão sendo criadas especialmente para uma exposição nos Estados Unidos e outra na Índia. Tudo isso acompanhado pelas câmeras. Além do filme e das exposições, um livro também está entre os projetos em andamento. A arte não para. Se arte de vanguarda é aquela que rompe com modelos preestabelecidos, Xadalu é exemplo disso. Cruzou fronteiras, está espalhado pelo mundo, é no museu o que é na rua. Provoca questionamentos, traz informação, é multiplataforma e atual, rompe paradigmas, olha para a frente.

Página 21


Sextante 2015/2

Resistência

2015 – Resistir?

Iami Gerbase

Resistimos a não extinguir a humanidade quando... ...vemos um pastor evangélico assumir a presidência da Câmara. ...12 pessoas são assassinadas na sede de um jornal francês que frequentemente fazia charges satíricas com Maomé. ...grupo terrorista divulga vídeo decapitando 21 cristãos capturados. ...o filho de um grande empresário brasileiro é absolvido pelo crime de matar com seu Mercedes um ajudante de caminhoneiro que andava de bicicleta. ...vemos nas ruas pessoas pedindo a volta da Ditadura Militar. ...uma vendedora de uma grife sai da loja e diz a um menino negro de 9 anos que toma sorvete com o pai que ele não poderia vender coisas ali. ...a polícia mata um menino de 10 anos durante operação na favela - Pessoas espalham pela

Página 22

internet fotos manipuladas para dizer que o menino era criminoso. ...a notícia de que 147 estudantes foram mortos dentro de universidade no Quênia por um grupo extremista não ganha destaque algum e não desencadeia reações pelo mundo. ...transexual presa por agressão é desfigurada e tem a cabeça raspada por policiais que ainda divulgam fotos suas nua no chão da delegacia e, meses depois,

transexual de 18 anos morre após ser espancada por cinco homens e levar tiro de policiais que mentiram sobre o ocorrido - Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. ...professor de universidade particular diz: “As leis são como as mulheres, foram feitas para serem violadas”, durante aula do curso de direito – Alunos o defendem dizendo que foi apenas uma piada. ...professores que protestavam em frente a votação fechada de lei que os prejudica sofrem imensa violência policial deixando centenas de feridos. ...lei que possibilita terceirização das atividades fins da empresa entra em discussão - Uma das principais revistas brasileiras diz que a medida não reduz direitos, beneficia empresários, trabalhadores e a economia do país e que aqueles que são contra a lei “tem agenda própria (e faz barulho) em detrimento dos interesses da maioria dos brasileiros”. ...uma das maiores lojas de roupas do mundo é autuada por não cumprir um acordo de 2011

para acabar com o trabalho escravo que usa no Brasil e, meses depois, o dono dessa marca lidera o top da lista de pessoas mais ricas do mundo. ...cinco homens amarram quatro meninas em árvores com cordas, as agridem com facas, as estupram e as jogam morro abaixo. ...um homem negro é absolvido após passar injustamente 12 anos no “corredor da morte” nos EUA. ...uma menina negra de 12 anos é apedrejada ao sair de um culto do candomblé. ...o governo do Partido dos Trabalhadores diminui direitos dos trabalhadores. ...jovem de 21 anos defensor da supremacia branca mata nove pessoas que estavam em importante igreja para a comunidade negra dos EUA e, na semana seguinte, duas igrejas do tipo são incendiadas. Em outubro, mais cinco igrejas da comunidade negra são incendiadas em apenas dez dias. ...grupo terrorista divulga vídeo matando cinco prisioneiros por afogamento dentro de gaiola. ...linchamentos se multiplicam pelo Brasil e, além de aplaudidos, são estimulados na internet. ...deputado federal brasileiro defende aborto compulsório de fetos com “tendências criminosas”. ...vídeos expõem violência policial dentro de salas de aula nos EUA: menino de 9 anos é algemado a cadeira enquanto chora, menino de origem muçulmana é preso após mostrar relógio digital que construiu à professora e menina negra de 9 anos recebe chave de braço, é atirada da cadeira e arrastada pelo chão. ...Câmara aprova redução da maioridade penal no Brasil de 18 para 16 anos.

...menina de 9 anos é estuprada, asfixiada e presa dentro do forro de um sofá para agonizar até a morte pelo irmão de seu padrasto. ...um dos principais jornais do Brasil publica perguntas machistas a uma mulher que teve as mãos decepadas, os pés mutilados, a cabeça cortada e a barriga esfaqueada pelo companheiro ao dizer que desejava se separar. ...menina de 9 anos que fazia aula de tiro com uma submetralhadora mata acidentalmente o instrutor devido à força da arma, garoto de 11 anos mata vizinha de 8 após ela não deixar ele brincar com seu cachorro e menino de 6 anos mata irmão de 3 enquanto brincavam de polícia e ladrão - um terço das crianças estadunidenses moram em casas com

pelo menos uma arma de fogo. ...foto do corpo de um menino de 3 anos em praia da Grécia choca o mundo - 3.210 pessoas morreram em 2015 até o momento tentando chegar à Europa pelo Mediterrâneo. ...União Europeia aprova missão militar para destruir barcos que fazem o transporte de refugiados para a Europa. ...homens diariamente abusam sexualmente de mulheres nos metrôs brasileiros, chegando a um caso de ejaculação na calça da vítima – empresas, muitas vezes, ignoram as denúncias. ...Comissão da Câmara aprova estatuto que define família apenas como a união entre um homem, uma mulher e seus descendentes. ...o desaparecimento de 43

Página 23


Sextante 2015/2 estudantes mexicanos completa um ano sem resposta alguma. ...o assassinato de 10 pessoas em uma escola de Oregon é contabilizado como o 249º massacre por arma de fogo nos EUA apenas no ano de 2015. ...exércitos estadunidenses e afegãos não param bombardeio a região com hospital dos Médicos Sem Fronteiras mesmo após saberem que a unidade seria atingida - 22 pessoas morrem, incluindo médicos e pacientes que foram encontrados incinerados em suas macas. ...comerciantes aumentam preços de lonas após aumento de procura devido à enchente que afetou quase 25 mil pessoas e deixou mais de 7 mil desabrigados. ...haitiano que estava sentado em frente à sua casa com a esposa é morto a facadas por um grupo de 10 homens - xenofobia se espalha e se fortifica no Brasil. ...discurso de ódio se prolifera pelas redes sociais – integrantes do grupo Graduação da Depressão: “eu não paguei um monitor colorido pra ficar vendo negros”, “eu como, digo que tinha alguém estuprando ela e cheguei para salvá-la, tiro ela daí e levo pra cama e como de novo”, “mulher minha só vai ter acesso a internet pra procurar receitas de comidas”, “na verdade a gente não liga pra estria, mas as mulheres tem que pensar que a gente liga pro complexo de inferioridade não acabar!”, “eu jamais Página 24

Resistência comeria uma mulher com cabelo pixaim/crespo, eu não achei meu pinto no lixo, alizem essa merda se quiserem meu kct OK niggas???”. ...protesto em cidade alemã junta mais de 20mil pessoas pedindo deportação em massa dos imigrantes - escritor discursa: “Infelizmente os campos de concentração estão desativados”. ...homens escancaram a cultura do estupro através de comentários pedófilos a uma criança de 9 anos que participa de um programa de televisão.

...deputados aprovam medida que dificulta realização de aborto a mulheres vítimas de estupro, assim como o acesso à pílula do dia seguinte para todas as mulheres. ...homem invade escola sueca, mata duas pessoas e fere outras duas com golpes de sabre. ...deputados religiosos dizem que ENEM faz doutrinação ao abordar questão que envolve feminismo e pessoas afirmam que tema da redação que aborda a violência contra a mulher no Brasil é assunto “esquerdista”.

...comissão da Câmara aprova medida que revoga o estatuto do desarmamento e, no mesmo dia, outra comissão aprova PEC que transfere do executivo para o legislativo a decisão da demarcação de terras, além de proibir a ampliação de terras já delimitadas e garantir indenização a fazendeiros. ...crianças se alimentam de grama cozida para não morrerem de fome no Sudão do Sul - no início do ano, Hollywood lançou um filme que custou 175 milhões de dólares. ...sabemos que nestes 2 meses que faltam para o fim do ano outras centenas de notícias irão escancarar a situação degradante que se encontra a raça humana. -Resistimos ao nos iludir que a humanidade tem cura. Resistimos ao agradecer por todo meteoro que passa a apenas alguns milhares de quilômetros da terra. Resistimos ao afirmar que a razão nos torna superiores a todos os outros animais. Resistimos ao pensar que depois de mortos não viraremos apenas comida de vermes. Resistimos ao nos enganar que podemos destruir a natureza e ela continuará nos fornecendo tudo que precisamos para viver. Não seria melhor desistirmos da resistência e privar logo o universo da existência de um planeta doentio em seu lindo complexo estrelado?

resistência material Giuliana Heberle

Existem seis casas na rua Luciana de Abreu que foram construídas em 1930, trazendo o estilo modernista para o urbanismo de Porto Alegre. Feitas pelo escritório do arquiteto alemão Theo Wiederspahn, que tem em seu currículo nada menos que o Hotel Majestic, a atual Casa de Cultura Mario Quintana, a Faculdade de Medicina da UFRGS, o Memorial do Rio Grande do Sul, antigamente os Correios e Telégrafos, entre outros. Em 2013, a justiça negou o valor histórico das casas, e a incorporadora Goldzstein decidiu que construiria ali duas torres de 16 andares. Os moradores, então, fizeram uma manifestação, argumentando que a demolição das casas prejudicaria o patrimônio histórico da cidade. A partir daí, tudo parou. Faz dois anos. Elas continuam ali. Esperando. Em 1930 surgiu também o primeiro modelo da câmera fotográfica Leica com lentes intercambiáveis. A Leica é uma empresa óptica alemã, e é a marca mais famosa de câmeras analógicas no mundo. Henri Cartier Bresson fotografou muito com uma Leica. Ele morreu. Com a era digital, elas foram para a estante. Hoje há quem as colecione. Algumas funcionam. E continuam ali. Esperando.

29.10.2015 Sair na rua cria encontros. Já ouvi chamarem de “flaneur”. Cheguei para ver a luz. A melhor luz nas casas da Luciana. Decidi que era entre as seis, sete, entardecer. O sol bate na frente. Porém, os carros luxuosos e grandes de quem trabalha ou frequenta a rua Padre Chagas estão bem na frente e me impedem de fotografar com a luz ideal. Usam como estacionamento. O flanela ganha dinheiro. Começa a puxar papo. Me diz do nada que levou sete tiros e perdeu o rim, defendendo as seis casas dos skinheads que queriam pichar símbolos nazistas. Tem um no muro mesmo. O arquiteto era alemão. Nazista? Teriam eles algum motivo? Alexandre, respondeu, e já puxou assunto político. Diz que não mora ali. Diz também que não se pode fotografar. Opa, aí me toca. Como não? Não soube explicar direito ou, com minha teimosia, não fui capaz de entender. Arrastei a bicicleta para um lado, obser-

vei, disse “até logo”. Nisso, chega outra bicicleta. Queria saber se era perigoso ou não fotografar ali com a Leica. Rondava. Não é minha, não posso arriscar. Precisam de fogo? Um minuto. Largo a mochila no chão. Isso é palheiro? É sim. Sempre acabo fechando palheiros e fumando com pessoas aleatórias. Ele guarda o cigarro branco. Vou fechar um para nós dois, esse é forte. Guardo o isqueiro, pego filtro, seda, enrolo em dois minutos. Fogo. Acendo. O Alexandre foi sentar na sacada de uma das casas. Observo de longe. Será que não mora ali mesmo? Será que tem medo dos meus motivos para fotografar? Não perguntei. Amanhã chegarei as sete, mas quero alguém comigo. Nisso, ele se chama Gabriel, está em busca de um velho que anda por ali. O velho mora com a mãe e foi até a casa dele pedir vinte reais para o porteiro. “Por que ele sabe onde moras?” “Ah”, responde (Pelo “Ah”, imaginei, drogas), “a gente deu umas banPágina 25


Sextante 2015/2 das juntos”. O que um menino de dezoito anos conversa com esse tal velho que, segundo ele, está sempre por ali? Não obtive resposta. Do que fogem? Por que se escondem? Volta o Alexandre. Apoia a diminuição da maioridade penal, fala da vila Cruzeiro, de juízes ricos, de políticos corruptos e das pessoas que têm um grupo, algo de apoio a Carlos Mariguella. Vão às manifestações públicas. Fuma maconha, cheira cocaína, bebe álcool. Se liberarem a maconha, vinte por cento menos pessoas vão morrer por causa do tráfico. Logo explica também porque apoia a diminuição da maioridade penal. Porque há vários criminosos mirins que pensam assim: posso matar, posso roubar, fazer tudo até que complete dezoito anos. Diz que ,se diminuir a idade, os pequenos pensarão antes de cometer os crimes. Não sairão ilesos. Leis para onde não há educação. Obviamente discordei. COMUNICAÇÃO! Em minha cabeça retumba, será? Pensei alto. Ele diz que sim. Eu acredito, oras. Se ele mora na Vila Cruzeiro, por dedução, é muito mais provável que ele tenha conversado com um desses meninos do que eu. Mas achei curioso o modo de pensar. Apoiando ideais de direita, falando mal do governo vigente, teoricamente de esquerda. Dilma não é esquerda. Quando entra lá (na presidência), não existe ser de esquerda. Mas, por pressão, ela aceita e faz um monte de coisas ruins. Da aposentadoria, agora a partir dos sessenta e cinco anos, já disse que escutou velhinhos reclamarem. “Com sessenta anos o cara não é mais jovem”. Tem que continuar trabalhando. Fiquei a fim de perguntar o que ele achava sobre a legalização do aborto. Essa coisa dos encontros. Eu os quero mas por vezes não os tenho. Ele não os usa mas os tem Página 26

