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A DECOLONIALIDADE NA OFICINA DE ESCRITA OU A RODA COMO PRINCÍPIO DE (RE)CRIAÇÃO
Bianca Gonçalves
Uma vez consciente de que escritores não são seres eleitos por uma ordem superior divina, convém ao projeto de (auto)formação de beletrança 17 pesquisar modos e meios de se fazer literatura; e, em nível mais avançado, desfazer os modos e meios daquilo que se convencionou chamar de literatura. Dou início a essa reflexão resgatando a noção senso-comum do “dom” pois, como autora com formação acadêmica em letras, pude assistir às mais absurdas hipóteses sobre o talento supostamente inato de autores como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e grande elenco de nosso sistema literário brasileiro (e fora dele). Docentes com extensos currículos em suas respectivas áreas podiam discordar entre si sobre um assunto ou outro, mas convergiam quando a questão era a suposta crise (uma episteme que eles amam) de qualidade (termo igualmente questionável) da literatura contemporânea. A eles nada prestava, a não ser eles mesmos e seus objetos (que quase sempre orbitavam entre os três autores citados acima), reservando o deboche, típico de certa casta da crítica literária, aos seus próprios contemporâneos.
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Se há, de fato, uma crise qualitativa na literatura contemporânea, ela talvez esteja intrincada no processo formativo de escritores. Como, tradicionalmente, romances, novelas, contos, poemas são apresentados a nós? No continuum escolar, que toma uma perspectiva canônica, “grandes autores” são concebidos de modo sincrônico, ou seja, são vistos dentro de categorias didaticamente artificiais – como o conceito de“escola literária” – em suas dezenas de características, igualmente artificiais.
17 Emprego o neologismo “beletrança”, cunhado por mim, para me opor à noção eurocêntrica de belles lettres discurso que funda o esteticismo moral e, não obstante, elitista, que monopoliza aquilo que deve ser lido e estudado nos espaços institucionais.
Reporto-me à sufixação da nossa língua em modalidade popular (-ença), evocando Luiz Gama que, em poema intitulado “Lá vai verso!”, atravessa referências europeias e africanas, reivindicando para si as últimas. Ou, como o poeta evoca: “Com sabença profunda irei cantando/ Altos feitios da gente luminosa,/
Que a trapaça movendo portentosa/ À mente assombra, e pasma à natureza!/ Espertos eleitores de encomenda,/ Deputados, Ministros, Senadores,/ Galfarros [,] Diplomatas – chuchadores/ De quem reza a cartilha da esperteza/ (...)/ Nem eu próprio à festança escaparei;/ Com foros de Africano Fidalgote/ Montado num Barão com ar de zote –/ Ao rufo do tambor, e dos zabumbass,/ Ao som de mil aplausos retumbantes,/ Entre os netos da Ginga, meus parentes,/ Pulando de prazer e de contentes –/ Nas danças entrarei d’altas caiumbas.” (FERREIRA [org.], 2011, p. 50-51).
Tal empenho configura um projeto linear cujo extremo oposto se encontra o aluno – ou, quem sabe, o jovem escritor. Não por acaso, abundam, em cursos livres de escrita e oficinas de criação, indivíduos que demandam uma Formação, maiusculada, que intui um currículo mais ou menos padrão
Trata-se dos chamados “clássicos”: gregos, latinos, franceses, alemães, ingleses, portugueses (esses últimos incluídos única e exclusivamente por compartilharmos da “mesma língua”) e, se der tempo, alguns latino-americanos. O problema, claro, não é ler o cânone. Pelo contrário: aquilo que ganha o status de clássico, naquela concepção de Italo Calvino, é exatamente o que necessita leitura, releitura e desleitura. Algo que também faz parte do empenho de bons escritores. Para ficarmos em um exemplo pouco conhecido: a dramaturga inglesa Sarah Kane concebeu, nos anos noventa, em plena era thatcherista, uma re/desleitura da tradição de Hipólito e Fedra que “começa” 18 com Eurípides, passa por Sêneca e sobrevive até a Europa moderna com Racine. Em Phaedra’s Love , Kane atualiza personagens e seus respectivos dramas, enfatizando a crítica aos costumes da realeza – o que também nos remete à coroa britânica – e, talvez mais importante, ao debate acerca da definição de estupro, tratamento obviamente ausente nos textos que o antecedem. Uma pedagogia formativa de escritores carece, portanto, de outro(s) modelo(s). E isso não diz respeito apenas ao currículo, ao que se trabalha em espaço de aula-oficina, de modo a incluir autorias historicamente menorizadas pelo grande circuito editorial, uma revisão, inclusive, já dada a cabo nesses últimos dez anos. Há, principalmente, a necessidade de outro método e, por extensão, outro modo de ler/reler/desler/fazer/desfazer literatura. Se aquilo que conhecemos por “literatura” é, também, parte de um projeto colonial bem sucedido – a medida em que foi a literatura a responsável por difundir as imaginações de fronteira e de nacionalidade, como diz Benedict Anderson, assim como, sendo o meio privilegiado do suporte escrito, pelo estabelecimento do grafocentrismo – temos, desse modo, um espaço potente de produção crítica decolonial que busque a desnaturalização de divisões positivistas e demais binarismos. Jamais me esqueço de um episódio que ocorreu na minha graduação: uma estudante intercambista, de Guiné-Bissau, pediu à professora, numa disciplina geralmente cursada por veteranos, a definição de literatura. Após a explicação mais rotineira possível, a aluna questionou: “então a boneca que costuro com outras mulheres da minha família é literatura?”. A docente, pacientemente, disse que não. A intercambista insistiu. Ao final, a definição pronta, que todos nós conhecemos, venceu. Ao menos, naquele espaço institucional.
