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CORPO, IDENTIDADE E INSUBMISSÃO: CARTOGRAFIA DA POESIA BRASILEIRA
Contempor Nea Escrita Por Mulheres
Laura Redfern Navarro
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Este ensaio faz parte da pesquisa de TCC em andamento “Mulheres, corpo e testemunho em O Martelo, de Adelaide Ivánova” pela Faculdade Cásper Líbero, com orientação do prof. Heitor Ferraz Mello
A ocupação feminina nos espaços culturais tem se tornado, cada vez mais, uma discussão acesa e relevante. Num mundo patriarcal, em que prevalecem os cânones de autoria majoritariamente masculina, a recente presença de mulheres em galerias de arte, eventos culturais, feiras literárias e premiações levanta novos questionamentos.
Afinal, o que estas mulheres estão produzindo, trazendo de novo para o cenário cultural? O que essa presença representa num escopo maior? Para onde estamos indo, tomando como norte o rompimento das desigualdades de gênero no campo cultural?
Localizando esse debate dentro do cenário da literatura brasileira contemporânea, em especial da poesia, esses questionamentos vêm ganhando força principalmente nos últimos anos, em que vem se construindo, a todo vapor, um novo panorama para a poesia brasileira. Assim, as questões de gênero dentro da produção literária no país não apontam somente para esse campo em específico, como também para a discussão, mais abrangente, do que é a poesia produzida no país hoje.
O Brasil, até meados do século XX, estabeleceu um cânone literário majoritariamente masculino, de nomes como Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e os irmãos Haroldo (1929-2003) e Augusto de Campos (1931).
Há algumas exceções, caso das poetas Cecília Meireles (1901-1964), Gilka Machado (1893-1980) e Henriqueta Lisboa (1901-1985). Entretanto, é importante considerar a falta de visibilidade dessas escritoras dentro do contexto em que estavam inseridas, sendo muitas vezes redescobertas ou estudadas apenas após a sua morte. Este foi o caso, por exemplo, de Gilka Machado, cuja obra passa a reverberar apenas em 2017, com a publicação de sua Poesia Completa pelo Selo Demônio Negro, com organização de Jamyle Rkain.
A presença feminina passa a ter mais destaque a partir dos anos 1970. A pesquisadora Heloísa
Buarque de Hollanda, organizadora da antologia As 29 poetas hoje (2021, Companhia das Letras) pontua a importância da poeta Ana Cristina César (19521983) na composição deste novo cenário. Segundo ela, César não teria aderido de fato a um movimento em prol da escrita de mulheres, mas teria questionado o lugar do feminino na poesia:
“seria possível mexer com ‘literatura de mulher’ sem ocupar o lugar do feminismo nem cair na confusa ideologia do eterno feminino? (...) Onde ancorar esse conceito? Não seria melhor deixá-lo à deriva, errante conforme nos sopra o que há de feminino na linguagem?” César (1979 apud. HOLLANDA, 2021)
Assim, para César, o que estaria em jogo seria a escrita enquanto única possibilidade de uma mulher significar o seu desejo ou seu lugar. Nesse caso, a escrita não pode calar nem seus temas nem aderir a fórmulas poéticas ou políticas prontas, mas construir uma subjetividade que se sobressaia. Mais para frente, a presença das mulheres na literatura vai se tornando mais robusta.Nos anos 1990, figuras como Cláudia Roquette-Pinto (1963) e Simone Brantes (1963) passam a compor, de maneira ativa, o cenário da poesia daquela época. Assim, o questionamento proposto por Ana Cristina César passa a se tornar uma reivindicação central: a da escrita feminina enquanto ressignificação de um lugar de liberdade e não mais de silenciamento.
O Fen Meno Ang Lica Freitas
O rompimento de um silêncio estruturante, como colocado por Ana Cristina César, parte de um desejo coletivo que culmina na construção da subjetividade. Portanto, ao tratar da poesia de mulheres hoje, é preciso entender que se trata de um movimento político, acima de tudo.
