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LEITURAS DO APOCALIPSE Tiago Novaes

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MAGALHÃES, Danielle. Ir ao que queima: no verso, o amor, no verso, o horror — Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura — Teoria Literária) — Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 361–388. 2020.

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HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). É importante começar começar essa história de algum lugar, ainda que arbitrário. In: As 29 Poetas Hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

FELMAN, Shoshana. Educação e Crise ou as Vicissitudes do Ensinar in: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.)

Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000

SLAM: Voz de levante. Direção: Tatiana Lohmann, Roberta Estrela D’Alva. Produção: Marisa Reis. Brasil, 2017

MAGALHÃES, Danielle; MITRANO, Bruna. megamíni encontros #4. Entrevistador: Alexandra Maia. YouTube, 17 mai. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=YHlGeQokpMY&t=769s> Acesso em: 15 mar. 2022

“Preparem-se.” É assim que começam estes livros. Devemos conceder o devido crédito a alguns de seus precursores, aqueles homens roucos da Praça da Sé com seus paletós folgados para os ombros finos, o couro de suas bíblias feito o pandeiro de uma marcha fúnebre, o discurso motivacional do medo na convicção de que os sinais já estão presentes entre nós. As literaturas do apocalipse ecoam, afinal, o próprio livro do Apocalipse e seus protagonistas a cavalo, sua nuvem de gafanhotos e suas vacas magras, seus primogênitos imolados, seu anticristo e sua festa inconsequente. Das ruas para as telas, para a aquisição de emissoras, para as versões monetizáveis da desgraça, seus advogados se confundem com os âncoras televisivos da violência urbana. Arrependam-se.

Agora que o fim dos tempos já é praticamente um consenso, estes homens não se aventuram mais na Praça da Sé. A mensagem ganhou o mundo. Em São Paulo, Tóquio e Barcelona, as livrarias têm reservado toda uma seção para estes livros – variações sobre a ideia do desastre sob os títulos mais sugestivos: “A terra inabitável”, de David Wallace-Wells, “Viver nas ruínas”, de Anna Tsing, “A sexta extinção”, de Elizabeth Kolbert, “O grande desatino: mudanças climáticas e o impensável”, de Amitav Ghosh. Ativistas, filósofos, cientistas políticos, jornalistas. O fim é fértil. O desespero galopante estimula, na melhor das hipóteses, um pensamento que duvida de si mesmo. Diante de um estímulo desagradável, nossos mecanismos de defesa se eriçam. As valas abertas da memória estão cheias de mensageiros das más notícias, e o que pode ser pior que a extinção? Conhecemos bem as nossas reações: o messianismo (a ciência vai dar um jeito), a melancolia e resignação (impotência criativa diante da potência destrutiva), a banalização (o novo normal) e um fenômeno de recusa de todas as descobertas científicas e seus métodos complicados. A lei da atração e a positividade tóxica, em escala global, não passam deste negacionismo furioso que quer sobrepor ameaças fantasiosas (conspirações Illuminati, o comunismo) aos riscos concretos e iminentes.

Já os leitores destes livros queremos saber o que vai acontecer. Como vamos terminar. Se temos tempo. Se é reversível. Se devemos botar filhos no mundo. Se eles vão poder desfrutar de uma infância ao menos parecida com a nossa. O que vamos comer, o que vamos respirar. Os pragmáticos querem saber as profissões que deixarão de existir e quais irão prosperar. Se vale comprar ações, se existe oportunidade na crise, se é aconselhável vender o imóvel em Santos. Se devemos nos deslocar para alguma parte, o que faremos com os nossos pais e avós. Se há maneiras de lutar, se algo nasce disso. Se existe algo curioso, ou até bonito, na catástrofe. Se a catástrofe será espetacular. Queremos entender se havia naqueles sonhos de criança, naquelas ondas que engoliam tudo, algo de profecia. Se os filmes de ficção científica acertavam, e se as nossas próprias especulações também não podem estar se esquecendo de algo.