Resistência todos os dias. Ser flanela da Luciana de Abreu. Tinha esquecido do Gabriel já. Giu, prazer. Tem Facebook? Sim, por quê? Pra saber, diz ele. Tomara que não me adicione, por Giu nunca vai achar. 30.10.2015 Consegui companhia. Concordamos que tem alguma energia diferente naquelas casas semi destruídas. No primeiro clic, CLIC. NÃO PODE ENTRAR AÍ, NÃO VIU A FAIXA AQUI? Opa. O segurança. Com o símbolo da Goldzstein bordado no bolso no lado direito do peito. Olhar de psychokiller. Retardada. Vi a faixa, sim, mas quero bater essas fotos. Não pode. PORRA, DE NOVO? POR QUE NÃO PODE, CARALHO? Ah, porque depois publica aí na internet e pode es-

crever o que quiser. Sinto que incomodo. Perturbo. O que escondem? Mas é para um trabalho na faculdade. FICA ATRÁS DA FAIXA. Ok. Sol do meio-dia, não acordei às sete, luzes duras demais, não bate a luz onde eu queria. Estou desperdiçando o poder da Leica. TU É JORNALISTA? Opa. Estudante de jornalismo, sim. Ah, imaginei, nunca tem ninguém por aqui. É, tô fazendo um trabalho sobre a resistência dessas casas. É, parece que tem algo que faz com que não derrubem elas. Estão na justiça ainda, a Goldzstein queria construir, a associação de moradores protestou, aí inviabilizou, e agora não chegam a resultado nenhum. Mas tentaram negociar, a construtora propôs uma torre só, e usar essa última casa aqui, que é a mais bonita, para ser um salão de festas.

Mas não aceitaram nada, agora é disputa de ego, sabe? Hum, sei bem. Me diz o endereço da cobertura, já sei onde ele mora, faz escultura, tem um monte de jornalista da TV que vai lá fazer reportagem, documentário, tem um cara que produz as ideias dele há tantos anos…blabla… no prédio tem duas banheiras de 100 anos, uma cheia de livros, para banho de cultura, a outra com velinhas boiando. Trabalha nos cafés do Moinhos de Vento e no Leblon, no Rio de Janeiro. HM. O segurança de olhos azuis pirou na bíblia enquanto eu tinha essa conversa, meu segurança pessoal quase sofreu lavagem cerebral. Vai embora esse tal de Mario. O segurança então veio, xingou o flanela, xingou o Mario e, para finalizar, começou a imitar os velhinhos que defendiam as casas da Luciana. Colocou as mãos nas costas, fechou mais um dos olhos, a boca tapando os dentes, e se curvou. Nos encarou com aqueles olhos azuis. Disse que os velhinhos estavam todos quase morrendo, mas não paravam de encher o saco com essa história das casas, e os imitou deitados no caixão, iriam todos morrer logo. O Mario era a favor da construto-

ra, meio óbvio. Mesmo com isso em comum, os dois não trocaram olhares. O playboy e o segurança. Mas alguma coisa mantém essas seis casas ali. Na minha opinião, poltergeist. 2.11.2015 Dia dos mortos Tive um sonho. Estávamos no sofá. Que fazíamos, nos abraçávamos? De repente. RATO! Um rato. Lembrei. Havia pessoas fora da casa. A casa do sofá. Casa de sonho, sem chão nem teto. Apenas janelas. Janelas de vidro, observava claramente os homens rondando a casa. Traziam armas. Estavam em bando. Mais de cinco, suponho. Rondavam, rompiam o clima bom que desfrutava com ela, seus sorrisos. De repente, isso. Um rato. Pulamos de susto. Vivo. Um rato vivo. Mais um. Olhávamos perplexas. MAS QUE PORRA! Muitos ratos começaram a brotar de cantos. Cantos que surgiram com os ratos. Na casa agora havia um sofá, eu, ela, janelas de vidro, cantos, e ratos! Muitos ratos grandes. E começamos a matá-los. Morram, ratos. PAFTUMSOC. Morte. Rato. Morte. Rato. Morte. De repente, os ratos grandes viravam

Ratos médios. Morte. Não conseguia prestar mais atenção nela. Havia ratos demais. Quem estava na casa? Não há como saber, o enquadre eram os malditos ratos cinza sujos. Que horas eram? O foco eram os ratos. Matávamos ratos juntas. Nos unimos para matá-los, exterminá-los. Os ratos médios sumiram. Faleceram. Pararam. Paramos. Pude observá-la. Que sentia, nojo? Ou apenas perplexidade. Não perguntei se era verdade. Na hora, eram. Eram muitos. Calo-me por horas. Observo-a. A janela batia durante a noite. Dormi? Talvez, entre minutos, dormitava. O café estava frio. Pão com queijo. Divago. De repente, vários ratinhos. Pequenos ratinhos. Os homens do bando os assustaram e eles entravam na nossa casa do sofá. Mini ratos, com rabo comprido. Asco. Muitos mini ratinhos surgiam dos cantos, das frestas, das paredes, do sofá. Seria eu um deles? Confundia-me. Não, sentia-me humana. Pesadelo. Era preciso matá-los. És homem ou rato? Sou mulher. Mas estaria eu no bando de homens? Não, não assustara nenhum rato com armas de fogo e estalara galhos secos, fazendo-os saírem de suas devidas tocas. Quem seria eu? Homem, rato, grande, médio, mini, ou a mulher que observava a outra mulher. Não conseguia distinguir o que pensava, havia ratos demais. Acordei. Informação demais. Publicidade demais. Polêmica demais. Paradoxos demais. P.S.: Descobri que o Alexandre, o flanela da Luciana de Abreu, mora ali, sim. Voltei. Era dez horas. O vi dormindo. Não o acordei. Cheguei perto. Bati minhas fotos. Ninguém me impediu. Era 31 de outubro, dia das bruxas. Tinha um rato morto na frente de uma das janelas. Quase pisei em cima. Página 27


Sextante 2015/2

Resistência

Pregada na Cruz Antonio Felipe Purcino Carolina Trindade Nathália Cardoso

Foto: acervo pessoal

Fotos: Giuliana Heberle Agradecimentos: Vitor Borges - Tecnifoto Luiz Antônio Saldanha - Dono da Leica Mario Bitt Monteiro - Núcleo de Fotografia da UFRGS Maurício Lobo - Segurança pessoal Michel Heberle Gabriela Heberle

Página 28

Viviany Beleboni tem 27 anos e é atriz, modelo, dançarina e mulher trans. Nascida no Rio Grande do Sul e hoje radicada em São Paulo, é conhecida pelas suas grandes performances de rua. Em uma Parada LGBT de Porto Alegre, fez uma apresentação pendurada em um guindaste. Ganhou visibilidade nacional após a Parada LGBT de São Paulo, no início deste ano, quando desfilou “crucificada” em cima de um carro alegórico, para o público de mais de um milhão de pessoas. Após este passo ousado, Viviany conta que recebeu tanto apoio à apresentação quanto críticas fortes – que culminaram em uma agressão física em setembro deste ano. Na entrevista especial da Sextante Resistência, a atriz conta um pouco da sua trajetória.

Viviany, como funciona o teu trabalho? Tu trabalha como atriz? Eu trabalho como modelo mas eu sou atriz, sim. Não exerço a profissão ainda devido ao preconceito de não colocar atores trans em novela, de não saberem onde encaixar pessoas trans. Eu já fiz alguns curtas-metragem aí no Sul e tenho uma peça estreando ano que vem. Também faço desfiles, já fiz algumas revistas, estou para fazer uma capa de revista de novo até o final do ano ou começo do ano que vem. Como tu começaste a fazer estas apresentações pelas quais tu ficou conhecida? Comecei a fazer estas performances diferentes ainda aí no Rio Grande do Sul. Eu me pendurei em guindaste, fiz show com cobra e dentro de caixão. Sempre fui visionária, sempre quis fazer coisas diferentes do normal. Acho que o normal ninguém mais gosta, ainda mais em shows. Eu acho que o show tem que prender as pessoas e fazer elas ficarem ali olhando. Gosto de fazer o diferente, não gosto de repetir nada do que já foi feito, sou meio que uma Lady Gaga do meio LGBT. Coisas diferentes e que fazem as pessoas refletirem. No meu show tem bastante bailarinos, quando vê explode uma coisa ou eu troco de roupa, é bastante rico em detalhes.

ENTREVISTA: Viviany Beleboni

Como a performance da crucificação foi pensada? Qual o significado que tu esperavas passar? Eu não acordei um dia e pensei “vou fazer uma performance crucificada”. Essa ideia veio de situações que a gente sofre desde criança, de agressões que amigos meus já sofreram, de notícias que eu vejo de pessoas agredidas na Paulista, de menino de 12, 13 anos morrendo de pedradas porque o padastro acha ele afeminado. Ali não estava só eu, ali estavam todos os LGBTs, estava escrito na placa bem grande “Basta de homofobia com LGBTs”. Eu representei as dores que toda a comunidade vem sofrendo. E as críticas que tu recebeu depois? A distorção veio de quem troca o amor pelo ódio. Quem teve esse discurso foi uma minoria. As pessoas nas redes sociais hoje sempre agem como advogadas, juízas e delegadas, falando o que querem. Mas a maioria das pessoas entendeu o que eu quis passar, só que fingem, ignoram os problemas sociais que eles não querem enfrentar. As questões muito polêmicas, ou que eles não sabem lidar, eles tapam os olhos e fingem que não veem. Foi por isso que eu fiz a performance crucificada, para chamar a atenção no protesto e mostrar que a gente existe, que sofremos muito Página 29


Sextante 2015/2

preconceito e que estamos morrendo por não existirem leis ao nosso favor. Tu imaginou que essa performance ia ter tanta repercussão? Eu imaginei que críticas iam vir, o que é óbvio, porque a gente vive em um país católico. E que iam aparecer pessoas que não entenderiam ou fingiriam. Vivemos num mundo completamente hipócrita: as pessoas veem o que elas querem ver e falam o que elas acham que tem que falar. Óbvio que teriam algumas pessoas que iam distorcer ou não iam entender, por isso eu coloquei uma placa bem grande em cima de mim, pintei os olhos chorando sangue, para mostrar que a gente é igual a todo mundo. Muitas pessoas têm uma formação religiosa e veem a Parada LGBT como uma putaria, um Carnaval fora de época. E realmente, têm pessoas que vão pra protestar, outras para festejar. Este ano eu fui para protestar, não era pela quantidade de pessoas que estava ali, mas por ter um protesto de qualidade, tanto que foi repercutido no mundo inteiro. Quem tá passando vergonha, na verdade, são os religiosos. Alguns dias depois da Parada LGBT, tu sofreste um ataque transfóbico. Tu te sentes

Página 30

Resistência

confortável para compartilhar o que aconteceu? Eu não gosto de falar muito sobre isso, é uma situação muito chata. Foram algumas pessoas próximas ao meu bairro que são religiosas. Pessoas ruins, que não gostam de trans e viviam me encarando, quando souberam da crucificação ficaram ofendidos por causa da religião deles. Naquele dia eu estava caminhando sozinha, dando uma volta com o meu cachorro, e eles me encontraram em um beco. Começaram a me ofender e eu fingi que não estava escutando e partiram

para a violência física. Foi tudo muito rápido, mas eu reagi também – um dos motivos porque eu não me machuquei mais – e vim pra casa. Eu não acreditei, eu já fiz (a apresentação) justamente para isso não acontecer, e acabou acontecendo comigo. Resistência é… Acho que resistência é como se fosse uma fé. É ser quem você é, e, independente do que as pes-

soas falam, você sabe o que é. O que importa mesmo é o coração da gente, o que nos toca, o que nós somos. Todo mundo tem direito de pensar o que quiser de mim, que eu fiz uma blasfêmia, que eu sou uma sem-vergonha. Mas tem muitas pessoas que viram (a performance crucificada) e enxergaram um amigo que morreu de homofobia, morreu de transfobia, um amigo que apanhava na escola, que era espancado. Eles viram aquilo e choraram. Desde sempre, quando você sabe o que você é, tem que ser muito forte e ser muito corajosa. Às vezes as outras travestis brigavam comigo porque eu dizia que tinha que ser “muito homem”. Quando eu falo isso é porque eu acho que você tem que ser muito corajosa, não é qualquer uma que tem essa coFoto: ragem. Que deixa Reuters a família, é ex/Joao pulsa da própria Castellano família, que não tem assistência nenhuma. Que não consegue ter uma relação séria com um homem porque ele tem medo do que os outros vão falar, medo da família dele. Você tem que saber o que você quer e saber que você é uma pessoa boa. Acho que resistência é isso, ter fé em você.