Na antologia As 29 poetas hoje (Companhia das Letras, 2021), Heloísa Buarque de Hollanda busca organizar essa poética do enfrentamento feminino, trazendo poetas brasileiras contemporâneas que trabalham o desejo de expressar o corpo. No prefácio, ela afirma que “(...) a nova poesia de mulheres não reflete apenas a produção individual de cada poeta. Ela se faz em coro, em ressonância. Lembra e não lembra o ‘poemão’ que Cacaso identificou na prática da poesia marginal dos anos 1970. Lembra porque, como Cacaso observou, vista em conjunto, a poesia daquela hora parecia um só poema. Da mesma forma, ao ler esse segmento feminista da poesia de mulheres hoje, também sinto um éthos comum (sem falar de certa dor comum) que se expressa numa sucessão de ecos ligando uma poeta e outra”.
Nesse sentido, se faz crucial localizar o estopim da construção desse éthos comum: a publicação de Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify), em 2012, pela poeta gaúcha Angélica Freitas. O livro traz temas que, até então, eram pouco tratados dentro da poesia, em especial o corpo da mulher e sua intimidade, numa linguagem bem-humorada, despretensiosa e irônica, como se vê em trecho do poema que abre o livro:
“porque uma mulher boa é uma mulher limpa e se ela é uma mulher limpa ela é uma mulher boa há milhões, milhões de anos pôs-se sobre duas patas a mulher era braba e suja braba e suja e ladrava”
(Um útero é do tamanho de um punho, p.12)
No poema citado acima, por exemplo, há uma crítica explícita ao papel da mulher enquanto impecável e bem-comportada (“uma mulher boa / é uma mulher limpa”) que se constrói a partir de uma linguagem coloquial. Freitas, então, desafia os limites daquilo que é tradicional à poesia, de maneira despretensiosa, trazendo o lugar social da mulher enquanto tema.
Em entrevista à Heloísa Buarque de Hollanda (2021), Freitas afirma que trabalhou o livro a fim de construir um lugar para si dentro da poesia: “(...) eu me perguntava sobre o que era escrever sobre a mulher do jeito que eu queria. Comecei a pesquisar textos sobre o corpo da mulher e como dar forma ao corpo nos poemas. Vi que não havia nada em poesia sobre o assunto mulher. Como leitora de poesia, vi que a poesia feita por mulheres no Brasil não me representava. Só as americanas. Poetas lésbicas não tinham voz. Ser uma grande poeta dentro das regras não me interessa. E comecei a pesquisar o que é dizer. Eu queria ver o que a poesia pode suportar. Poesia é uma investigação séria. Ler outros poetas, é importante estudar para escrever” Assim, ao assumir um eu-lírico que não é “um grande poeta dentro das regras”, Freitas consegue abrir para as novas gerações “o caminho da desobediência, do corpo, de que escrever é investigar o avesso das regras que regem a poesia.” (HOLLANDA, 2021). É possível entender, assim, que o que Angélica Freitas traz não se trata apenas de um reposicionamento, mas de uma postura política. É uma mulher escrevendo, mas não apenas: é uma mulher escrevendo sobre seu corpo de mulher, sobre seus anseios, nojinhos, violências.
E, na possibilidade de partilhar essas experiências, outras mulheres se encontram na escrita, a partir da leitura do livro de Angélica, trocando as escritas entre si, o que também ocorre em decorrência da popularização das redes sociais e da disseminação das pautas feministas pela internet. Assim, o choque inicial em Um útero é do tamanho de um punho vem se tornando uma característica das poéticas femininas produzidas hoje. Infelizmente, essa ressonância ocorre pelo mes- mo motivo que Um útero é do tamanho de um punho foi considerado um marco - o silenciamento frente às questões das mulheres, que permanece ainda hoje. A corporeidade feminina ainda é considerada tabu. Há pouco estímulo ao protagonismo - e à autonomia - das narrativas de mulheres. Se considerarmos a revitimização e o silenciamento diante das vítimas de violência masculina, em que configuram a violência doméstica, o estupro e as relações abusivas, podemos entender que se trata de um movimento que extrapola tanto o campo do sujeito quanto o campo do coletivo, estando em sua intersecção. Logo, essa poesia que trabalha o corpo é uma poesia de enfrentamento, de denúncia e de reconstrução (ou de construção) de uma identidade.