O que dizem os cientistas é que a coisa vai de mal a pior do que se pensava. Preparem-se. Não será uma outra geração a pagar a conta, é a nos- sa, a mesma responsável por esta bagunça. Os fenômenos globais se retroalimentam. No escurecimento das geleiras que passam a absorver o calor que antes refletiam; na liberação das pluritoneladas de metano do Permafrost; nas labaredas de oitenta metros que engolfam uma biodiversidade da qual dependemos; na desertificação dos oceanos; no branqueamento dos corais; na secura dos mangues; no empobrecimento do solo; no surgimento de regiões inabitáveis; na fúria da Terra e na confusão de todos os elementos. As condições de prosperidade da vida, a vida mesma se incumbiu de limitá-la. Para além ou para aquém dos tantos graus Celsius, não existimos. E alas, nós conseguimos mexer com esta fina película que garantia a água doce, um solo cultivável, uma natureza mais ou menos previsível. E desandamos meio que a troco de nada ou de muito pouco. Em nome da comodidade – uma comodidade que geração nenhuma antes da nossa teve o luxo de provar – da fantasia de onipotência dos eletrodomésticos, do design apetitoso dos celulares. Foi em nome da disponibilidade diuturna para saciar qualquer apetite, da abundância da carne, do oásis de recursos infinitos – e isso para aqueles pouquíssimos que podiam realmente provar desta comodidade e desta abundância. O que nos enganou foi o mito do progresso e a ideia de que enfim começávamos a acertar como sociedade.

Acertar como?, contestarão. Ora, havia sinais de prosperidade. Nos últimos vinte e cinco anos, a população mundial a viver em estado de extrema pobreza caíra pela metade (de 1,9 bi a 735 mi entre 1990 e 2015). A expectativa de vida da população aumentou. As taxas de vacinação, de educação escolar, vinham crescendo. O acesso aos bens de consumo, ainda que concentrados, começavam a chegar à classe C. Não se falava mais em fome no Brasil. A situação melhorava, o que não queria dizer que estava boa. O trabalho seguia precarizado e inseguro, o capital estimulava desigualdades perver- sas, abusos sistêmicos e guerras endêmicas. Mas quem sabe isso também não mudaria nos próximos anos? Um tímido otimismo parecia razoável e embasava o projeto democrático. O que as literaturas do apocalipse aventam, contudo, é que esta prosperidade das últimas décadas foi financiada pela emissão dos gases. Um mundo sem petróleo jamais teria um crescimento anual médio de três por cento do PIB. As conquistas sociais, estimuladas pela necessidade de um mercado consumidor global, bebiam da exponencialidade das cadeias produtivas e nós enxergávamos isso como bem-estar social: onde plantávamos cinquenta, vamos plantar trezentos. O que custava dez agora custa cinco. Um projeto inviável.

O que joga contra nós é que se quisermos sobreviver, tudo vai ter de mudar. As matrizes energéticas, o maquinário das fábricas, as redes de produção e de escoamento dos produtos. A transformação global deverá se dar em um ritmo humanamente impossível, e não mais em nome da prosperidade, mas da sobrevivência. E para que isso aconteça, teremos de superar divisões pessoais e sociais, as bravatas políticas e a confusão das pseudociências. Pelo que vimos, vencer o ceticismo e a inércia custará muito mais do que o prejuízo e o sofrimento de uma única pandemia. A Europa anuncia um plano. Os Estados Unidos aprovaram um pacote ambiental bilionário. A China investe seu soft power em tecnologias verdes, como cidades permeáveis e sistemas de reaproveitamento das chuvas. Em contrapartida, este mesmo país terceiriza a degradação ambiental para outros países. A Rússia, um petro-Estado, tem muito a lucrar com o aquecimento e nenhum interesse em concertações com o Ocidente. Os Estados Unidos são dos maiores responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa e as Nações Unidas estão longe de constituírem uma governança global efetiva.