60 anos de utopia, paixão e resistência Júlio Kaczam

ENTREVISTA: paulo flores

Paulo Flores é um dos grandes nomes que continua trabalhando por um ideal muito claro: a utilização do teatro como forma de resistência artística e política. O fundador do grupo de teatro mais antigo do Rio Grande do Sul, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, continua levando para a população o pensamento crítico por meio do teatro de rua e de seu teatro de vivência - sem divisão de palco e platéia. Com o lema “Utopia, Paixão e Resistência”, Paulo Flores e a Tribo mudaram o fazer teatral nos anos 70, e até hoje se utilizam da arte como uma grande experiência ritualística que busca trazer ao público, por meio de sensações reflexivas, uma mudança pessoal e social. Qual foi seu primeiro contato com o teatro? Eu me lembro de ter assistido à peça “A Bruxinha que era boa”, da Maria Clara Machado, quando tinha seis anos. Depois assisti, durante a infância, a teatro de fantoches na Biblioteca Pública. Quando era criança, brinquei muito de “fazer” teatro, muito influenciado pelos filmes a que assistia nos cinemas e na televi-

são. Na adolescência, junto com amigos e primos, “encenei” adaptações de filmes e novelas, como “Bonnie & Clyde” e “A Ponte dos Suspiros”, para uma plateia formada por parentes. Só começo a assistir teatro com frequência aos 16 anos. Alguns espetáculos vindos do Rio e de São Paulo e, principalmente, as peças do Teatro de Arena de Porto Alegre, que para mim vão ser uma revelação. A força que o teatro pode ter em sensibilizar o espectador para a reflexão dos problemas sociais. Esse teatro comprometido com a crítica ao mundo em que vivíamos vai ser determinante na minha decisão em escolher o teatro como forma de expressão. Quem ainda são os resistentes em busca de uma arte de transformação social? Em todos os lugares do mundo, uma arte comprometida com a transformação resiste. Para ficar só no campo da expressão teatral e no Brasil, podemos encontrar, nas diversas regiões do país, grupos de teatro investigando novas formas de expressão e desenvolvimento do ator, contrapondo-se à estética imposta pelo colonialismo, trabalhando temá-

ticas sociais com questionamentos críticos da realidade. Para citar dois mestres do teatro revolucionário no nosso país: José Celso Martinez Correa, do Teatro Oficina de São Paulo, e Amir Haddad, do Grupo Tá Na Rua, do Rio de Janeiro. Você acredita que a resistência está atrelada à busca de uma re-existência? Acredito que toda resistência traz em si uma re-existência. Porque, ao manter os valores éticos que fazem o ser humano continuar lutando por liberdade e justiça social, ele precisa se projetar para o futuro. É preciso uma particiPágina 31


Sextante 2015/2 pação cada vez maior do indivíduo em direção à construção de um novo tipo de sociedade. Com a crescente tecnologia e os novos meios de comunicação, muito se discute no jornalismo sobre o fim do jornal impresso, assim como se discutiu o fim do rádio com a chegada da televisão. Você acredita que estamos vivendo uma crise do teatro? É possível que ele seja extinto pela televisão e pelo cinema? Num mundo que nos sufoca de mensagens unidirecionais, o teatro resiste e se oferece, hoje, como o lugar único da comunicação imediata. Todos esses canais artificiais de comunicação são “distanciadores”. Cada vez mais, o ato comunicativo separa em vez de reunir, e a comunicação eletrônica aliena os seres humanos que, cada vez mais, sentem-se isolados uns dos outros. Acredito que só o teatro enquanto expressão artística poderá restituir ao homem a função natural de comunicar. A essência do teatro é reunir atores e espectadores para fazê-los partilhar uma experiência. Você já afirmou que “não

Página 32

Resistência se cristaliza uma maneira de fazer teatro, jamais. Esta arte ancestral, perseguida pelo fantasma da crise desde antanho, está condenada a reinventar-se em meio aos encantos e solavancos”. Uma crise do teatro serve para surgir uma nova percepção de cultura? Num mundo cada vez mais virtual, onde os meios de informação, em lugar de aproximarem realmente os cidadãos do mundo, só agravam e difundem uma forma nova de solidão, acredito que só o teatro poderá ficar como o lugar privilegiado da anti-solidão, da comunicabilidade direta, do diálogo, do isolamento quebrado. Só no teatro os seres humanos reaprenderão a se conhecer. Esse é o seu espaço no horizonte do futuro. Muitos atores e autores, com o surgimento da televisão, a buscaram como nova forma de expressão, achando que poderiam atingir um maior número de pessoas. Com isso, abandonaram o teatro e, consequentemente, o fazer político. Qual é a relevância do teatro em uma sociedade que está cada vez mais afastada dessa arte? Todo artista dentro do sistema capitalista vive em “perigo” de ser capturado e cooptado pelo consumismo. Nesse contexto, cabe ao teatro, então, celebrar ou transgredir os mitos desta sociedade, problematizando o presente, perspectivando o passado, antecipando o futuro. O teatro pode ser o motor e o laboratório social

de uma cultura em mutação e de uma comunidade sempre renovada, constituindo uma experiência estética capaz de conduzir o ser humano a viver de uma maneira mais plena e mais autêntica. No momento em que, na sociedade, tudo se torna objeto de consumo, inclusive o ser humano, que deixou de ser gente, cidadão, para se transformar em cliente e consumidor, qual a maior dificuldade em fazer um teatro transgressor que se opõe a essa ideia difundida pelo sistema capitalista? Acreditando no teatro como um modo de vida, o Ói Nóis Aqui Traveiz, desde a origem, dissemina ideias e práticas coletivas de autonomia e liberdade, compartilhando a experiência de convivência e de laboratório teatral. Que através do teatro possamos construir um ser humano solidário, consciente, aberto ao outro. Foi em busca dessa ideia que adotamos o termo “Tribo de Atuadores”, que sugere uma nova sociedade, baseada na vivência em comunidade e na valorização das relações diretas e da responsabilidade individual. Esse trabalho desenvolve, dentro do grupo, uma noção de ator: primeiro é preciso ter consciência do que se quer fazer. Não é mais o ator para ser “estrela”, para chegar

à novela da TV Globo. Por isso, nós usamos o termo “atuador”. Porque, dentro do Ói Nóis, procuramos desenvolver no artista, além do ator, um ativista político. Não um militante partidário, mas político no sentido maior, como agente social, uma pessoa descontente com o que existe aí, que queira transformar o seu dia-a-dia e a sociedade em que vive. Isso é um processo que encontra várias dificuldades, algumas quase intransponíveis, mas que a trajetória do Ói Nóis Aqui Traveiz tem mostrado que não é impossível. Mesmo se vivendo numa sociedade extremamente consumista, de valores individualistas, de cinismo exacerbado, de “cada um por si”, o Ói Nóis, com a sua criação e organização, se coloca na contramão desse pensamento dominante, procurando um teatro que esteja engajado com o momento em que se vive, na busca da transformação da sociedade.

pos de teatro que mantenham sua independência em relação ao mercado e às estruturas de dominação. Essas dificuldades vão

O teatro do Ói Nóis foi um dos alvos da ditadura militar no Brasil. Hoje, como é feita a censura aos meios artísticos? Hoje, a censura é principalmente econômica. Mas nos anos 80, além da censura e da repressão policial, os grupos de teatro viviam também uma situação de penúria econômica. Hoje, estas dificuldades econômicas continuam para a existência de gru-

Qual a maior diferença entre fazer teatro nos anos 80 e hoje? Para o Ói Nóis Aqui Traveiz, os anos 80 foram o momento de descoberta, de desenvolver as linguagens da Tribo: o teatro de rua e o teatro de vivência. Tudo era muito novo, tanto para nós, criadores, como também para o nosso público. Hoje, com essas linguagens definidas, o desafio é como não cristalizar as formas e

desde o espaço físico para o grupo desenvolver o seu trabalho e ter

continuidade até verbas de fomento para sua criação artística e a circulação dos seus espetáculos.

estar sempre atento ao público de hoje. Qual a principal diferença do público de hoje pro dos anos 80? É mais difícil conquistar o estado de atenção no espectador contemporâneo? Para esse público de hoje que, na sua grande maioria, passa todo o tempo conectado ao mundo virtual, o teatro do Ói Nóis Aqui Traveiz ganhou uma dimensão maior. Mergulhados num ambiente saturado de informação eletrônica, cada vez mais nos sentimos desligados da materialidade dos fatos, do real objetivo, do acontecimento palpável. O teatro do Ói Nóis, ao propor uma vivência, em que o espectador está dentro dos acontecimentos, pode vislumbrar o teatro como espaço de um encontro autêntico. Acredito que só o teatro ficará como lugar da desalienação, lugar onde o ser humano redescobrirá essa unidade perdida do pensamento com a ação, lugar onde se refará a potência criadora do gesto. Lugar onde o ser humano se reencontrará com o ser humano, olhos nos olhos, carne com carne. Uma das críticas que o Ói Nóis recebe é o de que, por utilizar uma linguagem própria e poética, usa de diversas referências que o público, em geral leigo, não conseguiria compreender. Como lidar com o fato de Página 33


Sextante 2015/2 que o público em geral está inserido nessa cultura que o Ói Nóis justamente pretende romper? Esse processo de reprimir e instrumentalizar a imaginação, proveniente de uma política cultural das sociedades capitalistas, levou Heiner Müller a dizer que a tarefa política da arte seria mobilizar a imaginação do espectador. Acredito que o papel do teatro é desalienar o espectador dessa cultura massificante. O teatro do Ói Nóis Aqui Traveiz, através de uma linguagem poética que envolve todos os sentidos do es-

pectador, busca liberar os automatismo da percepção e os hábitos perceptivos já cristalizados. Concordo quando Müller diz que o ato cognoscitivo vem a posteriori, precedido pela experiência estética, por algo que não pode ser definido de imediato, mas que só assim se transforma em experiência durável. Você ainda assiste a teatro hoje? Quais os principais grupos atuantes no cenário nacional? E internacional? Assisto a teatro bem menos do que eu gostaria, em função das minhas atividades na Terreira da Tribo, que tomam quaPágina 34

Resistência se todo o meu tempo. A ideia de teatro de grupo espalhou-se pelo país, e existem, em diferentes estados, grupos com atuação e relevância histórica. Para citar dois grupos com que o Ói Nóis Aqui Traveiz tem compartilhado ações conjuntas: a Companhia do Latão e o Grupo Pombas Urbanas, ambos de São Paulo. No campo internacional interessa prioritariamente ao Ói Nóis o contato com o teatro latino-americano. Temos trazido para o nosso Festival de Teatro Popular: Jogos de Aprendizagem representantes deste múltiplo cenário como o Yuyachkani, do Peru, o Malayerba, do Equador e o Teatro Taller, da Colômbia. Quais os trabalhos que mais te marcaram? As primeiras peças assistidas no Teatro de Arena de Porto Alegre, no início dos anos 70, que traziam duas características que foram motivadoras para mim e que influenciaram a minha maneira de ver e fazer teatro: a proximidade física entre o ator e o espectador, e o teatro como instrumento de reflexão política. Depois, foi tudo que eu li sobre teatro e os seus grandes mestres – Artaud, Brecht, Julian Beck, Grotowski, Augusto Boal, Eugenio Barba, entre outros, e a história do Teatro Oficina e do Teatro de Arena de São Paulo. Nos anos 80, o meu encontro com o teatro de rua que se fazia em outras partes do país, como o Grupo Galpão de Belo Horizonte, o Imbuaça de Aracajú e o Tá na Rua do Rio de Janeiro.

Porto Alegre é considerada uma das principais cidades do país em qualidade cênica. Como você enxerga o teatro gaúcho hoje? O teatro de Porto Alegre é certamente um dos melhores do país. Tem uma qualificação de encenadores, de atores, de cenógrafos, que visivelmente está, em termos de tamanho da cidade, em pé de igualdade com Rio e São Paulo. O que falta são recursos para fomentar essa produção. Falta ação do poder público para criar uma política cultural para a manutenção das sedes dos grupos, incentivando o trabalho continuado, com projetos de formação de plateia e de circulação de espetáculos dentro do Rio Grande do Sul e fora do estado.

Conseguir se manter financeiramente é um dos maiores desafios para os grupos de teatro, principalmente no início. Como, em 2015, o ator de teatro consegue sobreviver? Existe algum incentivo para que aumente o número de pesquisas, de grupos...? A falta de uma efetiva política pública de fomento às artes cênicas leva o teatro brasileiro, principalmente os grupos de trabalho continuado, a viver na corda bamba. Um grupo jovem só vai conseguir sobreviver se tiver muito claro para si o porquê de fazer teatro e muita persistência. Existem poucos editais públicos e a demanda é sempre muito maior que os poucos recursos. Vivemos

num país onde as verbas para cultura não alcançam nem 1% do orçamento geral. O dinheiro público está nas mãos das empresas privadas através das leis de “incentivo à cultura”, que não têm nenhum interesse na democratização e descentralização do teatro. E a situação no estado e no município é ainda pior. Mesmo com todas as dificuldades em manter um grupo teatral, o Ói Nóis se destaca pela quantidade de atores envolvidos em suas apresentações. Quantos

Atuadores fazem parte da Tribo hoje? Nas encenações dos espetáculos do Ói Nóis Aqui Traveiz “Medeia Vozes”, “O Amargo Santo da Purificação” e da performance “Onde? Ação n. 2”, estão envolvidos 25 atuadores. Na organização, produção e administração do grupo, dos projetos e do espaço da Terreira da Tribo formamos hoje um núcleo de sete atuadores. O que você vê de pior nos jovens atores? E de melhor?