O Fen Meno Da Internet
Para além da influência de Angélica Freitas, Hollanda compreende um outro fator que tem um papel importante na construção desse éthos comum: a disseminação da internet e das redes sociais, tornando possíveis trocas mais intensificadas entre pessoas com interesses comum que trazem temas diversos, incluindo discussões com propósito social. Isto ocorre a partir dos anos 2010.
Nesse contexto, podemos citar o surgimento das primeiras comunidades de slam no Brasil, modalidade de competição em poesia que envolve elementos do rap, da poesia falada e da performance, representando um símbolo de resistência e expressão por parte de grupos marginalizados no contexto urbano. Emprestada dos Estados Unidos, a modalidade foi trazida para o Brasil por intermédio da poeta Roberta Estrela d’Alva, que funda, em 2008, o ZAP! Slam.
A disseminação da internet também traz, como consequência, uma menor distância entre o autor e a publicação. Afinal, há a possibilidade de se postar um texto em blog ou na página pessoal do Facebook, desafiando processos editoriais tradicionais, que tendem a ser criteriosos, demorados e limitados apenas às parcelas mais abastadas ou bem relacionadas dentro do universo literário.
Nesse sentido, vale também considerar que as mídias digitais, os blogs e a própria internet permitem a interlocução com um público mais amplo e diverso, podendo conectar pessoas de diferentes localidades e realidades. Logo, um texto publicado pode ser acessado por qualquer pessoa. No contexto das mulheres escritoras, esse aspecto é relevante porque, com a maior facilidade de trânsito dos textos, os encontros se tornam possíveis. Pode-se notar, a partir dos anos 2010, esse efeito a partir do surgimento de diversos coletivos e grupos de leitura voltados para a literatura produzida por mulheres, caso do #LeiaMulheres, grupos de leitura espalhados pelo Brasil com o propósito de estimular a leitura de autoras mulheres; e da iniciativa Mulheres que Escrevem, que promove a publicação, a pesquisa e a escrita de literatura produzida por mulheres.
Vale ressaltar, ainda, que o fenômeno das mídias digitais também contribuiu para a maior disseminação de informação e questionamentos acerca da posição da mulher na sociedade. Debates que trazem temas como aborto, sexualidade da mulher e identidade de gênero tornam-se mais acessíveis. O feminismo, ainda que muito ancorado em propostas liberais ou discussões superficiais, se vê mais tangível e deslocado da academia.
Percebe-se que esses coletivos trazem não apenas um espaço para a chamada “literatura feminina” (termo atualmente em questionamento), mas também a reunião de um público majoritariamente feminino. São mulheres, de diferentes contextos, que frequentemente assumem a ausência de referências femininas dentro da literatura, e que se veem encorajadas a partir da possibilidade de um apoio mútuo.
Portanto, torna-se cada vez mais relevante a discussão de mulheres ocupando os espaços literários e, principalmente, podendo experimentar a partilha, a cumplicidade e a identificação na escrita da outra.
Podemos destacar, ainda, esses espaços estarem sendo ocupados por mulheres que publicam ou de maneira autônoma, pela autopublicação, ou pelas pequenas editoras independentes, caso da Editora Patuá, da Macondo Edições, da Editora 7Letras, da Editora Urutau, dentre outras. São livros com tiragens baixas, mas que circulam entre nichos específicos.