Aquele “cabo de guerra” entre a minha professora e a minha colega dispunha, em cada uma de suas pontas, de perspectivas diferentes. Se na primeira encontrávamos a linearidade de um projeto crítico-literário, que não visava absorver quaisquer tipos de críticas e/ou concepções distintas de disputa ao lugar do literário, ou seja, tratava-se do mero incômodo com as margens; na segunda havia um questionamento ao centro, uma proposta que buscava derrubar os acordos ocidentais outrora estabelecidos entre as artes/artesanatos, nesse binarismo também limitador – não por acaso, provocação suscitada por uma estudante africana.
Penso, com isso, na roda: um dispositivo afrorreferenciado, um conceito pedagógico, nas palavras de Renato Noguera, que evoca outras rodas. Do candomblé ao jongo, da capoeira ao samba. Assim, a roda enuncia um tipo de método, uma tática que coloca perspectivas diversas no crivo do debate intelectual, reconhecendo que o consenso é uma impossibilidade, o diálogo em torno de abordagens diversas não serve para que cheguemos a algum tipo de “senso comum”. A roda é a possibili- dade de assumir que os interesses são diversos e que o embate não cessa pelo alcance de uma razão universal que diferencie o “verdadeiro” do “falso”. A roda nos convida para decidir tendo o encantamento como critério (NOGUERA, 2017,
Dentro da prática oficineira, a roda é uma ferramenta abundante: ela faz girar saberes e sabenças que transitam por outros corpos e espaços de produção, acolhe a oralidade de casa, os gestos ancestrais, as reinvenções possíveis da língua; ao mesmo tempo em que os sujeitos ao seu em torno fazem, tal qual uma ciranda, uma espécie de brincadeira de (re)criação performática: quando ministro oficinas, costumo oferecer dois ou três exercícios de escrita que devem ser feitos até certa data-limite, que geralmente marco um dia antes da última aula. Com os textos das/os/es participantes em mãos, estabeleço, a partir de combinações motivadas – ou seja, não se trata de sorteio ou qualquer outra sorte de aleatoriedade – quem vai ler o texto de quem. Por exemplo: se Renata, Cris, Pedro, Sol e Alice participam da minha oficina e, se na minha leitura de cada um de seus textos, identifico possíveis diálogos, sejam eles formais ou temáticos, faço assim:
Sol lê Cris
Cris lê Pedro
Pedro lê Renata
Renata lê Alice
Alice lê Sol
Uma versão imagética desse esquema nos ajuda a enxergar melhor o princípio da roda:
Tal circulação de leituras põe, na roda das/os/es participantes, além do contato com a obra do outro, a investigação, via performance, do projeto literário alheio. Propõe-se tipos de vocalidade, corporeidades, gestos e, talvez mais importante, a partilha de uma crítica generosa através da construção de um ambiente que produz um sentido prático de alteridade. Há, com isso, um exercício multidisciplinar, cujo propósito maior seja até ambicioso demais: a possibilidade da oficina de escrita ser também um lugar que promova um espaço alternativo de educação, de forma autônoma e que promova, com isso, outras visões possíveis de literatura.
Referências:
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Trad. Denise Bottman.
CALVINO, Italo. Porque ler os clássicos. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. Trad. Nilson Moulin.
FERREIRA, Ligia Fonseca (org.). Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial, 2011, p. 50-51.
KANE, Sarah. Phaedra’s Love. Bloomsbury Academic, 2008.
NOGUERA, Renato. Entre a Linha e a Roda: Infância e Educação das Relações Étnico-Raciais. Revista do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes (UNIGRANRIO). Vol 1, n. 17, 2017.
Bianca Gonçalves é poeta, prosadora, pesquisadora, professora, oficineira e performer. É doutoranda em Teoria e História Literária na Unicamp, mestra e graduada em Letras na USP. Tem dois livros de poesia: como se pesassem mil atlânticos (2019) e a sexualidade de meninas ex-crentes (2021). Já publicou em diversas antologias, como o segundo número da Antologia Poética da Revista Cult (2019), Poetas Negras Brasileiras (org. Jarid Arraes) e Poesia Hoje: Negra (org. Ricardo Aleixo), ambas de 2021.