De melhor, a audácia e o despojamento para ir para a cena. E, de pior, como facilmente cedem aos apelos da sociedade consumista e caem no individualismo e no egocentrismo, que são ideias contrárias ao teatro, que é uma arte coletiva e requer um individuo generoso e solidário. Pode-se dizer que o teatro de grupo é uma forma de resistência. Qual a importância do trabalho

continuado para a existência de um grupo de teatro? A existência de um grupo de teatro só se dá pelo trabalho continuado. O trabalho não se encerra na encenação de um espetáculo, que está associado a uma ideia de trabalho coletivo em que se vão desenvolver uma ética e uma estética próprias. O teatro de grupo é que vai pesquisar novas linguagens para a cena, vai inovar no sentido da atuação e no treinamento do ator. Por isso a importância do trabalho continuado, porque é ele que vai trazer para o teatro relevância histórica. Além de 6 livros e 4 DVDs publicados sobre a Tribo de Atuadores, o grupo ainda produz uma revista especializada em teatro: a Cavalo Louco. A revista acaba de completar 10 anos de existência com circulação gratuita com sua edição número 16, sendo referência de pesquisas. A Cavalo Louco sobrevive hoje através de algum apoio? Qual a realidade das publicações teatrais no Brasil? A Cavalo Louco Revista de Teatro da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz é uma publicação independente, como todas as ações do grupo. Os recursos para impressão e distribuição da revista vêm do apoio que o grupo consegue para outros dos seus projetos e dos cachês de espetáculos de teatro de rua pagos por alguma instituição. De todo o recurso que a Tribo recebe, uma parte é destinada para a manutenção da Cavalo Louco. Hoje, diversos grupos brasileiPágina 35


Sextante 2015/2 ros mantêm publicações, como o Grupo Galpão (Revista Subtexto), Pequeno Gesto (Folhetim), Anõnimo (Anjos do Picadeiro), Cia do Latão (Vintém), Clowns de Shakespeare (Balaio) e o Vila Vox. Isso mostra a importância, para os grupos de teatro, do registro, e a reflexão sobre o fazer teatral contemporâneo. O profano e o sagrado são considerados, pela maioria das pessoas, como coisas opostas. No teatro do Ói Nóis, elas aparecem juntas. A arte hoje também é colocada em um local “sagrado” - separada entre os que entendem a arte do resto da população. O Ói Nóis se propõe a fazer do teatro uma experiência ritual e popular. Quem pode fazer teatro? Como começar? O Teatro de Rua e o Teatro de Vivência da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz comungam do mesmo ímpeto de ruptura, invenção e intervenção para a transformação do teatro e da sociedade. A convivência dessas duas vertentes no trabalho do Ói Nóis vai ser fundamental para o desenvolvimento do grupo, tanto no nível de fortalecer a sua identidade político-social, como para a sua pesquisa de linguagem e

Página 36

Resistência trabalho do ator. Essas vertentes estão ligadas uma à outra, e acredito que uma reforça a outra. O Teatro de Rua comunica-se com um grande público, e o Teatro de Vivência com um público restrito, em que se possa realizar uma cena dos sentidos com o envolvimento completo do espectador. Mas, nas duas vertentes, o contato do ator com o espectador para que se estabeleça uma relação viva é a premissa primeira. Quem pode fazer teatro? Para o Ói Nóis todo ser humano pode se expressar através do teatro. Basta desejar e ter um espaço apropriado. Para isso, constituiu a Terreira da Tribo e sua Escola de Teatro Popular, que oferece oficinas de iniciação teatral, formação e treinamento para atores, e de pesquisa de linguagens. Todas gratuitas e abertas aos interessados. O Ói Nóis surge com o retorno de manifestações de rua em 1978 – um momento em que jovens artistas e manifestantes se uniram

Atuar como uma forma constante de se compreender e repensar a vida, no espaço onde a vida acontece com maior agilidade, diante de um público vivo, é quando o teatro torna-se revolucionário.

para usar a arte como uma forma de contestação política e de discussão da ditadura. Você continua fazendo teatro de rua. A rua ainda consegue ser comunicadora e transmissora de pensamento? O Ói Nóis Aqui Traveiz desejava encontrar o público que estava afastado das salas de espetáculos. A busca em sair do circuito do público habitual de teatro e realizar um teatro de combate, presente no dia-a-dia da cidade, levou o grupo a atuar nas ruas. Acredito que o teatro de rua é da maior importância para a cultura do nosso país. Lembrando que 90% das cidades brasileiras não têm salas de espetáculos. O teatro de rua do Ói Nóis tem chegado a um grande público na periferia das cidades e também na zona rural. Na sociedade de consumo, a rua significa a libertação do teatro enquanto mercadoria, já que busca o envolvimento direto entre o público e a criação artística. Representa uma forma de escapar do sistema capitalista e do aparelho cultural, não apenas trazendo para a cena uma estética e uma ética libertárias, mas também uma reavaliação completa dos meios de produção dessa cultura hegemônica. Atuar nas ruas, nas praças públicas e nos parques, atuar para todos que estão ali, de forma gratuita.

Depois de 38 anos, o que o Ói Nóis ainda busca? Os ideais mudaram? Impulsionado por princípios libertários, o Ói Nóis Aqui Traveiz tem desenvolvido a sua trajetória até hoje. A ideia do teatro como força de transformação tem sido o polo aglutinador da Tribo, que faz com que novas pessoas se interessem e se envolvam pela proposta do grupo. As ideias anarquistas que são colocadas na prática no dia-a-dia do grupo, tanto na criação artística como na sua organização, é que vão apaixonar ou não os novos participantes. Ao mesmo tempo em que estas ideias e práticas, como a autonomia, autogestão, criação coletiva, são sólidas na atuação da Tribo, a constante renovação de atuadores não permite que nada possa ser cristalizado. Esse movimento contínuo reafirma a prática libertária. É possível ver claramente quem são os inimigos nas apresentações do Ói Nóis. Quem são seus inimigos hoje? O grande inimigo é o mesmo, o sistema capitalista e a sua sociedade de consumo. Ontem como ditadura civil-militar e hoje como neoliberalismo. A miséria e a fome que se espalha pela maior parte do planeta, o analfabetismo, as epidemias, as guerras, o racismo, a xenofobia, a violência, a falta de liberdade, as injustiças sociais, e a degradação do planeta são frutos do capitalismo. Esse sistema que nos sufoca cotidianamente está sempre presente nas ações da Tribo de Atuadores

Ói Nóis Aqui Traveiz, tanto na criação artística como no ativismo político. Durante muito tempo tentou-se acabar com o Ói Nóis de diversas maneiras: o grupo chegou a ter seu teatro fechado e seus atores presos. Depois de tantos anos de resistência, como você enxerga o seu futuro e do grupo? Acredito que o Ói Nóis Aqui Traveiz continuará, nos próximos anos, disseminando as suas ideias e práticas coletivas de autonomia e liberdade, compartilhando a sua experiência com o maior número de pessoas, através das suas encenações e da prática artístico-pedagógica. Certamente encontrará, como até aqui tem sido, os mais diferentes obstáculos para realizar o seu teatro de ousadia e ruptura. Mas resistir é manter abertos os vínculos com o futuro ainda sem nome e informe.

Aqui Traveiz e do espaço da Terreira da Tribo, que hoje já são referências nacional. Um grupo que nasceu com a ideia de um teatro concebido fora dos padrões convencionais. Estruturado como um coletivo autônomo desejando viver e expressar suas ideias através do teatro. Que manteve durante todos esses anos coerência e se pautou pela afirmação da diferença e da independência em relação ao mercado e às estruturas de poder, constituindo um espaço de resistência aos valores e padrões de comportamento estabelecidos pela sociedade capitalista.

Uma grande mulher que lutou e dedicou sua vida ao teatro político faleceu durante a edição desta revista. Sandra Steil atuou no Ói Nóis durante 15 anos e deixa para o universo seu legado de mãe, companheira, Atuadora e resistente. Evoé!

Qual a maior contribuição de Paulo Flores para o teatro brasileiro? A minha contribuição foi ter participado da criação do Ói Nóis

Página 37


Sextante 2015/2

Resistência

Cidade: lugar de mulher e resistência Bruna Andrade Maiury Winckiewicz

ENTREVISTA: TEREZINHA VERGO

Quando as mulheres deixaram de pertencer ao âmbito privado para tomarem a esfera pública, configurou-se um novo espaço de opressão e, consequentemente, de disputa. A presença das mulheres nas ruas da cidade é, em si, um ato de resistência. A Sextante conversou com a pesquisadora Terezinha Vergo, pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sobre gênero e resistência urbana.

Conte-nos um pouco sobre a sua trajetória como pesquisadora: como surgiu o seu interesse pelas questões de gênero como problema de pesquisa? Começo na década de 80. Após a formatura em Direito pela UFRGS, fui trabalhar como chefe de gabinete da vereadora Jussara Cony (na época PMDB). Como o movimento de mulheres estava em franca ascensão por conta do movimento de mulheres internacionalmente em luta, ONU declara a década da Mulher 75/85, quadro político de luta pela derrubada da ditadura, pelo retorno da democracia, por melhores condições de vida para trabalhadores e trabalhadoras, a luta sindical acirrando as disputas. Criam-se, pelo Brasil afora, muitos movimentos de mulheres com base mais popular e grupos de mulheres de reflexão, com identidade feminista, discutindo sexualidade e saúde, condições de trabalho e trabalho doméstico junto com as mazelas das Página 38

desigualdades e discriminações decorrentes. Da mesma forma, a violência contra as mulheres, perpetrada basicamente nos ambientes domésticos, ganha visibilidade nos espaços públicos e questionamento nas decisões judiciais. Ou seja, revela-se a situação de uma cidadania desprestigiada das mulheres. Na época, pouco ou quase nada do uso do conceito de gênero, que ganha força com a tradução da Joan Scott, feita pela professora Guacira Lopes Louro, «Gênero: uma categoria útil de análise histórica», de uso até hoje. Assim começa minha trajetória, criando, com outras mulheres, a União de Mulheres de Porto Alegre, entidade que buscava fazer a discussão da condição das mulheres de forma ampla, basicamente mulheres das periferias, bairros pobres com alta vulnerabilidade social, mas também mulheres trabalhadoras do centro da cidade e das fábricas (zona norte da cidade). O tema da violência contra as mulhe-

res, desde aquela época, será o mais gritante, o que necessita de maiores esforços de disputa com os organismos públicos – polícia, ministério público, juízes... Neste caminho acontecerá a Assembleia Nacional Constituinte, 1986/88, momento em que o movimento de mulheres atingirá um grau de articulação nacional muito grande, conquistando um texto constitucional com garantias de igualdade entre homens e mulheres. Na década de 90, sinto necessidade de refletir sobre a violência contra as mulheres, afastar-me um pouco da militância, praticamente cotidiana, e buscar outros pontos teóricos e metodológicos na academia que vinham discutindo e teorizando sobre esta questão. Entro em 1996 para o mestrado em Sociologia na UFRGS, pois o Direito não tinha linha de pesquisa nem interesse em discutir esta temática (acho que até hoje em dia). Quem tem acesso à cidade hoje? Por quê?

mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência

mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência

mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência

A cidade está mais democrática, em amplo espectro. Com a entrada das mulheres no mercado formal, antes majoritariamente masculino, a cidade, ou os espaços públicos, vão passar a contar com a participação maior das mulheres em diversos espaços como ônibus, ruas, restaurantes, elevadores, prédios públicos, universidades. Este movimento das mulheres dos espaços antes permitidos - casa, igreja, escola para espaços públicos carregará consigo todos os problemas vividos nos espaços privados. Daí a famosa frase de Kate Millet: ‘o pessoal é político’. Quem tem acesso? Quem tem direito ao acesso. Só que mesmo quem tem direito ao acesso não tem controle total sobre os espaços públicos. A blindagem em condomínios fechados, cercas elétricas e guardas privados nas ruas não impedem as violências que ocorrem dentro dos lares, por exemplo. Então, a complexidade da vida na cidade não é um problema de polícia. Mais do que isso: no fundo, decorre de uma estrutura com alto grau de desigualdade econômica e social, um contexto social movido por dinâmicas, diria que perversas, em que criam-se etiquetamentos para presumíveis «delinquentes» e presumíveis ‘vítimas’ (uso de bebidas, saias curtas, comportamentos inapropriados...). Como as relações de gênero se constroem e se refletem

no espaço urbano? Nas mais diversas dimensões. Nos espaços emque menos pensamos, está lá a dinâmica da desigualdade de gênero. Então, quando falamos de “relações de gênero”, identificamos relações desiguais de gênero, em que um – o masculino e suas qualificações – se sobrepõe e determina o que é ser o outro – o feminino. Dizemos, então, que nós, mulheres, somos heterodesignadas por quem até hoje teve o poder de dizer e fazer cumprir – socialmente falando – o que é ser homem e o que é ser mulher, principalmente nas sociedades eurocentradas e do hemisfério norte desenvolvido – os homens brancos, ocidentais...

tabelecida que permite este comportamento.

mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência

mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência

De que formas se dá a negação da cidade a partir da perspectiva de gênero? O primeiro traço que me vem à mente é a negação. “Você não existe para mim” – na fila de atendimento no comércio, a voz que não se escuta, o esbarrão na calçada. Depois, as formas mais visíveis do confronto, como xingamentos, não observação dos direitos fundamentais mais primários como o da dignidade, ofensas e violências – todas, da psicológica a sexual. Tudo isso partindo do pressuposto de que quem agride se sente no “direito” de agredir o/a outro/a. Este é o absurdo, não gosto desta expressão, e sim a conivência social es-

O que movimentos como a Marcha das Vadias e as organizações de mulheres, como o Vamos Juntas, significam na disputa das mulheres pelo direito à cidade? A Marcha das Vadias pode auxiliar na consciência dos corpos das pessoas e o respeito a estes corpos e seus desejos. Neste sentido, sou super apoiadora do movimento. Eis que fui questionada sobre quem se reunia na marcha, prioritariamente composta por jovens das classes médias, estudantes, não incluindo as jovens da periferia que não se sentem confortáveis com a expressão “vadias” porque elas são sempre as “vadias” quando se deslocam dos seus ambientes. Achei muito interessante a observação. A Parada Livre ou Parada Gay também pode ser considerada uma ferramenta de disputa do espaço urbano pelas mulheres trans? Também movimento que vem em decorrência de uma ampla mobilização na década de 90 e início de 2000, mundialmente em torno do reconhecimento das identidades. Muito importante, mas tenho visto uma disputa por agenda e recursos públicos que, em vez de somarem esforços, se dividem. Creio que faz parte da

mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência Página 39


Sextante 2015/2

Resistência

mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência

mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência

luta política, quem tiver mais voz e articulação leva o troféu. A Parada Gay ou Parada Livre e todo o seu significado está no “topo da onda”, mas não quer dizer que as questões que envolvem o “ser mulher” no mundo estejam resolvidas, olhamos ao nosso redor que os feminicídios continuam ocorrendo.

redes sociais, é possível já notar mudanças na relação espaço/gênero? Quais? A pressa é a nossa inimiga número 1. Só olhar os movimentos neofascistas por aí. Com isso, quero dizer que meu ânimo com as vitórias é limitado pelo tempo que elas durarem. Espero não haver retrocessos, pois avançamos muito nos direitos e garantias, como a troca de nome pelas mulheres transexuais, enfim, tantos reconhecimentos legais. E a vida tem nos mostrado que há muita resistência para com estas «pequenas vitórias».