Nesse contexto, é importante pensar a literatura feita por mulheres a partir do conceito de comunidade, em que há a formação de laços entre mulheres que ultrapassam a literatura, tornando-se verdadeiras redes de apoio, amizade e afeto. Este é o caso das poetas Érica Zíngano, Danielle Magalhães e Adelaide Ivánova. Nelas, percebe-se um forte movimento de interlocução, que envolve, inclusive, a escrita de paratextos (como o “Pós-Fax” de Érica Zíngano para o livro 13 Nudes de Adelaide Ivánova) e referenciar umas às outras em trabalhos acadêmicos, caso do capítulo da Tese de Doutorado de Danielle Magalhães, pela UFRJ, em Teoria Literária, intitulado “PÓSESCRITO:Dosegredoàfofoca: Mulheres que reescreveram a história”, em “IR AO QUE QUEIMA: NO VERSO, O AMOR, NO VERSO, O HORROR – Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea” , que menciona também o livro O martelo, de Adelaide Ivánova.
O caminho iniciado por Angélica Freitas em Um útero é do tamanho de um punho traz, como elemento central de uma poética de mulheres, o corpo feminino. Esta literatura, portanto, precisa ser analisada sob um olhar político - afinal, como discorrido ao longo do texto, a escrita do corpo traz uma reivindicação: a de tratar temas comuns às existências femininas, mas que são cerceados, colocados como tabu ou, até mesmo, silenciados. Logo, trata-se de uma poética que se propõe a romper uma violência estrutural.
Nesse sentido, um eixo central na investigação da poesia contemporânea escrita por mulheres é o conceito de testemunho. A literatura testemunhal designa uma escrita que parte da expressão de um evento desestruturante, isto é, um evento traumático, do qual se torna impossível a elaboração racional ou mesmo a verbalização1. O termo costuma ser associado à literatura produzida por vítimas e sobreviventes do Holocausto, caso de Anne Frank (1929-1945) e do poeta romeno Paul Célan (19201970).
De acordo com a poeta Bruna Mitrano em entrevista ao quadro Megamíni, realizado pela editora 7Letras em junho de 2021, a incapacidade de uma elaboração racional diante de um evento desestruturante também está condicionado por uma estrutura hegemônica e social que implica no silenciamento de determinados corpos. Se pensarmos o Holocausto, por exemplo, há a desestruturação por meio da violência física, mas também pela violência simbólica, como a impossibilidade de fugir ou de ser ouvido em meio à tortura e à discriminação.
No contexto das mulheres, esse aspecto se torna relevante ao levarmos em consideração as múltiplas violências a que o corpo feminino está submetido, incluindo as várias formas de violência física, psicológica e sexual, e a maneira como sua denúncia é abordada.
Nesse sentido, podemos destacar o caso da influenciadora digital Mari Ferrer que, em 2019, expôs a violência sexual que viveu no ano anterior, no beach-club Café de La Musique em Florianópolis (SC). Ferrer, porém, foi desacreditada, tendo sofrido humilhações, perseguições e ameaças, inclusive por parte da Justiça Brasileira, que avaliou o caso enquanto “estupro culposo”, absolvendo o réu. Durante o julgamento, transmitido à público, Ferrer foi julgada por suas roupas, aparência e fotos na internet.19 É possível depreender, a partir deste caso, a estrutura silenciadora que ainda cerca as existências femininas, em especial quando denunciam o que vivenciaram, levando à um novo ciclo de violência - o da revitimização, que impossibilita a elaboração do trauma, mas condena a vítima à revivê-lo constantemente.
Logo, a poética testemunhal do corpo da mulher traz uma forma de justiça pessoal às violências vividas, oferecendo a possibilidade de elaboração dos próprios sentimentos de maneira crítica e curativa. Afinal, o testemunho ultrapassa a barreira da literatura, podendo ser enxergado (e até adotado) de maneira clínica. Segundo Danielle Magalhães, “recriar-se pelas palavras significa, também, permitir-se outra história, inclusive, que possibilite não se fixar no ‘paradigma da dor’, transformando esse paradigma pela ‘afirmação do direito ao devaneio”.