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O CARÁTER INAUGURAL, A FORÇA DO IMPULSO ARTÍSTICO E OS POSSÍVEIS CAMINHOS PARA UMA ESCRITA SOBRE A MORTE

Michaela Schmaedel

A partir da exposição Renascimento, do artista plástico goiano Siron Franco, que homenageou as vítimas da Covid-19 e os profissionais de saúde que trabalharam durante a pandemia, foi elaborada uma oficina de escrita, aberta ao público, para discutir, ler e criar poemas sobre o luto, seja ele pessoal ou coletivo. Aqui, conto um pouco como abordamos, eu e o poeta Reynaldo Damazio, coordenador do Centro de Apoio ao escritor, da Casa das Rosas, a poesia de luto e de luta, já que toda manifestação artística é também uma forma de resistência. Na exposição, que ficou em cartaz em fevereiro deste ano, no jardim do museu, 365 manequins de diversos tamanhos, vestidos com roupas femininas, masculinas e infantis, foram pendurados para representar as vítimas da pandemia no país. Para compor as aulas da oficina sobre poemas de luto, que incluíam também a visitação da exposição e os sentidos gerados por ela, começamos por uma ideia simples e valiosa de Wislawa Szymborska, poeta polonesa, no livro Correio Literário – ou como se tornar (ou não) um escritor (editora Âyiné, 2021), que reúne algumas de suas criticas, entre os anos de 1953 e 1981. A poeta começa afirmando que, se você não tem algo de novo para dizer num poema, se tudo o que estiver lá já foi dito de alguma forma, se não há uma surpresa em relação à forma, ao ritmo ou ao sentido do poema, então é necessário parar e repensar o trabalho. Para ela, é preciso ter sempre um elemento surpresa no poema, algo que tire o leitor do eixo, daquilo que já é muito conhecido. Então, para se criar poemas de luto, tema já tão escrito ao longo da história, a diretriz de Szymborska é ainda mais pertinente.

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Conseguir este susto, ou, como definia o poeta russo Joseph Brodsky, o “salto no pensamento”, é preciso levar em conta, segundo ele, a reunião de três elementos-chave num poema: análise, intuição e revelação, sendo a revelação algo que Brodsky dizia pertencer apenas a poemas extremamente bem-sucedidos. Quando se atinge esta revelação na poesia e consegue-se gerar o susto, isso faz com que o nosso pensamento mude – e Brodsky costumava afirmar que dar este salto é o que faz a poesia ser algo viciante, tanto para quem lê quanto para quem escreve. Se a originalidade é, portanto, ainda mais importante quando pensamos em grandes temas, como a morte e o amor, é necessário num primeiro passo livrar-se das imagens já pré-estabelecidas, das coisas facilmente reconhecidas ao nosso pensamento. Trilhar um caminho alternativo para se evitar o clichê, o sentimentalismo ou a escrita estritamente confessional, que não causa um abalo, que não tira o leitor do lugar. Os relatos, a vivência, a dor, isso ainda não é poesia.

Segundo o ensaísta e crítico literário francês Roland Barthes, a poesia necessita de uma certa opacidade, é uma espécie de filosofia deformada. Ou, como dizia o filósofo alemão Hegel, é “o arrepio de sentido”. Então, para se pensar num poema de luto, começamos destacando o aspecto deste arrepio de sentido que devemos ter ao ler um poema. Quando isso se dá, acontece também o fenômeno de transformar o poema de luto num poema capaz de gerar uma nova ideia no mundo. Barthes, no livro Inéditos vol. 1 – teoria (editora Martins Fontes, 2004), diz que uma das razões de nós escrevermos é justamente “para contribuir para furar o sistema simbólico da nossa sociedade” e “para produzir sentidos novos, ou seja, forças novas, apoderar-me das coisas de um modo novo, abalar e modificar a subjugação dos sentidos”. Nesta mesma linha, o poeta e filósofo alemão Novalis também diz que “a poesia é, entre as ciências, a juventude”. Uma pequena definição que, por si só, consegue nos causar dois abalos: uma é chamar a poesia de ciência, algo para lá de inusitado, e a outra é compará-la com a juventude, não como um elemento carregado de inocência, mas como algo que representa o inaugural. Inspirado pela frase de Novalis, o escritor português Gonçalo M. Tavares escreve, no livro Investigações. Novalis (editora Chão da feira, 2020):

“Está sempre a começar; A inaugurar, a fundar, a inventar, a descobrir. É outro órgão do corpo, a Poesia; não detectada por tecnologia nem por manuais anatómicos. Dito de outro modo: esconde-se por detrás da Anatomia.”