Que outros casos interseccionais de resistência urbana sob a perspectiva de gênero você destacaria? A tolerância além da polarização masculino/feminino tem que ser construída em todos os espaços públicos e privados. O respeito à dignidade da pessoa humana é o grande desafio para podermos viver todas e todos juntos. A percepção de que podemos fazer a diferença em quaisquer e todos os lugares é um caminho. Qual a relação entre corpo e resistência nesses movimentos? Os corpos são construídos/ constituídos socialmente. E só fazem sentido em relação a outros corpos, a vida em sociedade. Então, estes movimentos de identidades devem perseguir os ideais de justiça e reconhecimento pelos demais segmentos sociais. Ninguém pode ser feliz sozinho. A partir desses movimentos e da visibilidade que ganham, principalmente nas

mulher e resistência mulher e resistência Página 40

Como que as políticas públicas podem atuar para garantir às mulheres igualdade no acesso e usufruto da cidade? Garantindo na prática os direitos que as mulheres conquistaram nas leis. O que significa garantir na prática: ações de prevenção, ações adequadas de atendimento quando as mulheres, enfim, as pessoas, procuram atendimentos – polícia, saúde, assistência social. Os olhares destes/as profissionais têm que ser mais inclusivos e menos julgadores. Não estão ali para, em primeiro, julgar quem precisa de atendimento e a qualidade do atendimento conforme a pessoa que está sendo atendida. O princípio primeiro é o do respeito à dignidade humana. Ponto.

mulher e resistência mulher e resistência

mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência mulher e resistência

A Marinoni não para Nícholas Gheno

O Taquaryense, de longe, não se parece com um jornal deste século. Em vez de computadores conectados, ligações frenéticas e o digitar dos teclados; o silêncio da composição intercalado pelo barulho da rotativa. Sons não muito diferentes dos da cidade de pouco mais de 26 mil habitantes que abriga a redação-oficina do jornal em plena praça central. Taquari (RS), município da Região dos Vales, desenhada pelo curso do rio homônimo, tem orgulho de sua história, de seu rio e de seu “Velho Timoneiro”. Sob a luz incandescente, João da Rosa Rodrigues (42) disA impressão do periódico é põe, pacientemente, cada letra feita em uma rotativa da marca no componedor. Em um trabalho Marinoni, adquirida em 1910 do artesanal, vai formando frases, jornal Correio do Povo. A máquicolunas e dando forma às página tem origem na fábrica de seu nas do jornal. Há 20 anos, João inventor, o parisiense Hippolyte largou a carreira de técnico em Marinoni. Em meados do sécuquímica para ser o tipógrafo, dialo 19, Marinoni revolucionou os gramador e impressor do jornal métodos de impressão, lançanO Taquaryense. do um modelo de O segundo jornal “Nossa razão de rotativa capaz de existir aqui é a mais antigo do Rio imprimir 10 mil comunidade de exemplares por Grande do Sul em Taquari. Quando hora, necessitancirculação não eu monto o jordo de apenas três nal, sei que estou abandona a antiga operários. Na refazendo isso pe- oficina, a impressão em dação-oficina de las pessoas que O Taquaryense, rotativa de tipos nos leem e para João, com a ajupreservar a nos- móveis e os princípios da de um motor sa história. Isso é editoriais desde sua elétrico, imprime muito gratificanfundação. sozinho as edite”, ressalta Roções do jornal endrigues enquanto exibe sua hatregues todas as quartas, de porta bilidade em identificar a caixa de em porta, aos 360 assinantes. cada letra.

Foi em julho de 1887, quando Brasil ainda era Império e a escravidão não fora abolida que o visionário Albertino Saraiva, então com 22 anos, fundou o semanário que dedicaria suas páginas a campanhas pioneiras para o desenvolvimento da região e do país. Suas notícias registrariam as mudanças nos rumos da história, como na edição de 20 de novembro de 1889 na qual o “Orgam Republicano” celebra a proclamação inesperada da República. “É verdade que o Brazil é o paiz das transformações bruscas; mas isso não obsta a que seja considerada excepcional a que acaba de dar-se. Dê-nos a República o progresso que necessitamos, e temos convicção que nol-o dará, e todos bemdirão.” Além de abrigar a sede do jornal, a oficina-redação guarda um arquivo com todas as edições Página 41


Sextante 2015/2 d’O Taquaryense desde sua fundação e o prelo no qual Albertino e sua esposa, Joanna, imprimiam as edições nos primeiros anos de funcionamento. Como boa parte dos proprietários de pequenos jornais da época, Albertino acumulava as funções de redator, tipógrafo, paginador, impressor e distribuidor. Cabia à sua esposa Joanna a tarefa de organizar as páginas no formato determinado. De 1887 até hoje, o semanário é conduzido pela própria família Saraiva. Com a morte do fundador Albertino, em 1928, seu filho Mário assume em seu lugar, sendo que, mais tarde, em 1947, passa a contar com a ajuda do irmão Plínio Saraiva, Pery Saraiva, Nardy de Farias Alvim e João Carlos Bizarro Teixeira. Nove anos mais tarde, em 1956, a cegueira impossibilita que Mário atue no semanário. A falta de um espaço físico adequado também contribui para a triste decisão de tirar O Taquaryense de circulação. A Marinoni do “Velho Timoneiro” foi aposentada por 6 anos, quando, em 1962 retorna em um novo espaço construído com ajuda da comunidade, a atual redação-oficina da Rua Sete de Setembro, em frente à Praça Central. Em 1990, Plínio Saraiva assume como diretor d›O Taquaryense, dando um novo ciclo ao periódico. O jornaleiro, como gostava de ser chamado, “nasceu com tinta no nariz”, pois apenas um corredor separava a casa da família Saraiva da oficina. O cheiro de tinta o acompanharia por toda sua jornada. Até a última semana de sua vida, em 2004, então com 101 anos, Plínio cumpria diariamente o ritual de se dirigir nas primeiras horas do dia à redação-oficina. Não se importava de, em tempos de dificuldades, aportar recursos de sua própria aposentadoria no negócio. MesPágina 42

Resistência mo com dificuldades pra enxergar e ouvir, continuava a escrever e manchar as mãos de tinta. Após a morte de Plínio, a sua filha, Flávia Saraiva Dias, assumiu a direção. Com dificuldades financeiras para dar continuidade ao negócio, hoje O Taquaryense sobrevive com a ajuda dos assinantes e anunciantes. Possui um conselho de administração composto por colaboradores voluntários da comunidade. “É uma luta diária, mas temos muitas pessoas apaixonadas pelo Taquaryense e que nos ajudam a continuar. Aos poucos, o jornal vai passando da família para a comunidade de Taquari, nossa razão de existir desde o início”, conta Flávia. Em seu livro A Galáxia de Gutenberg (1962), Marshall

McLuhan diz que “a tipografia não é apenas tecnologia, mas, ela própria, recurso natural ou produto básico, como o algodão ou a madeira ou o rádio: e, como qualquer bem de produção, modela as relações intersensoriais do indivíduo, bem como os padrões de interdependência comunal ou coletiva”. O Taquaryense mostra que, seus tipos gutenberguianos também não são apenas matéria, mas a memória coletiva e afetiva de um povo. No editorial da edição de 28 de julho de 2007, ressalta “que não recusa a contribuição da modernidade, mas está firmemente decidido a preservar as diretrizes éticas e jornalísticas, a fisionomia editorial, o mesmo amor à terra taquariense – razão única de seu existir”.

CONTO

são Pedro, são Paulo Gabriel Nonino

Todo dia. Cadeira de praia. Tecido, alumínio, bicolor. Verde e azul como as cores que pintavam o prédio abandonado da esquina. As lascas de tinta sopradas pelo zéfiro. Agora nu, só reboco e concreto. O velho senta embaixo da marquise do mesmo bar há anos. À sombra da lua que rebate no prédio. Cada vez mais pichado cada vez mais enraizado. Raízes da paisagem cosmopolita. Nada de novo debaixo da luz amarela do poste. Há muito, a parede não mais alva. Mas cinza e escura. Bolor e sujeira. Ainda serve de tela. Clama-se a fabulação dele. Instala fios, tomadas móveis, cabos coaxiais, calcula distância, arruma contraste e foco, limpa a lente, busca sempre o projetar perfeito. Todo dia. A foto já difícil de se discernir. A parede do prédio que parece recusar o toque frio dos pixels. Ancora-se na esperança infinita de se sentar frente à foto gigantescamente ampliada e receber algum chamado. Figura mitológica para os transeuntes, moradores, bêbados e ocasionais curiosos. Minotauro que encontrou a saída de seu labirinto. Deixou de raspar as chinelas sobre o concreto frio daquele dédalo e resolveu tentar a vida em seu exterior. Ou seria o trajeto o próprio labirinto do qual não consegue sair? – O senhor fala? Quem são?

Se falasse, já teria gritado. Confunde-se o emudecimento com mau humor, carranca. Eremita na própria esquisitice. Ignoram o motivo primordial de seu encolhimento, de sua semiagorafobia. Protagonista de tudo o que acontece não é ele, mas a foto – ou o projetor? A projeção mal discernida na parede pichada. – O moço já deu a ordem. Ou fala ou vai arrancar de vez todo o equipamento. – Por quê? Sei eu. Alguma lei, alguma reclamação, alguém se incomoda. – Por que não fala? Quem são? dizem que é violento, dizem que matou e são as vítimas que projeta na parede, dizem que a polícia não quis prender, dizem que é senil e fugiu do sanatório da cidade, dizem que a cidade não liga, dizem que já tentaram até ligar pra polícia mas dizem que por um tempo eles preferiram deixá-lo ali, dizem que acabou essa preferência, que a coisa tá começando a ficar feia pro lado dele, os homens baixaram uma lei que proíbe esse tipo de coisa, dizem que perturba a paz, dizem que incomoda os transeuntes, que tem até abaixo-assinado, mas todo mundo diz que não se importa. – Por que não fala logo? É mudo? E se for mudo? Quem são? na tentativa vã de explicar o

desespero que sente, chega a fingir paz interior. por isso a quietude. dor, imenso trauma que o fez ficar mudo para sempre. promessa a São Pedro (ou São Paulo?), só cumpre quando aparecer a pessoa. então eles desapareceram? dizem que sim. saiu para comprar pão e nunca mais voltou. saiu para comprar cigarros e foi sequestrado. saiu para trabalhar, bateu o carro e morreu. saiu. – É um manifesto, então? Uma forma de protesto? Pede a volta de quem não tem como voltar? Quem são? diz que é pra ser hoje, o dia. Alguém avisou algo? Ninguém se perguntava. Foram discretos e barulhentos, os brigadianos! Chegaram sem querer fazer alarde. De pau duro, porém. Excitados frente à fama do velho. Alguém avisou algo? Voz trovejante, juridiquês inútil. Sai por bem ou por mal. O velho... calado. Imóvel. Como o artista de rua do centro que se pinta de prata e fica horas no sol a pino. O primeiro baque foi quando? Alguém avisou algo? tenta tirar aquele cabo, procura a tomada, não, porra, a tomada, procura a tomada, isso, deu? não? filho da puta, faz o que então? arranca os cabos puxa os fios, porra! não consigo caralho ajuda aqui, ajuda aqui. não sai. tá ficando feio já hein olha o pessoal rindo aí, vamo resolver isso aqui de uma vez, então, foda-se o velho, não se moveu até agora, Página 43