Mas não é apenas de profecias científicas que as literaturas do apocalipse são feitas. Uma corrente indireta se debruça sobre a cognição humana e esmiuça as falhas mais comuns dos automatismos do pensamento. É um debate que pressupõe a falibilidade recorrente de nossa capacidade de pensar. Se vamos morrer é porque a nossa espécie não consegue agir de forma independente de estímulos negativos ou positivos. Em situação de miséria ou pobreza, uma família pode não ter condições de fazer escolhas benéficas para a própria saúde ou para o planeta. E mesmo quando não é o caso, quando se tem uma margem de compra e de cálculo, a tendência é gastar o dinheiro ao invés de poupar. Comprar o produto mais barato com a pegada de carbono mais cara. O paladar de hoje não pode se importar menos com a doença coronariana de amanhã. É muito difícil – e não apenas para os negacionistas –inibir comportamentos recompensados de imediato, e este é um traço elementar de nossa espécie. Precisamos de estímulos para mudar: na pior das hipóteses, cidades costeiras naufragadas, migrações massivas, escassez de água doce; na melhor das hipóteses, uma arquitetura de escolhas inteligente (sinalizadores desagradáveis que nos lembram de quando passamos de determinado limite de consumo de energia elétrica, sanções e punições pesadas a empresas e corporações).

Uma terceira corrente estimula um olhar para a complexidade dos organismos vivos e para os mistérios do mundo invisível. São livros que se dedicam a investigar a existência dos bichos, das plantas, dos fungos. As noções de natureza e cultura se confundem, e descobrimos outras formas de inteligência que não a nossa. É como se apenas agora, prestes a perder o que sempre tomamos por certo, pudéssemos voltar os olhos para algo que não seja o demasiado humano, a tragédia ordinária, a história recorrente de conquistas e conquistadores. Uma vez que condenamos uma quantidade dantesca de espécies à extinção, e enquanto faze- mos isso, somos tomados por uma saudade profunda, uma consciência tardia e ainda platônica de que não passamos de uma espécie dentre bilhões de outras. Neste momento, a noção de indivíduo perde importância para a simbiose, a biologia se faz ecologia – um estudo das relações entre os organismos e o ambiente. Vamos percebendo que o mundo não vai acabar: quem vai acabar somos nós, e não como sinal da indiferença do Universo perante a dor humana, mas a de nossa própria indiferença. Se criaturas tão fascinantes como o leopardo-nebuloso-de-formosa, o rinoceronte-negro-ocidental e a tartaruga-das-galápagos-de-pinta desapareceram do planeta em decorrência da ação humana apenas nos últimos vinte anos (dentre muitas outras espécies), por que afinal isso não pode acontecerconosco?

Uma última corrente nos faz recordar que os arautos do apocalipse da Praça da Sé não foram os únicos precursores do fim dos tempos, e nem os mais antigos e interessantes. As culturas indígenas, as mitologias africanas, as narrativas aborígenes, todos têm a sua escatologia, a sua versão do crepúsculo do mundo. Como bem lembra Eduardo Viveiros de Castro, devemos voltar a nossa atenção a estes grupos inclusive porque eles já viveram muitas vezes a extinção e sobreviveram a ela ainda mais vezes. Um resgate deste saber cosmológico e desta sabedoria ancestral não representa, ao menos não necessariamente, um revival do movimento hippie ou o regresso do mito do “bom selvagem”, mas uma conciliação com o destino da espécie, um aprendizado da morte, uma abertura para aquilo que Natassja Martin chama de “intencionalidade não humana”. O eixo do mundo, que antes atravessava catedrais, universidades e centros financeiros, volta-se para a floresta, a cordilheira, o oceano, o deserto. É a ferida narcísica derradeira, a próxima revolução copernicana, esta em que os nossos sonhos voltam a povoar-se daquilo que não somos. Preparem-se.

Algumas leituras recomendadas: “Diante de Gaia” (Bruno Latour), “A terra inabitável”, (David Wallace-Wells), “Viver nas ruínas” (Anna Tsing), “A sexta extinção”, (Elizabeth Kolbert), “O grande desatino: mudanças climáticas e o impensável” (Amitav Ghosh), “Homo Deus” (Yuval Harari), “Racionalidade” (Steven Pinker), “A trama da vida” (Merlin Sheldrake), “A planta do mundo” (Stefano Mancuso), “Outras mentes” (Peter Godfrey-Smith), “O manifesto das espécies companheiras” (Donna Haraway), “Metamorfoses” (Emanuele Coccia), “A queda do céu” (Bruce Albert e Davi Kopenawa Yanomami), “Uma ecologia decolonial” (Malcom Ferdinand), “Banzeiro òkòtó” (Eliane Brum), “Escute as feras” (Natassja Martin).

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