Pensar em conjunto este caráter inaugural, que é da natureza da poesia, e o tema do luto, que pode ser visto como uma presença na ausência, o afeto que surge quando perdemos algo ou alguém que nos era muito precioso e somos tomados por esta onipresença do objeto perdido. O filósofo alemão Peter Sloterdijk, no livro Pós-Deus (editora Vozes, 2019), refere-se aos mortos como seres pegajosos, pensando naqueles dos tempos antigos, quando as pessoas acreditavam que os mortos interferiam na vida dos vivos, eram invejosos, pregavam peças etc. Mas esta noção do morto pegajoso, mito atrelado ao sujeito vivo, pode ser sempre percebida no luto, onde tudo remete ao objeto ausente. Alguns exemplos de poemas que foram trabalhados na oficina, cujos temas são diretamente a morte ou a tristeza relacionada a ela (a perda de uma pessoa, um país, uma situação, um sentimento):

Uns ventos te guardaram. Outros guardam-me a mim. E aparentemente separados Guardamo-nos os dois, enquanto os homens no tempo se devoram. Será lícito guardarmo-nos assim?

Pai, este é um tempo de espera. Ouço que é preciso esperar Uns nítidos dragões de primavera, mas à minha porta eles viveram sempre, Claros gigantes, líquida semente no meu pouco de terra.

Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto Te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.

Tocaram-te nas tardes, assim como tocaste Adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda nas mãos A pequena raiz, a fibra delicada que a si se construía em solidão?

Pai, assim somos tocados sempre. Este é um tempo de cegueira. Os homens não se veem. Sob as vestes Um suor invisível toma corpo e na morte nosso corpo de medo É que floresce.

Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos fechados Uns espaços de luz rompem a treva. Meu pai: Este é um tempo de treva.

Hilda Hilst, em Odes maiores ao pai (1963-1966)

A poeta paulista Hilda Hilst conviveu pouco com o pai Apolônio de Almeida Prado Hilst, que muito cedo foi internado com esquizofrenia. Ela dizia que toda a sua obra tinha sido feita em torno da ausência/presença do pai. Havia uma aura mágica relacionada à figura deste pai que não estavamorto, mas também não estava presente. Neste poema, Hilst faz a transição do luto pessoal para o coletivo. Ela vai do pai (dor pessoal) para o tempo de tre- va (dor coletiva), num eu-lírico que fala diretamente com o morto/ausente no poema, como se ela contasse para ele os novos e tristes tempos.

Outro exemplo usado na oficina de um poema de luto que consegue unir diversos aspetos (originalidade, luto pessoal e metalinguagem) é o 13 lições, do livro Casa do Norte (editora Corsário-Satã, 2020, do poeta baiano Rodrigo Lobo Damasceno, a seguir:

13

Li Es

de pai pa fio Luiz Gonzaga aprendi com meu pai de 65 anos (mesmo morto desde os seus 62) que a poesia é a redescoberta das coisas novas que eu já vi a tarde passando mais lenta na lapa quando se entra no calor do comércio um susto na temperatura máxima repetida: a chegada do cangaceiro (marco nanini) no auto da compadecida o mistério dos bairros antigos (distantes do centro) envolto em fuligem, fumo, neblina - a fábrica escarra na paisagem a sombra dos vizinhos mortos (levados por tiros velhice vírus) intrometidas no tempo o verso: ruído rangente da rede suspensa no centro da sala em são paulo: cheia de fios entre laçados lenta contra wireless chavões jargões imprestáveis sintaxes su cateadas das máquinas :o verso aprendi com meu pai de 65 anos (mesmo morto desde os seus 62) que o poema é quando acontece algo a alguém além de mim

Um terceiro poema que foi usado na oficina foi o do iraniano Mohsen Emadi, que trata de um luto coletivo, onde o próprio poema é o protagonista. Um poema em que é narrado um acontecimento aterrorizante e, ao mesmo tempo, banal no país (uma bomba explodir num trem). Também pode-se observar o caráter fanopaico do poema, com a imagem forte que ele nos dá das bicicletas que ficaram abandonadas na estação:

O poema não está parado na frente de um pelotão de fuzilamento. Nem o pelotão de fuzilamento, no poema, sabe para qual direção deve apontar. Eles só têm subido o preço dos serviços básicos, do aluguel e dos gastos com o enterro. Não posso comprar cigarros para três mil mortos, mas posso devolver-lhes a vida. Não quero que o poema os devolva a um cemitério que não existe mais, somente quero lembrar que todas as bicicletas abandonadas já estão ruídas, que ninguém voltará nunca a escutar o som de suas sinetas. Os mortos vão permanecer na estação, e, se o poema pode assegurar um bilhete para cada leitor, ele será entregue no primeiro trem de ida. Em meu país, é normal três mil mortos em uma estação. Três mil mortos em um trem é normal.

A Escrita Com Sangue

Em um segundo movimento da oficina sobre poemas de luto, pensamos em como se pode propiciar o impulso para fazer vir à tona o poema. Um aspecto que pode ajudar na criação poética está descrito em Lições de poética, de Paul Valéry (editora Âyiné, 2020). Trata-se do impulso original, o estímulo que recebemos de algo e que nos movimenta a criar. Segundo Valéry, nosso cérebro funciona sempre de uma maneira desorganizada, pensamos em algo, depois aquilo nos escapa. Quando temos o impulso artístico, temos uma necessidade, que não é da ordem fisiológica, de organizar o que, teoricamente, não poderia ser organizado. “É a indeterminação interior, são as incontáveis possibilidades que são oferecidas quando não estamos dominados por uma necessidade direta assinalada pelo organismo, que caracterizam a ordem das coisas mentais. Porém, na produção de uma obra, chega fatalmente um momento em que saímos da indeterminação. Se traço alguma coisa com uma caneta ou com um pincel, esse traço, que posso apagar, assim como a palavra que pronuncio neste momento, é um ato externo e, portanto, um ato subtraído ipso facto à indeterminação do intelecto. É, portanto, um ponto sólido, um elo claro, que nos permite considerar a obra do intelecto como o resultado de uma transformação que veremos mais tarde, mas que chega necessariamente a um ato único e perfeitamente determinado.”. A escritora americana Natalie Goldberg, autora do livro Escrevendo com a alma (editora Martins Fontes, 2008), sinaliza que, para dar espaço a este impulso originário, que é racional, porém ainda desorganizado, devemos primeiro escrever o que vier à cabeça, fazendo associações livres, durante algum tempo determinado, todos os dias. Depois, rever estes escritos e perceber se há neles uma força motriz, algo que valha a pena ser trabalhado. “É preciso ter caos dentro de si para dar à luz a uma estrela dançante”, escreveu Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra (editora Companhia das Letras, 2011). Lá ele também diz que só há interesse genuíno no que é escrito com sangue, que tem uma ideia encarnada, a escrita como um atravessamento, quando o artista se deixa dominar por algo.

Julia Bac, poeta de São Paulo, mistura em seu poema duas mortes, a da baleia e a da mãe, de uma forma confessional, mas sem cair em lugares comuns. Para isso, dá dados científicos, coloca números, que é um recurso que tira o sentimentalismo que o poema de luto pode facilmente carregar: a orca J35 empurrou com a cabeça o seu filhote morto por 17 dias no mar. os cientistas ficaram preocupados com a saúde da orca, preocupados que pudesse se machucar. os cientistas não entenderam. os cientistas estão preocupados com a reprodução da espécie enquanto J35 empurra seu filhote morto. os cientistas não entenderam nada. o filhote viveu somente 30 minutos, os cientistas acham que a orca criou um laço emocional. enquanto isso, J35 empurra seu filhote. os cientistas ainda não entenderam. há 2.190 dias empurro o seu corpo no mar, mãe, e não sinto peso algum, tampouco tenho medo de me machucar. os cientistas não entendem.