Sextante 2015/2 quebra essa porra, quebra essa porra. Mas teve bomba de gás lacrimogênio, mesmo? Bala de borracha, tipo batalha campal? O primeiro baque na máquina fez o velho sangrar. Levantou da cadeira vermelho, tremendo e sangrando, possuído por um demônio, minotauro incomodado em seu labirinto. Jogou-se em cima do projetor Epson. Mas bater em velho não fica feio? Porrada no projetor, porrada no velho, sangue no asfalto, faísca nos fios, pixels deformados na parede, mão retorcida agarrando os cabos. Estragou o projetor Epson, apagou a imagem da parede. Os brigadianos lá, de pau duro, concluindo o trabalho. Era caco pra todo lado. Na fumaça densa, não se sabia o que era ferro, plástico, osso, pele ou sangue. Quebraram tudo mesmo. Enfiaram o cassetete e os cacos do Projetor Epson em todos os orifícios do velho. Boca, nariz, orelha, cu. A cadeira de praia que era bi virou tricolor. Verde, azul e vermelho do sangue que escorria sem parar. A parede, até então só reboco e pichação, agora tingida do rubro indelével. Pera aí, pera aí, chamaram a porra da brigada só pra isso? – Só seguimos ordem. Incomodava, não incomodava? Trancava o trânsito. Não dava pra passar. Não dava pra seguir em frente. bastava uma multinha. só um susto. era velho, né, tinha que

Resistência prender, só. também, quem mandou se jogar no projetor. meu bar todo fudido agora, quero ver quem vai limpar essa porra toda. e não falava nada, não explicava nada, não explicava nada! Com a ereção já contida, os brigadianos tentavam limpar o local (a consciência ou a rua?). De repente, como quem acorda da vida dentro de um pesadelo, todos ficaram atordoados. Uma multidão de rostos escandalizados e feridos emocionalmente por terem de enfrentar o ininteligível, o não catalogável e o não classificável. Exigiam impacientes uma explicação. O velho, jazido entre pedaços metálicos do retroprojetor, agonizando com fatias de vidro em todos os orifícios possíveis, resistia travestido de um único manifesto: o de não ter de se explicar. ______________________ – E aí a Hidra, eu começo. Com águas escuras. Trabalhei no banco Meridional. O meridiano. Eles querem que eu trabalhe. Fui aposentado com salário mínimo e eu trabalho sem me pagarem. Querem me botar no psiquiatra. Querem me bater. Querem que eu trabalhe à força, entendeu? Por que é que tem que ser assim? Aí o padre me crucificou, aqui na igreja, com coroa de cristo. Se vocês querem, me crucifiquem! Ele me crucificou. Saiu água das minhas mãos. O padre me tirou da cruz e, por causa da coroa

de cristo, pingava sangue, aí eu fiquei fraco, sabe? Por isso, diz que ele pecou, diz que ele morreu. Frei Arnaldo. Aí nem o resplendor nem o esplendor foi reconhecido. Eu fui crucificado ali. Aí veio um eclipse da lua, a regressão. A regressão era a comitiva. Qual comitiva? A comitiva da civilização. Somos bichos, dinossauros, a hidra, tudo da Grécia antiga. Eu sou da Grécia nova. Uma mariposa. Tem mariposa azul, amarela, marrom, bege. Tem muita cor. Tem até mistura. Marrom e verde. E tem o brilho! Mas o brilho é do sol. Aí vieram os alemães e estragaram minha cara, estragaram o meu corpo. Tomei veneno, tomei água sanitária, caiu meteoro na minha casa, peguei o termômetro, aquele troço que mede o calor, tinha mercúrio, tomei mercúrio. Ou eu sou a vênus do esplendor, ou a abóboda celeste. Minha mariposa é das misturas das castas, e a mariposa do meu pai tem um macaco desenhado. O corpo dela é redondo que nem o sol. Aí meu pai tava desencarnando, saindo do corpo, arquejando, morrendo. O cachorro uivou. O cachorro começou a uivar porque era conterrâneo às cadelas de áries. Os cachorros sabem quando a pessoa vai morrer, eles uivam. Já fui pro subterrâneo, já fui pro céu, já fui pro grau. Saí de todas. Agora voltei. Agora voltei e o que é que sobra pra mim? São Pedro, São Paulo? Uma fumaça? É isso que sobra pra mim? É isso? são Pedro ou são Paulo?

SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? SÃO pEDRO OU SÃO PAULO? Página 44

Uma guerra em três atos

Vitória Lemos

A vida é apenas isto: um encadeamento de acasos bons e maus, encadeamento sem lógica, nem razão; é preciso a gente olhá-la de frente com coragem e pensar, mas sem desfalecimentos, que a nossa hora há de vir. Florbela Espanca Era 2011. Beatriz* marcou uma consulta por conta de uma infecção urinária, uma das muitas que tinha ao longo de um ano. Já tinha feito todos os tipos de tratamento conhecidos, mas o problema era recorrente desde sua juventude e persistia. A médica receitou um antibiótico que Beatriz já estava acostumada a usar. Foi para casa. Alguns dias depois, notou o surgimento de uma alergia nos braços e no peito. A febre não cedia e os gânglios linfáticos do pescoço estavam inchados. Marcou outra consulta. Infelizmente, segundo a médica, o antibiótico não estava sendo eficaz contra a infecção e, por isso, a temperatura dela não estava voltando ao normal. E, desta vez, o remédio estava causando uma reação alérgica – as tais manchas avermelhadas no corpo –, portanto seria substituído por outro. Beatriz discordou. Estava acostumada ao medicamento, que ela havia utilizado algumas vezes por conta do mesmo problema. O primeiro resultado da internet aponta “Sífilis – substantivo feminino de dois números: doença infecciosa que evolui lentamente em três estágios, geralmente transmitida por conta-

to sexual, e mais raramente por contaminação fetoplacentária, causada pela bactéria Treponema pallidum e caracterizada por lesões da pele e mucosas”. A sífilis pode permanecer inativa no organismo durante anos, e seus sintomas somem sem tratamento. Entre as consequências capazes de advir do não-tratamento da doença estão inchaços na pele, ossos, fígado e outros órgãos que, se não tratados, podem evoluir para tumores; complicações cardiovasculares; aumento das chances de aborto e possibilidade de transmissão da doença ao bebê; problemas neurológicos como AVC, surdez, problemas de visão e perda da função cerebral. Beatriz já tinha quase certeza do resultado positivo quando pediu uma requisição para o exame VDRL, que faz o diagnóstico da sífilis. A médica, que ainda discordava dessa possibilidade, pediu testes completos para vários tipos de doenças sexualmente transmissíveis. Quando abriu o resultado do check-up, ela conta, passou os olhos pelos nomes de todas as doenças para as quais ela havia sido testada. Negativo para sífilis. Positivo para HIV. Ela não chorou.

Perdão ... assim como o risco leva a mais risco, a vida, a mais vida, e a morte, a mais morte. Markus Zusak

Foi em 1981 o primeiro caso registrado de Aids, quando Beatriz ainda aproveitava a infância no interior do Rio Grande do Sul. Exatamente três décadas depois, ano em que ela descobriu sua condição, outras 38.775 pessoas foram notificadas como soropositivas no Brasil. Um total de 20,2 casos a cada 100 mil habitantes, de acordo com dados do Governo Federal. Envolta em uma série de mitos, a doença evoca preconceitos sobre o suposto grupo de risco: homens homossexuais, usuários de drogas e pessoas com muitos parceiros sexuais em um curto período de tempo. Beatriz, mulher e heterossexual, havia tido apenas dois companheiros na vida e nunca fez uso de drogas injetáveis. Ela faz parte de uma estatística que vem se delineando bastante nos últimos anos: embora o número de homens infectados ainda seja maior, a razão Página 45


Sextante 2015/2

entre sexos feminino e masculino nos portadores do vírus da imunodeficiência humana vem diminuindo. Em 1989, para cada caso de Aids em mulheres, havia seis casos registrados de Aids no sexo masculino. Vinte e dois anos depois, a razão era de 1,7 casos em homens para cada caso no sexo feminino. Poucos dias depois de saber da doença, Beatriz deu a notícia para os dois ex-parceiros com quem teve relações – um deles foi quem transmitiu o vírus a ela, por desconhecer a própria sorologia. Sentiu alívio quando descobriu que o outro não havia contraído o HIV. – Mais difícil do que aceitar estar doente, mais difícil do que receber o resultado, o mais difícil de tudo foi me perdoar. Eu passava 24 horas por dia pensando nisso. Perdoar-se pelo erro que resultou na infecção foi a pior parte. Mesmo com acompanhamento psicológico – fundamental, ela ressalta –, Beatriz levou mais de um ano para superar o sentimento de culpa e os pensamentos que a assaltavam. Às vezes, ainda os tem, mas consegue afastá-los para encarar a vida. Segundo ela, “a pior parte para o portador é o preconceito. E, quando tu te descobre portador, vem a falta de perdão também pelo preconceito com que tu foi educado”. Quando finalmente se absolveu, no verão de 2014, quis contar para a primogênita. Levou ainda alguns meses para fazê-lo até que, na metade do ano, a chamou para uma conversa em que as vozes das duas eram trêmulas. – Eu tinha um medo enorme de contar e as pessoas me julgaPágina 46

Resistência

rem. E isso era uma coisa que a minha psicóloga me dizia muito: “as pessoas que te amam, te amam de qualquer jeito. Elas não estão aqui para te julgar”. E eu queria muito contar para a minha filha. No momento em que eu me perdoei, foi quando brotou aquela vontade de contar. Desde então, quase todas as pessoas próximas a ela já sabem que ela possui Aids – com exceção da mãe, a quem Beatriz nada disse para preservar do choque de descobrir, aos 80 anos de idade, ter uma filha soropositiva. Mas ainda não é um assunto que ela trate abertamente, justamente por conta das consequências pelas quais suas duas filhas menores podem vir a passar. Ela teme que as meninas, atualmente com 11 e 12 anos, sofram preconceito por ter a mãe soropositiva. – Tu cresce com isso [o preconceito contra os portadores de HIV] na tua cabeça. Então é muito difícil tu tirar isso. Tanto que a minha preocupação hoje não é as pessoas saberem que eu tenho HIV, porque eu já me resolvi com isso. A minha preocupação é o que as minhas filhas vão sofrer de preconceito por causa disso, das pessoas saberem que a mãe delas é portadora de HIV. O problema não sou eu. É o contexto social em que a Aids é colocada. Planos A vida não é mais do que uma contínua sucessão de oportunidades para sobreviver. Gabriel García Márquez T-CD4 são linfócitos que defendem o organismo de ameaças – e são justamente eles que são

atacados pelo HIV. O vírus entra na corrente sanguínea e invade estas células, que passam a replicá-lo e, assim, perdem sua função de defesa. Com a imunidade baixa, as chamadas doenças oportunistas passam a ser um risco. Em geral, é recomendado o início do tratamento com os antirretrovirais, que evitam que a AIDS se desenvolva. Para Beatriz, o tratamento começou em agosto de 2014. As três pílulas que compunham o coquetel eram tomadas todas as noites – hoje, ela toma só uma cápsula que une os três medicamentos. Por sorte, não teve sintomas muito violentos – é comum que, nas primeiras três semanas do coquetel, o paciente sinta enjoos e tenha vômitos e diarreia. Beatriz relata que sentiu apenas sonolência. Algum tempo depois, fez novos exames e, ao receber o resultado, ligou para a filha mais velha. Usou para si a expressão que indica quando o medicamento tem o efeito esperado, reduzindo a quantidade de vírus presente no organismo a um valor que não pode ser percebido por exames clínicos: – Filha, estou indetectável! Era a merecida vitória de uma batalha física e psicológica que se arrastou por quatro anos. Saúde restabelecida, imunidade alta, Beatriz poderia voltar a ter uma vida comum. Mas, menos de um ano depois, mais uma luta: em casa, abriu um envelope que continha o resultado de uma biópsia. A caçula olhou para a expressão da mãe e perguntou o que tinha acontecido. Ouviu um carinhoso “nada, filha”. Na verdade, ela tinha acabado de descobrir que estava com câncer de mama. Por ser soropositiva, o câncer poderia evoluir mais rapidamente e, por isso, a cirurgia era urgente. Marcou uma consulta

Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos

Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos

Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos com o mastologista e lá descobriu sempre acompanhada pela mãe e que precisaria retirar todo o seio pelas irmãs. Aos poucos, a dor foi Uma guerra em três atos esquerdo. Ainda assim, também cedendo. O tempo passava, mas Uma guerra em três atos por ser soropositiva, as chances o resultado do exame não veio no Uma guerra em três atos de reincidência eram maiores. O dia esperado. Uma guerra em três atos recomendado foi a retirada comEm meio a tanta expectativa, pleta das duas mamas. A mastec- o aniversário da filha caçula não Uma guerra em três atos tomia foi marcada para dali duas teve clima de data comemoraUma guerra em três atos semanas. Ela não chorou. Beatriz tiva. Beatriz ainda aguardava a Uma guerra em três atos antecipava e temia a quimiotera- ligação do médico. Por volta das Uma guerra em três atos pia, que baixa a imunidade dos nove da noite daquele 14 de oupacientes, por ser soropositiva. tubro, a espera acabou – ansioUma guerra em três atos Teve medo de morrer. sa, ela mesma pegou o telefone e Uma guerra em três atos – O câncer associado ao HIV discou o número do médico. Ele Uma guerra em três atos me deu um pavor muito grande. atendeu e deu a notícia de que, Uma guerra em três atos Me deu medo de não resistir. Foi por ter descoberto o câncer cedo, um pavor maior do que descobrir ela não precisaria fazer nenhuma Uma guerra em três atos que eu tinha HIV. Eu vi planos sessão de quimioterapia nem de Uma guerra em três atos arrancados de mim. radioterapia. Uma guerra em três atos Planos em curto prazo, como Dentre as três notícias mais Uma guerra em três atos ir à praia quando o frio abrandas- marcantes que Beatriz recebeu se em Porto Alegre, se tornaram nos últimos cinco anos, foi nesta Uma guerra em três atos impossíveis. Ela não sabia o que que ela chorou. De alívio e espeUma guerra em três atos seria do Natal, das comemora- rança. Uma guerra em três atos ções de Ano-novo, das férias es– Eu não imaginava o quanto Uma guerra em três atos colares das duas filhas pequenas. as pessoas me amavam. O quanUma guerra em três atos Continuou trabalhando como to elas queriam o meu bem, queuma forma de driblar a mente riam estar perto de mim. O quanUma guerra em três atos para não pensar na própria con- to elas me aceitavam da forma Uma guerra em três atos dição até que, no sétimo dia de que eu sou. Uma guerra em três atos um outubro rosa, retirou os dois Hoje, Beatriz está bem. Ainda Uma guerra em três atos seios no Hospital de Clínicas. tem cinco anos de medicamentos A semana seguinte foi longa contra o câncer e uma vida toda Uma guerra em três atos como meses. Beatriz esperava o contra o HIV. Mas já recuperou a Uma guerra em três atos resultado da biópsia do tumor, saúde. E os planos. Uma guerra em três atos que determinariam por quantas Uma guerra em três atos sessões de quimio e radioterapia ela precisaria passar. Quanto me*Nome trocado para preserUma guerra em três atos nos fizesse, maiores suas chances var a identidade da entrevistada. Uma guerra em três atos de sobreviver. Saiu do hospital Uma guerra em três atos no sábado seguinte à cirurgia. Uma guerra em três atos Dali em diante, só restava esperar. Movendo-se com dificuldaUma guerra em três atos de, ainda com bastante dor, ela Uma guerra em três atos voltou a habitar a própria casa, Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Uma guerra em três atos Página 47


Sextante 2015/2

Resistência

As Três Fases de César Rafael Santanna Tudo começou com um nome. Paula, esse era o nome. César lembra que acordou naquele sábado... Ou era um domingo? Definitivamente era final de semana. Ele lembra que acordou tarde, por volta das dez da manhã, após ser sacudido, beijado e gentilmente esbofeteado pela sua mulher. Era um costume entre os dois, ele conta. Quem acordava primeiro sacudia, beijava e dava uns tapas naquele que ainda dormia. Tapinhas gentis, ele ressalta, mudando suavemente o tom de voz. Acontece que César nunca era o primeiro a despertar. Logo, sempre era a parte sacudida, beijada e esbofeteada da relação. Pois bem, César lembra que era um final de semana porque sua mulher estava em casa às dez da manhã. De segunda a sexta, ela saía pouco antes do sol nascer, rumo à Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, onde trabalhava. César se lembra de ouvi-la perguntar se ele a acompanharia na caminhada. Lembra-se de responder prontamente: “Não”. Ele se lembra de vê-la entrando no quarto. Usava tênis branco, calça de abrigo cinza e moletom preto. Seus cabelos, meio dourados, meio grisalhos, caíam suavemente sobre os ombros, contrastando com o preto

Página 48

absoluto da camiseta. Lembra-se de que pensou numa palavra. A única que percorria sua mente todas as vezes em que a observava com alguma atenção: “Linda”. César abre a carteira e mostra uma foto da moça. Em seguida, guarda cuidadosamente a imagem e devolve a carteira ao bolso interno de seu casaco de lã azul marinho. “Ela é a pessoa mais linda que eu conheci nesses 75 anos”, diz. “Mas enfim, voltando...” César lembra que estava exausto, como se não dormisse há dias. Exausto física e mentalmente. Como se tivesse passado as últimas 48 horas ininterruptamente lendo algum livro pseudointelectual de merda enquanto trabalhava na construção de um navio. “Por que não quer caminhar?”, ela perguntou. “Preciso dormir um pouco mais”, ele respondeu. – Tá doente?. – Não sei, talvez. – Então descansa. Vou trazer alguma coisa pra ti. – Obrigado, Paula.

I. O Medo César se lembra do silêncio após o agradecimento. Lembra-se do sentimento de estranheza, do enjoo, do frio na barriga.

Como se acordasse de um pesadelo kafkiano e percebesse que acabara de se tornar um inseto em tamanho humano. “Aqueles segundos tiveram a duração de umas seis vidas”, ele conta. Nesses segundos, César concebeu a terrível certeza de que o nome dela não era Paula. Nesses segundos, César encarou o pânico de não se lembrar do verdadeiro nome dela. “SOFIA!”, exclamou. “Obrigado, Sofia. Eu quis dizer isso. Obrigado”, corrigiu. Sofia foi caminhar, César não quis mais dormir. Levantou-se e foi até a sacada. De lá, a viu atravessar a rua em direção ao Parque da Redenção, onde eles costumavam caminhar aos finais de semana, em manhãs agradáveis como aquela. Ele não se lembra do que aconteceu entre a troca de nomes e a saída de Sofia. Só se lembra que sabia que ela estava irritada. “Acontece que, antes de me casar com ela, namorei por três anos com uma menina chamada Paula”, conta. “Nada disso vem ao caso, mas a Sofia detestava a Paula. Tinha os seus motivos. Acho que foi por isso que ela ficou irritada. Mas, como eu disse, nada disso vem ao caso”, completa. César ficou preocupado. Continuava cansado, mas o sono havia desaparecido. Que bosta tinha acabado de acontecer? Seria

a velhice? Caducara de vez? Seria algo sério, alguma esclerose, algum tipo de demência? César se lembra de que Sofia contava histórias sobre alguns de seus pacientes. César se lembrou do caso de um cara que começou a trocar as letras. Sofia tinha-lhe contado, durante a última viagem deles a Buenos Aires. O cara começou trocando os nomes dos parentes. Depois, trocava o nome de quase tudo: comidas, animais, ruas... Daí, passou a trocar o som de algumas letras. T pelo F, depois R pelo L. “Farfaruga, fomafe, lelógio, latoeila”. Uns meses depois, a mãe do cara o encontrou no banheiro, esfregando o próprio cocô na cara. Na sacada, César repassou na cabeça todos os pequenos problemas percebidos durante os meses que antecederam a fatídica troca de nomes. Seu lado hipocondríaco, há tanto tempo adormecido, despertou como um vulcão em erupção, cuja lava escorria pelas veias das colinas em direção a alguma praia asiática paradisíaca repleta de turistas que só queriam dormir mais um pouco naquela manhã bacana. César se lembrou de que, nos últimos tempos, estava pouco atento aos dias da semana. Lembrou-se de pelo menos quatro casos de “hoje é terça, né?” proferidos em quartas ou quintas-feiras. Percebeu que havia diminuído o ritmo de trabalho no escritório de advocacia onde trabalhava, e que não havia terminado os últimos quatro livros que começou a ler. Um deles era bom. Orgulho e Preconceito, da Jane Austen, re-

comendação da filha mais nova. Ele não sabia por que havia parado na metade, na parte do baile, onde a mocinha dançava pela primeira vez com o cara rico e meio babaca. Então Sofia voltou, visivelmente preocupada. Eles se sentaram na cama e conversaram por horas. César lembra que ela o convenceu a ser atendido, naquele mesmo dia, por um médico amigo dela. “Bom, vou pular as consultas, que eu não lembro quantas foram, e partir para o resultado”, diz César. Após algumas consultas e muitos exames, César foi diagnosticado com a Doença de Alzheimer. “Pela primeira vez, meu lado hipocondríaco foi substituído por uma doença de verdade”.

II. A Doença O médico explicou para César que a evolução dos temidos sintomas da doença se dividiria em três etapas: leve, moderada e grave. Ele estava na fase leve. Isso era bom. É difícil ser diagnosticado no início da doença, porque as pessoas geralmente “acham que é só velhice”, contou o médico. César não se lembra do nome do médico. Mas se lembra de que concordou. Tinha achado que era velhice mesmo. O doutor continuou a explicação. Na fase leve, ocorrem lapsos de perda de memória recente, dificuldade para encontrar palavras, desorientação em relação a tempo e espaço, dificuldade para tomar decisões, perda de inicia-

tiva e motivação, agressividade e sinais de depressão. César se lembra do frio na barriga que sentiu ao perceber que todos os sintomas, em maior ou menor escala, batiam. O médico continuou. Na próxima fase, a moderada, as dificuldades com atividades do dia a dia ficam mais evidentes. A memória fica mais prejudicada, ocorrendo esquecimentos frequentes de fatos importantes, como nomes de pessoas próximas. O paciente torna-se incapaz de viver sozinho, de ser independente. É incapaz de cozinhar, cuidar da casa, fazer compras. Até a higiene pessoal deve ser supervisionada. Perde-se o apetite sexual. Falar e se expressar com clareza torna-se uma tarefa cada vez mais complicada. Ocorrem bruscas alterações de comportamento, como agressividade, irritabilidade e inquietação. Ideias sem sentido, de desconfiança ou de ciúmes, tornam-se frequentes. Passa-se a ter alucinações sonoras e visuais. César sente a espinha congelar e o estômago revirar ao perceber que já havia manifestado um dos sintomas da fase moderada. Havia se esquecido do nome da mulher. O médico prosseguiu. Na fase grave, a memória é profundamente prejudicada... Incapacidade de registrar novos dados, aprender coisas novas... Extrema dificuldade na recuperação de memórias antigas e no reconhecimento de parentes, amigos e locais conhecidos... Incontinência urinária e fecal, com comportamento inadequado – “Nessa hora, me lembrei do cara

Página 49


Sextante 2015/2

As Três fases de césar As Três fases de césar As Três fases de césar As Três fases de césar As Três fases de césar As Três fases de césar que esfregou merda no rosto”, último sorriso, que foi antes da As Três fases de césar conta César – e dificuldade para última conversa. Do último beijo, As Três fases de césar se alimentar... Dificuldade para que foi antes do último sorriso. entender o que se passa à sua vol“No verão de 2012, ela desAs Três fases de césar ta... Dificuldade para se orientar cobriu que tinha câncer no úteAs Três fases de césar dentro de casa... Dificuldade para ro. Dez meses depois, a perdi. se locomover... “Dificuldade pra Descobriu tarde demais, num As Três fases de césar fazer qualquer merda, basica- estágio muito avançado. Foi horAs Três fases de césar mente”, completa. rível, horrível, horrível. Sabe, eu César se lembra de que, an- sentia uma espécie de conforto As Três fases de césar tes mesmo do médico terminar por saber que eu estava doente. sua explicação, já havia decidido Significava, na minha cabeça, As Três fases de césar que não autorizaria sua entrada que eu morreria antes dela. Ela As Três fases de césar na fase grave. “Pensei que, se eu era mais nova que eu, muito mais não morresse antes, me mataria saudável, dificilmente pegava um As Três fases de césar quando percebesse a chegada do resfriado ou qualquer doença, caAs Três fases de césar último estágio da doença. Mante- minhava na praça todos os dias, nho a decisão até hoje”. se alimentava melhor, não bebia, As Três fases de césar não fumava... Parecia lógico que As Três fases de césar eu morreria antes. A ideia era III. A Luta confortável porque significava As Três fases de césar “Tem cura?”, perguntou um que eu não ficaria sozinho. Eu teAs Três fases de césar apavorado César. “Não”, respon- ria ela comigo, até o fim, sempre. Mas ela foi embora e eu fiquei deu o impávido doutor que, em As Três fases de césar seguida, explicou friamente os aqui. Os primeiros meses foram As Três fases de césar próximos passos, prescreveu os horrorosos. Parei de tomar os medicamentos e fiquei um temprimeiros remédios e deixou claAs Três fases de césar ro que o objetivo do tratamento po sem ir ao médico. Queria que As Três fases de césar não é curar a doença, mas aliviar a doença progredisse e fizesse eu esquecer aquilo tudo. Meus filhos os sintomas já existentes, retarAs Três fases de césar dar o surgimento dos novos e voltaram pra casa e cuidaram de As Três fases de césar aumentar tanto a expectativa de mim. Se não fosse por eles, provida quanto a independência do vavelmente não estaria aqui, conAs Três fases de césar paciente nos estágios mais avan- versando. Minha psicóloga, que é uma menina muito boa e foi coçados. As Três fases de césar “Basicamente, é isso. Do dia lega da minha filha na faculdade, As Três fases de césar da consulta, que foi há uns seis me convenceu de que eu deveria anos, acho, até hoje, minha vida resistir por ela. Para não esqueAs Três fases de césar gira em torno da doença. Todos cer o sorriso, o rosto ou o nome As Três fases de césar os dias, Memantina, Denepezila e dela. E é por isso que eu luto, todas as outras merdas. Todo dia, diariamente, contra meu próprio As Três fases de césar o medo de acordar e não lembrar corpo, minha própria mente, miAs Três fases de césar o nome dos meus filhos. Todo dia, nhas próprias memórias. Não esquecer ela. Então eu resisto”, saudade da Sofia, do meu amor”. As Três fases de césar César se lembra da última conclui. As Três fases de césar conversa que teve com Sofia. Do As Três fases de césar As Três fases de césar As Três fases de césar As Três fases de césar As Três fases de césar As Três fases de césar