Danez Smith, poeta americano, também foi um dos autores trabalhados na oficina, com um poema que aborda o luto coletivo, as atrocidades que sofrem ainda os negros em diversas partes do mundo, ambientado numa cena ensolarada de verão. O autor usa uma linguagem coloquial, evitando assim o ar solene que há em muitos poemas sobre o luto, algo que muitas vezes distancia o leitor:

VERÃO, ALGUM LUGAR

algum lugar, um sol. lá longe, moleques da cor dos feijões brincam de bola & de caçoada, pulam no ar & param por lá. moleques viram luas novas, breu de boca em todo lado, suplica ao hema- toma água pra voar, ao menos a maré, ao menos, cuspisse de volta um pai ou dois. nem entro nessa. história é o que é sabe ela o que fez. cão ruim. sangue ruim. dia ruim pra ser um moleque da cor de um verão surrado. mas aqui, nem terra nem céu, não conseguimos lembrar nossas blusas brancas transformadas em becas rubras. aqui, não há língua pra polícia ou leis, cor não há pra chamar de branca. se caísse neve, cairia preta, por favor, não digam que estamos mortos, digam que estamos vivos num lugar melhor. dizemos nossos próprios nomes quando rezamos. saímos atrás de balas & voltamos.

Danez Smith, em Não digam que estamos mortos

A poeta carioca Simone Brantes também consegue este efeito seco em seus poemas de luto, algo que deixa seu trabalho extremamente forte. Há um tom confessional, mas há também um quê de raiva e revolta que coloca a morte (e os mortos) num lugar não habitual:

Há pessoas cujos cabelos a dor embranquece de um dia para o outro e pessoas que morrem um mês uma semana depois de finadas as pessoas que adoram e ouvi mesmo falar de um cão cuja vida acabou debaixo do caixão de seu dono Não vejo como algo assim poderia acontecer comigo: é pelas beiradas (como tudo) que a dor me come

Simone Brantes, em Quase todas as noites por todos, não é preciso deixar tudo tão explícito. O poema deve ser aberto, porque é isso que fará com que ele possa ter múltiplas leituras. Barthes escreve que “leitura é aquilo que não para”, então se o poema for muito conclusivo, não há mais nada que o leitor possa fazer com ele – neste caso, muitas vezes, o corte funciona para deixá-lo maior em termos de sentido. A poeta Orides Fontela, como um último exemplo, entre os diversos poetas que foram trabalhados na oficina, fazia poemas curtos sobre a morte e outros temas com maestria. Poemas concisos que conseguem ser imensos, como os que estão a seguir. Como escreveu a poeta portuguesa Ana Hatherly: “quando o poema é bom/ não te aperta a mão:/aperta-te a garganta”.

Michaela Schmaedel nasceu e mora em São Paulo, é editora de cultura e poeta. Cursou o CLIPE (Curso Livre de Preparação de Escritores), na Casa das Rosas, além de oficinas de escrita com diversos poetas brasileiros. É autora do livro Coração Cansado (Penalux, 2020), Quênia – poemas de viagem (Cas’a edições, 2021) e Paisagens inclinadas (editora 7letras, 2022). Está na antologia As mulheres poetas na literatura brasileira (Arribaçã, 2021) e é editora do podcast Poesia pros Ouvidos.

Meus mortos não estão encarapitados no alto das árvores não são eles que balançam os galhos quando eu passo nos dias de calmaria não estão debaixo da terra nem voam pálidos sobre minha cabeça debaixo do céu azul Aparecem nos sonhos e desaparecem quando são cinco ou seis da manhã meus mortos são covardes não têm coragem de viver

Simone Brantes, em Quase todas as noites

Por fim, foi pensada a edição dos poemas de luto, como trabalhar o material bruto, depois de já ter levado em conta o “salto do poema” e o impu so original artístico. O que cortar, quais são as palavras que podem ser substituídas, o que mexer para tornar o poema de luto mais contundente? O treino de cortar, mudar os versos de lugar e não subestimar o leitor são caminhos que podem fazer o poema aumentar de sentido ou tomar uma direção inusitada. Quando se trata do luto, um tema tão vivido

Teologia

Não sou um Deus, graças a todos os deuses!

Sou carne viva e sal. Posso morrer.

Orides Fontela, em Poesia completa

Not Cia

Não mais sabemos do barco mas há sempre um náufrago: um que sobrevive ao barco e a si mesmo para talhar na rocha a solidão.

Orides Fontela, em Poesia completa

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