Resistência

As Três fases de césar As Três fases de césar As Três fases de césar

Página 50

matéria do professor

Página 51


Sextante 2015/2

Resistência

A LITERATURA COMO RESISTÊNCIA NO JORNALISMO Na atualidade, resta aos jornalistas um único reduto de efetiva resistência: o livro-reportagem. Ou o romance-reportagem. Seria possível estabelecer, rigorosamente, uma distinção entre ambos, assim como entre Jornalismo e Literatura? Em 1952, o jornalista e crítico literário Antônio Olinto, que durante muito tempo foi professor no curso de Jornalismo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), escreveu, em sua coluna diária O Globo nas Letras, o ensaio Jornalismo e Literatura, de onde tiramos a idéia central, o ponto de partida, o verdadeiro fio condutor deste texto: “O jornalista, que tem vocação do jornal, é um escritor, no sentido exato da palavra”. Como jornalista exercendo a atividade de professor, sempre que posso conto algumas histórias em sala de aula. Não como um recurso didático. O jornalismo é o prazer de escrever histórias. Uma das minhas preferidas é aquela em que, comparativamente, procuro apontar as diferenças do Jornalismo que se faz nos tempos atuais e o que conheci nas décadas de 60/70, quando começou meu interesse pela profissão. Tínhamos um grupo de estudantes do Julinho (Colégio Júlio de Castilhos/PA) que, nos sábados e domingos à noite, Página 52

se reunia na Praça da Alfândega, em frente à Livraria Coletânea e bem próximo à banca de jornal que existe até hoje no local, para vermos a saída dos cinemas, discutirmos os últimos livros publicados e comprarmos as edições dominicais dos jornais do Rio e de São Paulo. A leitura dos Suplementos Literários era obrigatória. Não existiam os cadernos de variedades. Tenho bem presente na memória o fato de que ficávamos observando os compradores das edições dominicais dos jornais do centro do País. Quando víamos uma pessoa solicitando “O Globo”, de alguma forma, sabíamos quais eram suas simpatias. Se, logo a seguir, alguém solicitava o “Jornal do Brasil”, também sabíamos o que ele pensava. E a diferença entre elas. Teve um momento em que a leitura obrigatória era o “Correio da Manhã”. A edição dominical deste jornal com a íntegra do diário de Che Guevara esgotou rapidamente. Em meio a este passatempo, discutíamos os artigos publicados pela “Revista Civilização Brasileira” ou o livro “A Revolução Brasileira”, de Caio Prado Júnior. A “Última Hora”, edição do RS, já tinha desaparecido. Quase todos os cinemas acabaram. A livraria Coletânea desapareceu. O centro da cidade

Wladymir Ungaretti

mudou. Estudantes de segundo grau de hoje - na época chamados de secundaristas - possuem muito outros passatempos. As velhas confeitarias também desapareceram. E todos os jornais são iguais. Que diferença faz pedir um ou outro? Nenhuma. São todos coloridos, com textos curtos e com muitos infográficos (acho que esta é a denominação). Até porque as faculdades de Jornalismo, criadas na década de 70, não por acaso são todas iguais, assim como os manuais de redação. Estes, uma praga, segundo velhos jornalistas.

A Morte da Grande Reportagem Também não por acaso, a grande reportagem desapareceu, fato que tem sido apontado pelos jornalistas mais antigos. José Hamilton Ribeiro, de grandes matérias publicadas na revista Realidade, por exemplo, afirma que a ideologia do Projeto Folha de São Paulo, nos anos setenta, é o primeiro momento de implantação da ideia de reduzir custos com jornalistas e com o trabalho de reportagem para colocar as máquinas em primeiro plano. Ricardo Kotscho é outro que destaca o fato de que o Jornalismo “moderno” e “objetivo” despreza

a reportagem para privilegiar as estatísticas e a pesquisa de opinião. Para o jornalista argentino Rodolfo Walsh, assassinado pela ditadura militar de seu país em 1977, “a reportagem era a arte da reconstrução dos fatos”. Para escrever “Operação Massacre”, passou meses na clandestinidade, com nome falso e, assim, reconstruiu a história de um grupo de pessoas da cidade de La Plata, fuzilado num campo de futebol após uma tentativa de “insurreição libertadora”. Este livro é um clássico do livro-reportagem. O jornalista alemão Günter Wallraff é outro que, também disfarçado ora de imigrante turco, ora de jornalista-bem-comportado, produz dois livros-reportagem em que Jornalismo e Literatura se mesclam, segundo ele, “uma obra artística, literária e dramática, uma mistura de romance e reportagem”. É assim que devem ser lidos os livros “Cabeça de Turco” e “Fábrica de Mentiras”.

Marcos Faerman e o Novo Jornalismo “Todos os grandes repórteres que conheci - muitos deles pessoalmente, outros devorando suas biografias ou memórias - eram ratos de biblioteca ou caçadores de tesouros perdidos em sebos labirínticos, como alguns de Porto Alegre, que podiam lembrar trincheiras mofadas da Primeira Guerra Mundial, ou daqueles da Praça da Sé, em São Paulo - onde se podia evocar o que restara, tristemente, nos anos 70, da maravilhosa Livraria Garreaux, mais do que maltratado por derrocadas econômicas e assediado pelos malditos xilófagos - roedores de papel -, e que

permitiu a Nicodemus Pessoa um antológico lead, na idade de ouro do Jornal da Tarde”. E viva o gato Clarimundo, fiel defensor dos alfarrábios. “Eu lembro não só do lead do Pessoinha, mas daquele gato gordo, que ronronava suavemente, como uma peça de Debussy, enquanto preparava as garras de desenho animado para avançar sobre algum igualmente gordo ratão que ameaçava uma velha coleção de O Cruzeiro, da Manchete Esportiva, de A Cigarra ou tantos livros inacreditáveis que os sebos abrigam”. Marcos Faerman (1944 1999) começava assim seu texto “A longa aventura da reportagem”, abrindo caminho para que um dia se escreva uma (detalhada) história do livro-reportagem, da relação indissociável entre Jornalismo e Literatura. Marcão transitava livremente entre a idéia de que a reportagem existe para “reconstituir, decodificar, recuperar espaços perdidos da condição humana” e inúmeras referências, como “A Ilha do tesouro”, de Stvenson, “O lobo e o mar”, de Jack London e “Moby Dick”, de Melville, passando, é claro, por John Reed, Daniel Defoe e muitos outros. “Dez dias que abalaram o mundo”, primeiro grande relato da Revolução Russa conhecido pelos ocidentais escrito por Reed, é considerado por muitos o primeiro livro-reportagem do século XX. O jornalista que, de fato, tem a profissão no sangue, é um escritor. Não podemos escapar de uma referência ao novo jornalismo, gênero de jornalismo literário surgido na década de 50/60. Como separar, em Talese, Mailer e Hemingway, o jornalista do escritor? Claro, não poderíamos esquecer de “A Sangue Frio”, de Truman Capote. Um dos melhores perfis do

ex-presidente Juscelino Kubitschek e de Oscar Niemeyer foi escrito pelo romancista e jornalista norte-americano John dos Passos, no livro “O Brasil Desperta”, editado pela Record em 1964. Dos Passos visitou nosso país em 1948, 1956 e 1962, produzindo este incrível livro-reportagem-romance. A editora pertencia ao jornalista Carlos Lacerda que, independentemente de suas posições políticas, produzia grandes livros-reportagens. Um deles é “Desafio e Promessa, O Rio São Francisco”.

Gay Talese e o Novo Jornalismo Gay Talese, autor de vários livros-reportagens-romances, entre eles “Os Honrados Mafiosos”, tem uma definição do que seria o novo Jornalismo no livro “Aos olhos da Multidão” que, de alguma forma, indica o que seria este gênero de escrita: “o novo Jornalismo, embora possa ser lido como ficção, não é ficção. É, ou deveria ser, tão verídico como a mais exata das reportagens, buscando embora uma verdade mais ampla que a possível através da mera compilação de fatos comprováveis, o uso de citações, a adesão ao rígido estilo mais antigo. O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma abordagem mais imaginativa da reportagem e consente que o escritor se intrometa na narrativa se o desejar, conforme acontece com freqüência, ou que assuma o papel de observador imparcial, como fazem outros, eu inclusive. Procuro seguir discretamente o objeto de minhas reportagens, observando-o em situações reveladoras, anotando suas reações e as reações dos outros a eles. Tento absorver todo o cenário, o Página 53


Sextante 2015/2

diálogo, a atmosfera, a tensão, o drama, o conflito e então escrevo tudo do ponto de vista de quem estou focalizando, revelando, inclusive, sempre que possível, o que os indivíduos pensam nos momentos que descrevo. Esta visão interior só pode ser obtida, naturalmente, com a plena cooperação do sujeito mas, se o escritor goza da confiança daqueles que focaliza, isto se torna viável por meio de entrevistas, em que a pergunta certa é feita no momento exato. É assim possível saber e registrar o que se passa na mente das pessoas”. Dentre os norte-americanos, é preciso destacar o novíssimo jornalismo de “Na Natureza Selvagem” e “No ar Rarefeito”, ambos do jornalista-romancista Jon Krakauer, editados pela Companhia das Letras. O primeiro, relatando a história de um jovem que abandona tudo e sai como andarilho pelos Estados Unidos e é encontrado morto numa região desértica no Alaska. O segundo, um relato da tragédia do Everest, em 1996.

Nossa história do Livro Reportagem Um livro histórico sobre o tema é “O jornalismo como gênero literário”, de Alceu de Amoroso Lima, editora Agir, publicado em 1958. Em 1990, reeditado pela Edusp. Há muitos anos procuro por este livro nos sebos. É uma raridade. Em 1905, o jornal “Correio da Manhã” publicava, pela primeira vez, um texto de Lima Barreto. Era uma reportagem sobre as es-

Página 54

Resistência

cavações que a prefeitura do Rio de Janeiro realizava no Morro do Castelo, local onde acabaram sendo encontradas várias galerias. Eram reportagens romanceadas, bem próximas do gênero folhetim. Mais tarde, estes textos deram origem ao livro “O Subterrâneo do Morro do Castelo”, para Carlos Heitor Cony, o primeiro romance-reportagem da nossa literatura. Um ano antes, em 1904, com 23 anos de idade, João do Rio publicou na Gazeta de Notícias uma série de reportagens com o título “As religiões do Rio”. É complicado fechar este texto sem uma referência ao livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, inicialmente uma série de reportagens para o jornal O Estado de São Paulo. Impossível esquecer de Graciliano Ramos com Memórias do Cárcere? E Antônio Callado, Fernando Morais e Ruy Castro? Um amigo, que teve acesso à primeira versão deste texto, me telefonou para fazer algumas observações, sendo a principal delas a de que estava deixando de falar de “O Castelo de Âmbar”, de Mino Carta; “A revolta da Chibata” e “O Anjo da Fidelidade”, de José Louzeiro; “Tempo de Contar”, de Joel Silveira; “Morcegos Negros”, de Luca Figueiredo; “As noites das Fogueiras”, de Domingos Meirelles (o maior livro-reportagem sobre a Coluna Prestes); e “Memórias do Esquecimento”, de Flávio Tavares (um dos textos mais bem elaborados sobre o período ditatorial pós64). E acrescentou: não esqueça, acho que é preciso um parágrafo sobre os latino-americanos, com uma referência maior a “Veias

abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano e a toda a extensa obra jornalística-literária de Gabriel Garcia Márquez. Por último, algumas linhas sobre o que está sendo editado agora, como, por exemplo, a Coleção Primeira Página, da Nova Fronteira, coordenada pelo José Louzeiro, reunindo grandes reportagens. Tudo isso acompanhado de um alerta: tome cuidado para não ultrapassar os dez mil caracteres. Este amigo tem pouco tempo de profissão, mas já possui boa bagagem. É indicativo de que ainda há uma esperança. Livro-reportagem e romance-reportagem se confundem. Jornalismo e Literatura é um único gênero. Este universo está aberto aos jornalistas-escritores, sendo este o verdadeiro espaço para os contadores de histórias, os essenciais decodificadores, onde é possível escrever mais do que trinta linhas, longe das estatísticas, dos manuais de redação e das pesquisas de opinião. Estamos entupidos de Jornalismo fast food, com tantas colunas de notinhas “isentas”. Ao estudante de jornalismo, com vocação de jornal, como futuro escritor, só há uma saída: ler...ler...ler...e ler. Boa literatura. Bom jornalismo. É preciso perseguir a escrita poética. Sempre! Propositadamente, esta foi uma escrita realizada a partir de impulsos da memória, anárquica e, por isso mesmo, prazerosa, uma homenagem a Marcos Faerman. Palavras como estiletes, cortantes. Ou jornalismo como subversão.

expediente Antonio Felipe Purcino • Bruna Andrade • Bruno Pancot • Carolina Trindade • Giuliana Heberle • Iami Gerbase • Katia Souza • Júlio Kaczam • Roberta Scherer • Maiury Winckiewicz • Nathália Cardoso • Nicholas Gheno • Vitória Lemos Comissão Editorial

Revisão

Design e diagramação

Anna Carolina Chies Antonio Felipe Purcino Carolina Trindade Jéssica Nakamura

Nathália Cardoso Jéssica Nakamura

Anna Carolina Chies Carolina Trindade

Capa Anna Carolina Chies

Orientação Wladymir Ungaretti

Página 55


SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA

SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA SEXTAnTE RESISTênCIA


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.